Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1725/07-2
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
CONTRATO-PROMESSA
ACÇÃO REAL
ACÇÃO PESSOAL
Data do Acordão: 10/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO CÍVEL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – A cláusula compromissória é um verdadeiro contrato-promessa.

II – O objecto do contrato-promessa é a celebração de um contrato ulterior; o contrato-promessa cria a obrigação de contratar, ou, mais concretamente, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido.

III - As acções reais versam sobre o direito de propriedade ou outros direitos reais e são discutidas entre os respectivos titulares e quem não lhes reconhece tal direito; a respectiva causa de pedir é o facto juridicamente relevante do qual nasce o direito real.

IV - As acções pessoais versam sobre obrigações do devedor para com o credor e têm por fim fazer valer direitos oriundos de uma obrigação de dar, fazer ou não fazer algo; a respectiva causa de pedir é o facto ou conjunto de factos de que emerge o direito ou a obrigação.

V - No art. 65°-A - a) do CPC a competência exclusiva dos Tribunais Portugueses só abrange a acção que se baseie num direito real, e já não numa acção pessoal.
Decisão Texto Integral:
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PROCESSO Nº 1725/07 – 2

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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RELATÓRIO

“A”, com sede em …, “B”, com sede em …, ambas como promitentes vendedoras, e “C”, com sede nas …, como promitente compradora, foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda da Fracção 1 (um) do Lote A, identificada no Mapa do Quadro de Loteamento, com a área de construção de 1.058 m2 na Urbanização …, em … bem como dos apartamentos (5 apartamentos de tipologia T1 e 5 apartamentos de tipologia T2) que os promitentes vendedores iriam aí edificar, pelo preço de 145.000.000$00.
Entre outras, foi clausulado nesse contrato-promessa a cláusula 4ª do seguinte teor:
"As partes acordam em submeter a tribunal arbitral, a constituir em Genéve, na Suíça, todos os conflitos, diferendos e litígios que possam decorrer da aplicação ou execução do presente contrato".
A promitente compradora intentou no Tribunal de …, acção de processo ordinário para que, por via da execução específica desse contrato-promessa, o Tribunal se substitua às promitentes vendedoras, proferindo sentença sucedânea da declaração negocial destas.
A demandada “A” contestou, além do mais, por excepção dilatória decorrente de violação de convenção de arbitragem.
Tal excepção foi desatendida e daí o presente agravo, interposto por “A”, cuja alegação finaliza com a seguinte síntese conclusiva:
a. Foi celebrada convenção de arbitragem válida
b. De acordo com o princípio da Kompetenz-kompetenz o tribunal judicial não se pode substituir ao tribunal arbitral na apreciação da competência deste.
c. Só após a apreciação por parte do tribunal arbitral acerca da sua própria competência, pode o tribunal judicial dela conhecer, em recurso ou acção de anulação da decisão arbitral.
d. Desde que se prove ao tribunal judicial a existência de convenção de arbitragem que não seja manifestamente nula ou ineficaz terá de proceder a excepção de preterição de tribunal arbitral, o que conduz à absolvição da instância.
e. Quando é invocada perante um tribunal judicial a excepção de preterição de tribunal arbitral, mesmo nos casos em que este funciona no estrangeiro, a arbitrabilidade da disputa deve ser aferida segundo o direito material do foro, ou seja, em Portugal, de acordo com a Lei 31/86.
f. Em aplicação pacífica deste princípio, os nossos tribunais aplicam correntemente a Lei 31/86 quando estão diante de convenções de arbitragem que, como é o caso dos autos, estabelecem a sede da arbitragem fora de Portugal.
g. A presente lide não versa sobre direitos indisponíveis nem está cometida por lei exclusivamente a tribunal judicial.
h. Da conclusão de que o litígio pode ser submetido a arbitragem decorre desde logo que a convenção dos autos deve ser aplicada.
i. Não se aplica à arbitragem o critério dos art.s 65°-A ou 99° do CPC, uma vez que tal só faz sentido quando os tribunais portugueses estão em confronto com tribunais estaduais de outros países.
j. Quando o que está em causa é um tribunal arbitral, a análise que tem de fazer-se é apenas referente à arbitrabilidade ou não da disputa e, neste âmbito, quando a lei impõe que o litígio não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial para poder ser resolvido por arbitragem, está a referir-se a lei que exclua a arbitragem voluntária em certa matéria e não à competência internacional exclusiva.
k. Em todo o caso, a matéria objecto não é da competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses.
l. Do que aqui se trata é da execução específica de um contrato, em que a obrigação contratual é a de emitir uma declaração de vontade.
m. Apesar de o objecto mediato do contrato ser um bem imóvel situado em território nacional, o cerne do litígio é uma prestação contratual, não podendo de forma alguma confundir-se a presente acção com uma acção real.

Conclui, pedindo o provimento do agravo com o reconhecimento da excepção dilatória de violação da convenção de arbitragem e a sua absolvição da instância.

A Autora, agravada, contra-alegou em defesa da decisão recorrida.
Remetido o processo a esta Relação, após o despacho preliminar, foram corridos os vistos legais.
Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.
FUNDAMENTAÇÃO
Os factos relevantes para a decisão do agravo constam do relatório que antecede.
Em síntese, entendeu a 1ª instância estarmos perante uma acção relativa a direitos reais, da competência exclusiva dos tribunais portugueses (art. 65°-A - a) CPC).
Apreciando:
A cláusula 4ª do contrato-promessa é uma cláusula compromissória na medida em que o respectivo objecto são litígios que eventualmente no futuro venham a emergir da aplicação ou execução desse concreto contrato-promessa (art. 1° nº 2 da Lei n° 31/86 de 29/08).
É um verdadeiro contrato processual; a cláusula compromissória é um verdadeiro contrato-promessa (Cfr. A. Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., p. 307).
Através dela as partes obrigaram-se reciprocamente a submeter a arbitragem os litígios aí previstos que no futuro venham a surgir entre elas; vinculando-se desta forma, atribuíram-se reciprocamente direitos a exigirem de cada uma o recurso a arbitragem.
A 1ª instância entendeu que a acção de execução específica do contrato-promessa de compra e venda versa sobre direitos reais.
Não é verdade.
O objecto do contrato-promessa é a celebração de um contrato ulterior; o contrato-promessa cria a obrigação de contratar, ou, mais concretamente, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido. A obrigação assumida por ambos os contraentes (…) tem assim por objecto uma prestação de facto positivo, um facere oportere. E o direito correspondente atribuído à outra parte traduz-se numa verdadeira pretensão" (Cfr. A. Varela, Das Obrigações em Geral, vol. l, 10ª ed. p. 309).
Assim, o objecto da acção de execução específica de tal contrato-promessa é a emissão pelo Tribunal de declaração negocial substitutiva da declaração negocial do promitente faltoso (art. 830° n01 CC).
Quer no contrato-promessa, quer na respectiva execução específica, o objecto são declarações negociais.
Logo, a acção de execução específica, visando o cumprimento de prestações prometidas no contrato-promessa, é uma acção pessoal e a respectiva legitimidade adjectiva assenta e deve coincidir com as partes promitentes naquele.
A respectiva causa genética é o contrato-promessa e não qualquer direito real, maxime o de propriedade cuja transmissão era visada no contrato prometido.
As acções reais versam sobre o direito de propriedade ou outros direitos reais e são discutidas entre os respectivos titulares e quem não lhes reconhece tal direito; a respectiva causa de pedir é o facto juridicamente relevante do qual nasce o direito real.
As acções pessoais versam sobre obrigações do devedor para com o credor e têm por fim fazer valer direitos oriundos de uma obrigação de dar, fazer ou não fazer algo; a respectiva causa de pedir é o facto ou conjunto de factos de que emerge o direito ou a obrigação.
O direito real de gozo confere ao respectivo titular o gozo directo, imediato e autónomo sobre determinada coisa, mas, diversamente do que sucede com os direitos pessoais (por lapso repetiu-se no original “reais”) de gozo, tem sempre por fundamento uma relação obrigacional, de que nunca se desprende.
Compreende-se, por isso, que a execução específica do contrato-promessa não verse sobre direitos reais nem sobre direitos pessoais de gozo.
O art. 65°-A - a) do CPC prescreve que, "sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, os tribunais portugueses têm competência exclusiva para" "as acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre bens imóveis sitos em território português" .
"A competência exclusiva só abrange a acção que se baseie num direito real, e já não uma acção pessoal. Assim, estão excluídas (…) a acção de cumprimento das obrigações do vendedor com respeito à transmissão da propriedade, nos sistemas em que esta transmissão não constitui efeito automático do contrato de venda; ... "(Cfr. Luís Lima Pinheiro, A competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses, Rev. Ordem dos Advogados, Ano 65, 2005, tomo III, p. 686).
Por maioria de razão - diremos nós - também nos casos em que está em causa, não a eficácia de um contrato de compra e venda, mas apenas de um contrato-promessa de futura compra e venda.
Logo, não tem cabimento a invocação de tal preceito para recusar o tribunal arbitral suíço.
Mas, ainda que assim não fosse - logo, concedendo que a execução específica de contrato-promessa versasse, o que não se concede e só se admite para efeitos de exposição e de raciocínio, sobre direitos reais ou direitos pessoais de gozo - nem por isso seria de recusar a procedência de tal excepção.
Vejamos:
Nada obsta formal ou substancialmente à validade da convenção de arbitragem (art. 1° nº 1 e 2, 2° nº 1, 3 e 3° do DL n° 31/86).
A Convenção de Nova lorque de 10 de Junho de 1958 sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras prevê no seu art. II nº 1 que "cada Estado Contratante reconhece a convenção escrita pela qual as Partes se comprometem a submeter a uma arbitragem todos os litígios ou alguns deles que surjam ou possam surgir entre elas relativamente a uma determinada relação de direito, contratual ou não contratual, respeitante a uma questão susceptível de ser resolvida por via arbitral", no nº 2 que se entende por "convenção escrita" uma cláusula compromissória inserida num contrato ou num compromisso, assinado pelas Partes ... " e no nº 3 que:
"O tribunal de um Estado Contratante solicitado a resolver um litígio sobre uma questão relativamente à qual as Partes celebraram uma convenção ao abrigo do presente artigo remeterá as Partes para a arbitragem, a pedido de uma delas, salvo se constatar a caducidade da referida convenção, a sua inexequibilidade ou insusceptibilidade de aplicação" .
A Suíça assinou esta Convenção em 29-12-1958 e ratificou-a tendo depositado o respectivo instrumento junto do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas em 01-06-1965, segundo informação obtida junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Por sua vez, Portugal ratificou-a pelo Decreto do Presidente da República n° 52/94 de 8 de Julho, com reserva (que não interessa ao nosso caso).
Por conseguinte, estando ambos os Países vinculados pela Convenção, o nº 3 do respectivo art. 2° impõe que proposta em Tribunal Judicial de um deles - Portugal - acção sobre litígio relativamente ao qual foi convencionada a arbitragem - devem as partes ser remetidas para o Tribunal Arbitral.
A competência internacional exclusiva dos Tribunais Portugueses prevista no art. 65°-A CPC não impede tal desfecho, porquanto está expressamente ressalvado o que se ache estabelecido em, entre outros, convenções internacionais: "Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, ... ".
Por conseguinte, a localização da sede do Tribunal Arbitral em Estado diferente daquele onde a acção é proposta é irrelevante para o funcionamento da arbitragem, desde que ambos os Estados se encontrem vinculados pela Convenção.
Logo, deveria proceder a excepção dilatória de violação de convenção de arbitragem.
O art. 99° do CPC é inaplicável ao caso em apreço, porque versa sobre pactos de jurisdição, realidade diversa de pactos de arbitragem.
E o tribunal judicial deve, se tal questão lhe for suscitada, em sede de apreciação da sua própria (in)competência apreciar a (in)competência do tribunal arbitral, independentemente deste se haver ou não pronunciado sobre a questão.
Afirmar, como o faz o recorrente nas conclusões al.s b) e c) da sua alegação, que de acordo com o princípio da Kompetenz-kompetenz o tribunal judicial não se pode substituir ao tribunal arbitral na apreciação da competência deste e que só após a apreciação por parte do tribunal arbitral acerca da sua própria competência, pode o tribunal judicial dela conhecer, em recurso ou acção de anulação da decisão arbitral, é o mesmo que deitar pela janela fora, varrendo-a do Código de Processo Civil, a excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral necessário ou violação de convenção de arbitragem (art. 494° -j) CPC).
No mais procedem as conclusões do agravo.
ACÓRDÃO
Nesta conformidade, acorda-se nesta Relação em, concedendo provimento ao agravo, julgar procedente a excepção dilatória de violação de convenção de arbitragem validamente celebrada entre as partes e absolver a Ré da instância.
Custas pela agravada.
Évora e Tribunal da Relação, 04.10.2007