Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
62/20.4T8VRL-B.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
TITULAR DE CONTA BANCÁRIA
LEGITIMIDADE DE HERDEIRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Para que haja necessidade de recorrer ao incidente de quebra de sigilo profissional necessário é que haja uma conflitualidade entre o dever de guardar segredo e o dever de informar ou, por outras palavras, o referido incidente pressupõe uma escusa legítima, fundada em sigilo efetivamente existente;
II- “Se não existir sigilo a recusa não só não é legítima, como também não é necessário que, para a remover, se quebre um segredo, o que conduz à conclusão de que, nessas circunstâncias, falta um dos pressupostos do incidente”;
III- O direito do titular de uma conta bancária à informação resulta diretamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta e, à morte daquele, deve considerar-se transmitido aos seus herdeiros;
IV- Estes, tendo sucedido na posição do titular ou do co-titular da conta, têm o “direito de partilhar o segredo”, como, mesmo no caso das contas co-tituladas, aquele o teria se vivo fosse, a tal “partilha de segredo” se tendo sujeitado quem aceitou proceder à abertura de uma conta com outrem, devendo, pois, a informação ser prestada não obstante a oposição de outros co-titulares ou co-herdeiros;
V- Inexistindo sigilo que aos herdeiros possa legitimamente ser oposto pela entidade bancária falha o pressuposto básico do incidente em causa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

A. RELATÓRIO

A. J., E. J. e A. C. instauraram PROCESSO ESPECIAL DE INVENTÁRIO PARA CESSAÇÃO DE COMUNHÃO HEREDITÁRIA E PARTILHA DE BENS [Artigo 1082º, al. a) e segs. do CPC] por morte de A. B., no qual são Interessados, para além dos Requerentes, M. G. e A. F..

Apresentada relação de bens pela Cabeça-de-casal, M. G., os Requerentes do Inventário contra ela vieram deduzir reclamação (ref. n.º 2304748) peticionando que o Banco ... e o Banco A fossem oficiadas para disponibilizarem diversos elementos relativos a duas contas – que identificaram – em que era 1º titular o Inventariado A. B., bem como a outras eventualmente existentes em que também fosse 1º titular o referido Inventariado (pág. 15 e 16/ref. n.º 2304748), pretensão que veio a ser deferida no despacho de 13/10/2020, na medida em que, segundo o referido despacho, tais elementos probatórios poderão contribuir para determinar os saldos de algumas contas bancárias à data do óbito do Inventariado e a proveniência dos fundos aí creditados, para se aferir o património do “de cuius” que cumpre partilhar, assim se dirimindo o conflito que os Requerentes desencadearam, não se perspetivando outro meio de prova que permita esclarecer tal questão.

Notificadas a fim de prestarem as informações em causa (ref. n.º 2304748), as referidas instituições bancárias invocaram a existência de segredo profissional relativamente àquelas, solicitando, ambas, evidência da derrogação/levantamento do referido dever, explicitando o Banco A que para tal bastaria autorização subscrita pela cabeça-de-casal ou pelos herdeiros.

Foi, então, proferido despacho que determinou a remessa a esta Relação do presente incidente de levantamento do sigilo bancário, por segundo o juiz a quo, ser muito pertinente a obtenção das informações solicitadas ao Banco A e ao Banco ..., embora também se afigure legítima a escusa invocada pelas instituições bancárias, atendendo ao dever legal imposto pelo artigo 78.º do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.

Foi proferida decisão sumária, pela ora Relatora, que julgou improcedente o incidente.

Da referida decisão sumária reclama a Cabeça-de-casal para a conferência, ao abrigo do disposto no art. 652º, nº 3, do CPC, nos seguintes termos e fundamentos:

1. Por um lado, pela Decisão singular não foi relevado que quanto à reclamação de bens dos Requerentes do inventário (Requerimento com a Ref.ª 35847488 de 22-06-2020) a Cabeça-de-casal apresentou resposta ao abrigo do 1105.º do Código de Processo Civil (cfr. requerimento com a Ref.ª 36539331 de 21-09-2020).
2. E que no artigo 33 e seguintes e parte final do articulado de resposta da Cabeça-de-casal se pronunciou no sentido que as informações bancárias estão protegidas por sigilo bancário,
3. Que havendo co-titulares, Cabeça-de-casal e interessado A. F., o inventário não teria o direito a ter acesso a elementos nominativos respeitantes aos co-titulares e à vida privada e pessoal dos co-titulares, sem a autorização dos co-titulares das referidas contas bancárias.
4. Sendo que quanto às informações solicitadas ao Banco quanto às contas bancárias são questões que também são objecto do recurso por parte da Cabeça-de-Casal,
5. Ou seja, estão em causa informações nominativas que dizem respeito ao Cabeça-de-casal, ao herdeiro A. F., além do inventariado, que não apresentaram a sua autorização para ter acesso às mesmas.
6. O Despacho de 13-10-2020 decidiu que:
No que respeita ao sigilo bancário, importa verificar se as entidades bancárias recusam a prestação das informações solicitadas e em que medida, e, nessa decorrência, por ora oficie-se o Banco ..., o Banco A, a fim prestarem as informações solicitadas (ref.n.º 2304748) – cfr. artigos 7.º, n.º 4, 410.º, 411.º e 417.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.
7. A Cabeça-de-casal apresentou recurso com data de 03-11-2020, no qual alegou encontrar-se nos autos numa posição de desigualdade designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa, porque não estão preenchidos os pressupostos para as decisões que resultam do Despacho recorrido.
8. Tendo a Cabeça-de-casal suscitado, quanto aos valores depositados e sua co-titularidade, a remessa para os meios comuns ao abrigo dos art.ºs 1092.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 e art.º 1093.º, n.º 1, do Código Processo Civil.
9. Conforme o Despacho de 11-01-2021 o recurso foi admitido:
Por legal e tempestivo, e por a recorrente possuir legitimidade para o efeito, admite-se o recurso, o qual é de apelação, com subida em separado, com efeito meramente devolutivo -cfr. artigos 627.º, 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 637.º, n.º 1, 638.º, n.º 1, 639.º, n.º 1, 641.º, n.º 1, 644.º, n.º 2, al. i), 645.º, n.º 2, 647.º, n.º 1 e 1123.º, n.ºs 1, 2, al. b), 3 e 4, do C.P.C.
10. Portanto, neste momento, ainda se encontra pendente e não transitou em julgado o Despacho de 13-10-2020 que ordenou a notificação de entidades bancárias para o acesso a contas bancárias que pertenciam ao inventariado em co-titularidade com a Cabeça-de-casal e A. F..
11. Nesse sentido o sigilo bancário existe e é legítima a recusa legítima entidades bancárias para os efeitos previstos no art.º 78.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro:
2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
12. Por outro lado, pese embora o Despacho de 13-10-2020 tenha referido que:
É, assim, muito pertinente a obtenção das informações solicitadas ao Banco A e ao Banco ..., embora também se afigure legítima a escusa invocada pelas instituições bancárias, atendendo ao dever legal imposto pelo artigo 78.º do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.
13. E que seria para “para determinar os saldos de algumas contas bancárias à data do óbito do inventariado e a proveniência dos fundos aí creditados, para se aferir o património do “de cuius” que cumpre partilhar…”
14. Mais nada é alegado pelos Requerentes dessa diligência de prova ao abrigo do art.º 5.º do Código de Processo Civil e carece de fundamentação o Despacho de 24-11-2020, conforme o art.º 154.º do Código de Processo Civil, matéria essa que se mantém objecto do recurso de 03-11-2020, no que concerne ao Despacho de 13-10-2020.
15. Talvez por isso a omissão ou ausência de factos na Decisão singular que antecede: Os Factos
Os factos que relevam para a decisão do incidente são somente os que emergem do precedente relatório, para os quais se remete.
16. Por último, quanto ao referido na Decisão singular a respeito do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-10-2010:
Acresce que o reconhecimento da inoponibilidade do sigilo bancário a herdeiros de um dos titulares de conta bancária deve efetuar-se não obstante a oposição de outros co-titulares ou co-herdeiros (cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 09/11/1999 C. J., Ano XXIV – 1999, Tomo V, pág. 79; no mesmo sentido, Ac. da mesma Relação de 14/11/2000, in C. J., Ano XXV, Tomo V-2000, págs. 95 e 96, citados no referido acórdão desta Relação), conforme, aliás, indiretamente também resulta do já citado acórdão do STJ de 07.10.2010 (Relator -Azevedo Ramos).
17. Acontece que quanto ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-10-2010, processo n.º 26/08.6TBVCD.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/46d4d3e9cafb82c3802577b500456062?OpenDocument, não se colocava a questão de co-titularidade da conta bancária nos termos do art.º 516.º, do Código Civil.
18. Além disso, quando o referido Acórdão se refere a “IV - Os herdeiros de um depositante bancário não podem ser tidos como terceiros” não está a reportar-se aos co-titulares da conta bancária que não tenham dado consentimento de acesso a contas bancárias que também sejam co-titulares das contas bancárias e onde têm informações nominativas (cfr. art.º 78.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro).
19. Ou seja, ao contrário do referido na Decisão singular, além do sigilo bancário, também se verifica, com legitimidade, o conflito entre o direito dos herdeiros e o direito dos co-titulares da conta bancária.
20. Nesse sentido o titular da informação tem o direito à reserva, privacidade ou segredo da informação que lhe respeita, conforme o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16-12-2020, processo n.º 20227/18.8YIPRT-A.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7b72f68ddb8 10fa58025864f00599dfb?OpenDocument&Highlight=0,sigilo,banc%C3%A1rio.
21. Tem constituído questão controvertida na jurisprudência e na doutrina saber se os interesses protegidos pelo segredo bancário merecem ipso facto a tutela constitucional dispensada pelo art.º 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, ou seja, se o segredo bancário deve considerar-se abrangido pelo direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar consagrado no citado preceito.
22. E, ainda, foi absolutamente omitida desde o início, quanto à questão do levantamento do sigilo bancário, a fundamentação a respeito de ser ou não ser absolutamente necessário que a quebra do sigilo e correlativa restrição do direito por este protegido se revelem indispensáveis à exercitação do direito da parte ao efetivo acesso ao direito e à tutela jurisdicional.
23. É que a jurisprudência é divergente quanto a essa matéria, no entanto, coincidem quanto a esse requisito da indispensabilidade do levantamento do sigilo bancário, nomeadamente conforme o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-02-2017, processo n.º 19498/16.9T8LSB-A.L1-2, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f774e277ee052c28802580d700589d0b?OpenDocument, em parte que “V–Para que efetiva colisão de valores se verifique, necessário é que a quebra do sigilo e correlativa restrição do direito por este protegido se revelem indispensáveis à exercitação do direito da parte ao efetivo acesso ao direito e à tutela jurisdicional”.
24. É que não basta afirmar que “a descoberta da verdade material” nos presentes autos de processo de inventário e para determinar os saldos de algumas contas bancárias à data do óbito do inventariado e a proveniência dos fundos aí creditados, em que existe co-titularidade e presunção nos termos do art.º 516.º do Código Civil.
25. Não tendo sido demonstrado o pressuposto de ser indispensável o levantamento do segredo bancário, a respectiva fundamentação no requerimento dos Requerentes de 22-06-2020 e no Despacho de 24-11-2020.
26. Acontece que o art.º 135.º do Código de Processo Penal invocado no referido Despacho exige a ponderação com os interesses protegidos pelo segredo, conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-01-2005, processo n.º 3878/04, disponível em www.dgsi.pt.
27. É que conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-02-2010, processo n.º 16/09.1GCCNT-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/4f09c18610cf 038c802576d50056b479?OpenDocument:
1.O critério adoptado pelo nosso legislador é o de que o tribunal só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante
28. Acontece que quer os Requerentes do levantamento do sigilo bancário, quer o Despacho que admitiu o incidente, não alegaram factos e fundamentos para que o referido incidente de levantamento de sigilo bancário tenha os pressupostos requisitos preenchidos e para que seja procedente.
29. No entanto, a Decisão singular, salvo o devido respeito, também erra no julgamento que faz dos factos e nos fundamentos legais, porque:
i) Não releva a ausência de factos (art.º 5.º do CPC) e de fundamentação (154.º do CPC) para o levantamento do sigilo bancário;
ii) A existência de direitos de co-titulares das contas bancárias que a lei e a Constituição da República Portuguesa também visaram proteger;
iii) Que a recusa das entidades bancárias é legítima sem o consentimento dos demais co-titulares;
iv) E que para decidir o conflito entre os direitos dos co-titulares e os direitos dos herdeiros do inventariado em processo de inventário seria necessário o preenchimento do requisito da indispensabilidade do levantamento do sigilo bancário.
30. Por essa razão o presente requerimento para que sobre a questão do incidente do levantamento do sigilo bancário possa recair o Acórdão na Conferência nos termos do n.º 3 do art.º 652.º do Código de Processo Civil.

Nestes termos e nos melhores de Direito aplicável, requer que sobre a questão do incidente do levantamento do sigilo bancário possa recair o Acórdão na Conferência nos termos do n.º 3 do art.º 652.º do Código de Processo Civil.

Os Interessados Requerentes do Inventário responderam, defendendo a decisão sumária objeto de reclamação para a conferência.
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B. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO INCIDENTE

É a seguinte a questão a decidir:

- Saber se se verificam os pressupostos de dispensa de sigilo bancário.
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C. FUNDAMENTAÇÃO:

- Os Factos

Os factos que relevam para a decisão do incidente são somente os que emergem do precedente relatório, para os quais se remete.

- O Direito

Na situação em apreço, da mera leitura da reclamação resulta que a Reclamante não pretende que seja julgado procedente o incidente de levantamento de sigilo suscitado pelo juiz do processo, apenas não concordando com os fundamentos da decisão singular proferida, requerendo por isso que sobre a questão suscitada recaia acórdão.

Não obstante, entende este coletivo que sobre o incidente em questão deverá efetivamente recair acórdão pela simples razão de que, nos termos do nº 3 do art. 652º do CPC, para que a parte possa requerê-lo basta que a mesma se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, não tendo, pois, ao contrário do que sucede com a questão de saber quem pode recorrer, que se verificar, para efeito da admissibilidade da reclamação, se a medida é ou não objetivamente desfavorável a quem reclama.
Passemos, então, a conhecer em coletivo do suscitado incidente de levantamento de sigilo.
O art. 417° do CPC consagra o dever de cooperação para a descoberta da verdade a que todos estão vinculados, sejam ou não partes no processo, visando a “realização da justiça material”, ou seja, uma composição do litígio que se mostre conforme aos factos tal qual os mesmos ocorreram.
De acordo com o art. 417º, nº 3, al. c), do CPC a recusa de colaboração para a descoberta da verdade é, porém, admitida se, para além do mais, aquela implicar violação do sigilo profissional.
O segredo bancário constitui uma das formas que pode revestir o “sigilo profissional”.
O n° 4 do aludido preceito prevê a hipótese da “dispensa do dever de sigilo”, mandando aplicar, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

E, a propósito do segredo profissional, estabelece o art. 135° do Código de Processo Penal:

1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos;
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento;
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional, sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

O “sigilo bancário”, tal como os demais casos de sigilo profissional, não constitui um valor absoluto, porquanto respeita a interesses privados, estando prevista a sua “dispensa” ou “quebra” quando estejam em causa valores de hierarquia superior, em consonância com o princípio da prevalência do interesse preponderante.
Mas, óbvio é que “os tribunais só intervêm quando existem conflitos de interesses a dirimir, ou quando, numa situação de ponderação de valores protegidos, haja necessidade de decidir qual o valor que deve prevalecer”. (Acórdão da Relação de Évora de 21.12.2013, Relatora – Isabel Silva)

Deste modo, para que haja necessidade de recorrer ao dito incidente necessário é que haja uma conflitualidade entre o dever de guardar segredo e o dever de informar. Quando assim sucede, casuisticamente há que determinar se prevalece o direito à prova ou as razões que justificam a invocação do sigilo.

“O incidente de quebra de sigilo profissional (art. 135º, nº 3, do CPP, pressupõe uma escusa legítima, fundada em sigilo efetivamente existente” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC Anotado, I, pág. 492).

Ou seja, como se enfatiza no Acórdão da Relação de Coimbra de 25.01.2011 (Relator – António Beça Pereira), “a procedência deste incidente pressupõe, para além do mais, que o acesso à informação pretendida está, de facto, protegida por sigilo, pois só nesse caso é que se coloca a questão de saber se ele deve, ou não, ser levantado, a qual constitui o núcleo do incidente. Na verdade, se não existir sigilo a recusa não só não é legítima, como também não é necessário que, para a remover, se quebre um segredo, o que conduz à conclusão de que, nessas circunstâncias, falta um dos pressupostos do incidente.” Em sentido idêntico, Acórdão desta Relação de 15.09.2014, do mesmo Relator.

Assim, “se a autoridade judiciária, após a necessária averiguação, concluir que não existe dever de segredo relativamente à informação em causa (v.g. verifica-se o consentimento do titular do segredo), considera a escusa ilegítima e ordena, ou requer ao tribunal que ordene, no caso em que a apreciação da legitimidade da escusa esteja a cargo do Ministério Público, a prestação da informação. Tendo a autoridade judiciária concluído pela ilegitimidade da escusa, e tendo sido ordenada a prestação da informação, caberá ao sujeito visado dar cumprimento a tal determinação judicial, prestando o depoimento ou entregando a documentação (cfr. o artigo 182.º do CPP).” (Joana Rodrigues, in “Segredo Bancário e Segredo de Supervisão” – artigo publicado no E-book de Direito Bancário de Fevereiro de 2015, da Coleção de Formação Contínua do CEJ, pág.´s 75 e 76).

Isso mesmo resulta do Acórdão do STJ de 2/2008 que fixou jurisprudência com o seguinte teor:

“1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário;
2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal;
3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.”

Como se explana na fundamentação do citado acórdão de fixação de jurisprudência, na situação de ilegitimidade da escusa, “não impõe a lei que se faça qualquer juízo de ponderação de interesses em ordem a determinar o que deverá prevalecer, nem o mesmo teria qualquer sentido, porque não existe segredo”. “Não estamos, nessa situação, perante uma quebra de segredo, simplesmente porque o facto não está legalmente coberto pelo segredo bancário, ou houve autorização do titular da conta.”

Na hipótese da legitimidade da escusa, então sim, “a obtenção do depoimento ou da informação escrita já não pode ser ordenada sem a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto (…)”, sendo “precisamente esse juízo que o n.º 3 do mesmo artigo 135.º prevê que seja assumido em incidente específico - incidente de quebra de segredo profissional - a ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido”.

Daí que, como se refere no primeiro dos citados acórdãos, “o tribunal da Relação, quando perante si for suscitado tal incidente, para o decidir não pode deixar de indagar se na situação que lhe é exposta há algum segredo, não estando, por isso, vinculado ao juízo formulado na 1.ª instância de que há um sigilo e de que a recusa em informar é legitima por nele radicar. A não ser assim o tribunal da Relação podia ver-se obrigado a ter que levantar um sigilo que, contrariamente ao entendido na 1.ª instância, considera não existir, o que seria verdadeiramente absurdo.”

Vejamos, pois, se, in casu, efetivamente existe um segredo a proteger que legitime a exigência de levantamento do dever de sigilo.
O segredo relaciona-se com um dever de non facere: a conduta proibida é a de revelar ou utilizar a informação por aquele abrangida.
Todavia, como se enfatiza no citado artigo do E-Book sobre Direito Bancário, pág. 64, citando ALBERTO LUÍS, “O segredo bancário em Portugal”, ob. cit., p. 466 e JOSÉ MARIA PIRES, “O dever de segredo na actividade bancária”, Lisboa, Rei dos Livros, 1998, pp. 53 e ss., “a doutrina refere-se a determinadas pessoas que têm o “direito de partilhar o segredo” ou que estão numa “esfera de descrição”, traduzindo a insusceptibilidade, dentro de certos pressupostos, de a elas ser oposto o segredo; de uma outra perspetiva, o ato de revelação do segredo não será, em relação a tais pessoas, ilícito”.
Em causa está, pois, saber se os herdeiros estão na referida "esfera de discrição" e se, cada um deles, ainda que desacompanhado dos demais, pode, por si só, exigir de instituição onde o de cujus detinha conta bancária informação relativa a tal conta.

No que releva para o caso em apreço, na jurisprudência vários são os acórdãos que respondem favoravelmente à referida questão fulcral dos autos (e também à sub-questão a ela associada), afirmando perentoriamente a ilegitimidade da escusa das instituições bancárias relativamente a herdeiro de um titular ou co-titular de uma conta bancária, sendo exemplos paradigmáticos da referida posição os acórdãos do STJ de 28.06.1994 (Relator – Miranda Gusmão) e de 07.10.2010 (Relator - Azevedo Ramos), o último dos quais contém o seguinte esclarecedor sumário:

“I- O titular de uma conta bancária, para aceder às informações sobre os seus movimentos ou obter um qualquer extracto bancário, não necessita, para além de comprovar que é titular da conta, de demonstrar um qualquer interesse concreto na obtenção de informações.
II- O direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta.
III- Tal direito deverá considerar-se transmitido aos herdeiros, uma vez que os depósitos, enquanto bens, fazem parte do acervo da herança aberta por morte do depositante.
IV- Os herdeiros de um depositante bancário não podem ser tidos como terceiros, relativamente às contas do mesmo, razão por que não lhes pode ser oposto o segredo bancário.
V- Os bancos réus não têm qualquer fundamento legal para recusarem a apresentação dos extractos bancários solicitados, designadamente quanto ao período decorrido desde a abertura das contas até à data do óbito da mãe da autora, na medida em que o acesso a tais documentos, sendo um direito de sua mãe, se transmitiu para a recorrente, sua herdeira, que assim legalmente o poderá exercer.
VI- Por via hereditária, a autora ingressa na titularidade da situação jurídica pertencente a sua mãe, passando a assistir-lhe todos os direitos que àquela pertenciam, na medida do seu respectivo quinhão.”

No mesmo sentido, veja-se ainda o Acórdão da Relação de Guimarães de 15.11.2011 (Relator - Fernando F. Freitas): “Não oferece dúvidas que o segredo bancário não é oponível aos herdeiros de pessoa falecida, já que sendo eles chamados à titularidade das relações jurídicas patrimoniais desta – cfr. artº.s 2024º. e 2032º., ambos do Cód. Civil – passaram a dever ser considerados titulares da conta bancária”.

Acresce que o reconhecimento da inoponibilidade do sigilo bancário a herdeiros de um dos titulares de conta bancária deve efetuar-se não obstante a oposição de outros co-titulares ou co-herdeiros (cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 09/11/1999 C. J., Ano XXIV – 1999, Tomo V, pág. 79; no mesmo sentido, Ac. da mesma Relação de 14/11/2000, in C. J., Ano XXV, Tomo V-2000, págs. 95 e 96, citados no referido acórdão desta Relação), conforme, aliás, indiretamente também resulta do já citado acórdão do STJ de 07.10.2010 (Relator - Azevedo Ramos).

Aqui chegados, cumpre apenas referir que o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16 de dezembro de 2020, processo 20227/18.8YIPRT-A.P1, invocado pela Reclamante a pretexto do conflito entre o direito dos herdeiros e o direito dos co-titulares da conta bancária ou do direito à reserva do titular da informação, não trata de nenhuma questão com tal tema relacionado, certo que, como salientam os Requerentes do Inventário, na situação naquele acórdão tratado “não há herdeiros, nem sucessão hereditária, mas apenas uma relação jurídica de natureza comercial entre duas pessoas coletivas e em que se considera que o dever de sigilo sobre elementos da escrita comercial não deve ser dispensado quando os factos a apurar podem sê-lo por outro meio de prova”.

Face ao exposto, reafirma-se que deve “ter-se por pacífico que os herdeiros de um depositante não podem ser tidos como terceiros, relativamente às contas do mesmo, razão porque não lhes pode ser oposto o segredo bancário, pois, o direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta”, pelo que “tem a entidade bancária que lhes prestar todas as informações que prestaria a este se ele ainda fosse vivo, por, neste cenário, não existir sigilo bancário”. (citado Acórdão da Relação de Coimbra de 25.01.2011, Relator – António Beça Pereira)

Em conclusão, não podem as instituições bancárias em referência no caso em apreço escudar-se no sigilo bancário para não darem aos Requerentes do presente inventário, herdeiros do Inventariado, todas as informações que estes solicitarem, relativamente às contas que o falecido ali detinha, quer como único titular quer em co-titularidade com outros, inexistindo o segredo bancário que foi invocado.
E, como se viu, isto é assim independentemente da existência ou não de autorização para o efeito por parte dos restantes herdeiros ou da Cabeça-de-casal.
A recusa em prestar as informações solicitadas, fundada no pretenso sigilo, é, pois, ilegítima e o juiz a quo não a deve aceitar, podendo insistir e ordenar às referidas entidades bancárias o cumprimento da anteriormente determinada prestação de informação (sob pena de aquelas entidades incorrerem em sanções criminais e civis), por a pretensão que esteve na origem da ordem dada ter partido de herdeiros do Inventariado.
Nas palavras do último dos citados arestos, “não havendo sigilo, obviamente que se não coloca a questão de o levantar, o que significa que falta um dos pressupostos deste incidente e, por isso, e só por isso, está o mesmo votado ao insucesso”.
Face a tudo o que se veio de expor e já havia sido referido na antecedente decisão singular, é irrelevante que a Cabeça-de-casal, ora Reclamante, se tenha anteriormente pronunciado no sentido que as informações bancárias estão protegidas por sigilo bancário e de que havendo co-titulares, Cabeça-de-casal e interessado A. F., o inventário não teria o direito a ter acesso a elementos nominativos respeitantes aos co-titulares e à vida privada e pessoal dos co-titulares, sem a autorização dos co-titulares das referidas contas bancárias, porquanto, de acordo com a posição por nós assumida, o determinante para a solução a dar à questão do incidente suscitado é, como já se disse, a circunstância de haver herdeiros que, ainda que desacompanhados dos demais, pretendem das instituições onde o de cujus detinha contas bancárias informações relativa a tais contas, na medida em que aqueles, tendo sucedido na posição do titular ou do co-titular falecido dessas contas, têm o “direito de partilhar o segredo”, como, mesmo no caso das contas co-tituladas, aquele o teria se vivo fosse, a tal “partilha de segredo” se tendo sujeitado quem aceitou proceder à abertura de uma conta com outrem, sendo, pois, de reafirmar a inoponibilidade do sigilo bancário em que se escudaram as entidades bancárias quando em causa está, como no caso inegavelmente está, o legítimo exercício do direito de obtenção de informações por parte de herdeiros do titular ou co-titular das contas bancárias em causa, não obstante a invocada oposição da ora Reclamante e do herdeiro A. F. (seja como co-herdeiros, seja como co-titulares).
Totalmente irrelevante é ainda o facto de existir um recurso pendente do despacho prévio a que alude a Reclamante, certo que, para além do mais, como a própria refere, o efeito fixado a tal recurso não é suspensivo mas meramente devolutivo.
Por último, como já se havia explicado antes, inexistindo sigilo em que a entidade bancária se possa escudar, prejudicada fica, como nos parece que deveria ser óbvio, a resposta à questão da indispensabilidade da quebra de um sigilo que, como se demonstrou, inexiste, não havendo, pois, que elaborar qualquer fundamentação com esse objetivo.

É, pois, como se entendeu na decisão sumária proferida, improcedente o incidente de levantamento de litígio.

Sumário:

I – Para que haja necessidade de recorrer ao incidente de quebra de sigilo profissional necessário é que haja uma conflitualidade entre o dever de guardar segredo e o dever de informar ou, por outras palavras, o referido incidente pressupõe uma escusa legítima, fundada em sigilo efetivamente existente;
II – “Se não existir sigilo a recusa não só não é legítima, como também não é necessário que, para a remover, se quebre um segredo, o que conduz à conclusão de que, nessas circunstâncias, falta um dos pressupostos do incidente”;
III – O direito do titular de uma conta bancária à informação resulta diretamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta e, à morte daquele, deve considerar-se transmitido aos seus herdeiros;
IV – Estes, tendo sucedido na posição do titular ou do co-titular da conta, têm o “direito de partilhar o segredo”, como, mesmo no caso das contas co-tituladas, aquele o teria se vivo fosse, a tal “partilha de segredo” se tendo sujeitado quem aceitou proceder à abertura de uma conta com outrem, devendo, pois, a informação ser prestada não obstante a oposição de outros co-titulares ou co-herdeiros;
V – Inexistindo sigilo que aos herdeiros possa legitimamente ser oposto pela entidade bancária falha o pressuposto básico do incidente em causa.

E. Decisão:

Pelo exposto, julga-se o incidente de levantamento do sigilo improcedente.
Custas pela Reclamante.
Guimarães, 25.02.2021

Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues