Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
26/08.6TBVCD.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
SEGREDO BANCÁRIO
MORTE DO TITULAR
HERDEIRO
DIREITO À INFORMAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P. 111
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I –O titular de uma conta bancária, para aceder às informações sobre os seus movimentos ou obter um qualquer extracto bancário, não necessita, para além de comprovar que é titular da conta, de demonstrar um qualquer interesse concreto na obtenção de informações.

II –O direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta.

III – Tal direito deverá considerar-se transmitido aos herdeiros, uma vez que os depósitos, enquanto bens, fazem parte do acervo da herança aberta por morte do depositante.

IV - Os herdeiros de um depositante bancário não podem ser tidos como terceiros, relativamente às contas do mesmo, razão por que não lhe pode ser oposto o segredo bancário.

V – Os bancos réus não têm qualquer fundamento legal para recusarem a apresentação dos extractos bancários solicitados, designadamente quanto ao período decorrido desde a abertura das contas até à data do óbito da mãe da autora, na medida em que o acesso a tais documentos, sendo um direito de sua mãe, se transmitiu para a recorrente, sua herdeira, que assim legalmente o poderá exercer.

VI – Por via hereditária, a autora ingressa na titularidade da situação jurídica pertencente a sua mãe, passando a assistir-lhe todos os direitos que àquela pertenciam, na medida do seu respectivo quinhão.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Em 21-12-07, AA instaurou a presente acção sob a forma de processo especial para apresentação de documentos contra os réus Banco..........., S.A., com sede na A................, nº ....., Lisboa, e Banco ........, S.A., com sede na Rua ............... nº ...., Porto, peticionando a designação de dia e hora para que os réus lhe entreguem cópia dos extractos da conta corrente referentes aos movimentos das contas bancárias tituladas ou co-tituladas por BB e realizados durante o período que mediou entre a abertura das mesmas e o dia 12-3-03.
Para tanto, alega ser filha de BB, falecida em 12/03/2003.
Da herança aberta por óbito de BB estão por partilhar os saldos e títulos existentes e associados às contas bancárias com os nºs 00000000000 (BES) e 00000000000(.....), os quais vêm sendo administrados pelo cabeça de casal, marido da falecida e pai da autora, CC que se recusa a prestar contas da sua administração aos interessados na herança.
A autora, na qualidade de herdeira de parte dos saldos e/outros títulos existentes em instituições de crédito, em nome da falecida BB, necessita que lhe sejam exibidos os extractos com os movimentos efectuados desde a abertura das referidas contas, até aos dias de hoje, de modo a poder apurar o conteúdo do seu direito, seja para exigir a prestação de contas, por parte do administrador da herança, seja para, na sua sequência, dele reclamar o seu quinhão.
Acrescenta que os Bancos réus não têm qualquer fundamento legal para se recusarem a apresentar os documentos solicitados, na medida em que o acesso a tais documentos, sendo indiscutivelmente um direito de sua mãe, transmitiu-se para a autora, sua filha, que assim o poderá exercer.

Os réus contestaram, por impugnação e por excepção.
Concretamente, o réu “....., SA” alegou, em síntese, que, para os fins pretendidos pela autora não se mostra pertinente o conteúdo dos extractos bancários referentes aos movimentos que ocorreram entre a abertura de conta em 11/07/1989 e a data do óbito daquela co-titular de conta (sendo que os verificados posteriormente ao óbito já foram disponibilizados à autora).
Por outro lado ainda, excepciona que tais documentos e respectivo conteúdo estão abrangidos pelo dever profissional de segredo bancário, o que a impede de os exibir à autora.
Por sua vez, o réu “BES, SA” alegou, em síntese, que os documentos exigidos e respectivo conteúdo estão abrangidos pelo segredo bancário, a que está obrigada por lei, apenas podendo ser quebrado com a autorização do co-titular da conta, o que até à presente data não aconteceu, ou nos casos previstos no art.º 79º do RGICSF, o que também não se verifica in casu.
No mais, alega que os documentos referentes aos movimentos ocorridos após o óbito da co-titular foram oportunamente disponibilizados à autora.

Foi proferido saneador-sentença que decidiu julgar totalmente improcedente a acção proposta por AA e, em consequência, absolver os réus B............., SA e Banco ....., SA, do pedido.

Apelou a Autora e a Relação do Porto, através do seu Acórdão de 25-2-10, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.

Continuando inconformada, a autora pede revista, onde resumidamente conclui:
1 – Os Bancos réus não têm qualquer motivo para se recusarem a apresentar os documentos solicitados, pois a autora fundamentou o pedido na intenção de pedir a prestação de contas ao cabeça de casal, de reclamar o seu quinhão e ainda no facto de, sendo o acesso a tais documentos indiscutivelmente um direito de sua mãe, tal direito se ter transmitido para a mesma autora, sua filha, que assim igualmente o poderá exercer.
2 – O interesse que permitirá ao titular de uma qualquer conta bancária aceder a documentos onde se registam os seus movimentos, é o interesse decorrente de, sendo ele próprio o depositante, conhecer o histórico dos movimentos bancários passados, interesse esse que, por via da herança, não poderá deixar de se transmitir aos herdeiros, como aliás até relativamente ao sigilo bancário se reconhece.
3 – Não pratica qualquer devassa o filho que pretende conhecer o património de um dos seu pais.
4 – A tese da decisão recorrida, segundo a qual, nos termos do disposto no art. 575 do C.C., o herdeiro de alguém que haja falecido na titularidade de uma conta bancária, apenas poderá aceder a documentos da contabilidade de uma instituição de crédito, contendo registos dos movimentos dessa mesma conta bancária, anteriores à morte do titular da conta, desde que previamente identifique um interesse juridicamente atendível nesse acesso, sempre corresponderia a uma interpretação inconstitucional daquele mesmo artigo, pois a injustificada limitação assim criada ao exercício do direito de propriedade, violaria o disposto no art. 62 da Constituição da República Portuguesa.
5 – O Acórdão recorrido deve ser revogado e a acção julgada procedente, com a condenação dos réus no pedido.

O ..... contra-alegou em defesa do julgado.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

A Relação considerou provados os factos seguintes, com interesse para a decisão:

1. A autora é filha de BB, falecida a 12/02/2003.

2. Por escritura pública de habilitação e partilha, outorgada a 12/01/2004, na Secretaria Notarial da Póvoa de Varzim, consta, para além do mais, que CC é herdeiro de BB e assumiu as funções de cabeça de casal do acervo hereditário.

3. Por via da referida escritura foram partilhados os bens que se declarou constituírem o acervo dos bens da autora da herança.

4. À Autora AA, habilitada como herdeira, e interveniente na escritura de habilitação e partilha, foi adjudicada a torna de quatro mil oitocentos e trinta euros e sessenta e sete cêntimos, por não levar bens em espécie e que recebe do irmão CC.

5. À data do óbito da BB, esta co-titulava com CC a conta bancária aberta no BES com o n.° 000000000000 e titulava a conta bancária aberta no ..... com o n.º 00000000000.

6. A autora solicitou junto dos réus os extractos que documentem os movimentos efectuados nas contas referidas em 3. entre a data da abertura da conta e a data do óbito da ............

7. Os réus recusaram-se a exibir e entregar os extractos bancários referidos em 4.

8. O co-titular da conta n.° 000000000000 não deu autorização ao co-réu BES para divulgar os movimentos de conta anteriores à data do óbito de BB.
Vejamos agora o mérito do recurso.

A autora, enquanto herdeira de sua mãe, pretende ter acesso aos registos relativos aos movimentos das referidas contas bancárias de que esta era titular ou co-titular, sendo que os movimentos sobre os quais incide a sua pretensão são anteriores à abertura da respectiva sucessão, ou seja, à morte da sua mãe, pois respeitam ao período decorrido entre a data da abertura das contas e a do óbito da mãe da recorrente.
No Acórdão recorrido foi entendido que os herdeiros de um depositante não podem ser havidos como terceiros relativamente às contas do mesmo, pelo que não lhe pode ser oposto o segredo bancário.
Todavia, a Relação confirmou a improcedência da acção, por não virem alegados factos que permitam comprovar a existência de um interesse jurídico atendível, requisito fundamental da acção de apresentação de documentos, nos termos dos arts 574 e 575 do C.C.

Que dizer?

O dever de sigilo bancário traduz-se numa obrigação de facto negativo, encontrando-se regulado no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo dec-lei 298/92, de 31 de Dezembro.
Assim, o art. 78, nº1, do citado diploma, estabelece :
Os membros dos órgãos de Administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos ou outras pessoas que lhes prestem serviços, a título permanente ou ocasional, não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
Por sua vez, o nº2 do mesmo preceito determina :
“Estão designadamente sujeitos a segredo, os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”.

No caso concreto, à data do óbito da BB, esta co-titulava, com Isac Fernandes Braga, a conta bancária aberta no BES com o nº 000000000000, e titulava a conta bancária aberta no ..... com o nº 00000000000.
Em vida da BB, quer na qualidade de depositante, quer como co-depositante, podia ela pedir as informações que tivesse por convenientes, tanto relativamente ao depósito individual, como relativamente ao depósito conjunto.
De facto, o titular ou co-titular de uma conta bancária, para aceder às informações sobre os seus movimentos ou obter um qualquer extracto bancário, não necessita, para além de comprovar que é titular ou co-titular da conta, de demonstrar um qualquer interesse concreto na obtenção de informações ou documentos.
O direito à informação e, designadamente, o direito à obtenção de informações documentadas sobre os movimentos bancários resulta directamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta.
Tal direito deverá considerar-se transmitido aos herdeiros, uma vez que os depósitos, enquanto bens, passam a fazer parte do acervo da herança aberta por morte do depositante.
Consequentemente, não sofre dúvida que os herdeiros de um depositante não podem ser tidos como terceiros, relativamente às contas do mesmo, razão porque não lhe pode ser oposto o segredo bancário, como é firme entendimento da jurisprudência (Ac. S.T.J. de 28-6-94, Col. Ac. S.T.J. 1994, 2º, 163 ; demais jurisprudência citada pela Relação).

Quanto à apresentação de coisas e documentos, o Cód. Civil prescreve o seguinte:
Art. 574, nº1:
“Ao que invoca um direito, pessoal ou real, ainda que condicional ou a prazo, relativo a certa coisa, móvel ou imóvel, é licito exigir do possuidor ou detentor a apresentação da coisa, desde que o exame seja necessário para apurar a existência do direito e o demandado não tenha motivos para fundadamente se opor à diligência”.
Art. 575:
“As disposições do artigo anterior são, com as necessárias adaptações, extensivas aos documentos, desde que o requerente tenha um interesse atendível no exame deles”.

A recorrente invoca que tem interesse em que lhe sejam exibidos os extractos com os movimentos efectuados desde a abertura das referidas contas até à data da morte de sua mãe, para poder apurar o conteúdo do seu direito, quer para pedir contas ao cabeça de casal, quer para reclamar o seu quinhão hereditário.
A recolha da informação negada à autora poderá mostrar-se necessária para a indicada prestação da contas, uma vez que, reportando-se a exigência da prestação de contas à administração do património deixado pela mãe da autora, não será possível apurar tais contas sem previamente se determinar qual o património submetido à gestão do obrigado à prestação de contas, para o que será necessário conhecer os movimentos das contas bancárias que precederam a morte da mãe da autora.
Os bancos réus não tem qualquer fundamento legal para recusarem a apresentação dos documentos solicitados, designadamente quanto ao período decorrido desde a abertura das contas até à data do óbito da mãe da autora, na medida em que o acesso a tais documentos, sendo um direito de sua mãe, se transmitiu para a recorrente, sua filha, que assim legalmente o poderá exercer.
Com efeito, tratando-se de uma sucessão, o chamamento à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida (art. 2024 do C.C.) implica a transmissão por morte e para os seus herdeiros do direito do titular a da conta bancária a obter documentos relativos aos movimentos nela efectuados, antes ou depois da sua morte.
Ou seja, a autora invoca também a sua qualidade de herdeira e sucessora na posição jurídica ocupada por sua mãe.
Sucedendo a autora a sua mãe, como sua herdeira, assistir-lhe-ão os mesmos direitos de conteúdo patrimonial que a ela caberiam.
Assim, por via hereditária, a autora ingressa na titularidade da situação jurídica pertencente a sua mãe, passando a assistir-lhe todos os direitos que àquela pertenciam, na medida do seu respectivo quinhão.
O acesso aos registos dos movimentos bancários constitui um dos mais elementares direitos de qualquer depositante, não podendo inclusivamente os titulares das contas bancárias ser considerados terceiros, relativamente ao banco depositário, quanto ao dever de sigilo bancário, por serem eles próprios os primeiros e principais beneficiários de tal sigilo.
Sendo a autora herdeira de sua mãe, o direito a exigir dos bancos a exibição dos documentos em questão é, antes de mais, um direito emergente do próprio contrato de abertura de conta e de depósito.
O interesse que permitirá ao titular de uma conta bancária aceder a documentos onde se registam os seus movimentos, é o interesse decorrente de, sendo ele próprio o depositante, conhecer o histórico dos movimentos bancários passados e reconstituir a sua própria actividade, interesse esse que, por via da sucessão na herança, se transmite aos herdeiros.
Em face do exposto, não pode manter-se a decisão recorrida, por estar verificado um interesse juridicamente atendível da recorrente, na qualidade de herdeira de sua mãe, em aceder aos movimentos das contas bancárias em questão, desde a data da sua abertura.

Termos em que, concedendo a revista, revogam o Acórdão recorrido e, com ele, a sentença da 1ª instância, julgam a acção procedente e, consequentemente, condenam os réus Banco ........, S.A. e ....., Sociedade Aberta, S.A., a fornecerem à autora AA, no prazo de 30 dias, após o trânsito do presente Acórdão, relativamente às contas bancárias atrás identificadas, cópia dos documentos (extractos de conta corrente) que contenham o registo de todos os movimentos realizados desde a sua abertura, até à data da propositura da presente acção, ou até ao seu encerramento, com excepção dos já fornecidos, nos termos descritos na petição inicial, quanto ao período iniciado após a morte da mãe da autora.
Custas pelos bancos réus, quer no Supremo, quer nas instâncias.

Lisboa, 07 de Outubro de 2010

Azevedo Ramos (Relator)
Silva Salazar
Nuno Cameira