Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10633/18.3T8LSB.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: ARRENDATÁRIO
VENDA
PRÉDIO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
VENDA DA COISA CONJUNTAMENTE COM OUTRAS
PREFERÊNCIA
PROCESSO DE SUPRIMENTO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Tendo sido notificada extrajudicialmente pela senhoria (1.ª Ré) do projecto e condições de venda da fracção habitacional, de que é arrendatária, em conjunto com as demais fracções do prédio urbano e por um preço global, deveria a preferente (Autora) não só ter declarado que queria preferir apenas em relação à fracção de que é arrendatária, como requerer logo e no prazo de oito dias contado daquela comunicação, a determinação do preço que devesse ser atribuído proporcionalmente ao locado, recorrendo, para o efeito, ao processo de suprimento previsto no art.º 1004.º do Código de Processo Civil, por aplicação do artigo 1029.º do mesmo diploma legal e do art.º 417.º do Código Civil, na redacção anterior à dada pela Lei n.º 64/208, de 29 de Outubro.
II - Não tendo lançado mão do processo de suprimento, com tal finalidade, tem de se considerar que a Autora não exerceu validamente o direito de preferência e que este se extinguiu, por caducidade, no termo do referido prazo de oito dias [n.º 2 do artigo 416.º do Código Civil].
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório[[1]]:
1. M…, residente na  (…), em Lisboa, intentou a presente acção declarativa de processo comum contra MM… com morada na (…) e S… – SUCURSAL EM PORTUGAL, com sede na (..), em Lisboa, pedindo que o Tribunal:
a) condene as Rés ao reconhecimento do direito legal de preferência à Autora pela aquisição da fracção de que é arrendatária, pelo preço que proporcionalmente lhe corresponde, isto é, € 89.600,00;
b) declare nulo o registo de aquisição lavrado sob o número 3076 de 31 de Outubro de 2017 convertido em definitivo por averbamento com apresentação n.º 1973 de 29/11/2017;
Em alternativa:
c) declare nulo o contrato de compra e venda, com a forma de escritura público, por ser negócio simulado.
Em alternativa aos anteriores:
d) declare ineficaz a declaração para o exercício do direito de preferência, por preterição de formalidades essenciais da declaração, nomeadamente por omissão de elementos obrigatórios da notificação.
Cumulativamente:
e) condene a 1.ª Ré em responsabilidade civil por acto ilícito e por danos patrimoniais e morais, incluindo rendas pagas desde o exercício do direito de preferência em Novembro de 2017.
Para tanto, alega, em resumo, o que se segue:
- É arrendatária da fracção referente ao primeiro andar direito do prédio sito na Calçada do Galvão., n.º 43;
- A 13 de Novembro de 2017 foi recebida pela Autora notificação, expedida pela 1.ª Ré, para os efeitos do artigo 416.º do Código Civil;
- Na comunicação, faltam elementos essenciais, nomeadamente a existência de contratos de arrendamento, a indicação da data, hora e local exacto do contrato definitivo;
- Aquando da primeira comunicação, o contrato-promessa de compra e venda já tinha sido celebrado há 26 dias;
- A Autora exerceu o seu direito de preferência e as Rés omitiram tal facto, intencionalmente e com o intitulo de enganar a Autora, na escritura de compra e venda celebrada, pelo que o negócio é nulo, por simulado.
2. Apesar de regularmente citadas, apenas a 2.ª Ré, (..)apresentou contestação, aceitando a maior parte do acervo alegado pela Autora, não aceitando as consequências jurídicas que a mesma retira desses factos, porquanto a mesma não exerceu efectivamente o direito de preferência e referindo que a Autora não alega quanto ao negócio simulado nem a divergência entre a vontade real e a declaração negocial, nem sequer o acordo simulatório.
Conclui pela improcedência da acção.
*
3. Realizou-se audiência prévia, na qual se facultou às partes a discussão de facto e de direito, conforme acta com a ref.ª 387738685, de 5 de Junho de 2019. .
4. Na sequência, com data de 10-07-2019, veio a ser proferido saneador-sentença, com a ref.ª Citius 387762531 que julgou a acção improcedente e absolveu as Rés dos pedidos.
5. Inconformada, apelou a Autora para esta Relação, rematando as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
«a) O presente recurso tem por objecto a decisão proferida em despacho saneador que julgou improcedente:
i. o pedido do reconhecimento do direito de preferência à Autora, pela aquisição da fracção que é arrendatária;
ii. o pedido de declaração de nulidade do registo de aquisição lavrado sob o número 3076 de 31/10/2017 convertido em definitivo por averbamento com apresentação n.º 1973 de 29/11/2017;
iii. o pedido de declaração de nulidade do contrato de compra e venda, por simulação e o pedido de declaração de ineficácia da declaração para o exercício do direito de preferência, por preterição de formalidades essenciais da declaração, e
iv. igualmente improcedeu o pedido de condenação da 1ª Ré em responsabilidade civil, por acto ilícito.
b) A decisão recorrida errou na apreciação da matéria de facto, bem como na aplicação do direito. Pois senão vejamos.
i. O Tribunal a quo deu como provado, no ponto 6, a celebração de contrato promessa de compra e venda entre a 1ª e 2ª ré, mas não retirou qualquer consequência quer de facto, quer de direito do seu conteúdo, nomeadamente quanto à fixação do preço da fracção C.
ii. Desconsiderou, também, o Tribunal a quo que, aquando da celebração do contrato prometido, por escritura pública, uma vez mais, 1ª e 2º ré vieram estabelecer o preço atribuído à fracção C e que, mesmo assim, tenha chegado à conclusão que deveria ter a Autora, aqui recorrente, requerido judicialmente, pela via do arbitramento judicial, a determinação do preço da sua fracção, quando este foi expressamente, em mais do que um momento estabelecido pelas duas rés.
iii. Com efeito, a Autora depois de ter tomado conhecimento do preço estabelecido pelas rés, nunca contestou o valor estabelecido. Veja-se que o valor da acção, corresponde ao valor fixado pelas recorridas, o depósito feito junto do Tribunal a quo, corresponde exactamente ao valor fixado pelas recorridas contratualmente e nos articulados juntos aos presentes autos nunca foi suscitada tal matéria, pois como se disse não é controvertida.
iv. Exigir uma acção judicial para fixar um valor que foi fixado livremente pelas partes – como faz o Tribunal a quo, é exigir a uma das Partes a prática de um acto judicial absolutamente inútil, colocando em causa o princípio da economia processual.
c) Enferma, também, em erro de raciocino a decisão recorrida pois, se por um lado, entende como relevante a fixação do preço relativo à fracção que se prometeu vender. Por outro lado, imputa por irrelevante a circunstância de, no momento em que foi feita a comunicação para o exercício do direito de preferência, já existir acordo entre as rés o preço da fracção, e este ter sido omitido de tal comunicação.
A incongruência é evidente.
d) Mais, apesar da 1ª ré não ter vindo aos autos exercer o contraditório, entendeu o Tribunal a quo como eficaz, para efeitos de aplicação do art.º 416 e 417º do código civil a alegação da vendedora, 1ª ré, de prejuízo apreciável, que impunha a venda por preço global.
e) Por não se conhecer a posição da vendedora, aqui recorrida, 1ª ré, importa atender a comunicação que foi junta aos autos.
f) Alega a 1ª ré que o prejuízo apreciável para a vendedora – o que releva para efeitos de aplicação do citado art. 417º - que “não tem condições para assegurar a conservação do mesmo.”
g) Entendeu o Tribunal a quo apenas com esta referência genérica, não fundamentada ou sequer circunstanciada, suficiente para aplicação do regime jurídico do art416º e 417º do código civil.
h) Não ficou demonstrado, através da prova documental apresentada nos autos, a existência de um prejuízo apreciável.
Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências a quanto alegado, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogada a decisão recorrida, com as legais consequências, isto é, que seja reconhecido o direito legal de preferência à Autora, aqui recorrente, para aquisição da fracção de que é arrendatária, pelo preço que proporcionalmente lhe corresponde, que a recorrente aceita, isto é, € 89.600,00 (oitenta e nove mil e seiscentos euros); e declare nulo o registo lavrado sob o número 3076 de 31 de Outubro de 2017 convertido em definitivo por averbamento com a apresentação n.º 1973 de 29.11.2017.
Caso assim não se entenda deverá este Digníssimo Tribunal ordenar a realização de audiência de discussão e julgamento, para boa decisão da causa, sendo facultada às partes a realização de diligências de prova.»
6. A Ré S…, SL., respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência e consequente confirmação da sentença recorrida, nos seguintes termos conclusivos:
«I. O Tribunal a quo julgou a acção proposta pela Autora Recorrente improcedente, não reconhecendo que lhe assiste o direito de preferência na venda do prédio adquirido pela Ré/Recorrida.
II. Resulta da matéria de facto provada que foi remetida notificação à Autora Recorrente para, querendo, exercer o seu direito de preferência sobre a totalidade das fracções, pelo preço global de €700.000,00.
III. Na sua comunicação de 17 de Novembro de 2017, a Autora Recorrente apenas solicitou (e não requereu) que lhe fosse “informado o valor atribuído à fracção autónoma com a letra “C”, correspondente ao primeiro andar direito do prédio urbano sito na Calçada do Galvão, n.º 43, bem como das condições de venda da referida fracção para poder materializar o exercício de direito de preferência.” (sublinhado nosso) – ponto 3 da matéria de facto assente.
IV. O Tribunal a quo reconheceu – de acordo com a jurisprudência maioritária - que não tendo a Autora Recorrente aceite a aquisição conjunta de bens comunicada pela obrigada à preferência (a 1.ª Ré ), esta não estava vinculada a discriminar o preço de cada coisa integrante do conjunto.
V. Querendo a Autora Recorrente exercer o alegado direito de preferência parcial, deveria ter requerido arbitramento judicial para determinar o valor proporcional, nos termos do n.º 2 do artigo 1029.º e 1004.º do CPC – v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11.07.2014, relator Fonseca Ramos, processo n.º 599/11.6TVPRT.P2.S1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6263f15a60ac757b80257d0900351139?OpenDocument.
VI. As expressões escolhidas pela Autora Recorrente, na sua comunicação de 17 de Novembro de 2017, parecem indicar que, uma vez informada do preço parcial e das condições de venda, ainda iria ponderar se exerceria ou não o direito de preferência.
VII. Não obstante, dúvidas não existem de que a Autora Recorrente querendo optar pela preferência parcial, sempre teria de requerer a determinação judicial do preço da fracção C.
VIII. De acordo com as regras notariais e fiscais, os imóveis que sejam objecto de escritura pública serão sempre identificados, pelos respectivos números matriciais com indicação dos valores patrimoniais constantes da matriz, nada impedindo que as partes lhes atribuam valores superiores aos matriciais, como é comum, sendo certo que tais valores determinam, por sua vez, o valor dos emolumentos a pagar pelo acto notarial.
IX. Não obstante as Rés terem convencionado um valor global para o conjunto das fracções, não podiam deixar de indicar o valor individual de cada uma, sendo óbvio que a soma desses valores individuais tinha de coincidir com o valor global do negócio, pelo que utilizaram a fórmula matemática de divisão do preço do negócio pela permilagem de cada fracção. – v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.03.2011, relator Moreira Alves, processo n.º 1113/06.0TBPVZ.P1.S1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/027de509ef43b26280257872003abaf8?OpenDocument.
X. A comunicação da R., embora expedida no prazo legal para exercício do direito de preferência, não constitui uma declaração efectiva de exercício de direito de preferência, razão pela qual o direito se extinguiu por caducidade no termo do referido prazo.
XI. Como resulta da matéria de facto provada, a comunicação enviada pela A. era condicional, e fazia depender o seu exercício, não só da comunicação do preço parcial, mas também do fornecimento de elementos adicionais (as condições de venda) que não eram exigíveis à R. porquanto a comunicação enviada reunia todos os elementos legalmente exigíveis.
XII. Alega a Autora Recorrente que a Ré MM... omitiu – conhecendo – o preço.
XIII. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é impressiva, mas no sentido contrário àquele defendido pela Autora Recorrente.
XIV. Nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 11.07.2014, relator Fonseca Ramos, processo n.º 599/11.6TVPRT.P2.S1 e de 16.03.2011, relator Moreira Alves, processo n.º 1113/06.0TBPVZ.P1.S1 -, dúvidas não existem que:
(a) O obrigado à preferência não está vinculado a discriminar o preço de cada coisa integrante do conjunto.
(b) Se o obrigado à preferência pretende vender todas as fracções do prédio conjuntamente e tem comprador para elas, é esse o projecto concreto que tem de comunicar aos arrendatários, concedendo-lhes a preferência nessas condições; exactamente porque quer vendê-las por um preço global (como a lei lhe faculta).
(c) A menção discriminada dos preços dos imóveis vendidos em conjunto, para efeitos da escritura pública de compra e venda, resulta de uma obrigação legal prevista no Código do Notariado.
XV. A Ré MM... deu a conhecer – nos termos do artigo 416.º, n.º 1 do Código Civil – os elementos essenciais da venda projectada, nomeadamente o preço (da venda projectada), as condições de pagamento e a identidade do adquirente.
XVI. Nos termos do artigo 568.º, alínea a) do CPC, a contestação apresentada pela Ré Recorrida aproveita à Ré MM....
XVII. Assim, dá-se por integralmente reproduzido os argumentos invocados nos artigos 78.º a 94.º da Contestação:
XVIII. Ao contrário do que a Autora Recorrente alega, a 1.ª Ré MM..., na notificação para exercício do direito de preferência justificou sobejamente as razões pelas quais a separação das fracções tornaria o negócio inviável com prejuízo assinalável para a vendedora.
XIX. Resulta dos autos que o prédio (conjunto das fracções) carece de obras de conservação e reabilitação.
XX. A 1.ª R. não tem saúde nem idade (tem actualmente oitenta e um anos) para realizar as ditas obras.
XXI. Na notificação para o exercício do direito de preferência explica-se que a promitente-compradora é uma sociedade que se dedica à reabilitação e reforma de edificações,
XXII. Que pretende adquirir a totalidade do edifício como forma de assegurar a viabilidade de todas as reformas e intervenções que tem projectadas para o edifício.
XXIII. Sendo essencial para esta que a compra inclua todas as fracções.
XXIV. Do ponto de vista da vendedora (1.ª R), a notificação explica que o prejuízo apreciável na frustração da venda se traduz no facto de esta, “não (ter) condições para assegurar a conservação do (imóvel)”.
XXV. A própria Autora Recorrente tem conhecimento da dificuldade de a 1.ª R. levar a cabo as obras necessárias de conservação do imóvel.
XXVI. Por todo o exposto, ficou demonstrado nos presentes autos a existência de prejuízo apreciável para a vendedora na venda separada das fracções, pelo que se aplica o disposto no artigo 417.º do Código Civil.»
7. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II - Objecto e delimitação do recurso
De acordo com o disposto nos artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil [CPC], é pelas conclusões da alegação do recorrente que se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer oficiosamente, estando esta Relação adstrita à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso (art.º 130º do CPC). Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, contanto que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[[2]].
No caso, atendendo às conclusões do recurso, no confronto com a sentença recorrida, importa saber:
- Se a Recorrente, arrendatária de uma fracção de prédio urbano constituído em propriedade horizontal, foi validamente notificada para exercer o direito de preferência, tendo em conta que a senhoria proprietária apenas aceitava vender a totalidade das fracções do prédio, por um preço global;
- Se a senhoria estava obrigada a indicar as condições da venda e o preço discriminado/proporcional pelo qual a Autora, aqui Recorrente, poderia exercer o direito de preferência;
-
III – Fundamentação
A) Motivação de Facto
Na sentença recorrida, foram considerados assentes, por terem sido admitidos por acordo ou estarem provados por documentos, os seguintes factos [acrescentámos o que consta entre parêntesis rectos, bem como o sublinhado (art.º 662.º, n.º 1, do CPC]:
«1. A Autora …é arrendatária da fracção [autónoma designada pela letra “C”], referente ao primeiro andar direito do prédio sito na Calçada do Galvão, n.º 43 [e 43-A], em Lisboa – artigo 1.º da petição inicial.
2. No dia 13 de Novembro de 2017, foi recebida pela Autora a notificação expedida pela 1.ª Ré .. com o seguinte teor:
Venho pela presente, na qualidade de proprietária do prédio urbano sito na Calçada do Galvão, n.º 43 e 43-A, em Lisboa, informar que pretendo proceder à venda do referido prédio onde se inclui o primeiro andar direito, fracção autónoma “C”, arrendada a V. Exa.
Assim, e pela presente, sou a comunicar a V. Exa. os termos e condições da referida venda:
Adquirente: S…, SL – SUCURSAL EM PORTUGAL, com sede na Rua da Vitória, n.ºs 42-48, 5.º, 1.º, em Lisboa, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva 980.419.166, cujo objecto social inclui “a reabilitação e reforma de todo o tipo de edificações”;
Objecto da Venda: a totalidade do prédio urbano sito na (…), em Lisboa, constituído em propriedade horizontal, o que inclui as nove fracções autónomas respectivas, correspondentes às letras “A” a “I”, composto por rés-do-chão, três andares e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número … da freguesia de Santa Maria de Belém, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 000  da freguesia de Belém
Preço da Compra e Venda : € 700.000,00 (setecentos mil euros);
Condições de Pagamento do Preço da Compra e Venda:
(a) € 300.000,00 (trezentos mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento do preço, pagos com a celebração do contrato promessa de compra e venda, em 19 de Outubro de 2017;
(b) o remanescente no montante de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros) com a celebração do contrato prometido, a qual terá lugar no prazo de 45 dias após a celebração do contrato promessa de compra e venda.
Condições de Venda: tendo em conta a necessidade de realização de avultadas obras de conservação e reabilitação no prédio, é condição essencial para ambas as partes e para a compra e venda prometida que o Prédio, apesar de constituído em propriedade horizontal seja vendido na sua totalidade, por forma a que a Promitente-Vendedora transita a totalidade das fracções autónomas e a Promitente-Compradora adquira a totalidade da permilagem e respectivos direitos de voto no condomínio do prédio. A aquisição da totalidade das fracções autónomas é condição essencial para que a Promitente Compradora, uma sociedade cujo objecto social é a reabilitação e reforma de todo o tipo de edificações, assegure a viabilidade das intervenções que pretende efectuar no prédio.
Exercício da Preferência: Tratando-se de venda de coisa conjuntamente com outras, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 417.º do Código Civil, e sendo certo que a separação de qualquer fracção não poderá ser efectuada sem que o negócio, nos termos e pelos preços e condições pretendidas pelas partes, se torne inviável, o que se traduziria num prejuízo apreciável para a vendedora que, de outra forma, não tem condições para assegurar a conservação do mesmo, o exercício do direito de preferência deverá abranger a totalidade das fracções, pelo preço global dos € 700.000,00 (setecentos mil euros) acima referidos.
Face ao direito de preferência que legalmente é atribuído a V. Exa., aguardarei por 8 (oito) dias que nos comunique se pretende exercer o mesmo, nos termos acima referidos, sendo que a falta de resposta, dentro daquele prazo, implicará a renúncia de V. Exa. ao exercício daquele direito, com as legais consequências.
(…)”.
3. Por carta de 17 de Novembro de 2017, a Autora dirigiu [aos Ilustres Mandatários da Ré] comunicação com os seguintes termos:
Assunto: Exercício do Direito de Preferência
M…s, na qualidade de viúva de O…s, arrendatária da fracção autónoma com a letra “C”, correspondente ao primeiro andar direito do prédio urbano sito na(…), notificada por V. Exa., por carta data de 31 de Outubro de 2017, recebida a 13 de Novembro de 2017, da celebração de um contrato promessa de compra e venda sobre a totalidade do imóvel, vem exercer o direito de preferência na aquisição da fracção autónoma identificada pela letra “C” de que é arrendatária.
Com efeito, nos termos do previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 1091.º do Código Civil, o arrendatário tem direito de preferência na compra e venda do local arrendado. Uma vez que o imóvel, objecto de contrato promessa, se encontra constituído em propriedade horizontal, a Arrendatária apenas tem direito ao exercício do direito de preferência sobre a fracção autónoma de que é arrendatária e não sobre a totalidade do imóvel.
Não colhe, por isso, a remissão para o artigo 417.º do Código Civil. Não obstante o número 1 do artigo 417.º prever a possibilidade da venda de uma coisa em conjunto com outras, por um preço global, prevê-se no número 1, in fine, que a obrigação de exercício do direito de preferência sobre a totalidade do bem cessa se for possível separar os bens “sem prejuízo apreciável”. Com efeito, o bem não só é passível de ser dividido, como já se encontra dividido, por força da constituição em propriedade horizontal. Estamos, por isso, perante coisas divisíveis, nos termos do artigo 209.º do Código Civil.
Em face do exposto, solicitamos que nos seja informado o valor atribuído à fracção autónoma com a letra “C”, (…), bem como das condições de venda da referida fracção para poder materializar o exercício de direito de preferência.
Não podemos deixar de anotar que o exercício do direito de preferência devia ter sido feito antes da celebração do contrato promessa, sob pena de invalidade do mesmo.
(…)”.
4. A 1.ª Ré, através do seu Mandatário, remeteu carta à Autora, [que a recebeu], datada de 27 de Novembro de 2017, com o seguinte teor:
Acusamos a recepção da V. carta de 17 de Novembro, que agradecemos.
Verificamos que, não obstante a comunicação para o exercício do direito de preferência tenha especificado que o exercício do direito legal de preferência deveria abranger a totalidade das fracções, pelo preço global aí indicado, e procurado justificar as razões que justificam o prejuízo apreciável que resultaria de um exercício individualizado dos direitos de preferência relativamente a cada fracção em particular, V. Exa. pretende exercer o direito de preferência exclusivamente em relação a uma fracção.
Neste momento, o prédio em causa carece de intervenções que assegurem a sua sustentabilidade. Essas intervenções, conforme é do conhecimento de V. Exa., não têm vindo a ser realizadas pela actual proprietária, por falta de viabilidade económica. Assim, a venda do edifício na sua totalidade e a transmissão da totalidade de direitos de voto no condomínio é condição essencial para que a compradora possa assegurar as intervenções necessárias, carecendo o negócio de qualquer viabilidade se essa transmissão não se verificar.
Ora, pelas razões expostas na referida comunicação para o exercício do direito de preferência, consideramos que a intenção de exercício do direito de preferência manifestada na sua carta de 17 de Novembro não é eficaz, porque não corresponde à realidade objecto da preferência.
(…)”.
5. A 5 de Dezembro, foi a Autora notificada pela 2.ª Ré …da sua qualidade de nova proprietária de todo o prédio sito na Calçada do Galvão, n.º 43 e 43 A.
6. O contrato promessa de compra e venda entre a 1.ª Ré e a 2.ª Ré foi celebrado no dia 19 de Outubro de 2017.
7. Foi celebrada [entre a 1.ª Ré, na qualidade de vendedora, e a 2.ª Ré, na qualidade de compradora] escritura pública de compra e venda no dia 29 de Novembro de 2017, [mostrando-se a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio e sua fracção “C” definitivamente inscrita a favor da 2.ª Ré, pela Ap. 1943, de 29/11/2017, na Conservatória do Registo Predial da freguesia de Santa Maria de Belém]
8. No documento complementar à escritura pública de compra e venda foi atribuído o preço de € 89.600,00 à fracção autónoma designada pela letra “C”.»
 B) Motivação de Direito – mérito do recurso
Como nota prévia, dir-se-á que a Autora, aqui Recorrente, tal como se alcança da leitura integral das conclusões e ao contrário de que resulta da leitura isolada da conclusão formulada sob a alínea a), restringiu o recurso ao segmento da sentença recorrida que apreciou e julgou improcedente os pedidos de reconhecimento do direito de preferência da Autora e de ineficácia da declaração para o exercício do direito da preferência (o do cancelamento do registo é una decorrência do tais pedidos), tendo-se conformado com o decidido relativamente ao pedido subsidiário, de declaração de nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda celebrado entre as Rés, e ao pedido cumulativo, de condenação da 1.ª Ré no âmbito da responsabilidade civil, por facto ilícito.
*
Vejamos então.
Não oferece controvérsia que entre a Autora, como arrendatária, e a 1.ª Ré, como senhoria, vigorou um contrato de arrendamento para fim habitacional, referente ao primeiro andar direito do prédio sito (…)em Lisboa.
Por força do art.º 1091.º, n.º 1, al. a), do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei n. º 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), na versão anterior à dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de Outubro, à Autora, por ser arrendatária, assistia direito de preferência na venda do aludido prédio, devendo a senhoria (1.ª Ré) e obrigada à preferência, notificá-la como titular preferente do projecto de venda e das cláusulas do respectivo contrato - art.º 416º, n.º 1, do Código Civil – por a venda do local arrendado originar o nascimento desse direito na sua esfera jurídica.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7-07-1994, CJ/STJ, Tomo III, pág. 49, “O direito de preferência do locatário nasce no património deste quando e sempre que se verifique o pressuposto que o condiciona: venda do local arrendado”.
Como se refere na sentença recorrida, tem sido muito discutida, sobretudo na doutrina, a natureza jurídica do direito de preferência, defendendo uns que configura um direito real de aquisição ou de crédito e outros que se trata de um direito potestativo. O Professor AGOSTINHO CARDOSO GUEDES[[3]], entende que o direito de preferir é um direito potestativo constitutivo da obrigação de celebrar um contrato futuro, que “o direito de preferir traduz-se num direito a operar uma modificação jurídica na esfera do sujeito passivo, que é a constituição de um dever do senhorio de contratar com o preferente, em detrimento de certo terceiro; quando a doutrina se refere, a este propósito, a direitos com eficácia real, designando o pacto de preferência com eficácia real e o direito legal de preferência, está apenas a referir-se a uma característica do direito do preferente – a de que o seu efeito útil não é afectado por um acto de alienação a um terceiro.
Esta eficácia real significa que o dever de alienar constituído pelo preferente mediante o exercício do seu direito não é afectado por qualquer acto de alienação a favor de um terceiro. Para além de se constituir sempre o dever do sujeito passivo de alienar ao preferente, este dever é sempre susceptível de execução específica, nos termos acima referidos, ainda que o sujeito passivo (agora devedor) já tenha alienado a terceiro. […].”
Por sua vez, o Professor HENRIQUE MESQUITA[[4]],defende que “o direito de preferência dotado de eficácia erga omnes não pode qualificar-se como um puro e simples direito potestativo. Trata-se, antes, de uma relação jurídica complexa, integrada por direitos de crédito e direitos potestativos, que visam proporcionar e assegurar ao preferente uma posição de prioridade na aquisição, por via negocial de certo direito, logo que se verifiquem os pressupostos que condicionam o exercício da prelação […]”.
Em qualquer das teses reconhece-se o direito do preferente exercer a prelação, mesmo com o sacrifício de terceiro, ou seja, de haver para si a coisa alienada, nos termos do art.º 1410.º, n.º 1, do Código Civil.
A Recorrente considera que não foi validamente notificada para exercer o direito de preferência na medida em que, querendo exercer tal direito apenas em relação à fracção autónoma de que é arrendatária, e pretendendo a obrigada à preferência [1.ª Ré] vender todas as fracções do prédio em conjunto por um valor global, tinha jus a que lhe fosse indicado o valor proporcional devido, o que a vendedora não fez, por ter projectado vender o prédio em conjunto e por um preço global, argumentando, para o efeito, que o exercício do direito de preferência teria de ser exercido sobre a totalidade das fracções do prédio, que “a separação de qualquer fracção não poderá ser efectuada sem que o negócio, nos termos e pelos preços e condições pretendidas pelas partes, se torne inviável, o que se traduziria num prejuízo apreciável para a vendedora que, de outra forma, não tem condições para assegurar a conservação do mesmo”.
O arrendatário, seja habitacional seja comercial, tem um direito legal de preferência – que muitos consideram um direito real de aquisição - querendo o dono e senhorio alienar o imóvel arrendado. Nestes casos impende sobre o obrigado à preferência o dever de dar conhecimento ao preferente para, querendo, optar pela compra, oferecendo “tanto por tanto”.
O art.º 416º do Código Civil estatui:
1. Querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato.
2. Recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo.”
Por sua vez, art.º 417º do citado Código,
“1. Se o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode o direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, sendo lícito, porém, ao obrigado exigir que a preferência abranja todas as restantes, se estas não forem separáveis sem prejuízo apreciável.
2. O disposto no número anterior é aplicável ao caso de o direito de preferência ter eficácia real e a coisa ter sido vendida a terceiro juntamente com outra ou outras”.
Este normativo é aplicável ao caso em apreço, uma vez que a obrigada à preferência pretendia vender a fracção autónoma sujeita a preferência [fracção autónoma “C”, correspondente ao primeira andar direito] juntamente com as restantes fracções do prédio urbano, por preço global.
Por carta datada de 13.Nov.2017, recebida pela Autora, aqui Recorrente, aludida no ponto 2 dos factos provados, foi a mesma informada que a 1ª Ré tinha uma proposta de compra para o seu “prédio urbano sito na Rua do Galvão, n,º 43 e 43-A, em Lisboa”. Aí se diz: “Preço da compra e venda: € 700.00,00 (setecentos mil euros).
Da mesma missiva, consta, ainda:
Condições de Venda: tendo em conta a necessidade de realização de avultadas obras de conservação e reabilitação no prédio, é condição essencial para ambas as partes e para a compra e venda prometida que o Prédio, apesar de constituído em propriedade horizontal seja vendido na sua totalidade, por forma a que a Promitente-Vendedora transita a totalidade das fracções autónomas e a Promitente-Compradora adquira a totalidade da permilagem e respectivos direitos de voto no condomínio do prédio. A aquisição da totalidade das fracções autónomas é condição essencial para que a Promitente Compradora, uma sociedade cujo objecto social é a reabilitação e reforma de todo o tipo de edificações, assegure a viabilidade das intervenções que pretende efectuar no prédio.
Exercício da Preferência: Tratando-se de venda de coisa conjuntamente com outras, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 417.º do Código Civil, e sendo certo que a separação de qualquer fracção não poderá ser efectuada sem que o negócio, nos termos e pelos preços e condições pretendidas pelas partes, se torne inviável, o que se traduziria num prejuízo apreciável para a vendedora que, de outra forma, não tem condições para assegurar a conservação do mesmo, o exercício do direito de preferência deverá abranger a totalidade das fracções, pelo preço global dos € 700.000,00 (setecentos mil euros) acima referido.”
Mostra-se igualmente provado que à referida comunicação para o exercício do direito de preferência, respondeu a Autora, por carta datada de 17.Nov.2017, aludida no ponto 3 dos factos provados, com os seguintes dizeres:
Assunto: Exercício do Direito de Preferência
M…s, na qualidade de viúva de O..s, arrendatária da fracção autónoma com a letra “C” […], notificada por V. Exa. […], da celebração de um contrato promessa de compra e venda sobre a totalidade do imóvel, vem exercer o direito de preferência na aquisição da fracção autónoma identificada pela letra “C” de que é arrendatária.
Com efeito, nos termos do previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 1091.º do Código Civil, o arrendatário tem direito de preferência na compra e venda do local arrendado. Uma vez que o imóvel, objecto de contrato promessa, se encontra constituído em propriedade horizontal, a Arrendatária apenas tem direito ao exercício do direito de preferência sobre a fracção autónoma de que é arrendatária e não sobre a totalidade do imóvel.
Não colhe, por isso, a remissão para o artigo 417.º do Código Civil. Não obstante o número 1 do artigo 417.º prever a possibilidade da venda de uma coisa em conjunto com outras, por um preço global, prevê-se no número 1, in fine, que a obrigação de exercício do direito de preferência sobre a totalidade do bem cessa se for possível separar os bens “sem prejuízo apreciável”. Com efeito, o bem não só é passível de ser dividido, como já se encontra dividido, por força da constituição em propriedade horizontal. Estamos, por isso, perante coisas divisíveis, nos termos do artigo 209.º do Código Civil.
Em face do exposto, solicitamos que nos seja informado o valor atribuído à fracção autónoma com a letra “C”, correspondente ao primeiro andar direito do prédio urbano sito na Calçada do Galvão, n.º 43, bem como das condições de venda da referida fracção para poder materializar o exercício de direito de preferência.
Não podemos deixar de anotar que o exercício do direito de preferência devia ter sido feito antes da celebração do contrato promessa, sob pena de invalidade do mesmo.
Em resposta, a 1.ª Ré remeteu carta à Autora, que a recebeu, datada 27.Nov-2017, aludida no ponto 4 dos factos provados, a informar, além dos mais:
Verificamos que, não obstante a comunicação para o exercício do direito de preferência tenha especificado que o exercício do direito legal de preferência deveria abranger a totalidade das fracções […], V. Exa. pretende exercer o direito de preferência exclusivamente em relação a uma fracção.
Neste momento, o prédio em causa carece de intervenções que assegurem a sua sustentabilidade. Essas intervenções, conforme é do conhecimento de V. Exa., não têm vindo a ser realizadas pela actual proprietária, por falta de viabilidade económica. Assim, a venda do edifício na sua totalidade e a transmissão da totalidade de direitos de voto no condomínio é condição essencial para que a compradora possa assegurar as intervenções necessárias, carecendo o negócio de qualquer viabilidade se essa transmissão não se verificar.
Ora, pelas razões expostas na referida comunicação para o exercício do direito de preferência, consideramos que a intenção de exercício do direito de preferência manifestada na sua carta de 17 de Novembro não é eficaz, porque não corresponde à realidade objecto da preferência.
Vem igualmente que a 29.Nov.2017 foi celebrada escritura pública de compra e venda pela qual a primeira vendeu à segunda o imóvel e a sua fracção designada pela letra “C”, na qual as partes atribuíram a esta o preço de €89.000,00 (oitenta e nove mil euros).
Resultou, assim, provado que a Autora informou a 1.ª Ré, obrigada à preferência, de que pretendia exercer o seu direito de preferência mas apenas quanto à fracção de que é arrendatária, solicitando, para tanto, informação sobre o valor atribuído à fracção autónima, bem como as condições de venda da referida fracção.
A essa comunicação da Autora da intenção de exercer o direito de preferência sobre o locado, obtemperou a 1.ª Ré que considerava ineficaz a intenção de exercício do direito de preferência manifestada porque não correspondia à realidade objecto da preferência, ao projecto de venda comunicado para efeitos de exercer a prelação, que abrangia todas as fracções autónimas, por um preço global.
É aqui que reside, no essencial, a discórdia entre as partes, pois a Autora considera que exerceu validamente o direito de preferência e que a notificação para preferência foi efectuado com preterição dos requisitos legais, seja porque não foi indicado o preço atribuído à fracção autónoma locada, seja por falta indicação de data e hora e local da escritura e dos encargos que oneravam o referido imóvel.
Que dizer?
A propósito desta questão, discorreu-se na sentença recorrida:
“Estaria a 1.º Ré vendedora obrigada a comunicar à Autora o preço parcelar nos termos por si requeridos, ou seja, no contexto do preço global por que pretendia vender, o preço proporcional do imóvel locado à Autora?
Decorre do artigo 417.º, n.º 1, do Código Civil que o obrigado à preferência tem direito a vender a coisa sobre que incide um direito de preferência conjuntamente com outras, e por um preço global; neste caso o titular preferente, não interessado na opção pela aquisição do conjunto em venda, pode exercer o seu direito pelo preço que proporcionalmente for atribuído; o obrigado à preferência só pode opor-se a esta pretensão de “divisão proporcional”, exigindo que a preferência incida sobre as coisas restantes “se estas não forem separáveis sem prejuízo apreciável”.
Quando o preferente acede a exercer o seu direito sobre o conjunto de coisas a alienar – artigo 417.º do Código Civil – vê estendido o seu original direito de preferência, direito esse que pode exercer facultativamente; o seu direito a exercer a preferência pelo preço proporcional pode ser paralisado pela invocação/exigência da obrigada à preferência, de que a venda seja global, por a alienação parcelar e o inerente preço proporcional lhe causarem prejuízo apreciável, não sendo as coisas em venda separáveis; a lei visa a protecção do interesse económico do vendedor.
Importa, então, analisar este regime jurídico para saber como pode o titular da preferência defender o seu direito de prelação.
A respeito do artigo 417.º do Código Civil, ANTUNES VARELA (DAS OBRIGAÇÕES EM GERAL, volume I, páginas 369 e 370), preconiza:
(…) Na primeira, não sendo justo agravar os pressupostos da preferência fixados no pacto, concede-se ao respectivo titular faculdade de restringir o seu direito à coisa a que o pacto se refere, reduzindo o preço devido à importância que proporcionalmente corresponde a essa coisa dentro do preço global estabelecido; na falta de acordo sobre tal determinação, haverá que recorrer à acção de arbitramento necessária para fixar o valor proporcional da coisa. [a faculdade concedida ao obrigado à preferência só vale, porém, para a hipótese de se ter fixado um preço global para a alienação conjunta e não (como pretende Vaz Serra, na anotação ao Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-11-1966, na RLJ, 100.°-167 e segs.) para o caso de alienação conjunta de várias coisas, mas com discriminação do preço de cada uma delas.
Também se nos afigura contrária à lei a tese, sustentada na RLJ, 100.°-171), de que seria o adquirente (e não o alienante) quem pode exigir que a preferência se estenda, neste caso, às coisas restantes – nota de rodapé)]. O obrigado pode, contudo, opor-se à separação das coisas, se ela envolver um prejuízo apreciável para os seus interesses; nesse caso, o titular da preferência terá de exercer o seu direito, se o não quiser perder, relativamente ao conjunto das coisas alienadas, pelo preço global que houver sido fixado (…).”.
O Professor AGOSTINHO CARDOSO GUEDES (O EXERCÍCIO DO DIREITO DE PREFERÊNCIA, páginas 402 a 407), aborda a problemática do âmbito da preferência na venda da coisa conjuntamente com outras, depois de referir que o artigo 417.º do Código Civil derroga regras gerais do instituto do direito de preferência (antes refere-se os artigos 1409.º - direito de preferência do comproprietário - e 2130.º preferência dos co-herdeiros na venda ou dação em cumprimento a terceiros do quinhão hereditário) – afirma “que outra derrogação a essas regras gerais encontra-se no artigo 417.º do Código Civil”, escrevendo:
(…) Na situação de facto descrita, a lei permite ao preferente o exercício do direito em relação ao negócio efectivamente ajustado com o terceiro abrangendo, além da coisa sujeita a prelação, todas as outras incluídas nesse negócio – a lei alarga o âmbito primitivo do direito de preferir por mero efeito da decisão do sujeito passivo em alienar o bem naquelas condições.
No caso de o preferente não exercer o seu direito nestes termos e, ao invés, pretender exercer a faculdade de reduzir esse preço ao bem efectivamente sujeito à prelação, a lei atribui ao sujeito passivo a possibilidade de se opor ao exercício de tal faculdade, restando ao preferente a celebração do nas condições ajustadas com o terceiro, sem separação das coisas, desde que esta separação não seja possível sem prejuízo apreciável.
Em ambas as hipóteses, a lei introduz um desvio importante à regra de que o direito do preferente se refere apenas ao bem (e ao contrato) objecto da preferência, pois verificada a decisão do sujeito passivo de vender a coisa objecto da preferência juntamente com outras, o direito de preferência passa a abranger outros bens além do inicialmente sujeito à prelação, e o seu exercício relativamente apenas a este bem poderá mesmo ser precludido no caso de esta, em virtude da necessária separação, provocar prejuízo apreciável.
Esta solução legal merece algumas considerações, relativas quer ao âmbito de aplicação da norma, quer ao seu regime jurídico. O primeiro dado a ter em conta é que o artigo 417.º do Código Civil não se aplica a todos os casos em que o vinculado à preferência decida alienar o bem objecto da preferência em conjunto com outro ou outros bens; a aplicação daquela norma só se verificará no caso de esta alienação ser decidida pelo vinculado à preferência por um preço global.
De facto, não se colocará nenhum problema especial relativo ao exercício da preferência na eventualidade do sujeito passivo decidir vender um conjunto de bens, neles incluindo a coisa sujeita à prelação, cada um por determinado preço (…) o artigo 417.º só intervirá se o vinculado à preferência decidir alienar o bem objecto da mesma em conjunto com outros bens por um preço global, isto é um preço que não resulta da mera soma de vários preços individuais mas, pelo contrário, traduz uma contrapartida única por aquele conjunto de bens.”.
É eficaz – por preencher os requisitos do artigo 416.º do Código Civil – a comunicação ao titular do direito de preferência do “projecto de venda”, deixando os obrigados à preferência, inequivocamente expresso, que só venderão, em conjunto e por um preço global que indicam, a coisa objecto da preferência, com outras, por a separação lhes causar prejuízo apreciável.
Não estando, assim, obrigados a discriminar o valor do imóvel sobre o qual recai a preferência originária do arrendatário: não tendo este aceite esse projecto a venda feita a terceiro é válida, em relação ao proclamado preterido.
Poderá ser gravosa para o titular da preferência a exigência de só poder optar pelo conjunto de bens e pelo preço global. Pense-se no caso de um arrendatário habitacional que, com sacrifício económico, poderia estar na disposição de exercer o direito de preferência em relação à sua casa arrendada, mas, querendo o senhorio vendê-la em conjunto com outras sob pena de sofrer prejuízo apreciável, não poder optar em função do preço, vendo esfumar-se o seu direito.
No caso da notificação para preferência ser feita judicialmente – artigo 1028.º do Código de Processo Civil – não se indicando o valor de cada uma das coisas, pretendidas vender em conjunto, o artigo 1029.º, n.º 2, confere ao notificado (titular preferente) o direito de declarar que pretende exercer o seu direito apenas em relação à coisa a que se refere o seu direito e ainda contestar que a venda separada pode ser feita sem prejuízo apreciável, para o vendedor.
Pode-se aplicar esta norma, por analogia, aos casos de notificação extrajudicial, como é o caso dos autos?
O Professor HENRIQUE MESQUITA defende a tese de inexistência de analogia (DIREITO DE PREFERÊNCIA, ALIENAÇÃO DA COISA JUNTAMENTE COM OUTRA, POR PREÇO GLOBAL, E NOTIFICAÇÃO PARA PREFERIR, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXVII, páginas 45-71) e afirma que a aplicar-se o regime do anterior artigo 1459.° do Código de Processo Civil (actualmente artigo 1029.º) aos casos de notificação extrajudicial, “a proposição de uma acção de arbitramento, necessariamente dispendiosa, poderia redundar, no comum dos casos, numa actividade inútil, com a qual o preferente não lograria efectivar, sem mais, o seu direito de opção”.
O Professor AGOSTINHO GUEDES (na obra citada, página 480 e seguintes), discorda da opinião de HENRIQUE MESQUITA, antes aceitando a analogia entre os dois modos de notificação (judicial e extrajudicial) e as consequências deles, asseverando que:
Devemos sublinhar que não concordamos inteiramente com a análise levada a cabo por Henrique Mesquita sobre a diferença fundamental entre os efeitos dos dois tipos de notificação.
Em primeiro lugar, os efeitos da notificação para preferência, em sentido estrito, são exactamente os mesmos, quer esta seja judicial ou extrajudicial.
Se regularmente feita, a sua realização consubstancia o cumprimento do dever previsto no artigo 416.º, n.º 1, do Código Civil e torna certo o prazo de caducidade do direito de preferir. O dever de contratar com o preferente, cuja impossibilidade de incumprimento no caso de notificação judicial é alegada por Henrique Mesquita, constitui-se com a declaração do preferente de querer preferir.
Constituído esse dever, a lei civil e a lei adjectiva contam com o seu cumprimento voluntário por parte do devedor, tal como demonstra o artigo 1458.°, n.º 2, Código de Processo Civil quando prevê que, feita a declaração do preferente, só “se nos vinte dias seguintes não for celebrado o contrato” o preferente pode requerer que se designe dia e hora para a parte contrária receber o preço, ou seja, o devedor tem vinte dias para cumprir o seu dever face ao preferente.
Caso o devedor não cumpra esse dever, o preferente poderá, em regra, obter para si o bem objecto da prelação nos termos do art. 1458.º, n.º 4, Código de Processo Civil, mas não se pode afirmar que o preferente tem a certeza de que o bem lhe será adjudicado; com efeito, se é certo que uma eventual recusa do sujeito passivo em celebrar o contrato não evitará a adjudicação do bem ao preferente, também é verdade que não encontramos na lei processual nenhuma norma que impeça o sujeito passivo de, entre a comunicação para preferência e adjudicação ao preferente, celebrar o contrato projectado com terceiro, coisa que impedirá a aludida adjudicação, pelo menos se esta tiver natureza translativa.
Além disso, a diferença ainda será mais ténue caso se entenda (como nós entendemos) que o art. 1458.°, n.°4, Código de Processo Civil prevê, afinal, uma execução específica do dever de contratar e que igual possibilidade assiste ao preferente no caso de comunicação extrajudicial (…).”.
(…) Estamos, por isso, de acordo com Antunes Varela, quando este afirma que o preferente tem a faculdade “de restringir o seu direito à coisa a que o pacto se refere, reduzindo o preço devido à importância que proporcionalmente corresponde a essa coisa dentro do preço global estabelecido; na falta de acordo sobre tal determinação, haverá que recorrer à acção arbitramento necessária para fixar o valor proporcional da coisa.”.
Não aceitando o preferente a aquisição conjunta de bens, comunicada pelo obrigado à preferência, além daquele sobre que recai o seu direito, não estando o obrigado à preferência adstrito a discriminar o preço de cada coisa integrante do conjunto, assiste ao preferente parcelar, mesmo em caso de notificação extrajudicial, o direito de requerer arbitramento judicial para determinar o valor proporcional e assim exercer o direito de prelação com o âmbito inicial, não sendo de afastar por analogia a aplicação do regime jurídico do artigo 1029.º (preferência limitada) do Código de Processo Civil, nos termos da acção de suprimento prevista no artigo 1004.º deste diploma.
Nestes termos se pronunciou o Acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 16 de Março de 2011, in www.dgsi.pt:
I – Ao exigir a comunicação do projecto da venda e das cláusulas do respectivo negócio – cf. art.º 416.º, n.º 1, do Código Civil –, pretende-se levar ao conhecimento do preferente os elementos essenciais do contrato, ou seja, aqueles que lhe permitam, e sejam decisivos, para determinar a sua vontade de exercer ou não o direito de preferência.
II – Decorre do art. 417.º, n.º1, do Código Civil, que é lícito ao obrigado à preferência vender a coisa objecto da preferência juntamente com outra (ou outras) por um preço global (haja ou não prejuízo), mas, se for essa a sua pretensão comunicada ao titular da preferência, este, por sua vez, pode exercer o direito apenas em relação àquela que é objecto do direito, pelo preço que proporcionalmente lhe competir dentro do preço global fixado para a venda conjunta.
III – No caso concreto, se os réus pretendiam vender dois prédios conjuntamente e tinham comprador para eles, pelo preço de € 500 000, e foi esse o projecto concreto que comunicaram ao autor marido, concedendo-lhe a preferência nessas condições, não tinham que discriminar os preços de cada um dos prédios que pretendiam alienar, exactamente porque queriam vendê-los por um preço global (como a lei lhes faculta), nem tinham que alegar que lhes adviria prejuízo se os vendessem separadamente.
IV – Tendo o autor marido sido notificado para exercer o direito de preferência, no prazo de 8 dias – prazo que se refere à declaração de preferência e não à concretização do negócio –, competia-lhe declarar que pretendia preferir ou no conjunto e pelo preço global proposto, ou apenas em relação ao prédio de que é arrendatário (objecto do seu direito de preferência). Nesta última hipótese, devia requerer ao tribunal a determinação do preço que competiria proporcionalmente ao arrendado, nos termos da acção de suprimento prevista no art. 1429.º do Código de Processo Civil, por aplicação do art. 1459.º do mesmo Código, apesar da notificação ter sido efectuada extrajudicialmente.
V – Em princípio e em geral – sobretudo se não se trata de arrendamento para habitação –, não pode dizer-se que o titular do direito de preferência (arrendatário) tenha interesse essencial em saber a identificação do adquirente, que será o seu novo senhorio, tanto que o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador (cf. art. 1057.º do Código Civil)”.
Concluiu-se assim que não tendo a Autora requerido judicialmente, pela via do arbitramento judicial, a determinação do preço proporcional do seu originário direito de preferência, persistindo em não optar preferir pelo preço global, anunciando apenas que, com a informação do valor atribuído à fracção autónoma e das condições de venda da referida fracção, poderia materializar o exercício de direito de preferência, manifestou não pretender exercer o direito.
Falta de elementos na comunicação:
Invoca ainda a Autora que não lhe foram comunicados os elementos essenciais do negócio (falta de data e hora e local da escritura e falta de indicação dos encargos).
Nos termos do artigo 416.º, n.º 1 do Código Civil, o vendedor que queira vender uma coisa objecto de preferência, “deve comunicar ao titular do direito o projecto da venda e as cláusulas do respectivo contrato”.
Significa isto que o vendedor de um bem vinculado ao exercício do direito de preferência, deve informar o titular desse direito, dos elementos da projectada venda, com vista a possibilitar a este uma decisão ponderada sobre o ensejo de exercer, ou não, a preferência.
E que elementos (essenciais) são esses?
Na formulação legal, serão as cláusulas do contrato. E de entre estas, sem dúvidas, que devem figurar o preço e as respectivas condições de pagamento, visto que estes componentes dão conteúdo e contornos ao negócio, possibilitando ao titular do direito, a decisão (consciente) de exercer, ou não exercer, o direito.
Tem-se discutido relativamente à identidade do adquirente, mas tendo em conta que a notificação no caso dos autos contém também esse elemento, não carece de ser apreciada esta questão.
Quanto ao facto de não conter a data, hora e local da escritura, bem como a indicação dos encargos, esses não são consideradas cláusulas do contrato, porquanto não preenchem o conteúdo nem os contornos do negócio, não sendo estes elementos essenciais no caso vertente para a decisão de preferir.
Para além disso, a Autora, na sua resposta à notificação para o exercício do seu direito de preferência, apenas solicita informação sobre o valor a atribuir à fracção e as condições de venda da referida fracção.
Da comunicação depois da celebração do contrato promessa:
A Autora invoca ainda que o exercício do direito de preferência devia ter sido feito antes da celebração do contrato promessa.
Ora, também nesta parte, não assiste razão à Autora, porquanto o facto que determina a constituição do direito de preferência não é efectivamente o comportamento de onde se infere a decisão de realizar o negócio, mas a própria decisão em si, a qual é logicamente anterior a aquele comportamento. O comportamento externo que traduz a decisão só é uma consequência da mesma. Neste sentido, mesmo nas circunstâncias em que a exteriorização da decisão de realizar o negócio seja feita através da comunicação, este comportamento (a comunicação) não é o pressuposto de constituição do direito de preferência, mas apenas um cumprimento da obrigação de comunicar. Em conclusão, a nosso ver, o pressuposto de constituição do direito de preferência é a decisão definitiva de alienar a certo terceiro em determinadas condições e essa decisão de realizar o negócio, muitas vezes, é exteriorizada pelo obrigado à preferência através da comunicação, todavia, também pode ser exteriorizada através de outros comportamentos, como por exemplo, a celebração de um contrato-promessa.
Assim, no caso concreto, a 1.ª Ré celebrou um contrato promessa de compra e venda com a 2.ª Ré, exteriorizando assim a decisão de realizar o negócio de alienação, exteriorização que foi comunicado posteriormente à Autora.
Ora, o facto de existirem vínculos contratuais já estabelecidos (conforme alega a Autora) entre as Rés, em nada prejudica o exercício do direito de preferência e, caso esse direito de preferência fosse validamente exercido, apenas incorreria em responsabilidade a 1.ª Ré perante a 2.ª Ré (responsabilidade contratual).” [Fim de citação]
*
Importa dizer, antes de mais, que estamos em perfeita consonância com a posição assumida na douta sentença recorrida, a qual reflecte precisamente a situação vivenciada no presente recurso.
Significa isto que sufragamos inteiramente, quer a conclusão a que chegou a Senhora Juíza a quo, quer a fundamentação que a suporta, que vimos de citar, que se mostra consistente e suficientemente sustentada na melhor doutrina e em jurisprudência impressiva do Supremo Tribunal de Justiça sobre a problemática em questão.
É frequente, nos dias de hoje, fruto do exponencial aumento dos fluxos de turistas, assistir-se a alguma pressão imobiliária exercida sobre proprietários de imóveis vetustos e carecidos de profundas obras de remodelação, situados nos centros históricos de Lisboa e Porto. Os promotores imobiliários vêm na aquisição desses imóveis oportunidades de investimento potencialmente lucrativos, na hotelaria, alojamento local, etc., e os proprietários, por sua vez, encaram as propostas de venda que lhe são feitas, como uma oportunidade de obterem algum encaixe financeiro e de se livrarem de responsabilidades e encargos que a sua posição de senhorios acarreta, situações que muitas das vezes herdaram, sem que recebam adequada rentabilização desse seu património herdado, a maioria das vezes alocado a contratos vinculísticos de baixo rendimento ou de rendimento insuficiente sequer para fazer face às despesas de conservação desse património imobiliário. Junta-se a fome com a vontade de comer e é então que pode ocorrer, como no caso em apreço, uma situação de preferência, prevista no art.º 417.º do Código Civil, que a formulação de 1967 do Código de Processo Civil adjectivou com o seu artigo 1459.º, hoje vertido no art.º 1029.º do CPC de 2013, denominando-a de preferência limitada.
Em tais situações, o obrigado à preferência não pretende vender a simples fracção autónoma sobre que recai a prelação, mas essa fracção autónoma conjuntamente com as demais fracções autónomas que compõem o todo que é o prédio urbano constituído em propriedade horizontal, e por um preço global.
Confrontado com tal hipótese, o preferente notificado do projecto de venda, nos termos e para os efeitos do art.º 416.º do mesmo diploma legal, deverá então declarar que só quer preferir em relação à fracção de que é arrendatário, sobre a qual recai a preferência, “requerendo logo a determinação do preço que deve ser atribuído proporcionalmente à coisa.”, recorrendo, para o efeito, ao processo de suprimento previsto no art.º 1004.º do CPC. É o que resulta do art.º 1029.º do CPC, conjugado com o art.º 417.º do Código Civil, não havendo que distinguir entre as situações de notificação judicial e extrajudicial, conforme referido supra.
Com efeito, pretendendo a 1.ª Ré vender a fracção locada, objecto de prelação, em conjunto com as restantes fracções do prédio, por um preço único, invocando que a separação não podia ser feita sem prejuízo apreciável, não lhe era exigido, à data [Novembro de 2017], que indicasse, em separado, o preço da fracção arrendada, sobre a qual recai a preferência [cfr. art.º 12.º, n.º 1, e 2, 1.ª parte do CC]. Tal exigência, no que aos arrendatários habitacionais diz respeito, apenas foi estabelecida com a alteração introduzida ao n.º 6 do artigo 1091.º do Código Civil pelo artigo 2.º da Lai n.º 64/2018, de 29 de Outubro, que entrou em vigor no dia 30 de Outubro de 2018 [cfr. o seu art.º 3.º].
Ou seja, no caso concreto, se a 1.ª Ré pretendia vender todas as fracções do prédio conjuntamente e tinha comprador para elas, pelo preço de € 700 000, e foi esse o projecto concreto que comunicou à Autora, concedendo-lhe a preferência nessas condições, não tinham que discriminar os preços de cada uma das fracções ou apenas da fracção locada objecto da preferência, que pretendia alienar, exactamente porque queriam vendê-las por um preço global (como a lei lhe faculta), nem tinham que alegar, logo nessa notificação, que lhe adviria prejuízo se as vendesse separadamente.
Tendo a 1.ª Ré sido notificada para exercer o direito de preferência, no prazo de 8 dias – prazo que se refere à declaração de preferência –, competia-lhe declarar que pretendia preferir ou no conjunto e pelo preço global proposto, ou apenas em relação à fracção de que é arrendatária (objecto do seu direito de preferência). Nesta última hipótese, devia requerer ao tribunal a determinação do preço que competiria proporcionalmente ao arrendado, nos termos da acção de suprimento prevista no art.º 1004.º do Código de Processo Civil, por aplicação do art.º 1029.º do mesmo Código, não obstante a notificação ter sido efectuada extrajudicialmente.
Também não colhe a alegação da Recorrente de que, no momento em que é feita a notificação para a preferência, já existia acordo entre as Rés sobre o preço de cada uma das fracções e de, não obstante, o mesmo ter sido omitido em tal comunicação, sendo que tal acordo não se pode presumir do facto de na escritura de compra e venda celebrada ter ficado a constar o valor atribuído a cada uma das fracções pois, como sumariado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01-07-2014, Proc. 599/11.6TVPRT.P2.S1, de que foi Relator o Conselheiro Fonseca Ramos, disponível para consulta em www.dgsi.pt., já citado:
“IV - A menção discriminada dos preços dos imóveis vendidos em conjunto, constante da escritura pública de compra e venda resulta, obrigatoriamente, do art.º 63º do Código do Notariado que impõe que nos actos sujeitos a registo predial, a indicação “do valor de cada prédio, da parte indivisa ou do direito a que o acto respeitar”.
V. Tal menção não evidencia qualquer comportamento menos leal dos vendedores, nem empresta ao recorrente termo a quo para evitar a caducidade da acção de preferência – art.º 1410.º, n.º 1, do Código Civil.”
No mesmo sentido decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-03-2011, Proc. 1113/06.0TNPVZ.P1.S1, de que foi Relator o Conselheiro Alves Moreira, acessível para consulta em www.dgsi.pt.
A menção discriminada dos preços dos imóveis e das respectivas fracções autónomas é uma imposição não apenas do Código do Notariado mas também da legislação fiscal, até para efeitos matriciais e de cálculo do respectivo rendimento/imposto, por se tratar de bens jurídica e fiscalmente autónomos.
Assim e em jeito de conclusão:
- Pala declaração enviada à 1.ª Ré em 17 de Novembro de 2017, a manifestar a intenção de exercer o direito de preferência, a Autora não exteriorizou validamente o exercício desse direito;
- Face ao projecto e condições de venda da totalidade das fracções autónomas de um prédio urbano constituído em propriedade horizontal, por um preço global, que lhe foram comunicados pela 1.ª Ré, obrigada à preferência, a Autora deveria não só ter declarado que queria preferir apenas em relação à fracção de que é arrendatária, sobre a qual recai a preferência, como requerer logo e no prazo de oito dias contado daquela comunicação, a determinação do preço que devesse ser atribuído proporcionalmente ao locado, recorrendo, para o efeito, ao processo de suprimento previsto no art.º 1004.º do Código de Processo Civil, por aplicação do artigo 1029.º do mesmo diploma legal e do art.º 417.º do Código Civil, na redacção anterior à dada pela Lei n.º 64/208, de 29 de Outubro.
- Não tendo assim procedido, tem de se considerar que a Autora não exerceu validamente o direito de preferência e que este se extinguiu, por caducidade, no termo do referido prazo de oito dias [n.º 2 do artigo 416.º do Código Civil].
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Atenta a solução jurídica dada às questões anteriormente tratadas, resulta prejudicada a apreciação da questão relacionada com o prejuízo apreciável da venda em separado, por se revelar desnecessária e inócua ao desfecho do recurso
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Improcede, portanto, in totum a apelação.
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente e em confirmar inteiramente a sentença recorrida.
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Custas da apelação - artigo 527º do CPC.
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Registe e notifique.
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Lisboa 7 de Maio de 2020
Manuel Rodrigues
Ana Paula A. A. Carvalho
Gabriela de Fátima Marques
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[1] Com aproveitamento do relatório da sentença recorrida.
[2] Cf. Geraldes, António Santos Abrantes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª edição, 2017, Almedina, p. 109
[3] cfr. “A Natureza Jurídica do Direito de Preferência”, pág. 168, obra citada na sentença recorrida.
[4] Cf. “Obrigações Reais e Ónus Reais”, pág. 225.