Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
726/23.0PAENT-A.E1
Relator: MARIA PERQUILHAS
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - As declarações para memória futura da vítima de crime de violência doméstica, sendo meio de proteção da vítima e meio de prova, podem ser prestadas no processo antes da constituição como arguido do denunciado, tendo como objetivo evitar pressões sobre a vítima (com perturbação para a aquisição e para a conservação da prova) e, ainda, visando prevenir a vitimização secundária da declarante.
II - A prestação de declarações para memória futura da vítima de crime de violência doméstica antes da constituição como arguido do denunciado não viola as garantias de defesa deste, nem desrespeita a estrutura acusatória do processo penal português, nem contende com o direito ao contraditório, podendo este último direito ser exercido através de defensor a nomear ao denunciado (assegurando-se, desse modo, a possibilidade de defesa e de contrainterrogatório).
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
O MP veio recorrer do despacho proferido pelo JIC que indeferiu a prestação de declarações para memória futura da ofendida, representada por seu pai, que denunciou sua mãe pela prática de factos suscetíveis de consubstanciar um crime de violência doméstica.
Para o efeito apresentou as seguintes conclusões:
I. Por despacho judicial (com a referência 95079068, de 07.12.2023) proferido nestes autos, em que se investiga a prática do crime de violência doméstica (artigo 152º do Código Penal), por parte da denunciada (A), na pessoa da sua filha (B) (nascida em ……), foi rejeitada a tomada de declarações para memória futura à criança ofendida (B).
II. É desta decisão que discordamos, e daí a interposição do presente recurso.
III. Nos presentes autos, em 29.11.2023 (com a referência 95004612) o Ministério Público promoveu a tomada de declarações para memória futura à testemunha (B) nos seguintes termos:
«Para o JIC:
Nos presentes autos investiga-se a prática de factos suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática, por (A), do crime de violência doméstica, na pessoa de (B), nascida em ….., sua filha (artigo 152º, n.º 1, alíneas d), e), n.º 2, alínea a) do Código Penal).
Na verdade, os presentes autos tiveram início com a denúncia efetuada pelo progenitor da ofendida referindo que:
«Foi casado com a suspeita durante 8 anos e têm dois filhos em comum, os quais vivem com a suspeita, nesta cidade […..]. Mais informou o denunciante que, ainda no Brasil, após separação, decorreu um processo em Tribunal, entretanto encerrado.
O denunciante, pai da vitima, teve conhecimento que a mesma foi agredida por diversas vezes, tendo visto algumas marcas na pele compatíveis com os relatos, acrescenta que a agressão mais recente terá sido no dia de ontem, tendo a menor sofrido hematomas no lábio, braços e pernas.
Segundo o pai, a suspeita tem este comportamento agressivo para com a menor, por esta ter manifestado orientação sexual com a qual a progenitora não concorda.»
Assim, atendendo aos factos indiciados nos autos e aos elementos de prova recolhidos temos que a vítima é particularmente indefesa, desde logo, pela sua tenra idade, tem vindo a ser agredida na sua integridade física e psicológica (atentos os motivos das agressões físicas).
Importa proceder à audição da ofendida, em ambiente formal e sem a presença da denunciada, de modo a assegurar que o mesmo seja o mais livre e imparcial possível, sendo as declarações da ofendida fundamentais para a prova dos factos, e para a realização da justiça.
Importa proceder à inquirição da ofendida, em sede de declarações para memória futura, de forma a impedir que a mesma seja diversas vezes confrontada com os factos, revivendo-os, de forma a evitar a vitimização da ofendida e a evitar o agravamento da sua saúde e estado psicológico/ emocional.
Por outro lado, impõe que a ofendida seja ouvida, desde já e com muita celeridade, mesmo sem a constituição de arguida, existindo o risco de a denunciada poder exercer pressão sobre a sua filha, comprometendo a recolha das suas declarações de forma livre.
Só com a audição célere da ofendida se garantirá a frescura da sua memória e declarações, melhor se podendo também ponderar a promoção e aplicação de medidas de coação à arguida, pelo que, a audição, desde já, da ofendida, é fundamental para acautelar a sua segurança.
Assim, apresente aos autos ao Mmo JIC, com a promoção que seja designada data para tomada de declarações para memória futura à ofendida (B), nos termos dos artigos 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º3 e n.º4 do Código de Processo Penal, 152º do Código Penal, 16º, n.º2, e 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, e da Diretiva n.º 5/2019 da PGR (Ponto IV – A – 1 e 2), a fim de as mesmas poderem ser tomadas em conta aquando do julgamento, bem como a aferir da necessidade de aplicação de medida de coação para além do TIR, e bem assim para evitar a vitimização secundária decorrente de futuras inquirições da ofendida.
Mais se promove, que as declarações sejam tomadas em ambiente reservado, na ausência da denunciada, com a assistência de técnica especializada - a fim de garantir a espontaneidade dos seus depoimentos e bem assim que a documentação das declarações seja efetuada através de gravação audiovisual.
Nestes termos, e em conformidade com o que antecede, remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal.»
IV. Por seu turno, no despacho ora recorrido, decidiu-se do seguinte modo:
«Salvo o devido respeito, a suspeita pode sempre exercer pressão sobre a menor sua filha, tanto mais que a ofendida vive com a progenitora, suspeita, que terá que ter conhecimento necessário da diligência a agendar para apresentar a menor em Tribunal, conforme o diz o M.P. e fls. 12.
A diligência na ausência da suspeita, não constituída arguida, sendo esta identificável e localizável pode implicar não só fraude à lei (segundo jurisprudência do TRE), como acto nulo por violação das garantias de defesa e do contraditório, sendo que o MP está obrigado a tutelar os direitos de todos os sujeitos processuais de igual modo.
Mais, os autos agora ainda se iniciaram, sendo demasiado precoces as declarações para memória futura que devem abranger o máximo do objecto dos autos e para isso impõe-se que se realizem numa fase mais avançada da investigação.
Finalmente, constituindo as declarações para memória futura, a primeira diligência processual, tal implica que o JIC se substitua ao M.P., o que implica violação da estrutura acusatória do processo.
Assim sendo, devolvam-se os autos, sendo que o requerido será apreciado assim que junta aos autos a constituição de arguido».
V. A ofendida (B) é vítima especialmente vulnerável, desde logo, atenta a idade da mesma e bem assim porquanto ao testemunhar poderá ter de o fazer contra a progenitora.
VI. A ofendida tem a saúde, integridade física e psicológica afetada, encontrando-se numa posição de particular e especial vulnerabilidade, sendo de toda a importância, para a salvaguarda da integridade psíquica (e física) da ofendida que ela possa, desde já, prestar declarações para memória futura, de forma rigorosa e esclarecedora, as quais poderão ser valoradas nas fases subsequentes do processo (inclusivamente de julgamento).
VII. É de todo o interesse da ofendida ser ouvida em declarações para memória futura, de modo a evitar a vitimização secundária em (eventual) julgamento e bem assim assegurar a valoração das suas declarações em todas as outras fases do processo.
VIII. Não obstante a natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica, não se pode ignorar que os mesmos, muitas vezes, demandam uma investigação que acaba por ser demorada, e em que os depoimentos das vítimas são essenciais na descoberta da verdade material, importando que os seus depoimentos sejam tomados com celeridade (sob pena de se poderem perder factos essenciais).
IX. A audição de (B) é fundamente para a descoberta da verdade material, sendo fundamental ouvir esta jovem sobre o que efetivamente aconteceu, de modo a descobrir a verdade e a que seja possível fazer justiça.
X. A audição da ofendida nesta fase do processo e em sede de declarações para memória futura permitira evitar uma contaminação do seu depoimento assim como a perda de memória dos factos na sua plenitude, sendo o depoimento da vítima essencial na descoberta da verdade material, importando que o mesmo seja tomado com celeridade (sob pena de se poderem perder factos essenciais)
XI. A tomada de declarações para memória futura da ofendida tem total sustentação legal, por aplicação da lei de proteção de testemunhas (artigos 26º/2 e 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho), do artigo 33.º Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, e da lei do estatuto de vítima (artigos 17º, 21º, 22º, 24º), em face da sua condição de vítima especialmente vulnerável (também segundo os artigos 1º/j) e 67º-A, n.º1, al.s i), iii), b), n.º 3 e n.º 4 do CPP).
XII. Só ouvindo, desde já, a ofendida e em sede de declarações para memória futura se conseguirá evitar a repetição da audição daquela jovem vítima (especialmente vulnerável) e protege-la do perigo de revitimização, evitando-se a sua vitimização secundária (artigo 17º da lei n.º 130/2015 de 4 de setembro).
XIII. Cabe ao Ministério Público a direção da ação penal, decidindo o mesmo da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito, sendo de toda a utilidade e necessidade a audição da testemunha (B).
XIV. «A recolha de declarações para memória futura não exige a prévia constituição como arguido(s).»
(Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, do Relator: AMÉLIA CAROLINA TEIXEIRA, de 12-10-2023 - in: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/aeeaf9cc56fc048180258a580055330d?OpenDocument).
XV. E «Não está na disponibilidade do juiz de instrução (nem de qualquer outro) realizar, em sede de inquérito, um juízo de oportunidade do momento mais adequado para a realização de declarações para memória futura que tenham fundamento legal e que hajam sido solicitadas pelo Ministério Público, por esse juízo competir exclusivamente a quem detém a titularidade, direção e realização do inquérito, ou seja, ao Ministério Público, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal»
(Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, da Relatora MADALENA CALDEIRA, de 12/01/2023 - in: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f80dc38b74274bbc80258942004f642b?OpenDocument).
XVI. Cabe ao Ministério Público a direção da ação penal, decidindo o mesmo da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito, sendo de toda a utilidade e necessidade a audição da ofendida,
XVII. «sendo que o sistema processual penal não atribui quaisquer poderes de ingerência nesta área ao JIC, com excepção de zelar pela salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias»
(Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, do Relator ALFREDO COSTA, de 22-05-2023 - in: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c2da058780942c97802589be005555c5?OpenDocument).
XVIII. As garantias de defesa e contraditório que assistem ao arguido sofrem limitações de modo a satisfazer outro interesse / valor igualmente relevante, o de garantir o interesse público da descoberta da verdade material e da realização da justiça «cuja satisfação não raras vezes passa pela necessidade de aquisição e salvaguarda de prova que, ao não ser produzida de forma imediata, mesmo numa fase em que não há arguidos constituídos, pode ficar irremediavelmente perdida»
(in: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, da Relatora MADALENA CALDEIRA, de 12/01/2023 – disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f80dc38b74274bbc80258942004f642b?OpenDocument),
XIX. Sendo que, as garantias de defesa e o contraditório que assistem ao arguido estão salvaguardadas por « cautelas processuais maximizadas no que respeita, por exemplo, à necessidade de notificar os intervenientes processuais já identificados como tal (n.º 3 do art.º 271º, do CPP), à necessidade de cumprimento de certas regras próprias da audiência de julgamento (n.º 6) e, por fim, prevendo-se a possibilidade de prestação de novo depoimento na audiência de julgamento da pessoa ouvida antecipadamente, desde que as condições de saúde a isso não se oponham (n.º 8). A prestação de declarações para memória futura está, portanto, configurada, na medida do que é possível, como uma antecipação parcial da audiência de julgamento, em que o exercício do contraditório deve ser exercido em toda a plenitude possível»
(in: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, da Relatora MADALENA CALDEIRA, de 12/01/2023).
XX. Assim, ao ter decidido como decidiu, a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal violou os artigos 26º/2, 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, artigo 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 4 de setembro, 152º, 67º-A/1/a)iii)/b)/3 do Código Penal, 16º, n.º 2, artigos 2º, al. a), 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (com a redação da Lei n.º 57/2021, de 16/08), artigos 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º 3 e n.º4, 53.º n.º 2 al. b), 67º-A, n. º1/a)i), iii), al. b), n.ºs 3 e 4, 262° e 263° do Código de Processo Penal.
XXI. Deve, em conformidade, o despacho recorrido ser revogado e ser em sua substituição proferido despacho que determine a prestação de declarações para memória futura de (B).
XXII. Assim, e nos termos de tudo o que foi supra exposto, substituindo o despacho recorrido por outro que determine a prestação de declarações para memória futura de (B), farão V.as Exas. a habituada Justiça!
*
A Sr.ª PGA junto desta Relação expôs os fundamentos do recurso terminando aderindo à posição do MP da primeira instância, vertida no recurso em análise.
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Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos legais, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artº 419º, n.º 3 do C.P.P, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
Questões a decidir:
- Se as declarações para memória futura requeridas pelo MP, sem prévia constituição de arguido, são ilegais e por violação das garantias de defesa e do princípio do acusatório subjacente à estrutura acusatória do nosso CPP.

III – Apreciação:
O requerimento apresentado pelo MP, em 29 de novembro de 2023, com vista à tomada de declarações para memória futura à ofendida tem o seguinte teor:
«Para o JIC:
Nos presentes autos investiga-se a prática de factos suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática, por (A), do crime de violência doméstica, na pessoa de (B), nascida em (…..), sua filha (artigo 152º, n.º 1, alíneas d), e), n.º 2, alínea a) do Código Penal).
Na verdade, os presentes autos tiveram início com a denúncia efetuada pelo progenitor da ofendida referindo que:
«Foi casado com a suspeita durante 8 anos e têm dois filhos em comum, os quais vivem com a suspeita, nesta cidade […..]. Mais informou o denunciante que, ainda no Brasil, após separação, decorreu um processo em Tribunal, entretanto encerrado.
O denunciante, pai da vitima, teve conhecimento que a mesma foi agredida por diversas vezes, tendo visto algumas marcas na pele compatíveis com os relatos, acrescenta que a agressão mais recente terá sido no dia de ontem, tendo a menor sofrido hematomas no lábio, braços e pernas.
Segundo o pai, a suspeita tem este comportamento agressivo para com a menor, por esta ter manifestado orientação sexual com a qual a progenitora não concorda.»
Assim, atendendo aos factos indiciados nos autos e aos elementos de prova recolhidos temos que a vítima é particularmente indefesa, desde logo, pela sua tenra idade, tem vindo a ser agredida na sua integridade física e psicológica (atentos os motivos das agressões físicas).
Importa proceder à audição da ofendida, em ambiente formal e sem a presença da denunciada, de modo a assegurar que o mesmo seja o mais livre e imparcial possível, sendo as declarações da ofendida fundamentais para a prova dos factos, e para a realização da justiça.
Importa proceder à inquirição da ofendida, em sede de declarações para memória futura, de forma a impedir que a mesma seja diversas vezes confrontada com os factos, revivendo-os, de forma a evitar a vitimização da ofendida e a evitar o agravamento da sua saúde e estado psicológico/ emocional.
Por outro lado, impõe que a ofendida seja ouvida, desde já e com muita celeridade, mesmo sem a constituição de arguida, existindo o risco de a denunciada poder exercer pressão sobre a sua filha, comprometendo a recolha das suas declarações de forma livre.
Só com a audição célere da ofendida se garantirá a frescura da sua memória e declarações, melhor se podendo também ponderar a promoção e aplicação de medidas de coação à arguida, pelo que, a audição, desde já, da ofendida, é fundamental para acautelar a sua segurança.
Assim, apresente aos autos ao Mmo JIC, com a promoção que seja designada data para tomada de declarações para memória futura à ofendida (B), nos termos dos artigos 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º3 e n.º4 do Código de Processo Penal, 152º do Código Penal, 16º, n.º2, e 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, e da Diretiva n.º 5/2019 da PGR (Ponto IV – A – 1 e 2), a fim de as mesmas poderem ser tomadas em conta aquando do julgamento, bem como a aferir da necessidade de aplicação de medida de coacção para além do TIR, e bem assim para evitar a vitimização secundária decorrente de futuras inquirições da ofendida.
Mais se promove, que as declarações sejam tomadas em ambiente reservado, na ausência da denunciada, com a assistência de técnica especializada - a fim de garantir a espontaneidade dos seus depoimentos e bem assim que a documentação das declarações seja efetuada através de gravação audiovisual.
Nestes termos, e em conformidade com o que antecede, remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal.»
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O despacho judicial que apreciou este requerimento foi proferido em 07 de dezembro de 2023 e tem o seguinte teor:
«Salvo o devido respeito, a suspeita pode sempre exercer pressão sobre a menor sua filha, tanto mais que a ofendida vive com a progenitora, suspeita, que terá que ter conhecimento necessário da diligência a agendar para apresentar a menor em Tribunal, conforme o diz o M.P. e fls. 12.
A diligência na ausência da suspeita, não constituída arguida, sendo esta identificável e localizável pode implicar não só fraude à lei (segundo jurisprudência do TRE), como acto nulo por violação das garantias de defesa e do contraditório, sendo que o MP está obrigado a tutelar os direitos de todos os sujeitos processuais de igual modo.
Mais, os autos agora ainda se iniciaram, sendo demasiado precoces as declarações para memória futura que devem abranger o máximo do objecto dos autos e para isso impõe-se que se realizem numa fase mais avançada da investigação.
Finalmente, constituindo as declarações para memória futura, a primeira diligência processual, tal implica que o JIC se substitua ao M.P., o que implica violação da estrutura acusatória do processo.
Assim sendo, devolvam-se os autos, sendo que o requerido será apreciado assim que junta aos autos a constituição de arguido».
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Apreciando e decidindo:
Está em causa a tomada de declarações para memória futura de alegada vítima de violência doméstica sem que a denunciada se mostre constituída como arguida e o possível comprometimento do princípio do contraditório.
Para análise e decisão do recurso há que ter em conta que os actos denunciados consubstanciam a prática de um crime de violência doméstica p.p. pelo art.º 152.º do CP, o que impõe desde logo que se tenha em conta toda a legislação vigente sobre este flagelo que constitui a prática deste crime. Seguiremos de perto o nosso Acórdão proferido no TRL, em 25-05-2023, proferido no Proc. 108/23.4PXLSB-A.L1-9, in www.dgsi.pt.
Assim e desde logo, para melhor se interpretarem as normas vigentes em Portugal, nomeadamente as que respeitam ao direitos das vítimas, entre os quais se inclui a prestação de declarações para a memória futura (art.º 21.º do Estatuto da Vítima) há que ter em conta a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2012, estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substituiu a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, publicada no Jornal Oficial da União Europeia L 315/72 de 14.11.2012, conhecida como Diretiva das Vítimas; Como é sabido, esta Diretiva foi transposta para a ordem jurídica nacional através da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, que estabelece um regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, bem como para o Estatuto da Vítima aprovado pela Lei 130/2015 de 4 de Setembro.
São estes diplomas e respetivas normas, complementadas pela Lei de Proteção de Testemunhas, aprovada pela Lei n.º 93/99, de 14 de julho, maxime o seu art.º 28.º (por força do que se dispõe no art.º 20.º, n.º 8 da LVD, Lei 112/2009), e a Lei 112/2009 de 16 setembro, concretamente no seu art.º 33, que regem esta temática, porquanto constituem normas especiais relativamente à regra geral que regula as situações em que é possível a prestação de declarações para memória futura consagradas no art.º 271.º do CPP.
Por força do disposto no art. 14.º, n.º 1 da Lei 112/2009 de 16 de setembro, apresentada a denúncia da prática do crime de violência doméstica, não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima, para todos os efeitos legais, o estatuto de vítima.
A atribuição deste estatuto determina a aquisição por parte da vítima vários direitos de natureza processual , a que não é alheio o conhecimento científico sobre as fragilidades emocionais das vítimas de violência doméstica, que determinou, aliás, que a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, vulgo Convenção de Istambul, a Diretivas da União Europeia a que já se fez referência e bem assim a recente Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica (Estrasburgo, 8.3.2022, COM(2022) 105 final, 2022/0066 (COD).
Uma vez que o crime de violência doméstica, tendo em conta a sua natureza, preenche a previsão legal de criminalidade violenta ou especialmente violenta, como definidas no art.º 1º al. j) e l) do Código de Processo Penal, a vítima deste tipo de crime é sempre especialmente vulnerável, nos termos do artigo 67°-A n° 1 al. a) i) e por força do estabelecido no n° 3 do mesmo diploma.
Ora, a prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável constitui um direito seu, como se verifica do disposto nos art.ºs 21.º, n.º 2, al. d) do Estatuto da Vítima.
Para além de um direito seu, as declarações para memória futura constituem meio de prova e por isso pode revelar-se essencial para que a partir delas se possa desenvolver a investigação de modo mais concreto e eficaz, ao mesmo tempo que constituem um meio de proteção da própria vítima.
Vejamos:
A Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, conhecida por Lei da Violência Doméstica, tem entre outras como Finalidades, definidas no art.º 3.º:
A presente lei estabelece um conjunto de medidas que têm por fim:
a) Desenvolver políticas de sensibilização nas áreas da educação, da informação, da saúde, da segurança, da justiça e do apoio social, dotando os poderes públicos de instrumentos adequados para atingir esses fins;
b) Consagrar os direitos das vítimas, assegurando a sua protecção célere e eficaz;
c) Criar medidas de protecção com a finalidade de prevenir, evitar e punir a violência doméstica ;
Determinando o art.º 16.º da mesma LVD, que consagra o direito à audição e à apresentação de provas, no seu n.º 2 que as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.
Por sua vez o art.º 20.º, ainda da LVD, sobre o direito à proteção, nomeadamente que 3 - Às vítimas especialmente vulneráveis deve ser assegurado o direito a beneficiarem, por decisão judicial, de condições de depoimento, por qualquer meio compatível, que as protejam dos efeitos do depoimento prestado em audiência pública. Donde se retira, sem qualquer margem para dúvidas que as declarações para memória futura constituem em si mesmas um meio de prova e um meio de proteção da vítima
A preocupação do legislador de proteção da vítima contra a vitimização secundária, estende-se inclusivamente ao modo como a mesma deve ser ouvida/inquirida e para evitar que sofra pressões, o que expressamente consagrou no art.º 22.º da LVD, Condições de prevenção da vitimização secundária, tendo consagrado de forma expressa, no seu n.º 1 que a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões.
Ora, é conhecimento público e comum, decorrente da investigação científica sobre as vítimas de violência doméstica, as vítimas de violência doméstica sofrem pressões por parte dos agressores, para que alterem os seus depoimentos, o que logram conseguir atentas as sabidas fragilidades emocionais da vítima, caracterizadas por uma igualmente conhecida dependência emocional, psicológica e afetiva relativamente à pessoa do agressor, o que no caso concreto se verifica com particular acuidade dada a relação de mãe/filha.
As declarações para memória futura constituem, assim, um meio de proteção da vítima , pelo que entendemos ser-lhe de aplicar o disposto no art.º 29.º-A da LVD, medidas de proteção à vítima, e por conseguinte as mesmas devem ser prestadas no prazo de 72 horas a que alude o n.º 1 deste normativo:
1 - Logo que tenha conhecimento da denúncia, sem prejuízo das medidas cautelares e de polícia já adotadas, o Ministério Público, caso não se decida pela avocação, determina ao órgão de polícia criminal, pela via mais expedita, a realização de atos processuais urgentes de aquisição de prova que habilitem, no mais curto período de tempo possível sem exceder as 72 horas, à tomada de medidas de proteção à vítima e à promoção de medidas de coação relativamente ao arguido .
Esta interpretação sai reforçada se tivermos em conta o elemento histórico e já consagrado no art.º 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, que institui a Lei de Proteção de Testemunhas, aplicável ao caso atento o disposto no art.º 20.º, n.º 8 da LVD, Lei 112/2009, o qual dispõe, sobre a Intervenção no inquérito, que:
1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.
Quer garantir-se que a testemunha especialmente vulnerável preste depoimento o mais rapidamente possível a seguir à prática factos para garantir a sua memória mais viva e próxima da ocorrência e bem assim garantir a obtenção de prova, já que nas situações como a presente como já dissemos e repetimos, as vítimas estão ligadas ao agressor por laços afetivos e sofrem pressões para alterar os seus depoimentos ou não os produzirem de todo.
Por outro lado, nestes actos processuais urgentes de aquisição de prova têm que necessariamente se incluir a tomada de declarações à vítima, já que estas se revelam imprescindíveis como meio de prova e ponto de partida para a realização de outros meios de prova, constituindo, para proteção da vítima a inquirição do arguido um acto posterior às declarações (exceto em situações de detenção em flagrante delito) e aplicação de medidas de coação, caso se recolham indícios sérios da prática dos factos denunciados consubstanciadores do crime de violência doméstica .
Este nosso entendimento colhe demonstração na própria estrutura da Lei 112/2009, LVD, uma vez que o Artigo 33.º, que prevê a tomada de declarações para memória futura, se encontra inserido na SECÇÃO II, Proteção policial e tutela judicial, do CAPÍTULO IV, sob o título Estatuto de vítima.
Assim, repita-se, da inserção sistemática das declarações para memória futura na Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que instituiu o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência suas Vítimas (LVD), resulta sem qualquer dúvida que as mesmas constituem, para além de por natureza um acto judicial que consubstancia uma antecipação da audiência de julgamento, sujeito à observância do seu formalismo dentro do possível, um meio de proteção da vítima, constituindo mesmo um direito seu, já que estas vítimas são vítimas especialmente vulneráveis (cf. art.º 67.º A, n.º 3, 1.º al. j) e l) do CPP e art.º Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro, que aprovou o Estatuto da Vítima).
Aqui chegados, pensamos que resulta já claro que entendemos que as declarações para memória futura, porque meio de proteção e meio de prova, pode ser produzido antes da constituição de arguido, a fim de se evitar pressões, perturbação para a aquisição e conservação da prova e ainda evitar a vitimização secundária.
O exercício deste direito da vítima não pode estar dependente da constituição como arguido do denunciado, nem consubstancia a violação de qualquer direito do arguido maxime do direito ao contraditório, uma vez que o mesmo pode sempre exercer o direito ao contraditório, através de defensor que lhe seja nomeado (o que entendemos dever acontecer pese embora o denunciado não esteja ainda constituído como arguido, assegurando-se desse modo a possibilidade de defesa e de contrainterrogatório).
Para além de não existir qualquer base legal para que, desde logo e em primeiro lugar, se constitua alguém como arguido para, se poder depois tomar declarações para memória futura à vítima. Ademais, no decurso do inquérito, caso sejam constituídos arguidos, será sempre dado conhecimento aos mesmos de todos os elementos probatórios aquando seu eventual interrogatório (Ac. TRL de 03-02-2022 Proc. 876/21.8JAPDL-A.L1-9, Relator Guilherme Castanheira, in www.dgsi.pt), ou ter o MP que realizar atos investigatórios prévios à prestação de declarações para memória futura.
Acresce que, com a 15ª alteração ao Código de Processo Penal, operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, para a constituição de arguido passou a exigir-se a suspeita fundada da prática de crime e não a mera suspeita da sua prática, como se vê da redação que foi dada ao art.º 58.º, n.º 1 do CPP a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal;
Assim, sendo com a denúncia, geralmente por parte da vítima, que se adquire a notícia do crime e se consegue apurar as circunstâncias em que ocorreram os factos, a não realização das declarações para memória futura nos termos preconizados pelo despacho recorrido determinaria que a mesma fosse ouvida pelo MP, já que tal diligência é essencial para o apuramento de quem é, foi, o autor dos factos e respetivas circunstâncias e constituição do arguido (como se explicou supra), e que mais tarde a mesma fosse novamente ouvida, desta feita pelo juiz, em declarações para memória futura ou em audiência, o que redundaria numa violação dos diretos da vítima acima enunciados e acarretaria necessariamente uma revitimização decorrente da repetição de depoimento e do contacto com o sistema de justiça (neste sentido v. ac. referido Relator Guilherme Castanheira: E, além do mais, indeferir a tomada de declarações para memória futura ( sem haver in casu arguido ainda constituído), é também abrir a porta para que a ofendida preste declarações prévias, perante magistrado do Ministério Público, para identificar o denunciado, antes de prestar Declarações para Memória Futura, levando a que se revitimize a vítima; Ac. TRL de 04-06-2020, Proc. 69/20.1PARGR-A.L1-9, Relator Abrunhosa de Carvalho, in www.dgsi.pt).
Todo o regime do Estatuto da Vítima, mais concretamente dos direitos das vítimas especialmente vulneráveis especialmente o disposto no art. 24º nº 6 da Lei 130/2015 que prevê que só se for indispensável à descoberta da verdade e desde que não ponha em causa a saúde física e psíquica da pessoa, é que a reinquirição em audiência de julgamento poderá ter lugar, impõe que se conclua que nas situações de crimes de violência doméstica, já que as suas vítimas são por força de lei especialmente vulneráveis, a tomada de declarações para memória futura são e devem ser a regra, devendo realizar-se no mais curto espaço de tempo a seguir à prática dos factos, se possível dentro das 72 horas seguintes (para proteção da vítima, melhor recolha de prova, já que o depoimento mais próximo da ocorrência dos factos será o que corresponderá à tradução mais fiel dos acontecimentos, processo tem natureza urgente, evita a revitimização, e protege a vítima contra pressões, represálias ou qualquer forma de intimidação por parte do agressor).
Aqui chegados é necessário ter ainda presente que o nosso processo penal tem natureza essencialmente acusatória (em contraponto a uma estrutura de natureza inquisitória), desde logo por força do art.º 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP, de ora em diante), que determina uma separação dos poderes processuais de investigação e de julgamento, cabendo ao Ministério Público o exercício da ação penal (art.º 48º do CPP), que o mesmo é dizer investigar e acusar, e ao juiz julgar os factos que lhe são apresentados pelo Ministério Público (art.º 283º, do CPP) ou pelo assistente (art.º 285º, do CPP) (Ac. TRL de 12-01-20223, Proc. 604/22.0PAVFX-A.L1-9, Relatora Madalena Caldeira, www.dgsi.pt); natureza essa que determina que a titularidade da ação penal, direção e realização do inquérito (art.ºs 53º, 262º, 263º e 267º, todos do CPP), caber em exclusividade ao Ministério Público, é sua a prorrogativa da definição do objeto do inquérito, da escolha das diligências de prova a realizar e do momento da sua realização, embora sempre orientado por critérios de legalidade, não podendo o juiz (de instrução ou qualquer outro, mesmo de tribunal superior) interferir no exercício dessas competências, ressalvadas as competências previstas nos art.ºs 268 e 269º, do CPP, devidamente excecionadas pela lei, nos estritos termos previstos nestes dispositivos.
A jurisprudência não é unânime sobre se as declarações para memória futura podem ser prestadas em momento processual prévio à constituição de arguido, seguindo nós como já explanamos o entendimento de que a tomada de declarações para memória futura não impõe a prévia constituição do arguido, sendo até dever do MP apenas constituir como tal o suspeito quando haja recolhido no inquérito fundadas suspeitas da prática pelo mesmo dos factos denunciados (art.º 58.º do CPP) e bem assim de diligenciar pela proteção da vítima nomeadamente requerendo a prestação de declarações para memória futura (por imposição legal).
No despacho recorrido invoca-se a preterição do contraditório pleno, transformando-se as mesmas em diligência de investigação e ainda a falta de justificação por parte do MP para a não constituição do denunciado como arguido, e finalmente a substituição do MP pelo Juiz.
Pois bem, para além de nada obstar que as declarações para a memória futura constituam diligência de investigação, já que o que se pretende é a possibilidade de produção desse meio de prova, testemunhal, se pretende que a vítima seja reinquirida sore os factos, seja no decurso do inquérito, da eventual instrução ou do julgamento, o princípio do contraditório e o direito a contraditar não é absoluto e o juiz de instrução não pode nem deve realizar juízo de oportunidade sobre se existem ou não já no inquérito condições para a constituição de arguido, o que implica que analisou os autos e apreciou se existem fundadas suspeitas (art.º 58.º CPP), interferindo na atividade própria e exclusiva do MP – a direção do inquérito na sua plenitude que envolve a estratégia relativamente aos meios de prova e momento de recolha dos mesmos (v. acórdão deste TRL Relatora Madalena Caldeira acima identificado). Por outro lado, ainda, como resulta da lei, quer do Estatuto da Vítima, quer da LVD, quer da Lei de proteção de testemunhas o depoimento recolhido em declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável deve ocorrer no mais curto espaço de tempo a seguir à prática de crime, podendo muito bem ser o primeiro acto de prova a ser produzido.
Seguimos, sobre o princípio do contraditório, o Ac. STJ de 7-11-2007, proc. 07P3630, concretamente o que se segue:
As declarações para memória futura, verificados os pressupostos em que a produção é processualmente admitida (artigo 271º, nº 1 do CPP), constituem um modo de produção de prova pessoal, submetido a regras específicas para acautelar o respeito por princípios estruturantes do processo.
Nomeadamente, no que vem invocado, o respeito pelo princípio do contraditório.
O princípio do contraditório tem no moderno processo penal o sentido e o conteúdo das máximas “audiatur et altera pars” e “nemo potest inauditu damnari” (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1974, p. 149 e segs). O princípio, que deve ter conteúdo e sentido autónomos, impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte, nomeadamente que seja dada ao acusado a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação.
A construção da verdadeira autonomia substancial do princípio do contraditório impõe que seja concebido e integrado como princípio ou direito de audiência, dando «oportunidade a todo o participante processual de influir através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo» (cfr. idem, pág. 153).
O princípio tem assento constitucional – artigo 32º, nº 5, da Constituição.
A densificação do princípio deve, igualmente, relevante contributo à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que tem considerado o contraditório um elemento integrante do princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no artigo 6º, par. 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Na construção convencional, o contraditório, colocado como integrante e central nos direitos do acusado (apreciação contraditória de uma acusação dirigida contra um indivíduo), tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação.
No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial; as excepções a esta regra não poderão, no entanto, afectar os direitos de defesa, exigindo o artigo 6º, § 3º, alínea b), da Convenção, que seja dada ao acusado uma efectiva possibilidade de confrontar e questionar directamente as testemunhas de acusação, quando estas prestem declarações em audiência ou em momento anterior do processo (cfr., v. g., entre muitas referências, o acórdão VISSIER c. Países Baixos, de 14 de Fevereiro de 2002).
Os elementos de prova devem, pois, em princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, em vista de um debate contraditório. Todavia, este princípio, comportando excepções, aceita-as sob reserva da protecção dos direitos de defesa, que impõem que ao arguido seja concedida uma oportunidade adequada e suficiente para contraditar uma testemunha de acusação posteriormente ao depoimento; sendo apenas os direitos da defesa limitados de maneira incompatível com o respeito do princípio sempre que uma condenação se baseie, unicamente ou de maneira determinante, nas declarações de uma pessoa que o arguido não teve oportunidade de interrogar ou fazer interrogar, seja na fase anterior, seja durante a audiência. São estes os princípios elaborados pela jurisprudência de Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a respeito do artigo 6º, §§ 1 e 2, alínea d), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cfr., v. g., acórdãos CRAXI c. Itália, de 5 de Dezembro de 2002, e S. N. c. Suécia, de 2 de Julho de 2002).
Em certas circunstâncias, com efeito, pode ser necessário que as autoridades judiciárias recorram a declarações prestadas na fase do inquérito ou da instrução, nomeadamente quando a impossibilidade de reiterar as declarações é devida a factos objectivos, como sejam a ausência ou a morte, ou por circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa (crimes sexuais); se o arguido tiver oportunidade, adequada e suficiente, de contraditar tais declarações posteriormente, a sua utilização não afecta, apenas por si mesma o contraditório, cujo respeito não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo em cross-examination.
Deste modo, nesta fase embrionária dos autos, ainda em fase de inquérito, entender que as declarações para memória futura não podem ter lugar antes da constituição de arguido porque este não se pode defender constitui, um entendimento sobre o princípio do contraditório como absoluto, incompatível com a administração da justiça e a proteção das vítimas em situações como a presente.
Além disso, e como tem sido igualmente entendimento na jurisprudência, a circunstância de o denunciado não se encontrar constituído com arguido não obsta a que seja nomeado defensor, como tem sido decidido em diversos acórdãos, nomeadamente, TRP de 23-11-2016, Proc. 382/15.0T9MTS, TRL de 4-05-2017, Proc. 12/15.0JDLSB e de 23-09-2021, Proc. 141/21.0SXLSB-A.L1-9) para que o acto de prestação de declarações para memória futura decorra com observância do contraditório na medida do possível (pelo menos em termos jurídicos o denunciado, futuro arguido se as suspeitas forem fundadas, estará representado podendo o defensor sugerir questões, tirar notas para futuro acompanhamento e definição da estratégia de defesa).
Sempre que não seja possível a observância plena do princípio do contraditório, há que encontrar o equilíbrio entre o dever de administrar a justiça e os direitos processuais do arguido, como se exarou no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, de 19 de julho, onde efectivamente, o problema central do objecto do processo penal é o da procura do equilíbrio entre o interesse público da aplicação do direito criminal, mediante a eficaz perseguição dos delitos cometidos, e o direito impostergável do arguido a um processo penal que assegure todas as garantias de defesa.
Deste modo, entender como no despacho recorrido, que o MP dever realizar diligências de investigação, probatórias, e constituir como arguido o denunciado antes da prestação de declarações para memória futura da vítima, para além de não ter base legal para o efeito, viola os direitos das vítimas a que se enunciaram supra e ainda princípio do acusatório, não se mostrando violado qualquer direito ao contraditório nos termos explicitados.
Concluindo: o juiz só pode recusar a tomada de declarações para memória futura, com ou sem arguido previamente constituído, nos casos de manifesta inexistência dos pressupostos legais, pelo que deve realizar o acto probatório requerido, que constitui antecipação de audiência de julgamento, devendo nomear defensor ao arguido (V. o já citado Ac. TRP de 23-11-2016, Processo n.º 382/15.0T9MTS, in www.dgsi.pt,).
Termos em que procede o recurso apresentado.

IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Évora, em:
Julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência revoga-se o despacho proferido, o qual deve ser substituído por outro que defira o requerido pelo MP e designe data para tomada de declarações para memória futura à ofendida.

Évora, 6 de fevereiro de 2023
Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP).

Maria Perquilhas
Renato Barroso
Fernando Pina
__________________________________________________
[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363