Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1149/14.8T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
COMPETÊNCIA CONVENCIONAL
TRIBUNAL ARBITRAL
FORO COMUM
CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
VALIDADE
EFICÁCIA
EXEQUIBILIDADE
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
Data do Acordão: 03/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO ARBITRAL – COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL.
Doutrina:
-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 281;
-João Lopes dos Reis, A Excepção da Preterição do Tribunal Arbitral (voluntário), Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Tomo III, Dezembro de 1998, p. 1122;
-Mariana França Gouveia e Jorge Morais Carvalho, Cadernos de Direito Privado, n.º 36, p. 39 a 49.
-Menezes Cordeiro, Tratado de Arbitragem, p. 204.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.º 2, ALÍNEA A) E 671.º, N.º 2, ALÍNEA A).
LEI DA ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA (LAV), APROVADA PELA LEI N.º 63/2011, DE 14 DE DEZEMBRO: - ARTIGO 18.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-01-2011, PROCESSO N.º 2207/09.6TBSTB.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 10-03-2011, PROCESSO N.º 5961/09.1TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02-06-2015, PROCESSO N.º 1279/14.6TVLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-07-2015, PROCESSO N.º 1770/13.1TVLSB.L1.S1;
- DE 21-06-2016, PROCESSO N.º 301/14.0TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Admite revista o acórdão da Relação que, incidindo sobre decisão interlocutória de conteúdo adjectivo – indefere a excepção de preterição do tribunal arbitral e confere competência material ao tribunal judicial para conhecer a causa – integra a norma exceptiva do art. 671.º, n.º 2, al. a), mediante a previsão constante do art. 629.º, n.º 2, al. a), ambos do CPC.

II - Face ao princípio consagrado no art. 18.º, n.º 1, da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem –, os tribunais judiciais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação.

III - Suscitadas dúvidas sobre o campo de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 1149/14.8T8LRS.L1.S1

REL. 18[1]

                                               *

    ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

            “AA – ,,,, Lda.” intentou contra “BB, S.A.” acção declarativa comum, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização de clientela no montante de 1.343.611,88 €, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor, contados desde 15 de Novembro de 2013 até integral e efetivo pagamento.

           Tendo a Ré deduzido, na contestação, a incompetência absoluta do tribunal, por preterição de tribunal arbitral voluntário, a Mmª Juíza julgou procedente essa excepção no despacho saneador e absolveu a Ré da instância.

           A Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo este revogado a decisão da 1ª instância e ordenado o prosseguimento dos autos no tribunal judicial.


Recorre agora a Ré, de revista, para o STJ, concluindo do seguinte modo:
1.        O presente recurso de revista tem por objecto o Acórdão proferido nos autos, o qual julgou, "no essencial", procedente a apelação e revogou totalmente a sentença recorrida, decretando a sua substituição por uma outra que julgue improcedente a excepção de preterição de tribunal arbitral invocada pela Ré, ora Recorrente, e determinando o consequente prosseguimento da tramitação do processo.
2.       A Recorrente não pode conformar-se com o Acórdão recorrido porquanto o mesmo consagra uma solução jurídica incomportável, atento o caso concreto, violando as mais elementares garantias decorrentes da lei, assim como as legítimas expectativas da ora Recorrente quanto à aplicação da arbitragem em disputas originárias devido ou relacionadas com o contrato celebrado entre as Partes.

3.         As Partes celebraram, a 25 de Abril de 1996, um Contrato de Distribuição, pelo qual se vincularam a uma convenção de arbitragem, na modalidade de cláusula compromissória - por reportada a qualquer litígio, decorrente de uma concreta e específica relação contratual-, especificamente prevista na Cláusula 19, alínea c}.

4.         A cláusula compromissória vertida na cláusula 19, alínea c) do Contrato é válida e eficaz, preenchendo os requisitos legais inscritos na Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, então aplicável, e, bem assim, na actual Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro (Lei da Arbitragem Voluntária).

5.        A cláusula compromissória foi livre e esclarecidamente subscrita por ambas as Partes, demonstrando a real vontade destas de submeter todo e qualquer litígio que tivesse origem ou fosse decorrente do contrato de distribuição celebrado pelas Partes, a um Tribunal Arbitral a constituir em Barcelona.

6.        Entendem os Venerandos Desembargadores, no acórdão recorrido, que a cláusula compromissória respeita somente a questões relativas a uma "quebra ou violação do contrato" e que o seu âmbito de aplicação se encontra limitado a estas questões. Mal, no entender da Recorrente.

7.        O entendimento vertido no acórdão recorrido quanto ao âmbito de aplicação da cláusula compromissória subtrai todos os efeitos garantísticos advenientes da segurança e confiança jurídica que se impõem, subvertendo as prerrogativas conferidas pela lei nesta matéria, além de frustrar as legítimas expectativas da ora Recorrente de, ao ser assinado o referido Contrato, ver todos os litígios submetidos ao Tribunal Arbitral da Cidade de Barcelona.

8.        A cláusula compromissória subscrita pelas Partes é clara ao referir-se a litígios que surjam ao abrigo ou em conexão com o Contrato ou relacionadas com qualquer alegada violação do Contrato, estando as questões sub judice claramente abrangidas pelo seu âmbito de aplicação.

9.         O pedido e a causa de pedir formulados nos autos resultam da relação jurídica emergente do contrato de distribuição que consagra a cláusula arbitral, inserindo-se no seu âmbito de aplicação.

10.      A cláusula compromissória no contrato de distribuição de onde emergem os pedidos formulados nos presentes autos produz necessariamente efeitos sobre as respectivas pretensões substantivas e processuais, não fazendo qualquer sentido que se faça aqui uma cisão sobre as matérias sujeitas à cláusula arbitral.

11.      Como decidiu o tribunal de primeira instância, e bem: "analisando a cláusula contratual supra citada, do ponto de vista de um declaratário normal, e de harmonia com o disposto nos arts. 236º e 238º do CC, somos levados a concluir que as partes subscreveram cláusula compromissório pela qual se comprometeram a resolver conflitos emergentes ou relacionados com o contrato celebrado, segundo a lei espanhola e mediante tribunal arbitral situado na cidade de Barcelona."

12.      O entendimento vertido no acórdão recorrido conduz, inclusivamente, a uma clara violação da máxima pacta sunt servanda.

13.       Não obstante, e como refere, e bem, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, uma das questões a decidir nos presentes autos é saber se é ou não devida uma indemnização de clientela à Recorrida. Para responder à questão colocada, o tribunal que conheça do mérito da acção terá necessariamente de analisar e decidir sobre matérias relativas à "quebra ou violação do que se encontra estipulado em qualquer das cláusulas desse contrato".

14.      Para conhecer da questão relativa à atribuição, ou não, de indemnização de clientela o Tribunal que conheça da questão sempre terá de apreciar as matérias atinentes ao incumprimento contratual que terão estado na origem da cessação do contrato sub judice, desde logo atendendo à defesa apresentada nos autos pela aqui Recorrente.

15.  A Recorrente entende que o contrato sub judice é um contrato de distribuição e não de concessão comercial. Não obstante, e ainda que equacionando a aplicação do regime emergente do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, importa notar que a lei é clara ao prever que a indemnização de clientela não é devida quando o contrato haja cessado por motivo imputável ao agente (nesse sentido, o n.º 3 do artigo 33.º do aludido Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho).

16.      E isto independentemente de a cessação do contrato ter operado por denúncia ou resolução - nesse sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. nº 06A027, de 7 de Março de 2006, disponível para consulta em www.dgsLpt.

17.      Para conhecer da questão de saber se é ou não devida indemnização de clientela, sempre terá o tribunal de conhecer e decidir se a cessação do contrato se deve, ou não, a razões imputáveis ao agente e, como tal, conhecer e decidir sobre questões atinentes ao incumprimento do contrato - matéria essa que, em face da sentença e acórdão proferidos nos presentes autos, é inegável e indubitavelmente da competência exclusiva dos tribunais arbitrais.

18.       Foram os inúmeros incumprimentos e violações do contrato e da lei por parte da Recorrida que determinaram a cessação do contrato de distribuição, sendo que o conhecimento de tais incumprimentos e violações - da competência exclusiva dos tribunais arbitrais - se impõe como juízo prévio ao conhecimento e determinação da atribuição, ou não, da indemnização de clientela.

19.      Ainda que seguindo a interpretação vertida no acórdão recorrido - a qual não se aceita - sempre a conclusão deveria ser pela improcedência do recurso de apelação e manutenção da sentença proferida em primeira instância porquanto o conhecimento do mérito da presente acção sempre recairá sobre matérias relativas a violações contratuais que, por força da cláusula compromissória, estão vedadas aos tribunais judiciais, sendo a competência para delas conhecer e decidir atribuída exclusivamente aos tribunais arbitrais.

20.      Para conhecer do mérito da presente acção - e independentemente do maior ou menor âmbito que se atribua em sede de interpretação da cláusula compromissória sub judice -, sempre serão competentes os Tribunais Arbitrais da cidade de Barcelona, conforme prescrito na Cláusula 19.º c) do Contrato de Distribuição celebrado entre as partes. 

21.      Acresce que, o entendimento vertido no acórdão recorrido traduz igualmente uma violação do princípio kompetenz-kompetenz porquanto não observa a prioridade que sempre deveria ser dada ao tribunal arbitral de conhecer da sua própria competência conforme disposto na Lei da Arbitragem Voluntária - nesse sentido, o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 21 de junho de 2016 no âmbito do processo n.º 301/14.0TVLSB.L1.S1, disponível para consulta em www.dgsLpt.

22.      O pedido e a causa de pedir formulados nos presentes autos encontram-se, assim, claramente abrangidos pela cláusula compromissória subscrita pelas Partes no contrato de distribuição celebrado em 25 de abril de 1996 pelo que, se impõe a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que, olhando ao pedido, causa de pedir e defesa formulados nos presentes autos, conclua pela violação da cláusula com promissória e, consequentemente, pela incompetência absoluta do tribunal judicial (art.º 96.º, alínea b) do Código de Processo Civil), fundada em excepção dilatória (art. 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil), tempestiva e validamente arguida (art. 97.9, nº1 do Código de Processo Civil) pela R., ora Recorrente, com a necessária absolvição da ré da instância (art.s 576.º, nº 2 do Código de Processo Civil).

23.      O entendimento vertido no acórdão recorrido contende, ademais, com os direitos que, pela Constituição, são reconhecidos e atribuídos à ora Recorrente, nomeadamente no que concerne ao direito de acesso à justiça, à segurança jurídica e a uma tutela efectiva dos seus direitos, sendo que o entendimento sufragado pelo Venerando Tribunal a quo no que respeita à "interpretação" que faz do clausulado traduz-se numa errónea aplicação das regras do direito e de interpretação.

24.      A interpretação feita pelo Venerando Tribunal a quo é inconstitucional por violar os princípios inerentes ao Estado de Direito Democrático, inscritos no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente os princípios da segurança e da confiança jurídica; das garantias de defesa como consagrados no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, aplicáveis mutatis mutandis ao processo cível e, bem assim, os princípios e normas que regem a função jurisdicional, nomeadamente em face do disposto nos artigos 202.º, 203.º e 204.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

25.      Ao interpretar as normas aplicáveis ao caso concreto, nomeadamente aqueloutras constantes dos artigos 236.º, 237.º 238.º e 239.º do Código Civil, não pode o intérprete e aplicador da lei de processo deixar de atender aos princípios fundamentais da confiança, da segurança e da proporcionalidade.

Pede, em consequência, que seja revogado o acórdão recorrido e se julgue procedente a excepção de incompetência absoluta por preterição de tribunal arbitral, mantendo-se, dessa forma, a decisão proferida em primeira instância.

            Contra-alegou a recorrida, com as seguintes conclusões:

I. O recurso de revista interposto não deve ser admitido uma vez não se verificarem os requisitos previstos no artigo 671º do CPC;

II.        Caso assim não se entenda, o recurso de revista interposto deve ser julgado improcedente uma vez que a interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Lisboa sobre a convenção de arbitragem (no sentido de que, no caso dos autos, não estamos perante uma situação de violação do contrato celebrado entre as partes) é a única que respeita os artigos 236°,237°,238° e 239º do Código Civil e a postura que a Recorrente havia anteriormente adotado perante uma situação de (essa sim ... ) alegada violação do contrato, em que demandou a Recorrida perante os tribunais portugueses;

III.     O entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa não é inconstitucional:  limitou-se o mesmo a interpretar a convenção de arbitragem à luz dos princípios de Direito aplicáveis;

IV.     Em síntese, a Recorrente persiste em tentar levar a "discussão dos autos" para um campo de aplicação que não é o correcto, porque é por demais notório que, nos autos, não se discute a cessação do contrato celebrado entre as partes e a forma pela qual a mesma operou.

                                                                                  *

            II.        FUNDAMENTAÇÃO

            OS FACTOS

           Os factos que interessam à resolução do recurso são os que se encontram descritos supra, a eles se aditando o teor do contrato celebrado pelas partes, em 25.04.1996. junto a fls. 90 a 98 dos autos, que aqui se dá por reproduzido na totalidade.

           

                        O DIREITO

a) Da (in)admissibilidade do recurso

           A recorrida defende a inadmissibilidade do recurso de revista, apoiando-se no disposto no artigo 671º. Refere que não estão reunidos os pressupostos aí enunciados, uma vez que a decisão recorrida não conheceu do mérito da causa, não pôs termo ao processo, nem absolveu da instância a Ré.

           Como já se anotou, o acórdão recorrido revogou a decisão da 1ª instância que havia julgado procedente a excepção da preterição de tribunal arbitral.

           Na presente revista, a recorrente refuta essa decisão e bate-se pela repristinação do decidido na 1ª instância.

                       Apesar de, em princípio, não admitirem recurso de revista os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias da 1ª instância sobre questões de natureza adjectiva (como é o caso da decisão recorrida), a lei processual civil abre, no entanto, as duas excepções previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 671º. Admitem, por conseguinte, revista os acórdãos da Relação que, incidindo sobre decisões interlocutórias de conteúdo adjectivo, integrem alguma das previsões constantes do n.º 2 do artigo 629º do CPC[2].

           Uma dessas situações de excepção é a que se reporta à violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado – alínea a), do n.º 2 do artigo 629º.

           Nos termos do artigo 96º, alínea b), do CPC, a preterição do tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal.

           No caso vertente, a Ré, na revista, impugna a decisão que, indeferindo a excepção da preterição do tribunal arbitral, conferiu competência material ao tribunal judicial para conhecer dos autos.

           Estando em causa a suposta violação das regras de competência em razão da matéria, nenhuma dúvida se levanta quanto à admissibilidade da revista. 

b) Da preterição do tribunal arbitral voluntário

           Veja-se, antes de mais, o modo como o acórdão recorrido fundamentou a sua decisão de fazer improceder a excepção da preterição do tribunal arbitral voluntário:

“4.2. Passando, então, ao escrutínio do objecto da presente lide (tal como o mesmo foi definido pela apelante através das conclusões do seu recurso), impõe-se esclarecer que, pese embora a língua oficial dos autos seja o português, é útil observar o texto em língua inglesa da cláusula 19 c) do contrato firmado entre as partes - e que, insiste-se, é aquela cuja interpretação permitirá determinar o destino do pleito – porquanto, nas suas contra-alegações, a Ré, mais ou menos explicitamente, põe em causa a tradução desse contrato apresentada pela Autora a acompanhar a petição inicial deste processo (e que é a usada no texto da decisão recorrida, a saber e na parte que é verdadeiramente relevante: «… e todas as disputas entre as partes originadas devido ou relacionadas com alguma alegada violação do presente Contrato deverão ser resolvidas por arbitragem na cidade de Barcelona de acordo com as regras da altura da Câmara do Comércio internacional).
E é, novamente apenas na parte verdadeiramente relevante, o seguinte o texto em inglês dessa cláusula: «…and any disputes between the parties arising under or in connection with or relating to any alleged breach of this Agreement shall be settled by arbitration in the city of Barcelona in accordance with the rules then obtaining of International Chamber of Commerce. …».
Inequivocamente, a tradução de que o Mmo Juiz a quo se serve para fundamentar o seu sentenciamento não é a única possível mas, não menos indisputavelmente, as palavras-chave do clausulado são alguma alegada violação do presente Contrato ou to any alleged breach of this Agreement.
Em suma, o compromisso arbitral aplica-se quanto a todos os conflitos emergentes (arising under - os que surgem por baixo de) ou conexos/em conexão ou relativos a/relacionados com uma qualquer alegada violação/quebra do contrato assinado pelas partes no dia 25/04/1996.
E é essa a leitura que um/a declaratário/a normal colocado/a na posição do/a real declaratário/a fará desse conjunto de palavras escritas, sendo esse o sentido que, tendo bem mais do que um mínimo de correspondência nesse texto, conduz a um maior equilíbrio das prestações e traduz uma actuação de acordo com os ditames da boa fé.
E como se tal não fosse - mas é - já suficiente, a interpretação agora manifestada é, sem margem para dúvidas, aquela que traduz a solução ético-socialmente mais acertada na actual situação do processo e, bem assim, aquela da qual melhor resulta a salvaguarda da segurança e da confiança jurídicas (legal certainty), as quais, por sua vez, constituem Valores ético-sociais da maior relevância, pois a segurança e a confiança são condições indispensáveis ao normal funcionamento do comércio jurídico e, mais do que isso, da própria vida em sociedade.
4.3. Ora, lendo com a devida atenção a petição inicial deste processo, o que se constata é que a Autora apenas pretende ver discutidas as seguintes questões:
a) qual a natureza jurídica do contrato - ou seja, como deve o mesmo ser qualificado (se é ou não um contrato de concessão comercial);
b) se lhe é ou não devida uma indemnização de clientela face à denúncia do contrato operada (unilateralmente) pela Ré nos termos previstos na cláusula 12 desse acordo negocial, o que implica decidir se a cláusula 9 do mesmo é ou não nula, e, finalmente,
c) qual o valor a fixar a título dessa indemnização.
Manifestamente e por mais que a Ré o queira fazer crer e o Mmo Juiz a quo assim o queira configurar, nenhuma dessas questões jurídicas - nem mesmo a indicada na alínea b) supra, que respeita a problemas de validade dos termos do acordo celebrado entre as partes - se reconduz a uma quebra ou violação do que se encontra estipulado em qualquer das cláusulas desse contrato.
O que significa que (sem haver sequer que cuidar se, em outro processo, a Ré violou o compromisso arbitral consubstanciado na alínea a) da cláusula 19 do contrato dos autos) é totalmente improcedente a excepção de preterição de tribunal arbitral invocada pela Ré, não podendo, portanto, ser mantida a decisão recorrida, antes tendo a mesma que ser revogada e substituída por outra que, declarando essa improcedência, determine o prosseguimento da tramitação do processo.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta”.

A nossa decisão irá, como veremos, em sentido contrário.

            Está perfeitamente adquirido que, mediante a inclusão de cláusula compromissória, as partes decidiram submeter ao tribunal arbitral os eventuais litígios que as dividissem quanto ao contrato firmado em 25.04.1996.

           A questão está em saber se essa cláusula compromissória abrange o presente litígio, sendo necessário, para o efeito e antes de mais, caracterizar este a partir da causa de pedir invocada e do pedido deduzido.

           

            Alegou a Autora que:

           - No ano de 1996, a Autora (então denominada “CC, Lda.”), celebrou com a Ré um contrato de distribuição, em regime de exclusividade, através do qual se obrigava a promover a venda, distribuição e assistência pós-venda, incluindo a instalação, formação e suporte dos produtos certificados da marca “BB” comercializados pela Ré à Autora no território português.

           - Assim, durante mais de 16 anos, a Autora comprou à Ré diverso material do seu comércio (instrumentos científicos) com a finalidade de revender esses mesmos bens a clientes por si angariados no território português, a quem prestava formação técnica e a quem fornecia os necessários serviços de assistência pós-venda, manutenção preventiva e correctiva;

           - Tais vendas e serviços foram sempre efectuados de acordo com as directrizes e formação prestados pela Ré aos colaboradores da Autora, que se deslocavam às instalações da Ré, em Barcelona, pelo menos duas vezes ao ano;

                        - A Ré fez cessar esse contrato em 31.12.2012;

           - No mês em que produziu efeitos a cessação do contrato, foi constituída a sociedade “DD, Lda.”, filial da “EE”, que começou a actuar comercialmente em Portugal, em regime de exclusividade, importando e distribuindo os produtos da marca BB, anteriormente comercializados pela Autora no mesmo mercado;

           - A Autora angariou centenas de clientes para a marca da Ré, ao longo de mais de 16 anos, clientela essa de que a Ré passou a dispor após a cessação do contrato em causa;

           - Em resultado das vendas realizadas nos últimos cinco anos de duração de contrato (2008 a 2012), a Autora obteve uma remuneração anual média de 1.343.611,88 €;

           - Estando verificados os requisitos previstos no n.º 1, alíneas a), b) e c) do artigo 33º do DL 178/86, de 3 de Julho, tem a Autora direito a uma indemnização de clientela no valor de 1.343.611,88 €.

           No quadro sinteticamente descrito, a relação contratual estabelecida entre a Autora e Ré reconduz-se a um contrato de distribuição comercial, na modalidade de concessão comercial.

           Cessado esse contrato em 31.12.2012, através da denúncia formalizada por carta de 16.11.2102, reclama agora a Autora uma indemnização de clientela, ao abrigo do que dispõe o artigo 33º do DL do DL 178/86, de 3 de Julho.

           Como se sabe, a indemnização de clientela não tem função reparadora, ou seja, não visa reparar o agente (concessionário) pelo incumprimento contratual imputável ao principal (concedente) que tenha causado prejuízos ao agente (concessionário). Trata-se antes de uma compensação económica atribuída ao agente (concessionário) pela vantagem ou mais valia que resultou para o principal (concedente) em resultado da actividade desenvolvida pelo agente (concessionário) no âmbito do contrato.

           As características e fundamento dessa compensação fazem com que o direito à indemnização de clientela se constitua apenas com a cessação do contrato, pois é aí que a vantagem ou mais valia criada se transmite para o principal (concedente).

           Resta saber, como se disse acima, se esse pedido de indemnização se inscreve no âmbito da cláusula compromissória constante da cláusula 19ª, alínea c) do mencionado contrato, ou seja, se a competência para dirimir o conflito é do tribunal arbitral.

           
Quando se procura apurar o sentido da convenção de arbitragem, para efeitos do eventual deferimento da competência ao tribunal arbitral, devem aplicar-se as regras gerais de interpretação do negócio jurídico.
Assim, conforme resulta da conjugação dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, as linhas gerais que orientam a correcta interpretação da vontade negocial resumem-se ao seguinte:  a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, devendo a interpretação adoptada, quando se trate de negócio formal, ter um mínimo de correspondência no texto do documento que a corporiza.

Vejamos, então, o que se estipulou na mencionada claúsula 19ª, alínea c):

           “O presente Contrato deverá ser regido pelas leis de Espanha e todas as disputas entre as partes originadas devido ou relacionadas com alguma alegada violação do presente Contrato deverão ser resolvidas por arbitragem na cidade de Barcelona de acordo com as regras da altura da Câmara do Comércio internacional”.

           Depreende-se do texto do acórdão recorrido que a razão que ditou a improcedência da excepção da preterição do tribunal arbitral foi a de não vir configurada uma situação de violação do contrato, porque só esta poderia incluir-se no âmbito da cláusula compromissória.

           Supomos, porém, que tem de se ir mais longe na interpretação e de se indagar para além da pura literalidade desta alínea c).

           Por isso, numa perspectiva mais contextualizada do programa contratual, importa considerar também o teor do estipulado na alínea b) da mesma cláusula 19ª.

            Aí se dispôs o seguinte:

           “Nenhuma das partes deverá ser responsável para com a outra por motivos presentes neste Contrato ou por qualquer falha de desempenho ao abrigo do presente contrato por compensações ou danos relacionados com a perda dos potenciais lucros ou dos lucros reais ou comissões de vendas ou venda previstas, ou despesas, investimentos ou compromissos feitos em ligação com presente”.

           Parece, pois, que as partes quiseram renunciar reciprocamente a futuros litígios envolvendo perdas, danos ou compensações derivados do contrato, reservando exclusivamente ao tribunal arbitral todos os conflitos que viessem a surgir relacionados com todas as outras vertentes do contrato.

            Será que a indemnização de clientela constitui uma dessas outras vertentes?

           

           O artigo 18º, n.º 1, da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV)[3] determina que o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção.

           Encontra-se aqui consagrado o princípio da competência-competência, cuja justificação radica na necessidade de evitar que, invocada por uma das partes litigantes a falta de competência do tribunal arbitral, tivesse de ser o tribunal judicial a decidir dessa mesma competência. Atribui-se, portanto, ao tribunal arbitral competência para julgar da sua própria competência, com a necessária ponderação sobre a validade da convenção de arbitragem e sobre a arbitrabilidade do litígio.

Paralelamente, estatui o artigo 5º, n.º 1, da mesma Lei que o tribunal estadual no qual seja proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.

           Desta norma emana o efeito negativo do referido princípio, ao impor aos tribunais judiciais o dever de se absterem de julgar sobre as referidas matérias, antes que o árbitro se pronuncie sobre as mesmas.

           Observa João Lopes dos Reis[4]: “(…) do aludido princípio não decorre apenas que o árbitro tem competência para conhecer da sua própria competência; decorre também que tal competência lhe cabe a ele, antes de poder ser deferida a um tribunal judicial”.

           Apenas não será assim quando seja manifesta a invalidade, ineficácia ou inexequibilidade da convenção de arbitragem, pois, nesses casos, por razões de economia processual, deve o tribunal judicial julgar logo a questão – artigo 5º, n.º 1, parte final, da LAV.

           É neste registo que a jurisprudência do STJ se tem pronunciado, ao decidir que, face ao princípio consagrado no artigo 18º, nº 1, da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem –, os tribunais judiciais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção invocada é nula ou ineficaz ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação.

           Alcança-se, deste modo, com o indispensável respaldo legal, uma solução de compromisso entre o princípio da autonomia privada, corporizado na legítima escolha das partes quanto à desjudicialização de conflitos (mediante recurso à instância arbitral), e a possibilidade de os tribunais judiciais apreciarem uma manifesta inexistência ou invalidade da convenção arbitral, quando confrontados com uma demanda em que tal convenção exista.

           Assim, o tribunal judicial só poderá deixar de proferir decisão a absolver da instância se for manifesta a invalidade, ineficácia ou inexequibilidade da cláusula[5].

Como refere Menezes Cordeiro[6], o termo ‘manifestamente’, empregue na norma do artigo 5º, n.º 1, da LAV, tem de ser interpretado com o sentido de “dispensar a produção de prova, para se alcançar a nulidade, a ineficácia ou a inexequibilidade”.

           Nesta conformidade, o acórdão deste STJ, de 10.03.2011[7] decidiu que ao tribunal judicial apenas compete “determinar se é manifesto e insusceptível de controvérsia séria e consistente a não aplicabilidade da convenção de arbitragem estipulada à relação contratual litigiosa – devendo, pelo contrário, em caso de dúvida fundada sobre o âmbito da referida convenção, serem as partes remetidas para o tribunal arbitral a que atribuíram competência para solucionar o litígio”.

Logo, quando se suscitem dúvidas sobre o âmbito de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio[8].

Embora nos queira parecer que a regulamentação do ponto 19º do contrato aponte para a exclusividade de competência da jurisdição arbitral (uma vez que não há a mínima referência a uma instância não arbitral), admite-se que possam existir dúvidas quanto ao âmbito da cláusula compromissória e a sua aplicabilidade ao caso concreto, considerando a forma algo ambígua como se encontra redigida.

Todavia, o que sempre resulta evidente é que nada existe que afecte, de modo manifesto, a validade da dita cláusula ou a sua exequibilidade, pelo que caberá ao tribunal arbitral conhecer, em primeira mão, da sua aplicabilidade ao conflito que opõe a Autora à Ré.

Procedendo, nos termos expostos, a excepção da preterição do tribunal arbitral, fica prejudicado o conhecimento das questões de inconstitucionalidade versadas nas conclusões 23. a 25. da revista.

                                                           *

III.         DECISÃO

Assim, no provimento da revista, revoga-se o acórdão recorrido, ficando a prevalecer a decisão da 1ª instância.

                                                             *

Custas pela recorrida.

                                                             *

          LISBOA, 20 de Março de 2018

           

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Salreta Pereira

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[1] Relator:     Henrique Araújo
  Adjuntos:  Maria Olinda Garcia
                      Salreta Pereira
[2] “Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, página 281.
[3] Lei 63/2011, de 14 de Dezembro. É esta Lei que se aplica ao caso dos autos, por força do disposto no artigo 4º, n.º 1, das normas preambulares.
[4] “A Excepção da Preterição do Tribunal Arbitral (voluntário)”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Tomo III, Dezembro de 1998, página 1122.
[5] Cfr. acórdãos do STJ de cfr. acórdãos do STJ de 20.01.2011, no processo n.º 2207/09.6TBSTB.E1.S1, de 02.06.2015, no processo n.º 1279/14.6TVLSB.S1, e de 21.06.2016, no processo n.º 301/14.0TVLSB.L1.S1, todos em www.dgsi.pt.
[6] “Tratado de Arbitragem”, página 204.
[7] No processo n.º 5961/09.1TVLSB.L1.S1, em www.dgsi
[8] Cfr. acórdão do STJ de 09.07.2015, no processo n.º 1770/13.1TVLSB.L1.S1. Ver ainda, Mariana França Gouveia e Jorge Morais Carvalho, Cadernos de Direito Privado, n.º 36, páginas 39 a 49, na anotação ao acórdão de 10.03.2011, acima referenciado.