Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
436/22. 6T9OLH.E1
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: COIMA
CUSTAS
EXECUÇÃO
COMPETÊNCIA
TRIBUNAIS CRIMINAIS
Data do Acordão: 02/05/2024
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário: É da competência dos tribunais criminais o processamento das ações executivas para cobrança de quantia certa fundadas em condenação administrativa não impugnada que tenha condenado o arguido em coima, não tendo a entrada em vigor da Lei nº 27/2019, de 28 de março, alterado esse paradigma.
Decisão Texto Integral:
DECISÃO SUMÁRIA

No Processo nº436/22. 6T90LH.E1 do Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo de Competência Genérica de … - Juiz…, o Recorrente Ministério Público, interpôs recurso da decisão proferida em 17-05-2023, que declarou aquele Tribunal incompetente, em razão da matéria, para apreciar a ação executiva instaurada pelo Ministério Público contra AA, com base em certidão emitida pelo Comando Distrital de …, referente a processo contraordenacional no qual o dito AA é arguido e a quem foi aplicada uma coima no valor de €251,00, extraindo da concernente motivação as seguintes conclusões:

1) O Ministério Público promoveu a execução da coima e custas da entidade administrativa, por não terem sido voluntariamente liquidados os valores em dívida por parte do executado.

2) Para o efeito, o Ministério Público submeteu requerimento executivo que deu origem aos presentes autos.

3) Pelo despacho recorrido, o Tribunal a quo decidiu que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a presente acção executiva, considerando que tal competência recai sobre a AT.

4) O legislador não alterou o disposto nos artigos 61°, 88° e 89°, do RCP, mantendo- se a competência para a execução da coima administrativa não paga junto dos Tribunais.

5) Perante a actual redação do artigo 35°, do RCP, apenas se considera admissível que a AT tenha competência para a execução das custas da entidade administrativa. No que respeita à coima, o legislador não atribuiu essa competência à Autoridade Tributária.

6) Ao julgar que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a acção executiva que deu origem aos presentes autos, com o devido respeito por opinião contrária, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 61.°, 88.°, e 89.°, do RGCO, 35.°, do RCP, e 64.°, do CPC, por força do disposto no artigo 4.°, do CPP.

7) Numa interpretação conforme com o disposto nos artigos antecedentes e demais disposições legais aplicáveis, consideramos que o tribunal recorrido nunca se poderia declarar materialmente incompetente para proceder à execução da coima, por se verificar que o Juízo de Competência Genérica de …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, é territorialmente e materialmente para apreciar a presente acção executiva, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.

8) Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se, consequentemente, que prossiga a presente execução relativamente à coima aplicada pela entidade administrativa e, eventualmente, relativamente às custas aplicadas pela entidade administrativa, caso se entenda que o Tribunal recorrido é igualmente competente para a sua execução.

Vossas Ex.as, porém, decidirão como for de JUSTIÇA!

***

Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, no sentido da procedência do recurso.

***

Nos termos do art.º 417º, nº 6, do C. P. Penal irá ser proferida decisão sumária.

Cumpre apreciar e decidir.

***

O despacho recorrido é do seguinte teor:

«Iniciaram-se os presentes autos executivos com requerimento executivo apresentado pelo Ministério Publico, para cobrança de coima, devida à PSP.

Estabelece o actual art.º 35° do Regulamento das custas processuais (após - Lei nº 27/2019, de 28/03) o seguinte:

1 - Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.

2 - Cabe à secretaria do tribunal promover a entrega à administração tributária da certidão de liquidação, por via eletrónica, nos termos a definir por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, juntamente com a decisão transitada em julgado que constitui título executivo quanto às quantias aí discriminadas.

3 - Compete ao Ministério Público promover a execução por custas face a devedores sediados no estrangeiro, nos termos das disposições de direito europeu aplicáveis, mediante a obtenção de título executivo europeu.

4 - A execução por custas de parte processa-se nos termos previstos nos números anteriores quando a parte vencedora seja a Administração Pública, ou quando lhe tiver sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a execução por custas de parte rege-se pelas disposições previstas no artigo 626° do Código de Processo Civil.

Com a actual redacção da sobredita norma, o Ministério Publico no âmbito da jurisdição criminal junto dos Juízos Locais criminais tem competência unicamente para instaurar execução por multa devida nos processos e indemnizações arbitradas aos ofendidos/vitimas dos processos criminais.

Todos os demais valores são cobrados pela A.T. após emissão da competente certidão de divida no processo.

É aliás este o entendimento vertido no parecer nº 27/2020, de 04-10 do Ministério Publico. Fazendo, como se entende, todo o sentido que se o Ministério Publico junto do tribunal não tem competência para cobrar as custas devidas no próprio processo, não poderá executar custas ou coimas devidas em qualquer outro processo de natureza administrativa, junto de qualquer outra entidade.

Em face do exposto, e tendo em conta o objecto da presente execução, constatamos que este Tribunal é absolutamente incompetente, em razão da matéria, para apreciar e a presente acção executiva, a qual entendemos ser da Autoridade Tributária.

A incompetência absoluta em razão da matéria verificada constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso e a todo o tempo, e importa a absolvição do Executado da instância, nos termos do disposto nos artigos 65°, 97°, 98°, 99° e 577°, al. a) do Código de Processo Civil.

Notifique.

Existindo alguma penhora nos autos proceda ao seu imediato cancelamento.

Existindo valores pagos proceda notificação do executado com informação dos respectivos valores.»

***

A questão a decidir no caso em apreço é a de saber se o Tribunal recorrido (Juízo de Competência Genérica de …) é materialmente competente para a tramitação de processo executivo para cobrança de uma coima, aplicada por uma autoridade administrativa.

Desde já, não podemos deixar de referir que sobre a apontada problemática se pronunciou, em termos que se têm como inequivocamente correctos, o Acórdão desta Relação, proferido no âmbito do processo Proc. nº 107/23.6T9OLH.E1, de que foi relator o Exmo. Desembargador Jorge Antunes, com o qual nos identificamos e subscrevemos, com a devida vénia, e no qual se consignou que:

«…. Cumpre apreciar.

A matéria controvertida obriga-nos a tomar posição na questão de saber se a Lei n.º 27/2019, de 28 de Março, retirou da competência dos tribunais criminais o processamento das acções executivas para cobrança de quantia certa fundadas em condenação administrativa não impugnada que tenha condenado o arguido em coima e custas do procedimento contraordenacional, passando essa cobrança a competir à Administração Tributária.

Deverá entender-se, como a Mma. Juíza a quo que o legislador quis concentrar na administração tributária toda a cobrança de valores pecuniários, com excepção das quantias relativas à pena de multa ou indemnização arbitrada em processo penal (únicas para as quais se mantém a competência dos tribunais criminais)?

Ou pelo contrário, deverá entender-se que o legislador excluiu da alteração introduzida as execuções fundadas em condenação no pagamento de coima?

A resposta à questão não pode, como é evidente, passar pelo acolhimento do conteúdo do Parecer nº 27/2020 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República e limitar-se à interpretação das recomendações ali vertidas. As Diretivas emitidas pela PGR com base em tal Parecer não vinculam os Tribunais.

Olhemos, pois, a Lei, em busca de resposta. Para essa tarefa, não são irrelevantes os contributos da Jurisprudência que, não raras vezes, foi chamada a pronunciar-se sobre questões de competência relacionadas com a matéria.

Até à entrada em vigor da Lei n.º 27/2019, de 28 de Março, não se registavam importantes divergências na jurisprudência nacional quanto à competência dos tribunais criminais para o processamento da execução para cobrança de uma coima. No que se refere a este Tribunal da Relação de Évora, como nos dá nota a decisão do Sr. Desembargador Vice-Presidente (Desembargador Bernardo Domingos) datada de 7 de Fevereiro de 2017, esse era entendimento que merecia unanimidade:

“Ora a este respeito a jurisprudência deste Tribunal tem sido unânime no sentido de considerar que à competência para a execução de uma coima, são aplicáveis subsidiariamente os códigos penal e processual penal, sendo competentes para a sua execução as secções criminais das instâncias locais ou as secções de competência genérica. Como bem se salienta no acórdão desta Relação de 19-11-2015 (processo 2720/09.5TAFAR.E1- relator João Amaro), «a execução para cobrança de uma coima aplicada por autoridade administrativa não possui, manifestamente, natureza de “execução cível” (não é um meio de cobrança de uma dívida pecuniária, não pode ser vista apenas na sua vertente patrimonial). Na verdade, a coima é uma sanção (tem caráter punitivo), decorre da prática de uma contraordenação (de uma conduta típica, ilícita e censurável), sendo a execução por coima, no fundo, um meio coercivo de cumprimento de tal sanção. Veja-se, a propósito, que a coima é passível, desde que a lei o preveja (e pode prever), de ser “total ou parcialmente substituída por dias de trabalho…”, quando o tribunal “concluir que esta forma de cumprimento se adequa à gravidade da contraordenação e às circunstâncias do caso” (artigo 89-A do RGCO).

Atente-se também que, depois de instaurada a execução por coima, podem suscitar-se questões como a amnistia da infração ou a prescrição da coima, questões que, como se nos afigura evidente, possuem natureza contraordenacional, para as quais as secções de execução não estão vocacionadas nem direcionadas. Em suma: a execução por coima não tem natureza cível, nem faz qualquer sentido, com o devido respeito, equiparar a execução para cobrança coerciva de uma coima a uma execução de natureza cível.

Por outro lado, preceitua o artigo 89º, nºs 1 e 2, do RGCO (norma não derrogada pela LOSJ) que a execução por não pagamento da coima “será promovida perante o tribunal competente, segundo o artigo 61º”, “aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa”. Ora, o tribunal competente para conhecer da impugnação da decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima é o tribunal criminal, pelo que, também por aqui, não sendo paga a coima, a respetiva execução terá de ser promovida perante o tribunal criminal (o tribunal competente para a decisão da impugnação). E esta é até, perante a natureza da matéria em causa, a única solução harmoniosa, pois que, e repete-se o acima dito, na execução por coima podem, eventualmente, suscitar-se questões relacionadas com a amnistia da infração, ou com a prescrição da coima, etc.. Face a todo o predito, e com o devido respeito por diferente opinião, não faz qualquer sentido, nem tem apoio legal, entender-se que as secções de execução são competentes para a execução para cobrança coerciva de uma coima aplicada por uma autoridade administrativa em processo de contra-ordenação.

Competente para a execução das referidas coimas é, isso sim, a secção criminal da instância local».

No mesmo sentido podem ver-se diversos arestos deste Tribunal, quer da secção cível quer da secção criminal de que se destacam os seguintes:

Processo 892/07.2TAFAR.E1 – relator António João Latas, processo nº 1625/08.1TAFAR.E1 e 1255/11.0TAFAR.E1, relatados por Alberto Borges, processo nº 650/14.8TAFAR.E1 de 19-11-2015, relatora Isabel Duarte e processo n.º1223/11.2TAFAR.E1 de 03-12-2015, relator Sílvio Sousa, processo n.º 835/14.7 TAFAR.E1 de 19-01-2016, relatora Maria Filomena Soares e processo nº 3559/08.0TBSTB-A.E1, relator Bernardo Domingos, 249/15.1T9RMR.E1 de 26-4-2016, relatora Isabel Duarte, todos acessíveis in www.dgsi.pt.. No mesmo sentido vejam os arestos do TRL de 9.10.2012, proc n.º 1040/12.2YRLSB-5 e de 22.11.2011, proc. n.º 1112/11.0YRLSB-7, disponíveis in www.dgsi.pt... e Joel Timóteo Ramos Pereira in Prontuário de Formulários e Trâmites Vol. IV, Processo Executivo, Tomo I, 5.ª Edição, pág. 175 a 177.

Como resulta destes arestos, a competência das instâncias centrais de Execução respeita a questões de natureza civil (cfr. art.º 129.º n.º 1 da LOSJ). A execução de coimas tem natureza contra-ordenacional. É isso que decorre do disposto no art.º 89.º n.º 2 do Regime geral das Contra-ordenações e do art.º 491.º n.º 2 do Código de Processo Penal. Ora da aplicação conjugada desta duas normas claramente se conclui que a execução de coimas aplicadas pelas entidades administrativa (equiparadas à execução de uma multa aplicada por sentença criminal) seguem o mesmo regime da execução de multas criminais, excluídas da competência da instância central de execuções (cfr. art.º 129.º n.º 2 da LOSJ), pelo que a competência para a sua tramitação terá de estar residualmente atribuída à respectiva instância local com competência genérica ou especializada criminal.

Veja-se que os meios de defesa e questões que poderão carecer de apreciação em sede de execução da coima revestem absoluta natureza penal (por ex. prescrição e amnistia) o que colide com a competência cível da secção de execuções conforme estatuído do art.º 129.º n.º 1 da LOSJ. Ademais, o próprio regime subsidiário do RGCO é, nos termos do art.º 32.º e 41.º n.º 1 do RGCO, o Código Penal e o Código de Processo Penal.

O legislador pretendeu estabelecer uma competência muito específica para as secções de execução deixando-lhes tão só matéria de natureza cível (cfr. 129.º n.º 1 da LOSJ) e excluindo da sua competência todas as outras matérias como sejam criminal, família, comércio (cfr. art.º 129.º n.º 2 da LOSJ) e bem assim tudo o que se refere a execução por custas, multas e indemnizações (cfr. art.º 131.º da LOSJ).

Acrescenta-se que o próprio art.º 89.º n.º 1 do RGCO, enquanto lei especial e prévia à lei geral que é a LOSJ, esclarece sem margem para qualquer dúvida que em caso de não pagamento da coima o tribunal competente para a execução é o previsto no art.º 61.º desse mesmo Diploma, ou seja, aquele que era o competente para o conhecimento da impugnação da decisão administrativa (“o tribunal em cuja área territorial se tiver consumado a infracção”) e esse (tribunal) nunca poderá ser a Instância Central de Execução, por carecer em absoluto de tal competência”. (1)

Com a entrada em vigor da Lei nº n.º 27/2019, de 28 de Março (operada em 28 de abril de 2019) deixaram os tribunais criminais de ter competência para tais execuções?

A referida lei, que foi sumariada da seguinte forma: “Aplicação do processo de execução fiscal à cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial, procedendo à sétima alteração à Lei da Organização do Sistema Judiciário, trigésima terceira alteração ao Código de Procedimento e de Processo Tributário, sétima alteração ao Código de Processo Civil, décima terceira alteração ao Regulamento das Custas Processuais, trigésima terceira alteração ao Código de Processo Penal, quarta alteração ao Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro”, introduziu alterações profundas no sistema de cobrança de quantias devidas ao Estado, modificando, designadamente o modelo de cobrança coerciva das custas devidas em sede de processo judicial.

O diploma legal em questão alterou o artigo 148º do Código de Procedimento e de Processo Tributário que passou a dispor que:

«2 - Poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei:

(…).

c) Custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.

(…)».

Também o artigo 35º do Regulamento das Custas Processuais foi alterado, para passar a dispor:

«1 - Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.

2 - Cabe à secretaria do tribunal promover a entrega à administração tributária da certidão de liquidação, por via eletrónica, nos termos a definir por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, juntamente com a decisão transitada em julgado que constitui título executivo quanto às quantias aí discriminadas.

(…)». , no seu nº1, que “Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.”.

Deste modo, o legislador dotou a administração tributária de competência para promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial, com a consequente modificação da competência que anteriormente estava conferida aos tribunais comuns para processamento das acções executivas referentes a essas quantias. Mas as alterações introduzidas, pese embora inicialmente se tivesse constatado um ímpeto modificador mais profundo, não levaram o legislador a excecionar desse modelo de execução fiscal apenas as multas criminais e as indemnizações fixadas em processo judicial. Vejamos porquê. Como se pode ler no já referido Parecer nº 27/2020 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República:

“4.1. Na origem desta lei esteve a Proposta de Lei n.º 149/XIII, cuja exposição de motivos refere:

«As custas processuais, com especial relevância para a taxa de justiça, representam o valor imputado às partes ou sujeitos processuais decorrente da mobilização dos meios judiciários necessários e aptos à prestação do serviço público de administração de justiça.

Constituem-se assim como uma exigência tributária, de génese sinalagmática, normalmente decorrente de solicitação do cidadão aos Tribunais, a fim de assegurar a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.

Nestes termos, é pacífica e corrente a utilização do processo de execução fiscal para a cobrança de custas judiciais no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal; ora, a natureza tributária destas dívidas, e o balanço francamente positivo da utilização do processo de execução fiscal para a cobrança de custas judiciais no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal preconizam, assim, o repensar do processo de execução por custas na jurisdição dos tribunais judiciais, numa lógica de coerência e unidade do sistema jurídico.

Ademais, nas execuções por custas, os atos próprios e da competência do agente de execução ficam a cargo dos oficiais de justiça, reclamando por isso a sua ação nesse âmbito, em considerável detrimento de tempo e disponibilidade para a prática de atos de sua competência nas execuções comuns, agravando o tempo de resolução destes processos, em detrimento da confiança na atempada administração da justiça por parte dos cidadãos e dos operadores económicos.

Ora, a transferência para a Administração Tributária e Aduaneira das cobranças de créditos de custas judiciais dos tribunais comuns, à semelhança do que já se verifica nos tribunais administrativos e fiscais, não causando impacto relevante nos serviços da administração tributária, permitirá direcionar a atividade dos oficiais de justiça para a tramitação dos processos executivos, reforçando de forma substancial os meios humanos nos juízos de execução, desta forma contribuindo para a diminuição da pendência.

Consequentemente, apenas a invocação de uma fundamentação tradicionalista e anacrónica pode justificar que o regime de cobrança coerciva de custas, multas, coimas e outras sanções pecuniárias contadas ou liquidadas a favor do Estado não siga os mesmos termos em que são atualmente tratadas pelo sistema jurídico as demais dívidas fiscais ou parafiscais.

A aplicação do processo de execução fiscal à cobrança coerciva das custas, multas, coimas e outras quantias cobradas em processo judicial, e de outras sanções pecuniárias fixadas em decisões administrativas, sentenças ou acórdãos relativos a contraordenações ou multas, constitui uma medida com enorme impacto sistémico, assegurando maior uniformidade de critérios e procedimentos, permitindo aumentar a eficiência da cobrança das quantias devidas ao Estado, libertando meios humanos, e simultaneamente mantendo intacta a garantia da tutela jurisdicional efetiva dos devedores».

Como se fez constar de tal Parecer, foram razões de eficácia e economia de meios que ditaram a alteração do sistema de cobrança das quantias devidas ao Estado, centralizando as competências na Administração Tributária.

Esse intuito mereceu críticas, designadamente do Conselho Superior da Magistratura, relacionadas com a preservação da competência dos Tribunais no que se refere à cobrança de quantias que revestem a natureza jurídica de punições. Como, uma vez mais, se poderá ler no referido Parecer nº 27/2020 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República:

“O parecer do Conselho Superior da Magistratura, apesar de salientar o mesmo propósito legislativo, era, todavia, muito mais comedido e mais crítico. Em causa estava, sobretudo, a verdadeira natureza jurídica das multas e das coimas:

«ao invés do que sucede com as custas processuais, a consideração de multas, coimas e sanções pecuniárias como “dívidas fiscais ou parafiscais” suscita efetivas reservas, não parecendo que o legislador tenha atentado na especial natureza daquelas, que não se deverão confundir com qualquer “exigência tributária, de natureza sinalagmática”, nem encontram reflexo na definição de tributo decorrente dos artigos 3.º, 4.º e 5.º da Lei Geral Tributária.

As penas de multa e as coimas aplicadas pelo Tribunal, respetivamente em enquadramento de direito penal primário e secundário não têm cariz tributário, nem natureza sinalagmática, representando, ao invés, o essencial reduto do poder punitivo do Estado, o que parece justificar tratamento diferenciado na respetiva execução.

(…)

o Código de Procedimento e de Processo Tributário assenta no pressuposto essencial de que a quantia exequenda corresponde a uma divida tributária, assim se justificando, por exemplo a execução de sucessores conforme decorre do artigo 153.º e 154.º do referido diploma.

Sucede que, faltando às coimas e multas esse caráter tributário e sinalagmático e tratando-se de sanções decorrentes de uma responsabilidade pessoal, em caso de falecimento do executado/arguido, extingue-se a responsabilidade criminal e contraordenacional, o que (é) frontalmente incompatível com o disposto nos referidos preceitos. Este será apenas um exemplo da incompatibilidade e inadequação entre regime previsto para a execução fiscal e a natureza das coimas e penas de multa aplicadas pelos tribunais comuns».” (2)

Em face do conteúdo dos contributos oferecidos, o processo legislativo sofreu inflexão e o intuito inicial do legislador foi refreado, não tendo a alteração legislativa recaído sobre todo o universo mais amplo que constava da proposta inicial e que era o da cobrança coerciva das custas, multas, coimas e outras quantias cobradas em processo judicial, e outras sanções pecuniárias fixadas em decisões administrativas, sentenças ou acórdãos relativos a contraordenações ou multas.

Como se menciona no Parecer nº 27/2020 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, “o pensamento do legislador evoluiu durante o processo legislativo”. Efetivamente ao contrário da proposta inicial, a lei aprovada (Lei nº 27/2019, de 28 de março) omitiu qualquer referência expressa à cobrança das coimas ou das custas fixadas por decisão das entidades administrativas, referindo-se, agora, apenas, «à cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial» [cfr. o art. 1.º, n.º 161, o art. 2.º (que alterou o art. 148.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário), e o art. 3.º (que alterou o art. 35.º do Regulamento das Custas Processuais).

A letra da lei aprovada não deixa margem para dúvidas – a alteração aprovada não incide sobre as coimas, ao contrário do que sucedia na proposta de lei. Alargou-se a exclusão, atribuindo-se às coimas o tratamento legal reservado para as penas de multa. Os contributos interpretativos que se colhem da análise do processo legislativo são, como vimos, congruentes com essa conclusão, reforçando o sentido colhido através do elemento literal.

Também a ratio legis não anda apartada dos demais elementos de interpretação legislativa – a natureza punitiva que subjaz às penas de multa e às coimas determina que sua execução coerciva permaneça sob a alçada dos tribunais criminais.

O regime legal aplicável que já estava desenhado previamente, mantém-se para a execução coerciva das coimas.

Como se explicitava no douto Acórdão da Relação de Lisboa de 13 de dezembro de 2017:

“No processo penal, cujas regras são aplicáveis subsidiariamente ao regime das contra-ordenações (arts.41 e 89, nº2, do RGCO), a regra é a execução da pena seguir no próprio processo penal (arts.489 e segs. do CPP), no tribunal que foi competente para a decisão de mérito condenatória.

O art.89, do RGCO, em relação ao tribunal competente para a execução, remete para o art. 61, que se refere ao tribunal competente para conhecer a infracção (…).

No decurso do processo de execução da coima, podem surgir questões relacionadas com a extinção da responsabilidade contra-ordenacional (morte do condenado, prescrição da pena, amnistia ou perdão), ou com a pena, nomeadamente em casos que a lei admita a substituição da coima aplicada total ou parcialmente substituída por dias de trabalho (art.89 A, do RGCO), o que obrigando a uma ponderação sobre a gravidade da contra-ordenação e circunstâncias do caso, tem a ver com juízo global sobre a infracção, próprio de quem aprecia a infracção em função da medida abstracta da pena, daí que deva pertencer a quem teria competência para apreciação da impugnação judicial da decisão administrativa, caso esta tivesse existido.

Assim, além da lei não atribuir qualquer relevância ao valor da quantia exequenda para determinação do tribunal competente para a execução e de só ser possível retirar da letra da lei o critério de atribuição de competência ao tribunal que seria competente para conhecer a impugnação judicial da decisão administrativa (arts.80 e 61, do RGCO), a solução defendida pelo recorrente é a que mais se compatibiliza com a unidade do sistema jurídico.” (3).

Deverá notar-se que a alteração legislativa em questão, não determinou a alteração do Regime Geral das Contraordenações aprovado pelo Dec. Lei nº 433/82, de 27 de outubro, e designadamente dos respetivos artigos 89º e 89º-A (sendo certo que as soluções previstas nestes preceitos legais não são compatíveis com um esquema de execução coerciva da coima fora dos tribunais).

Em conclusão, pertence aos tribunais criminais a competência para execução de coima aplicada por autoridade administrativa, não tendo a entrada em vigor da Lei nº 27/2019, de 28 de março, alterado esse paradigma.

A essa mesma conclusão se chegou no Parecer nº 27/2020 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, onde se lê:

“(…) a única razão que se encontra para a supressão é, também aqui, o caráter não sinalagmático da coima e, logo, como incisivamente denunciou o parecer do Conselho Superior de Magistratura e a generalidade dos deputados que se pronunciaram, a hipotética impossibilidade de cobrar estes montantes através das execuções fiscais. Esquecendo a verdadeira natureza do direito de mera ordenação social e, em consequência, a verdadeira natureza da coima e que, por isso mesmo, à semelhança do que já acontece com «as coimas e outras sanções pecuniárias decorrentes da responsabilidade civil determinada nos termos do Regime Geral das Infrações Tributárias» [art. 148.º, n.º 1, al.ª c), do Código de Procedimento e de Processo Tributário], nada impediria a sua cobrança em sede de execução fiscal, o legislador alterou a proposta inicial, assim excluindo do âmbito deste diploma a cobrança de penas de multa e de coimas”.

Em nota de rodapé, acrescentou-se no referido Parecer o seguinte:

“Para além de não respeitar aquela progressiva passagem do ilícito de mera ordenação social para a jurisdição administrativa, esta solução tem a consequência perversa de gerar duas execuções: uma nos tribunais comuns para cobrança das coimas; outra nas execuções fiscais para cobrança das custas. Em vez da poupança de meios e da eficiência poderá, assim, representar uma estranha duplicação de esforços, que deveria ser repensada pelo legislador”.

Efetivamente, a necessária duplicação de execuções poderá representar uma forma pouco racional de gerir os meios procedimentais utilizados na cobrança das quantias devidas ao Estado, a demandar uma reflexão que, todavia, excede o âmbito dos presentes autos.

Não podemos, porém, concordar com o entendimento do Tribunal a quo, no sentido de que “o legislador quis concentrar na administração tributária toda a cobrança de valores pecuniários, com excepção da quantia relativa à pena de multa ou indemnização arbitrada em processo penal”.

Porque o legislador deliberadamente excluiu também as coimas, não poderá manter-se a decisão recorrida que, relativamente à parte da execução que visa a cobrança coerciva da coima aplicada, deverá ser revogada.

O Tribunal recorrido é, efetivamente, competente para essa execução.»

Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações por despiciendas, julga-se procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:

- revoga-se a decisão recorrida que declarou o Tribunal absolutamente incompetente, em razão da matéria, para apreciar a acção executiva instaurada para cobrança coerciva da coima no valor de € € 251,00 (duzentos e cinquenta e um euro), declarando-se que o Juízo de Competência Genérica de … é competente para o efeito, devendo determinar-se o prosseguimento da execução.

- Manter a decisão recorrida, na parte concernente à cobrança coerciva das custas.

Sem custas.

Évora, 05 / 02 /2024

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1 Cfr. a decisão proferida em sede de conflito de competência pelo Sr. Vice-presidente da Relação de Évora (Des. Bernardo Domingos) datada de 07.02.2017, acessível em: http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/d90d3c955c8dc0408025812a003df9ec?OpenDocument

2 O parecer do CSM pode ser consultado em: https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=43085.

3 Cfr. Acódão da Relação de Lisboa de 13.12.2017 - Relator: Vieira Lamim – acessível em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/673592cf0e1c742080258221004ed488?OpenDocument