Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
604/22.0PAVFX-A.L1-9
Relator: MADALENA CALDEIRA
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
INQUÉRITO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PRÉVIA CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. É legal a prova antecipada de recolha de declarações para memória futura de uma menor de idade, vítima de denunciado crime de violência doméstica, por força do disposto no art.º 33º, da Lei 112/2009, de 16.09, e bem assim dos art.ºs 26º, n.º 2, e 28 da Lei 93/99, de 14.07 (Lei de Proteção de Testemunhas), 67.º-A, n.ºs 1, als. a), i) iii), e  b), e 271º, ambos do CPP.
2. Não está na disponibilidade do juiz de instrução (nem de qualquer outro) realizar, em sede de inquérito, um juízo de oportunidade do momento mais adequado para a realização de declarações para memória futura que tenham fundamento legal e que hajam sido solicitadas pelo Ministério Público, por esse juízo competir exclusivamente a quem detém a titularidade, direção e realização do inquérito, ou seja, ao Ministério Público, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal.
3. A recolha de declarações para memória futura não exige a prévia constituição como arguido(s).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
Em sede de inquérito o Ministério Público solicitou a inquirição para memória futura da menor A, por estar indiciada a prática de crime de violência doméstica, p. e .p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. d), e 2, al. a), do CP.
Por despacho datado de 11.10.2022 foi indeferido o pedido, por se considerar prematura a realização de tal meio de prova, face à inexistência de outros atos prévios de investigação.
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Recurso da decisão
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso da decisão, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões (que resumiremos, face à dificuldade de converter a certidão em texto editável):
- A menor A, de 8 anos de idade, é vítima de violência doméstica e encontra-se acolhida em instituição.
- Impõe-se a sua audição a respeito dos seus agressores.
- A menor A é vítima especialmente vulnerável e tem o direito a ser ouvida o mais depressa possível, inclusive com recurso às declarações para memória futura, nos termos do art.º 28º, da Lei de Proteção de Testemunhas.
- Impõe-se às autoridades judiciárias assegurar que a menor seja ouvida em ambiente informal e reservado, o mais depressa possível.
- A rejeição de tal diligência antecipada é violadora dos direitos e garantias da menor, e por isso é ilegal.
- Já foi inquirida a testemunha presencial do ocorrido.
- Não tem fundamento legal a rejeição das declarações para memória futura da menor em virtude de não terem sido realizadas diligências investigatórias prévias, nomeadamente a constituição de arguido.
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O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Parecer do Ministério Público junto da Relação
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art. 416°, do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto aderiu às alegações do recurso apresentadas pelo Ministério Público na primeira instância.
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Após exame preliminar e colhidos os Vistos, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir, nos termos resultantes do labor da conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sendo essas que balizam os limites do poder cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como ocorre por exemplo com os vícios previstos nos artigos 410º, n.º 2, ou 379º, n.º 1, ambos do CPP (cfr. art.ºs 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, ambos do CPP).
Posto isto, passamos a delimitar o thema decidendum, que o mesmo é dizer a elencar as questões colocadas à apreciação deste tribunal, e que no caso é uma única, a saber:
Se é de manter, ou de revogar, a decisão judicial de indeferimento do pedido de tomada de declarações para memória futura de uma menor, tida como vítima de um crime de violência doméstica, por inoportunidade, em virtude da ausência de outros atos prévios de investigação.
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O despacho recorrido e os factos:
- Em 11.11.2021 foi proferido o Despacho Recorrido, que aqui se transcreve integralmente):
Verifico que para além do auto de fls. 2 e de cópia da decisão tomada no processo de promoção e protecção identificado a fls. 29. E ss., nenhum acto de investigação foi levado a cabo, (muito menos a constituição de arguido como alude a promoção antecedente). Assim, por considerar que não foram realizados quaisquer actos de investigação, considero de momento, que é prematuro, face à falta de elementos probatórios, proceder à requerida tomada de declarações para memória futura.
Devolva ao MºPº.
Ainda com relevo para a decisão, apura-se, de acordo com os elementos constantes do Proc. n.º 604/22.0PAVFX - A Inquérito (Atos Jurisdicionais) e que nos foram disponibilizados, o seguinte:
- Em 16.09.2022 foi autuado no Departamento de Investigação e Ação Penal, Secção de Vila Franca de Xira, o inquérito n.º 604/22.0PAVFX, com indicação na capa, na qualidade de suspeito, de P…, e na qualidade de vítima, de A.
- Consta dos autos que A nasceu em 01.06.2014 e encontra-se acolhida em instituição, na sequência de decisão proferida em sede de processo de promoção.
- A é filha de B e de C. 
- Encontram-se em investigação nos presentes autos factos susceptíveis de integrar a prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea e), e n.º 2, alínea a), do Código Penal.
-  A denunciante, testemunha presencial, foi inquirida pelos OPC´s previamente à prolação do despacho recorrido.
-Foi delegada a competência na PSP para realização das restantes diligências de inquérito, nomeadamente a constituição como arguido.
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Da análise dos fundamentos do recurso:
Se é de manter, ou de revogar, a decisão judicial de indeferimento do pedido de tomada de declarações para memória futura de uma menor, tida como vítima de um crime de violência doméstica, por inoportunidade, em virtude da ausência de outros atos prévios de investigação.
Vejamos.
O crime em investigação é o de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. d), e 2, al. a), do CP.
Lê-se no art.º 271º, do CPP, referente às “declarações para memória futura”, que:
1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4 - Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º
7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.
8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

O artigo 67.º-A, n.ºs 1, als. a), i) iii), e  b), do CPP, ora com interesse, considera “vítima”  a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, a criança ou o jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação no âmbito da prática de um crime, e  “vítima especialmente vulnerável» a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade.


O regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica - Lei 112/2009, de 16.09 - estabelece, por seu turno, no art.º 33.º, referente às “declarações para memória futura” que:
1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.
4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.
6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.
7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.


Também os art.ºs 26º, n.º 2, e 28º, da Lei de Protecção de Testemunhas (Lei 93/99, de 14.07) estabelecem a possibilidade de as vítimas especialmente vulneráveis poderem ser ouvidas para memória futura, ao abrigo do disposto no art.º 271º, do CPP.

Face às disposições legais mencionadas não pode subsistir dúvidas de que a tomada de declarações para memória futura da menor A, menor de idade (posto que nasceu em 2014) e com o estatuto de vítima, por indiciariamente ter sido alvo de atos de violência pelo companheiro da avó paterna,  tem total sustentação legal, desde logo por aplicação directa do disposto no art.º 33º da Lei 112/2009, de 16.09, mas também por aplicação da Lei de Protecção de Testemunhas, dada a sua condição de vítima especialmente vulnerável.
Sem prejuízo, o despacho recorrido também não nega essa possibilidade  legal de a menor poder beneficiar da protecção de ser ouvida para memória futura, posto que nele nada se invoca em sentido contrário, em razão do que não nos deteremos mais sobre esta questão.

O indeferimento alvo de recurso é fundado num juízo de inoportunidade da tomada de declarações para memória futura em virtude de não terem sido realizados quaisquer outros prévios atos de investigação, em razão do que apoda o pedido de prematuro, face à falta de elementos probatórios, porém não se fundamenta esse juízo em qualquer normativo legal.
A questão cerne alvo deste recurso é a de saber se está na disponibilidade do juiz de instrução a realização de um juízo de oportunidade do momento mais adequado para a tomada de declarações para memória futura em sede de inquérito quando as mesmas têm fundamento legal, ou se tal juízo de oportunidade compete apenas, e só, ao Ministério Público.
No sistema jurídico português o processo penal tem uma estrutura essencialmente acusatória (em contraponto a uma estrutura de natureza inquisitória), desde logo por força do art.º 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP, de ora em diante),  que determina uma separação dos poderes processuais de investigação e de julgamento, cabendo ao Ministério Público o exercício da ação penal (art.º 48º do CPP), que o mesmo é dizer investigar e acusar, e ao juiz julgar os factos que lhe são apresentados pelo Ministério Público (art.º 283º, do CPP) ou pelo assistente (art.º 285º, do CPP).
Essa estrutura acusatória do processo penal permite ganhos em matéria de autonomia e imparcialidade, estando também intimamente relacionada com a autonomia do Ministério Público, também ela consagrada na CRP, no respetivo artigo 219º.
Por o exercício da ação penal, logo a titularidade, direção e realização do inquérito (art.ºs 53º, 262º, 263º e 267º, todos do CPP), caber em exclusividade ao Ministério Público, é sua a prorrogativa da definição do objeto do inquérito, da escolha das diligências de prova a realizar e do momento da sua realização, embora sempre orientado por critérios de legalidade, não podendo o juiz (de instrução ou qualquer outro, mesmo de tribunal superior) interferir no exercício dessas competências, ressalvadas as competências previstas nos art.ºs 268 e 269º, do CPP, devidamente excecionadas pela lei, nos estritos termos previstos nestes dispositivos.
Em respeito e em consequência desta estrutura acusatória do processo penal os poderes do juiz sobre a matéria atinente às diligências de produção de prova a produzir em sede de inquérito - quer quanto à natureza das mesmas, quer quanto ao seu timing de realização - ficam, compreensivelmente, fortemente limitados.
Assim, está fora do poder do juiz (de qualquer um) impor ao Ministério Público que proceda ou não proceda à realização desta ou daquela diligência investigatória, sendo o Ministério Público livre, dentro das exigências impostas pelo princípio da legalidade e pelos atos do inquérito de prática obrigatória, de realizar as diligências investigatórias que entender necessárias em vista de proferir despacho de encerramento do inquérito, seja de arquivamento ou de acusação, e bem assim a expor os factos que entende no libelo acusatório e a qualificá-los juridicamente como entende.
E o mesmo se diga quanto ao momento em que cada uma das diligências de prova deve, em sede de inquérito, ser realizada, assim como a urgência de produção de cada uma delas, ou a falta dela.
É neste contexto que, por exemplo, o disposto no art.º 120º, n.º 2, al. d), do CPP, tem sido interpretado no sentido de que a única insuficiência do inquérito que dá lugar à nulidade do mesmo é a falta de atos legalmente obrigatórios, não já a falta de qualquer outro ato de investigação que o tribunal possa entender revelar-se essencial para a descoberta da verdade. Portanto, a omissão de diligências de investigação não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, dado que a aferição da necessidade da prática desses atos é da competência exclusiva do Ministério Público.
Posto isto, a ponderação da prematuridade da realização da tomada de declarações para memória futura da menor A no âmbito de um inquérito não é permitida ao juiz de instrução, por violação do poder de direção do inquérito que cabe ao Ministério Público, pois que é a este que compete, dentro dos seus poderes-deveres, promover as diligências necessárias, no tempo que considere adequado, com vista a dotar o inquérito de elementos para fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar o inquérito, com exceção, naturalmente, dos atos cuja prática é obrigatória no decurso do inquérito.

Não se ignora a problemática doutrinal e jurisprudencial que gira em torno da questão de saber se as declarações para memória futura podem ser prestadas numa altura em que não há ainda arguidos constituídos, percebendo-se do despacho recorrido que terá sido esta questão que esteve na base do raciocínio do Sr. Juiz de Instrução, embora tal justificação não respigue expressamente do teor do despacho.
A questão não é propriamente nova, nem recente, e tem beneficiado de diversos contributos doutrinais e jurisprudenciais.
Relembremos que o art.º 32º da CRP, consagra o direito do arguido às garantias de defesa, à escolha de defensor, ao direito ao contraditório, e dentro deste ao direito à assistência da audiência de julgamento e a todos os atos instrutórios que a lei determinar.
O princípio do contraditório, na dimensão referente aos seus destinatários, obriga, desde logo, a que as provas produzidas com vista à aferição da veracidade e à obtenção da verdade material possam ser produzidas na presença do arguido e contraditadas, não só pela acusação, mas também pelas pessoas cuja decisão possa vir a afetar, pelas defesas, portanto.
O cabal exercício do direito de defesa do arguido pressupõe, consequentemente, a possibilidade de contraditar num plano de igualmente de armas todos os meios de prova, nomeadamente a possibilidade de interrogar ou contrainterrogar as testemunhas que contra si depõem.
Este princípio, nesta sua dimensão mais pura e ampla, levaria  a rejeitar ou a não valorar prova que o arguido não teve possibilidade de contraditar aquando da sua produção.
Porém, o princípio do contraditório, com a dimensão alargada referida, sofre certas limitações, em ordem à satisfação de outros interesses ou valores igualmente relevantes, também eles com assento constitucional.
Em tal caso, impõe-se realizar um equilíbrio, por vezes periclitante, entre os diversos valores em conflito, o que legitima algumas restrições ao exercício do contraditório do arguido.
Um desses outros valores é, precisamente, o poder-dever do Estado de fazer cumprir as normas penais por si criadas (chamado Ius puniendi, na sua dimensão subjetiva) e de garantir o interesse público da descoberta da verdade material, cuja satisfação não raras vezes passa pela necessidade de aquisição e salvaguarda de prova que, ao não ser produzida de forma imediata, mesmo numa fase em que não há arguidos constituídos, pode ficar irremediavelmente perdida.
Este poder-dever resulta, desde logo, da circunstância de o Estado ser o responsável pela promoção do bem comunitário comum e pela ordem pública (cfr. art.º 9º da CRP).
Como se alude no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, de 19 de julho: Efectivamente, o problema central do objecto do processo penal é o da procura do equilíbrio entre o interesse público da aplicação do direito criminal, mediante a eficaz perseguição dos delitos cometidos, e o direito impostergável do arguido a um processo penal que assegure todas as garantias de defesa.
Por outro lado, é preciso não esquecer que o processo penal tem como objetivo primário a descoberta da verdade e essa finalidade não pode ser demasiado entorpecida por uma exigência excessivamente formal e radical do exercício do contraditório, sob pena de se impedir a procura e obtenção daquela verdade, o que, em si mesmo, também em nada beneficiaria a posição processual dos próprios visados nesse processo, de onde decorre a necessidade de criar mecanismos de equilíbrio entre a finalidade orientadora do processo penal e os direitos de defesa.
No que à prova antecipada respeita, numa tentativa de alcançar o ponto de equilíbrio aceitável entre o direito ao contraditório e o referido poder-dever punitivo do Estado, impuseram-se cautelas processuais maximizadas no que respeita, por exemplo, à necessidade de notificar os intervenientes processuais já identificados como tal (n.º 3 do art.º 271º, do CPP), à necessidade de cumprimento de certas regras próprias da audiência de julgamento (n.º 6) e, por fim, prevendo-se a possibilidade de prestação de novo depoimento na audiência de julgamento da pessoa ouvida antecipadamente, desde que as condições de saúde a isso não se oponham (n.º 8). 
A prestação de declarações para memória futura está, portanto, configurada, na medida do que é possível, como uma antecipação parcial da audiência de julgamento, em que o exercício do contraditório deve ser exercido em toda a plenitude possível.
Como quer que seja, não podemos (nem devemos) escamotear que o princípio do contraditório do arguido constituído só após a tomada de declarações para memória futura ficará, no que respeita a esta prova antecipada, sempre algo comprimido ou limitado, limitação imposta em homenagem à satisfação de outros valores igualmente relevantes e dos quais a sociedade, enquanto um todo, não pode prescindir.
 Como bem diz Cruz Bucho, em "Declarações Para Memória Futura, Elementos de Estudo", 2002, p. 178, disponível em www.trg.pt/ficheiros/estudos/declaracoes _para_memoria_futura.pd): não obstante a produção antecipada de prova ter sido encarada como uma "antecipação parcial da audiência de julgamento", existem importantes desvios às regras que imperam em audiência. Entre esses desvios ou limitações conta-se a ausência de publicidade, a existência de um contraditório necessariamente incompleto ou mitigado, na medida em que só o Ministério Público conhece a totalidade dos atos de inquérito em segredo de justiça já realizados e em que a inquirição das testemunhas é sempre feita pelo juiz, com supressão da cross examination, e as severas restrições ao poder de investigação do juiz de instrução, no confronto com os do juiz de julgamento.
Posto isto, o entendimento jurisprudencial largamente maioritário, e que seguimos, expressa-se no sentido de que, apesar de tal prova ser produzida até à margem da presença do arguido (quando ainda não constituído, claro está), a mesma deve ser valorada em julgamento, em prol do interesse da realização da justiça, nomeadamente quando se acautelou a nomeação de defensor. 
Muitos são os acórdãos que podem ser citados neste sentido, quer do STJ, quer das Relações, como sejam o acórdão do STJ de 22.09.2005 (Proc. n.º 2239/05 -5.ª Secção), assim sumariado: «VI - As declarações para memória futura constituem um incidente processual admissível mesmo no caso de à data da diligência não haver ainda arguido constituído. Doutro modo, poder-se-ia frustrar a utilidade do ato processual, como aconteceria, por exemplo, no caso de a testemunha (que poderia ser até a única que assistiu à prática do crime) sofrer de doença com a previsibilidade dum período de vida curto e o suspeito não ser localizável.»
O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 13.07.05, relatado por António Gama, em cujo sumário consta: “É possível a recolha de declarações para memória futura mesmo que o inquérito não corra contra pessoa determinada”.
O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 24.03.2021, processo 132/20.9PHVNG.C.P1, onde se lê que a tomada de declarações para memória futura (…) não supõe necessariamente (…) a prévia constituição como arguido.
Consideramos, portanto, que o dever de realização da justiça consente alguma compressão do direito de defesa dos arguidos relativamente à tomada de declarações para memória futura, podendo tais arguidos impugnarem essa mesma prova através de quaisquer outras provas, e mesmo solicitar a reinquirição da testemunha, cujos depoimentos, o antecipado e o prestado em sede de audiência, serão ambos valorados de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.

Resumindo, o despacho recorrido atentou contra a titularidade do exercício da ação penal por parte do Ministério Público, nomeadamente contra o poder de direção do inquérito, na vertente do poder de decisão sobre os meios de prova a produzir em sede de inquérito e o timing em que devem ser produzidos, não havendo justificação legal plausível que suporte a possibilidade de ao juiz de instrução ser legítimo um juízo de oportunidade do momento em que tais diligências de prova devem, em sede de inquérito, ser realizadas.
Procede, pois, o recurso.

III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso, na sequência do que revogam o despacho recorrido proferido em 11.10.2022.
Sem custas.
Notifique e D.N.

Lisboa, 12-01-2023
Madalena Augusta Parreiral Caldeira
António Bráulio Alves Martins
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros