Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
175/17.0TNLSB.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: TRANSPORTE INTERNACIONAL
TRANSPORTE MARÍTIMO
ARBITRAGEM INTERNACIONAL
CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I -No Direito português não vigora qualquer regra que obste à resolução de conflitos emergentes de contrato de transporte internacional de mercadorias por mar através de arbitragem transnacional, ainda que tal resulte na impossibilidade de submeter tais conflitos aos tribunais estaduais portugueses.
II- É de considerar válida uma cláusula compromissória inserida no rosto de um conhecimento de embarque (“bill of lading”).
III- A adesão a tal cláusula por parte do banco identificado no conhecimento de embarque como “consignatário” pode fazer-se mediante o endosso de tal título à destinatária (identificada no mesmo título como “parte a notificar”).
IV- Por seu turno, a aceitação da mesma cláusula pela destinatária pode resultar do pagamento da mercadoria e subsequente levantamento da mesma no porto de destino.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório[1]
A [ ….. Distribuição Alimentar, S.A. ] , pessoa coletiva nº 500829993 intentou a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra B [ ….Singapore, PTE, LTD ] , com sede em Singapura, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 144.707,70, correspondente ao montante dos prejuízos que sustenta ter sofrido em consequência do cumprimento defeituoso do contrato de transporte marítimo internacional das mercadorias que adquiriu no estrangeiro, sustentando para tal que a demandada, na qualidade de transportadora, não cuidou de zelar pela manutenção da temperatura convencionada durante o período em que os bens deslocados lhe estiveram confiados, facto que determinou a perda total dos mesmos.
Regularmente citada, a ré contestou, invocando a exceção de incompetência absoluta do Tribunal, por preterição do tribunal arbitral voluntário, na medida em que o contrato que substancia a demanda contém uma cláusula compromissória, aceite e não desconhecida das partes – inclusivamente da autora – que determina e impõe que todos e quaisquer litígios referentes ao conhecimento de carga e ao transporte dos autos devem ser referidos e decididos em arbitragem a correr em Singapura e de acordo com as Regras da Câmara de Arbitragem Marítima de Singapura.
Invocou também as exceções de caducidade e limitação da sua responsabilidade, e defendeu-se igualmente por impugnação.
Concluiu pela procedência da referida exceção e consequentemente pela sua absolvição da instância ou, caso assim se não entenda, pela procedência da exceção de caducidade ou pela improcedência da ação e consequentemente, pela sua absolvição do pedido.
Seguidamente foi proferido despacho, convidando a autora a exercer o direito ao contraditório relativamente às exceções invocadas.
No articulado de resposta às exceções, a autora sustentou que não celebrou qualquer contrato com a Ré e não figura no conhecimento de carga como consignatária da mercadoria, e argumentou que apenas teve acesso ao documento de transporte depois da chegada da carga ao destino (aquando do seu levantamento) e, por isso, não aceitou – expressa ou tacitamente – a cláusula em apreço, a qual também não é por si conhecida em consequência do exercício da sua atividade comercial, sendo-lhe por isso inoponível. Terminou defendendo a improcedência da sobredita exceção.
Seguidamente, foi proferido despacho dispensando a realização de audiência prévia, seguido de despacho saneador, que julgou procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal, por preterição de pacto de jurisdição, e consequentemente, declarou o Tribunal Marítimo de Lisboa incompetente para a presente causa, absolvendo a ré da instância.
Inconformada com o decidido no despacho saneador, veio a autora interpor o presente recurso de apelação, formulando alegações, que sintetizou nas seguintes conclusões:
I- Não se pode aceitar a afirmação constante da decisão recorrida de que o destinatário constante do conhecimento de carga (BNP Paribas) assinou ou firmou o conhecimento de carga, aceitando, assim, todos os seus termos e condições;
II- O BNP Paribas não assinou o conhecimento de carga de fls. 117-118 dos autos, tendo apenas procedido ao endosso do referido título para a., ora Recorrente, Pingo Doce;
III- O endosso constitui a forma de transmissão dos conhecimentos de carga à ordem (cfr. artigo 11º nº 2 do D.L nº 352/86, de 21/10 e 483º do Código Comercial);
IV- O endosso consiste numa declaração escrita, no verso do título, ou numa simples assinatura nesse local, manifestando a vontade de transmitir para o endossatário (identificado ou não) o direito incorporado no título;
V- O endosso serve, assim, para a mera transmissão do conhecimento de carga e dos direitos nele incorporados, não constituindo uma assinatura vinculativa do conhecimento de carga e, muito menos, uma aceitação dos seus termos e condições;
VI- Não se encontra demonstrado que o carregador (FORSTAR FROZEN FOODS) tenha aceite a convenção de arbitragem que veio a constar do conhecimento de embarque emitido pelo transportador, sendo certo que não assinou esse documento, nem resulta alegado (e muito menos demonstrado) que tenha acordado a inclusão da mencionada cláusula, nomeadamente, mediante a troca de correspondência entre as partes (cartas, e-mails ou outros documentos escritos físicos ou eletrónicos);
VII- O destinatário mencionado no conhecimento de carga (BNP Paribas) também não assinou, em sentido próprio, o aludido documento, nem existiu qualquer troca de escritos de forma a que se possa aceitar que o mesmo tenha ficado vinculado à convenção de arbitragem;
VIII- O referido BNP Paribas no âmbito do crédito documentário a que se faz referência nos autos estava apenas vinculado a uma verificação ou exame formal dos documentos, não tendo que examinar o conteúdo dos termos e condições de transporte constantes do conhecimento de carga (cfr. artigos 14º e 20º, alínea a), ponto v. in fine das Regras UCP 600);
IX- No presente caso não houve qualquer cessão da posição contratual do BNP Paribas para a. Recorrente A, mas apenas uma transmissão do título (conhecimento de carga) e com esta a transmissão do direito à entrega das mercadorias transportadas;
X- O destinatário no contrato de transporte marítimo de mercadorias é maioritariamente visto como um terceiro beneficiário do contrato (contrato a favor de terceiro) e não como uma parte do contrato;
XI- Mas, ainda que se entenda que o destinatário é parte no contrato (através de adesão) faltaria demonstrar a especial aceitação da convenção de arbitragem pelo mesmo, para que viesse a relevar uma qualquer cessão da posição contratual,
XII- Segundo a lei portuguesa é arbitrável qualquer litígio que respeite a interesses de natureza patrimonial desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, (artigo 1º nº 1 da LAV),
XIII- Entende a A., ora Recorrente, que no presente caso existe lei especial que submete o litígio em causa nos autos, necessariamente, à jurisdição estatal,
XIV- Resulta da conjugação do disposto no artigo 7º nº 1 da Lei nº 35/86, de 4/9, artigo 62º do CPC e artigo 30º do D.L. nº 352/86, de 21/10, que a competência internacional dos tribunais portugueses em matéria de direito marítimo não pode ser objeto de um pacto privativo de jurisdição ou foro eficaz, devendo considerar-se tal disposição como abrangendo também a atribuição das referidas questões a árbitros (por importar igualmente uma exclusão da jurisdição dos tribunais estaduais portugueses),
XV- Um dos princípios estruturantes da arbitragem é o consentimento das partes dirigido à submissão de eventuais e futuros litígios à resolução por árbitros (consentimento como “pedra angular da arbitragem”),
XVI- Não resulta demonstrada a existência de qualquer convenção de arbitragem válida e eficaz estabelecida entre o carregador FORSTAR FROZEN FOODS e o transportador, pelo que a convenção também nunca poderia ser oponível à destinatária mencionada no conhecimento (BNP PARIBAS) ou ao terceiro portador legítimo do conhecimento que lhe foi transmitido através de endosso (A A. Recorrente A );
XVII- Nos termos da LAV e da CNI não é necessária a assinatura das partes para que estas se possam considerar vinculadas pela convenção de arbitragem (à semelhança do que sucede com muitas leis estrangeiras), mas a vontade de cometer a árbitros a resolução de litígios tem de ser devidamente exteriorizada, razão pela qual se exige que a convenção de arbitragem ‘adote forma escrita’ ou seja uma “convenção escrita” (artigo 2º nº 1 da LAV e artigo II nº 1 CNI);
XVIII- O conceito legal de “forma escrita” da lei portuguesa é amplo, mas impõe, salvo melhor opinião, uma aceitação expressa da convenção de arbitragem, pelo que uma manifestação tácita de consentimento ou o silêncio de uma parte não se mostram aptos a produzir uma convenção de arbitragem válida e eficaz;
XIX- Mesmo que se considere que será de admitir uma aceitação tácita da convenção de arbitragem, sempre teria que estar determinado que a cláusula compromissória foi levada ao conhecimento da A. Recorrente Aem devido tempo (nomeadamente antes do endosso) e, independentemente disso, que a cláusula foi por esta aceite, o que manifestamente não sucedeu;
XX- Sendo que não bastaria a demonstração de uma adesão geral aos termos do transporte por parte da A. Recorrente PINGO DOCE, teria que se provar que houve uma aceitação específica da própria convenção de arbitragem;
XXI- Mesmo a Doutrina que considera que a convenção pode revestir forma tácita exige que o facto concludente observe a forma escrita;
XXII- Assim, não bastará nunca uma aceitação tácita que não resulte de um escrito, mesmo que tal aceitação corresponda aos usos do comércio num determinado sector da atividade económica;
XXIII- Para que tivéssemos um consentimento tácito válido por parte da A. Recorrente Ada convenção de arbitragem sempre o mesmo teria que resultar de factos conclusivos que se apresentassem reduzidos a escrito, o que manifestamente não se verifica;
XXIV- Também não se verifica qualquer consentimento à convenção de arbitragem mediante “adoção de forma escrita” ou através de “convenção escrita”, seja do carregador (FORSTAR FROZEN FOODS) seja do destinatário (BNP PARIBAS);
XXV- Independentemente da caraterização da figura do destinatário (beneficiário de um direito próprio ou verdadeira parte no contrato de transporte) e da posição do portador do conhecimento de carga, sempre se exigiria, que a convenção de arbitragem adotasse forma escrita, no sentido da convenção constar de documento assinado pelas partes ou de troca de comunicações de que fique prova escrita (artigo 2º nº 1 e 2 da LAV e artigo II, nº 1 da CNI), o que manifestamente não sucedeu nos presentes autos;
XXVI- Não podendo a vinculação à convenção de arbitragem ser provada por outros meios que não sejam os previstos nas referidas disposições legais;
XXVII- Termos em que se verifica o desrespeito da forma escrita legalmente imposta, o qual tem por efeito a nulidade da convenção de arbitragem, nos termos do artigo 3º da LAV;
XXVIII- A Decisão recorrida ao impor os efeitos jurídicos de uma convenção arbitral inexistente ou inválida (atenta a falta de consentimento segundo a adoção de forma escrita) à A. Recorrente PINGO DOCE, representa uma restrição, que a lei não admite, ao direito constitucional de a mesma recorrer aos tribunais estaduais para fazer valer o seu direito e assim viola o disposto no artigo 20º da CRP.
Terminou pugnando pela revogação da decisão recorrida e, consequentemente, pela improcedência da exceção dilatória de incompetência absoluta, e pelo prosseguimento da causa no Tribunal Marítimo de Lisboa.
A ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da presente apelação e consequente manutenção da sentença recorrida.
Recebido o recurso nesta Relação, e colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
2. Questões a decidir
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, está vedado a este Tribunal o conhecimento de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[3].
No caso em análise, a única questão a decidir reside em determinar se ocorreu preterição de Tribunal arbitral, o que implica apreciar a validade e eficácia da cláusula compromissória invocada pela ré.
 3. Fundamentação
3.1. Os factos
O despacho saneador recorrido considerou provados os seguintes factos:
a) A Ré é uma empresa que se dedica à atividade de transportes marítimos.
b) O contentor n.º GESU9096 embarcou no dia 02-10-2016 no porto de Nhava Sheva, na Índia, a bordo do navio MSC ALGHERO, com destino a Lisboa, em Portugal.
c) A Ré procedeu à emissão do respetivo conhecimento de embarque, constante de fls. 117-118 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e do qual constam, designadamente, as seguintes menções:
«Original bill of lading
Voyage number 019EGWANL
Bill of lading number IN4033974
Shipper: Forstar Frozen Foods PVT, LTD (…) India
Consignee: To the order of BNP Paribas – Sucursal em Portugal
Carrier: ANL Singapore Pte Ltd
Notify party, Carrier not to be responsible for failure to notify: A. (…) Portugal
(…)
Freight to be paid at: Mumbai
Number of original bills of lading: Three (3)
Vessel: MSC ALGHERO
Port of Loading: Nhava Sheva, India
Port of Discharge: Lisboa, Portugal
(…)
Marks and nos container seals: GESU9096163, SEAL F3655442, SEAL 1218173
No and kind of packages: 1 x 40 RH
Description of packages and goods as stated by shipper, shippers load, stow and count: 1890 cartons, 1 x 40’ RH container said to contain total 1890 carons only (…) Frozen headon vannamei shrimps IQF (as proforma invoice no. PI/97/16-17) Documentary letter of credit ref no: PCI07704 (…) Goods stowed in refrigerated container temperature set at minus 20 dg. C. or lower (…)
Above particulars declared by shipper, carrier not responsible
Gross wight cargo: Kgs 21640.000
(…)
Additional clauses: FCL/FCL, Refrigerated cargo, Shippers, load and count, Freight: prepaid.
(…)
IN ACCEPTING THIS BILL OF LADING, the Merchant agrees to be bound by all the stipulations, exceptions, terms and conditions on the face and back hereof, whether written, typed, stamped, or printed, as fully as if signed by the Merchant, any local custom or privilege to the contrary notwithstanding, and agrees that all agreements or freight engagements for and in connection with the carriage of the Goods are superseded by this Bill of Lading.
ANY DISPUTE ARISING OUT OF OR IN CONNECTION WITH THIS BILL OF LADING IS TO BE REFERRED TO AND FINALLY RESOLVED BY ARBITRATION IN SINGAPORE (SIAC RULES).
(…)
Place and date of issue: Mumbai 02OCT2016
(…)



d) No verso da primeira folha de tal documento encontram-se apostos os seguintes dizeres:


e) O verso do mesmo conhecimento contém ainda um cabeçalho intitulado de “ANL Singapore Pte Ltd – Bill of Lading” e um conjunto de cláusulas impressas, designadamente a Cláusula 3.ª, epigrafada “(HAGUE-VISBY RULES, GOVERNING LAW AND JURISDICTION)”, a qual tem o seguinte teor:
“(1) This Bill of Lading shall have effect subject to the provisions of any legislation giving effect to the Brussels Convention for the Unification of Certain Rules relating to Bills of Lading dated 25th August 1924 as amended by the Protocol made at Brussels on 23rd February 1968 (which rules are herein called “the Hague-Visby Rules”) or to similar effect which is compulsorily applicable to the contract contained or evidenced herein (including the Carriage of Goods By Sea Act 1936 of the United States of America where so applicable).
(2) In performing the contract contained or evidenced in this Bill of Lading insofar as it relates to the carriage of goods by sea within the meaning of the Hague-Visby Rules the Carrier shall be subject to the responsibilities and liabilities and entitled to the rights and immunities set forth in the Hague-Visby Rules.
(3) Subject to Clause 3(5),
(a) This Bill of Lading and the contract contained or evidenced in this Bill of Lading shall be construed and applied according to and be governed by the laws of Singapore.
(b) Subject to sub-clause 3(3)(c), all actions against the Carrier and the Merchant under the contract of Carriage evidenced by this Bill of Lading, including any question regarding its existence, validity or termination, shall be referred to and finally resolved by arbitration in Singapore in accordance with the Arbitration Rules of the Singapore Chamber of Maritime Arbitration (“SCMA Rules”) for the time being in force at the commencement of the arbitration, which rules are deemed to be incorporated by reference in this clause.
(c) Notwithstanding sub-clause 3(3)(b) above, actions against the Merchant under the contract of Carriage evidenced by this Bill of Lading may be brought, in the Carrier’s sole discretion, in a court of competent jurisdiction.
(4) No provision of this Bill of Lading shall in any way deprive the Carrier of or derogate from rights, immunities or protection, or increase the responsibilities or liabilities which, in the absence of such provision, the Carrier would have under laws made applicable by the foregoing provisions or any other applicable laws in force in any place where any action or proceeding is brought by or against the Carrier in respect of a dispute or claim arising as aforesaid, or elsewhere;
(5) If any provision of this Bill of Lading be to any extent repugnant to legislation hereby made applicable or other applicable laws in force in a place where any such action or proceeding is brought that provision shall to the extent only to which it is repugnant to such legislation and not further, be deemed not to form part of this Bill of Lading or the contract contained or evidenced herein, but in all other respects this Bill of Lading and such contract shall continue in full force and effect (…)».
Não consta do despacho saneador recorrido qualquer elenco de factos não provados.
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. A convenção de arbitragem e o princípio competência - competência
Conforme resulta da factualidade provada, a ré procedeu ao transporte marítimo de mercadorias entre os portos de Nhava Sheva, na Índia e Lisboa, tendo sido emitido um conhecimento de transporte, no qual figuravam como expedidora uma empresa de produtos congelados, com sede na Índia, como “consignatário” o BNP, Paribas, e como “parte a notificar” a ora autora.
Para tanto foi emitido um conhecimento de embarque, ou bill of lading, documentando o correspondente contrato de transporte marítimo de mercadorias.
Como refere FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA[4], “(…) o contrato de transporte é um contrato triangular. (…) O contrato celebrado entre carregador e transportador não pode atingir o seu escopo sem a intervenção do destinatário, sem que o destinatário adira ao contrato. Por esta razão se afirma que o contrato de transporte nasce bilateral, mas potencialmente trilateral. (…)
O destinatário não é parte desde o início, porém desde o início existe a expectativa de que intervirá como parte. O contrato de transporte apresenta-se como um contrato inicialmente bilateral (celebrado entre carregador e transportador), aberto à adesão do destinatário; é celebrado na expectativa da adesão in itinere do destinatário. (…)”.
Mais refere o mesmo autor[5]: “(…) a adesão do destinatário reveste-se de importância fulcral. Esse é o elemento que introduz o destinatário no contrato de transporte; nesse momento, o destinatário aceita a proposta contratual formulada pelo carregador ou pelo transportador, tornando-se parte no contrato. O destinatário, inicialmente um terceiro, com a adesão ao contrato deixa de o ser, assumindo direitos e obrigações. (…)
Não há, pois, que estranhar ou questionar se, por força do contrato de transporte, podem ser impostas obrigações ao destinatário. Não faz sentido olhar com precaução ou suspeita o instituto, pois dele não resulta qualquer limitação ao princípio da relatividade dos contratos.”
Finalmente, diz o autor citado[6] que “Em França, onde tal conceção se consolidou, a Cour de Cassation vem entendendo que a adesão do destinatário se verifica no momento e com a receção das mercadorias pelo destinatário: o destinatário com a receção da mercadoria tornar-se-ia parte no contrato, podendo invocar a responsabilidade contratual do transportador; (…)
“A receção da mercadoria pelo destinatário foi já considerada uma presunção da adesão do destinatário e, também, entendida como uma declaração tácita da sua adesão ao contrato de transporte. Aquele comportamento concludente do destinatário revelava indiretamente a sua vontade. (…)
Por outro lado, atendendo a qualquer uma daquelas caracterizações da receção da mercadoria a adesão do destinatário pode externar-se por via de outros comportamentos para além da receção.
Seja, por exemplo, a detenção do documento do transporte. seja a interposição de uma ação fundada no incumprimento contratual contra o transportador inadimplente. A relevância destas três situações como forma de externar (ao lado da receção da mercadoria) a adesão está patente nos arts. 15º, § 4 e 54º, § 3, alínea b) das RU-CIM.”.
O conhecimento de embarque dos autos contém uma cláusula compromissória, determinando que quaisquer litígios emergentes do transporte nele documentado serão resolvidos mediante arbitragem junto da Câmara de Comércio de Singapura.
E tendo a ré invocado aquela cláusula, a autora objetou que não se vinculou à mesma, e que a mesma é nula.
Como é sabido, o acordo mediante o qual as partes aceitam sujeitar a resolução de um litígio entre ambas designa-se convenção de arbitragem (art. 1º. nº 1 da Lei de Arbitragem Voluntária[7]).
Esta convenção é denominada compromisso arbitral quando tenha por objeto um litígio atual, e cláusula compromissória quando se reporte a litígios eventuais e futuros (nº 3 do mesmo preceito).
Ora, em matéria de arbitragem vigora o princípio da competência-competência, de acordo com o qual havendo convenção de arbitragem, o tribunal arbitral tem competência exclusiva quer para apreciar a validade e eficácia da referida convenção, quer para aferir da sua competência.
Tal princípio mostra-se consagrado no art. 18º da LAV, cujo nº 1 estabelece que “o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção”.
Este preceito inspirou-se no art. 16º da Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional, da UNCITRAL.
O mesmo princípio encontra também respaldo no art. 16º da Lei indiana sobre arbitragem (Arbitration and Conciliation Act, 1996), bem como no art. 21º da Lei sobre arbitragem, de Singapura (Arbitration Act, 2001).
Em decorrência deste princípio o art. 5º, nº 1 da LAV dispõe que “o tribunal estadual no qual seja proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem de, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.”
Este preceito consagra a doutrina plasmada no art. II, nº 3 da Convenção de Nova Iorque sobre o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras[8],  e no art. 8º da Lei Modelo; bem como no art. 8º da Lei Indiana sobre arbitragem; e nos arts. 6º a 8º da Lei sobre arbitragem, de Singapura. Esta última distingue-se das demais por não consagrar a possibilidade de o Tribunal estadual apreciar a contra exceção da invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem.
Sobre esta matéria, refere o ac. STJ 12-11-2019 (Lima Gonçalves), p. 8927/18.7T8LSB-A.L1.S1:
“O STJ vem entendendo que face ao princípio consagrado no artigo 18º, nº1 da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem -, os tribunais judiciais só devem rejeitar a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respetivo âmbito de aplicação.
Suscitadas dúvidas sobre o campo de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio.
(…)
Deste modo, o tribunal estadual só deve intervir, fixando a sua competência, quando for manifesto e insuscetível de controvérsia séria a nulidade, ineficácia e a inexequibilidade da convenção de arbitragem, sendo que manifesta é aquela que não necessita de mais prova para ser apreciada, isto é, quando é constatável independentemente da produção complementar de prova.”
Este critério da dispensa de prova complementar, enquanto bitola interpretativa do caráter manifesto do vício da convenção de arbitragem é também enfatizado por MENEZES CORDEIRO[9], para quem tal vício será manifesto se “dispensar a produção de prova, para se alcançar a nulidade, a ineficácia ou a inexequibilidade”.
No mesmo sentido cfr. acs. STJ 21-06-2016 (Fernandes do Vale), p. 301/14.0TVLSB.L1.S1; e 20-03-2018 (Henrique Araújo), p. 1149/14.8T8LRS.L1.S1.
3.2.2. Da invocada nulidade do compromisso arbitral por violação da competência exclusiva dos Tribunais portugueses
Sustentou a apelante que a cláusula compromissória é nula por não respeitar o disposto nos arts. V, nº 2 da CNI, 1º nº 1 da LAV, 7º, nº 1 da Lei nº 35/86, de 04-09, e no art. 30ºdo Dl nº 352/86, de 21-10.
Para tanto alega o seguinte:
“A arbitrabilidade é um requisito fundamental (de validade) da convenção de arbitragem, na medida em que apenas pode ser submetido à decisão de árbitros um litígio que seja arbitrável (ou seja, estamos perante um limite material à autonomia privada das partes),
Se a natureza arbitral de um determinado litígio não se verificar, não haverá lugar à jurisdição do tribunal arbitral, pois estamos perante questão ou matéria que fica reservada à jurisdição estadual,
O artigo 1º nº 1 da LAV efectua uma delimitação negativa dos litígios passíveis de submissão à arbitragem, excluindo aqueles que se encontram exclusivamente submetidos à jurisdição dos tribunais do Estado e para os quais se rejeita a possibilidade de uma jurisdição privada (arbitragem),
Segundo a lei portuguesa é arbitrável qualquer litígio que respeite a interesses de natureza patrimonial desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, (artigo 1° nº 1 LAV),
Também a CNI 1958 estabelece a inarbitrabilidade do objeto do litígio (“o objeto de litígio não é suscetível de ser resolvido por via arbitral”) como fundamento de recusa do reconhecimento e a execução de uma sentença arbitral (cfr. artigo V, nº 2), alínea a)),
Entende a A., ora Recorrente, que no presente caso existe lei especial que submete o litígio em causa nos autos, necessariamente, à jurisdição estatal,
Pois, o artigo 7º nº 1 da Lei nº 35/86, de 4 de setembro (Lei dos Tribunais Marítimos) dispõe que: “Não é válido, em questões de direito marítimo internacional, o pacto destinado a privar de jurisdição os tribunais portugueses, quando a estes for de atribuir tal jurisdição por força do artigo 65º [atual artigo 62º] do Código de Processo Civil.”, exceto se as partes forem estrangeiras e se tratar de obrigação que, devendo ser cumprida em território estrangeiro, não respeite a bens sitos, registados ou matriculados em Portugal (nº 2 do referido artigo 7º),
Neste âmbito, temos, igualmente, que atender às regras de competência internacional contidas no artigo 30º do D.L. nº 352/86, de 21/10, a propósito do contrato de transporte marítimo de mercadorias.
Resulta da conjugação das mencionadas disposições que a competência internacional dos tribunais portugueses em matéria de direito marítimo não pode ser objeto de um pacto privativo de jurisdição ou foro eficaz, devendo considerar-se tal disposição como abrangendo também a atribuição das referidas questões a árbitros (por importar igualmente uma exclusão da jurisdição dos tribunais estaduais portugueses).”
Não é essa, porém, a melhor interpretação dos citados preceitos.
Com efeito, como ensina LUÍS LIMA PINHEIRO[10]: “Seguindo a opinião dominante entendo que a existência de uma competência internacional exclusiva em certa matéria não exclui, por si, a sua arbitrabilidade. Assim, o art. 1/1 da LAV, quando exige que o litígio não esteja submetido exclusivamente por lei especial a tribunal judicial, não se refere à competência internacional exclusiva, mas à lei especial que exclua a arbitragem voluntaria em determinada matéria. As matérias disponíveis abrangidas por competências legais exclusivas são em princípio arbitráveis”.
Por seu turno, esclarece MARIANA FRANÇA GOUVEIA[11]: “não se confunde a competência judicial exclusiva com as competências internacionais exclusivas previstas no artigo 65º-A do CPC ou no regulamento da CE44/2001. O que é excluído por via do artigo 1º. Nº1 da LAV são os conflitos cuja jurisdição é pública por lei especial prever expressamente. São exemplos o processo crime (…).”
Finalmente, diz MANUEL PEREIRA BARROCAS[12]: “Como se viu para além dos litígios submetidos obrigatoriamente a arbitragem necessária também os litígios submetidos exclusivamente a tribunais do estado não podem ser resolvidos por arbitragem (…) São arbitráveis todos os litígios relativos a interesses patrimoniais ou mesmo não patrimoniais salvo quando lei especial expressamente não o admita em favor do exclusivo dos tribunais do Estado.”
Como bem sublinham todos estes autores, a questão da arbitrabilidade não se confunde com a matéria da competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses.
O que o art. 1º, nº 1 da LAV exclui do objeto da arbitrabilidade são os litígios que devem obrigatoriamente ser decididos nos Tribunais estaduais ou por Tribunais arbitrais necessários.
Acresce que as regras que regem os pactos de jurisdição não são transponíveis para as convenções de arbitragem – vd. ac. RE 04-10-2007 (Fernando Bento), p. 1725/07-2.
Por todo o exposto, conclui-se que não se verifica o vício da falta de arbitrabilidade.
3.2.3. Das condições de validade formal da cláusula compromissória e da sua vinculação por parte do BNP Paribas e da ré
Aqui chegados, cumpre verificar se a cláusula compromissória deve ser considerada formalmente válida e eficaz ou se, ao invés, como sustenta a apelante, se deve entender que ocorreu “falta de consentimento e forma legalmente exigida”.
Sobre esta questão o Tribunal a quo pronunciou-se nos seguintes termos:
“Exposto o quadro legal e jurisprudencial relevante no qual se move a questão a decidir, importa agora resolver a exceção dilatória da preterição do tribunal arbitral deduzida pela Ré, tendo em conta os factos provados, elencados em 2..
Assim, e desde logo, constata-se que o conhecimento de carga no qual se encontra inserida a cláusula compromissória ajuizada contém toda a regulamentação do transporte marítimo internacional de mercadorias efetuado pela Ré entre os portos de Nhava Sheva, India, e de Lisboa, Portugal. Ou seja, o título de transporte em apreço não consiste numa short form de um bill of lading, o que significa que carregador, destinatário e transportador nele conseguem apreender a disciplina de todos os aspetos ligados à vida do contrato atestado por tal conhecimento.
Trata-se ainda de um instrumento que especifica claramente os interessados na carga e o transportador. Ademais, foi emitido à ordem de BNP Paribas Portugal Sucursal, pelo que não contém a identificação do destinatário efetivo da mercadoria, mas antes a do sujeito a quem foi passado. Nessa medida, é título transmissível por endosso, o qual ocorreu no caso vertente (quando a sobredita instituição bancária apôs no verso do conhecimento a declaração datada de 25-10-2016 de que «Pertence a ADistribuição Alimentar S.A. (…)»), facto que determinou o ingresso na esfera jurídica da Autora (endossatário) de todas as situações ativas que caracterizavam a posição do BNP Paribas Portugal Sucursal (endossante), mormente, a cessão da posição contratual que este detinha no contrato de transporte documentado pelo instrumento que ficou na posse daquela. Note-se que ao endossar o conhecimento em apreço, o BNP Paribas Portugal Sucursal acabou por demonstrar de forma inequívoca a sua adesão ao negócio descrito em tal documento.
Este contrato (principal) encontra-se prioritariamente sujeito à disciplina da fixada pela cláusula Paramount  constante do ponto 3. das condições gerais do conhecimento de carga, a qual remete para as Regras de Haia-Visby e a lei da Singapura (Estado que, por via do Carriage of Goods by Sea Act 1972 – alterado em 30 de Maio de 1998 –, incorporou no seu direito interno aquelas Regras), mas sempre sem prejuízo do regime imperativo vigente no país onde foram intentadas ações ou procedimentos fundados no conhecimento ajuizado.
No que concerne à especificamente à cláusula compromissória alegadamente preterida pela Autora, é bom notar que o documento que a comporta contém a intervenção de sociedades sedeadas na India (carregador), Singapura (carregador) e Portugal  (destinatário), Estados que ratificaram a Convenção sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras, celebrada em Nova Iorque em 10 de Junho de 1958 (Convenção de Nova Iorque) . Acresce que o direito interno de tais países disciplina a arbitragem voluntária, por via dos seguintes diplomas:
- Arbitration and Conciliation Act, 1996, na Índia;
- Arbitration Act, 2001, em Singapura;
- Lei n.º 63/2011, de 14-12, em Portugal.
Tanto o regime internacional, como a disciplina nacional dos sobreditos Estados (implicados em razão da nacionalidade dos sujeitos designados no conhecimento de carga dado à ação), impõem a redução a escrito de qualquer convenção de arbitragem.
Com efeito:
- O art. 2.º, n.º 1, da Convenção de Nova Iorque determina que «[c]ada Estado Contratante reconhece a convenção escrita pela qual as Partes se comprometem a submeter uma arbitragem todos os litígios ou alguns deles que surjam ou possam surgir entre elas relativamente a determinada relação de direito, contratual ou não contratual, respeitante a uma questão suscetível de ser resolvida por via arbitral», precisando o n.º 2 do mesmo artigo que «[e]ntende-se por convenção escrita uma cláusula compromissória inserida num contrato, ou num compromisso, assinado pelas Partes ou inserido numa troca de cargas ou telegramas».
- O art. 7.º, n.º 3, do Arbitration and Conciliation Act, 1996, estabelece que «[a]n arbitration agreement shall be in writing»;
- O art. 4.º, n.º 3, do Arbitration Act, 2001, dispõe que «[a]n arbitration agreement shall be in writing»;
- O art. 2.º, n.º 1, da LAV preconiza que «[a] convenção de arbitragem deve adotar forma escrita».
Logo, a convenção de arbitragem constante do conhecimento de carga dado à ação respeita os requisitos formais impostos pelas fontes legais ora citadas, sendo que – para além do mais – o referido documento encontra-se assinado pelo BNP Paribas Sucursal em Portugal, que nele não apôs qualquer reserva.
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Assente a validade formal da estipulação compromissória ajuizada, importa agora saber se a Autora nela consentiu (conheceu e aceitou) e depois a preteriu com a propositura da presente ação, sabendo-se de antemão que tal determinação, na medida em que se refere à eficácia (leia-se, suscetibilidade de aplicação) de uma cláusula arbitral relativamente a uma parte que alegadamente não a ajustou, pode ser objeto de uma apreciação prima facie pelo juiz estadual, sem que daí decorra a violação do princípio da competência-competência.
Ora, o conhecimento de embarque alude a uma carta de crédito com a referência PCI07704. O mesmo instrumento identifica como:
- Expedidor da mercadoria transportada, uma sociedade de produtos congelados (“Forstar Frozen Foods PVT LTD”);
- Consignatário, à ordem do BNP Paribas Sucursal em Portugal;
- Parte a notificar, a Autora. 
Precisa ainda que os bens transportados correspondem a uma partida de 1890 embalagens contendo camarões congelados, acondicionados num contentor refrigerado que está programado para atingir a temperatura de pelo menos -20ºC durante a deslocação. Finalmente, o documento em causa contém no verso um endosso em benefício da Autora
Tendo por base estes dados, é possível assentar que a Autora foi a destinatária efetiva, última, dos referidos produtos, os quais foram por si adquiridos no estrangeiro com recurso a um crédito documentário (de importação). Este último consiste numa situação jurídica pela qual um banqueiro se compromete, perante um seu cliente, a pagar uma certa quantia a um terceiro mediante a entrega, por este, de determinados documentos. Trata-se de um negócio jurídico que se encontra prioritariamente sujeito à disciplina das Regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos Documentários, revisão de 2007, adotados pela  Câmara de Comércio Internacional, conforme, aliás, constitui a prática bancária internacional corrente.
Em concreto, e à luz das UCP 600, a operação bancária que tal negócio desencadeia pode decompor-se em cinco atos:
1. O cliente/importador solicita a abertura de um crédito documentário (carta de crédito);
2. O banco emitente aprova o pedido e envia a carta de crédito ao banco do beneficiário (banco notificador);
3. O banco notificador/confirmador autentica a carta de crédito e comunica a sua receção ao beneficiário (exportador), que examina os termos e condições daquela para se certificar de que os poderá cumprir;
4. O beneficiário (exportador) embarca a mercadoria e entrega os documentos ao seu banco notificador/confirmador que os examina, verificando a sua conformidade com os termos do crédito; se estiverem em ordem, o banco envia a documentação ao banco emitente.
5. O banco emitente examina os documentos e, se estes estiverem em ordem, paga ao banco notificador/confirmador ou comunica o aceite para uma data futura e entrega os documentos ao seu cliente, o importador que com eles irá tomar posse da mercadoria. 
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Ora, tendo em conta a atividade empreendida pela BNP Paribas que transparece do conhecimento de carga, é evidente que aquela instituição bancária aceitou todos os termos/condições do bill of lading, já que nele não apôs qualquer reserva e inclusivamente o firmou. Ademais, e conforme confessa a própria Autora (arts. 4.º e 5.º da petição inicial), o preço da mercadoria adquirida foi pago ao abrigo da carta de crédito emitida pelo BNP Paribas quando já era conhecido o bill of lading e respetivo teor (cf. a este respeito o documento n.º 2 da petição inicial, que o refere expressamente), daqui resultando a compreensão e aceitação de todos os termos de tal instrumento, mormente, da estipulação compromissória.
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Num outro plano, há que atentar que o conhecimento de carga foi endossado à Autora, que o aceitou, tendo tal endosso redundado numa cessão de posição contratual, irrestrita, daqui resultando que, para além de ter ficado investida na posição de destinatário, a Demandante também se tornou parte na convenção de arbitragem incorporada no contrato principal, tanto mais que não a excluiu expressa ou tacitamente do acordo translativo, mediante a aposição de qualquer reserva. Aliás, outra não podia ser a conclusão, pois a cláusula compromissória é parte integrante do contrato principal e constitui um acessório inseparável do direito de ação que, ele próprio, acompanha o direito substantivo. Por ser assim é que a cláusula se transmite automaticamente quando o direito substantivo também é transmitido .
Finalmente, mas não menos importante, a Autora, na medida em que se dedica à importação – designadamente por via marítima, como atesta o caso dos autos – de bens provenientes dos mais diversos pontos do globo para depois os revender a retalho, sabe – ou não pode ignorar – que os títulos de transporte hidroviário fazem parte de um direito de natureza convencional, corporizador do denominado “direito dos formulários”, que se caracteriza justamente pelo estabelecimento de cláusulas – entre outras – de jurisdição ou arbitragem, a ponto de não se conhecerem de conhecimentos de linha regular que não as consagrem… Ou seja, a Autora sabe – ou devia saber ou não podia ignorar – que os conhecimentos de carga contêm quase sempre estipulações que derrogam das regras comuns de competência, pelo que não pode opor às suas contrapartes qualquer desconhecimento fundado na inobservância do dever de diligência que impende sobre todos os comerciantes importadores de se precaverem relativamente a tais cláusulas habituais.
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Por tudo quanto vem de ser exposto, é manifesto que a Autora conheceu e aceitou a cláusula compromissória constante do bill of lading dado aos autos, sendo tal convenção arbitral eficaz.”
Subscrevemos inteiramente este entendimento.
E, considerando a forma aprofundada como o Tribunal a quo analisou a situação dos presentes autos, fazendo-o na sequência de uma exaustiva exposição sobre o regime aplicável à arbitragem internacional no contexto do transporte internacional de mercadorias, cremos que nada mais haverá a dizer em abono do decidido.
Não obstante, sempre deixaremos algumas notas complementares.
A primeira para sublinhar que a circunstância de o BNP Paribas não ter assinou o conhecimento de embarque não tem qualquer relevância, até porque o mencionado banco o endossou[13].
Note-se que a decisão recorrida considerou – e bem – que o contrato titulado pelo conhecimento de embarque tem natureza consensual, não carecendo de assinatura das partes.
A segunda, para significar que a aceitação da cláusula compromissória por parte do carregador é absolutamente irrelevante, uma vez que este nem sequer é parte no presente litígio. Não tem por isso qualquer relevância apurar se o carregador aceitou ou não aquela cláusula[14]. Mas ainda que assim não fosse, tal aceitação é de presumir, na medida em que a mercadoria foi efetivamente carregada.
A terceira, para sublinhar que, como vimos, a cláusula compromissória remete para a lei de Singapura, sendo certo que o art. 4.(3) dispõe que “an arbitration agreement shall be in writing”, acrescentando o (4) do mesmo artigo que “An arbitration agreement is in writing if its content is recorded in any form, whether or not the arbitration agreement or contract has been concluded orally, by conduct or by other means.” Donde, à luz da lei de Singapura, a adesão à cláusula compromissória pode fazer-se por declaração oral ou resultar de comportamentos concludentes.
Donde, à luz da lei aplicável, o levantamento da mercadoria no porto de destino constitui um comportamento concludente consubstanciador da aceitação da cláusula compromissória por parte da autora, visto que não se apurou que ao proceder a tal levantamento a autora tenha formulado quaisquer reservas.
E finalmente, a quarta, para dar nota de que não nos pronunciaremos sobre a inconstitucionalidade invocada (conclusão XXVIII), na medida em que a apelante não identifica a norma que considera inconstitucional, limitando-se a afirmar que “a decisão recorrida (…) representa uma restrição, que a lei não admite, ao direito constitucional de a mesma recorrer aos tribunais estaduais para fazer valer o seu direito e assim viola o disposto no artigo 20ºda CRP”.
Com efeito, na nossa ordem jurídica, o objeto dos juízos de inconstitucionalidade não são decisões judiciais, mas sim normas. Daí que não exista, no Direito constitucional português a figura do recurso de amparo. – Neste sentido cfr, entre outros, acs. TC 359/1992, TC 318/1993 e TC 467/1997.
Termos em que, sem necessidade de outras considerações, concluímos pela total improcedência da presente apelação.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção do Tribunal a Relação de Lisboa em julgar a presente apelação total improcedente, confirmando por isso o despacho saneador recorrido.
Custas pela apelante (art. 527º n.º 1 do C.P.C.).

Lisboa, 15 de dezembro de 2020[15]
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
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[1] Seguimos de perto o relato constante do despacho saneador recorrido.
[2] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-116.
[3] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116.
[4] “O contrato de transporte de mercadorias – Contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte marítimo”, Almedina, 2000, p. 236.
[5] Ob. cit, p. 237.
[6] Ob. cit., pp. 240-242.
[7] Aprovada pela Lei nº 63/2011, de 14-12, e adiante designada pela sigla “LAV”.
[8] Aprovada pela ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 37/94, de 10-03, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 52/94, de 08-07. Esta convenção passará a ser designada pela sigla “CNI”.
[9] “Tratado da Arbitragem”, Almedina, 2016 (reimpressão da ed. de 2015), p. 204.
[10] “Arbitragem transnacional - A determinação do estatuto da arbitragem”, Almedina, 2005, pp. 111-112.
[11] “Curso de resolução alternativa de litígios”, Almedina, 2020 (reimpressão da 3ª ed., 2014), p. 117.
[12] “Lei da arbitragem comentada”, 2ª ed., Almedina, 2018, p.
[13] Conclusões I- a V-, e VII-.
[14] Conclusão VI.
[15] Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.