Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
167/22.7PASXL-A.L1-9
Relator: AMÉLIA CAROLINA TEIXEIRA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
MENOR
FILHO DA VÍTIMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (Da responsabilidade da relatora)
I - Requerida a prestação de declarações para memória futura de vítimas de violência doméstica, o juiz de instrução apenas poderá indeferir o exercício de tal direito quando, objetiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada da prova.
II - A prestação antecipada de declarações por menor de 12 anos de idade, vítima indireta dos atos de violência doméstica em investigação dirigidos à sua progenitora, evitará não só a perda de memória dos acontecimentos que presenciou e vivenciou (e que tenderá a esquecer) com o rigor necessário à descoberta da verdade material, permitindo a preservação da integridade da prova, como também salvaguardará a vítima, de futura exposição em julgamento, minimizando a sua vitimização secundária.
III - A recolha de declarações para memória futura não exige a prévia constituição como arguido(s).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, as Juízes Desembargadoras da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. O Ministério Público veio interpor recurso do douto despacho do Mmº Juiz de Instrução Criminal do Seixal, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que indeferiu o seu pedido de tomada de declarações para memória futura do menor …...
2. Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
1 - No âmbito do presente inquérito, por despacho de fls. 92 e ss. datado de 13.09.2023, o Min. Público requereu a tomada de declarações para memória futura do menor ……., nascido em …….., actualmente com 11 anos de idade (id. a fls. 90).
No referido despacho é mencionado que no inquérito. resultam indícios suficientes da prática por parte do denunciado AA…. de um crime de violência doméstica, agravado, p. e p. pelo artº 152º n.º 1 al. b) n.º 2 al. a) do Cód. Penal, praticado sobre a ex-companheira BB……, a qual é progenitora do menor ……..
Em tal despacho, uma vez que o menor ……. presencia os factos denunciados, sendo uma das principais testemunhas dos mesmos, o Min. Público entendeu, requerer a tomada de declarações para memória futura ao menor ……. nos termos e para efeitos do disposto no art.º 271° do CPP e art.º 33º n.ºs 1 a 5 da Lei n.º 112/2009. de 16/09, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 129/2015, de 31.09, com a finalidade de ver esclarecidas as seguintes questões:
- O denunciado agride, ameaça ou injuria a sua progenitora? Local, hora e local em que ocorreram estas condutas? Com que frequência ocorrem (todos os dias, esporadicamente)? A progenitora ficou com marcas lesões após estas agressões? Careceu de assistência médica ou hospitalar?
- Se presenciou os factos ocorridos no dia 1.09.2023 (aditamento junto a fls. 87)? Se verificou o empurrão desferido pelo denunciado sobre a progenitora?
2 - Não obstante, o M.mo. JIC indeferiu o requerido, com a seguinte fundamentação:
Sopesando os interesses da vítima, os interesses da investigação, os interesses do suspeito, ainda não constituído arguido. os princípios da mediação em que se alicerça o processo penal, a excepcionalidade do instituto e a situação narrada nos autos, associados ainda à total ausência de elementos que permitam concluir pela absoluta necessidade de assegurar a genuinidade, espontaneidade, autenticidade da prova e da saúde mental da vitima ou dos que com ela coabitem, indefere-se as diligências de tomada de declarações para memória futura requeridas pelo Ministério Público. por se entender que não se mostram reunidas, no actual estádio processual, as circunstâncias de excepcionalidade para a sua realização, não decorrendo dos autos, na opinião do tribunal, nenhuma das circunstâncias factuais que as poderiam determinar.
Termos em que se indefere a requerida audição do menor ……….
Em súmula. o Mm. Juiz de Instrução Criminal. fundou este indeferimento nas seguintes razões:
- Considerou que a diligência de tomada de declarações para memória futura do menor ……, requerida pelo Min. Publico, será de indeferir, pelo facto do titular da Acção Penal, não só não ter justificado a necessidade de tal diligência sem que o suspeito tenha sido constituído arguido, como por não ter definido o objecto do processo;
- Mais entendeu que a tomada de declarações para memória futura do menor não é um acto obrigatório na sequência de requerimento por parte do Ministério Público;
- Por fim, considerou, que no caso concreto não se pudera afirmar que na presente situação estamos perante circunstâncias que objectivamente sejam susceptíveis de agravar a vulnerabilidade da vítima enquanto motivo para recurso a diligência excepcional de produção antecipatória de prova, sujeitando um menor a uma deslocação a juízo perante os dados encimados e ainda com diligências de agremiação de prova em curso.
3 - O presente recurso visa a revogação de tal despacho por várias ordens de razões;
4 - Quando à primeira objecção invocada pelo M.Juiz de Instrução Criminal, a qual se subdivide em três questões, consideramos que no que se refere à "necessidade" da diligência requerida que:
Cabe ao Min. Público, como titular da acção penal em fase de inquérito, motivado por critérios de oportunidade. adequação e legalidade. determinar e requerer todas as diligências probatórias necessárias e legalmente admissíveis que garantam a descoberta da verdade material e sustentem a adopção de medidas de protecção de vítimas especialmente vulneráveis, como seja a aplicação de teleassistência, tomada de declarações para memória futura de vítimas que integrem este conceito, sobre o qual infra nos debruçaremos, inquirição de testemunhas e eventual emissão de mandado de detenção do denunciado para constituição como arguido e sujeição a interrogatório judicial para aplicação de medidas de coacção mais gravosas do que o T1R.
E foi isto que o Min. Público titular do inquérito fez no despacho já supra referido, no qual, pugnando por critérios de celeridade processual que se impõe num inquérito com natureza urgente, de autossuficiência do despacho. oportunidade e de necessidade, determinou todas as diligências probatórias que considerou justificadas e legalmente admissíveis que permitam de forma sustentada. célere e conjugada comprovar as condutas delituosas imputadas ao denunciado, nomeadamente a tomada de declarações para memória futura do menor …….. filho da ofendida BB….que manteve relacionamento análogo ao dos cônjuges com o denunciado.
Especificamente no que se reporta ao menor, no caso vertente. e pese embora não haver notícia de que tenha sido objecto directo de agressões físicas ou verbais no período em que perdurou a relação entre a denunciante ( progenitora) e o denunciado ( padrasto ), actualmente está exposto a contexto de violência, atendendo a que o denunciado continua a procurar a vitima BB…., adoptando condutas violentas e atemorizadoras para com a mesma, as quais serão do conhecimento do menor, uma vez que os seus 11 anos já lhe permitem compreender os factos e o estado emocional fragilizado da progenitora. O menor vivencia múltiplas situações de violência dirigidas a sua mãe e por isso sofre, inevitavelmente, e em decorrência de tais eventos traumáticos, danos emocionais.
Ora, no que tange a menores expostos a situação de violência doméstica, teremos de ter em conta o disposto no artigo 2.º. alínea a) da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, com a redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 57/2021, de 16.08.
E conforme resulta, evidente da nova alínea iii a) do referido art.º 67°-A do CPP, vítima é toda a criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano por acção ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica.
Isto é, com esta nova alínea, o legislador considera corno vítima não só o menor que diretamente foi alvo de condutas integradoras do ilícito de violência doméstica, mas também daquelas menores, que são vítimas indirectas das condutas do agressor, por estarem expostas. ou por terem presenciado a factualidade em investigação.
Por outro lado e de acordo com os mesmos dispositivos legais, considera-se vítima especialmente vulnerável aquela que, designadamente em razão da idade, do estado de saúde, ou do facto de o tipo, grau, e duração da vitimação, sofra lesões graves no equilíbrio psicológico ou nas condições de interacção social.
Assim sendo, o menor …... é também ele vítima na acepção legal, tratando-se igualmente de vítima especialmente vulnerável, e no caso concreto. reputamos que a vítima em causa deverá beneficiar de tal medida de protecção prevista legalmente considerando a sua fragilidade, a gravidade dos factos e o grau de risco, que não pode deixar de ser considerado como elevado, em resultado do conteúdo dos vários aditamentos juntos aos autos e dos dois depoimentos já prestados pela vítima BB…., o que determinou a aplicação do sistema de teleassistência.
Acresce que, o denunciado foi padrasto do menor ……, assumindo aquele, durante oito anos, período temporal em que manteve relação análoga à dos cônjuges com a progenitora BB……., ascendente paternal sobre o mesmo, sendo expectável que esta vítima se sinta intimidada e ainda mais aterrorizada. caso tenha de depor em audiência de discussão e julgamento.
Face ao exposto, entende o Ministério Público que a tomada de declarações para memória futura do menor ……., nesta fase processual, afigura-se como diligência essencial e necessária para a descoberta da verdade material, e consequente recolha de indícios suficientes que "confirmem", ou "infirmem"' as condutas ilícitas em investigação. Só assim se evitará a revitimação do menor e se garantirá a conservação da prova, uma vez que os depoimentos das vítimas (directas ou indirectas) de violência doméstica são, na maioria das vezes, os únicos elementos que sustentam a globalidade da factualidade denunciada, até porque, corno é sabido, o ilícito de violência doméstica ocorre, em regra entre portas, isto é, no interior da habitação partilhada pela ofendida e arguido.
Ao indeferir a tomada de declarações para memória futura. consideramos que o M.mo. Juiz de Instrução Criminal não atendeu ao disposto no art.º 33.º da Lei 112/2009 de 16 de setembro, conjugado com o art.º 24.° da Lei n° 130/2015, de 04/09 e art.º 67º-A n.º 1. alínea b) e n.º 3 do CPP.
5) - No que se refere à ausência de constituição do denunciado, como arguido, acto que o M.m.º Juiz de Instrução Criminal considera como imprescindível para o deferimento da tomada de declarações para memória futura do menor, entendemos que:
Cabe igualmente ao Min. Público, apurar da oportunidade da constituição do denunciado como arguido. para que seja confrontado com a globalidade da factualidade em investigação, protegendo as vítimas de eventual retaliação por parte do mesmo, após sujeição a esta diligência, sendo certo, que no caso dos presentes autos, tem dado entrada vários aditamentos com denúncia de novas condutas ilícitas que lhe são imputadas pela ex-companheira.
Ora o Min. Público. no suprarreferido despacho, em parágrafos prévios ao requerimento de tomada de declarações para memória futura em referência, consignou, ainda que considere que não tenha que justificar a linha investigatória, que o denunciado AA….., não foi ainda constituído corno arguido, porque, até ao momento o OPC responsável pela investigação não o logrou localizar para esta diligência, conforme melhor se retira da informação junta de fls. 67 e ss., pelo que necessário se torna nesta fase processual recolher prova que sustente a nova factualidade participada nos aditamentos juntos aos autos (cfr. fls. 80, 86, 102, 104 e 128), dos quais resulta que o suspeito voltou a procurar a ofendida, no decurso de visitas aos filhos menores de ambos. empurrando a vítima com a finalidade de entrar na sua residência para levar consigo um dos menores.
Aliás, o denunciado chegou mesmo a apoderar-se do sistema de teleassistência entregue à ofendida inviabilizando que accionasse este mecanismo.
O denunciado não é pessoa incerta. está perfeitamente identificado nos autos.
Por todos estes motivos, pondera o Min. Público nesta fase a emissão de mandado de detenção do mesmo, mas para isso. considera essencial a realização de tomada de declarações para memória futura do menor ……., para além de todas as outras diligências que determinou no mencionado despacho,
Necessário se torna recolher prova suficiente que sustente a constituição do denunciado como arguido e a eventual emissão de mandado, nomeadamente inquirindo testemunhas que tenham conhecimento da factualidade em investigação, o que garantirá a recolha de fortes indícios da prática por parte do suspeito do ilícito que lhe é imputado pela ex-companheira, e só assim estarão preenchidos o requisitos que permitem a aplicação de medida de coacção mais gravosa que o TIR, eventualmente a proibição de contactos com BB….., e o filho menor desta, ……, principais testemunhas da globalidade das condutas participadas.
6) - Quanto à invocada ausência de definição do objecto do processo, ou da “causa” ao qual se refere o M. m.º Juiz de Instrução:
O objecto do processo penal, fixar-se-á num primeiro momento, apenas com o despacho de acusação (caso venha a ser proferido e não com o despacho de requerimento de tomada de declarações para memória futura do menor, e nenhum dos preceitos legais aplicáveis, entenda-se o art.° 271° do CPP e o art.° 33º da Lei 112/9009, de 16.09, impõem que o Min. Público “elenque os factos relativamente aos quais pretende que sejam inquiridas testemunhas" e muito menos, que defina o objecto do processo, o que só ocorrerá após a produção de toda a prova reportada como necessária para a descoberta da verdade material, nomeadamente. e como já se referiu, em sede de despacho de encerramento do inquérito.
Mas ainda assim, e sem conceder, no despacho no qual requer a referida diligência de tomada de declarações para memória futura o Min. Público, consignou que pretende que o menor esclareça as seguintes questões:
- O denunciado. agride, ameaça ou injuria a sua progenitora? Local. hora e local em que ocorreram estas condutas? Com que frequência ocorrem (todos os dias, esporadicamente)? A progenitora ficou com marcas lesões após estas agressões? Careceu de assistência médica ou hospitalar?
- Se presenciou os factos ocorridos no dia 1.09.2023 (aditamento junto a fls. 87)? Se verificou o empurrão desferido pelo denunciado sobre a progenitora?
Obviamente questões amplas e ainda em aberto, que se concretizarão no decurso da diligência à medida que se for apurando o grau de conhecimento do menor no que se refere à factualidade era investigação.
7) - No que se refere à obrigatoriedade (ou não) de deferimento da diligência na sequência de requerimento apresentado pelo Min. Público, importará atender ao disposto no artigo 33.º do Lei n.º 112/2009. de 16 de setembro que prevê "um regime formalmente autónomo” para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica.
Não sendo compulsória a tomada de declarações para memoria futura nestes casos. há que ponderar esta diligência numa perspetiva de compatibilização dos interesses de defesa do arguido com os interesses da vítima, nomeadamente os da sua proteção, evitando obviamente a revitimação.
No caso concreto, não podemos deixar de considerar que a vítima em causa, o menor ……., deverá beneficiar de tal medida de proteção prevista legalmente, considerando a sua fragilidade. a gravidade dos factos e o grau de risco, calculado em elevado, o justificam, nomeadamente:
- irá completar 12 anos de idade no próximo dia ……:
- Assistiu a factos susceptíveis de, em abstracto. integrar a prática do indicado crime de violência doméstica que, a vir a provar-se como cometido, reveste um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança à vítima:
- Viveu com a ofendida e o denunciado nos primeiros anos de vida, durante 8 anos, sendo o suspeito, durante este concreto e crucial período da vida do menor, uma das figuras adultas de referência:
Assim, atendendo a especial vulnerabilidade revelada por esta vítima de violência doméstica. e como tem sido entendimento da jurisprudência. entende o Min. Público que a diligência de tomada de declarações para memória futura do menor …….. deverá, por tal constituir a regra, ser deferida. por manifesta necessidade.
8) - Quanto ao último argumento expendido pelo M.m.º Juiz de Instrução Criminal, entendemos, que in casu. estamos perante circunstâncias que objectivamente são susceptíveis de agravar a vulnerabilidade da vítima ……. com os seguintes fundamentos:
- o visado …… é menor de 11 anos de idade, filho da ofendida ex-companheira do denunciado:
- é irmão dos menores ……. (.. anos de idade) e ………(… anos de idade), filhos comuns dos dois intervenientes processuais, os quais atenta a tenra idade, não têm ainda capacidade física e mental para prestar depoimento, mas também eles vitimas especialmente vulneráveis expostos às condutas denunciadas nos autos:
- O inquérito tem por objecto a eventual prática, por parte do denunciado, contra a mãe da criança/menor. de um crime de violência doméstica, agravado p. e p. pelo artigo 152.º n." 1 als. b) e c) e n.º 2 al. a) do Código Penal:
- O menor terá assistido e continua a assistir a factos susceptíveis de, em abstracto. integrarem a prática do indicado crime de violência doméstica:
- O menor viveu com a ofendida e o denunciado nos primeiros anos de vida:
- Teve o denunciado por figura adulta de referência em tal hiato temporal, idade crucial ao seu desenvolvimento:
- Terá de depor em audiência de discussão e julgamento caso venha a confirmar ter conhecimento da factualidade em investigação:
- e só se apurará se tem conhecimento da factualidade em investigação após inquirição (tomada de declarações) ainda em fase de inquérito,
Cremos que, em caso de menores expostos a situações de violência doméstica. e por isso suas vítimas, ainda que indirectas. tem aplicação o regime previsto na Lei n.° 112/2009. de 16 de Setembro e na Lei 130/2015, de 4 de Setembro, bem como o disposto nos artigos 67.º-.A e 271.º do Código de Processo Penal.
Ora, a pessoa que sofre um dano emocional ou moral. ou perda material, directamente causada por acção ou omissão no âmbito de crime de violência doméstica. não é apenas aquela que é alvo imediato do comportamento agressivo, antes sendo igualmente a pessoa que a ela assiste e que vivencia a violência pois a experiência de forma directa.
Uma criança/menor/adolescente que presencia sua mãe a ser alvo imediato de comportamentos de terceiro com quem coabitam (ou coabitaram), consistentes em injúrias. ameaças e ofensas à integridade física, sofre de acordo com a evidência científica, um atentado à integridade psíquica (e muitas vezes até física, considerando que o dano psíquico pode conduzir a danos irreversíveis na saúde física). um dano emocional e moral. todos eles directamente causados pela acção do agressor;
9)- Por fim. e no que se refere ao incomodo referido pelo M. mº Juiz de Instrução que representará para o menor a deslocação a este Tribunal para que seja sujeito a tomada de declarações para memória, sempre teremos de referir que no caso de se manter o indeferimento de tal diligência, a Magistrada do Ministério Público titular, terá de convocar o visado para se deslocar aos Serviços desta SEIVD- SEIXAL, para que seja sujeito a inquirição presidia, contudo, as declarações prestadas não poderão ser aproveitadas em sede de julgamento, sem que o menor seja convocado para aí estar presente, local onde terá de reproduzir e voltar a vivenciar toda a factualidade em investigação, com a agravante de que terá de partilhar o mesmo espaço físico que o agressor da sua progenitora, mais que não seja, à entrada e saída das instalações do Tribunal, circunstancia que implicará a vitimização secundaria / revitimização da testemunha.
Aliás, a Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, e, por conseguinte, em vigor no ordenamento jurídico português. estabelece no seu artigo 19.º. que “Os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas. administrativas. sociais e educativas adequadas à protecção da Criança contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada.”
Aqui se inclui a violência institucional, traduzida amiúde na múltipla inquirição de menores/crianças em processo crime, fazendo-os reviver a experiência traumática, o que nos reconduz a um - chamemos-lhe assim! - quase poder dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/menor.
Sem prescindir.
10 - Não se perfilhando o entendimento acima vertido, sempre se deverá concluir que o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 26.º e 28.º da Lei 93/99, de 14 de Julho por não considerar o menor vítima especialmente vulnerável:
De facto, em face do disposto no artigo 26.º da Lei n.° 93/.99. que institui que “A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente. da sua diminuía ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência", o menor …….., têm de considerar-se pessoa especialmente vulnerável e, por conseguinte. beneficiar da medida de protecção de tomada de declarações para memória futura;
Salvo o devido respeito, o Tribunal “a quo“ efectuou uma incorreta valoração da situação de facto, da especial vulnerabilidade do menor e da necessidade em obter o elemento de prova (declarações para memória futura) com a maior celeridade possível.
No caso concreto, a especial vulnerabilidade do menor resulta,  nomeadamente, do facto de a pessoa (neste caso. uma criança/menor) se ver constrangida a depor contra membro da família ou com quem habitou [sendo o denunciado. durante esse período de tempo. uma figura adulta de referência]; de ter o depoimento de ser prestado em audiência com arguido aí presente: da circunstância dos factos em investigação ocorrerem perante menor de tenra idade (11 anos), o que aumenta o grau de danosidade experienciada por este e a sua, consequente. vulnerabilidade:
Termos em que o despacho recorrido violou o disposto no artigo 26º e 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, ao não considerar o menor …….. como testemunha especialmente vulnerável;
A interpretação de que uma criança menor com 11 anos de idade, filho da ex-companheira do denunciado, ao qual e imputado a prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º. n ºs 1 e 2.º do Código Penal, sendo aquele figura adulta de referência da criança/menor, não é testemunha especialmente vulnerável nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 26.º da lei n.º 93/95. de 14 de Julho, é inconstitucional por violar o disposto nos artigos 8.º e 69º. n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que aqui expressamente se argui,
Defende-se, pois, a seguinte interpretação do artigo 26.º da Lei nº 93/95. de 14 de Julho, conforme à Constituição da República Portuguesa:
As crianças/menores que assistem a actos subsumíveis ao crime de violência doméstica. p. e p. pelo artigo 152.° do Código Penal. ainda que não sejam objecto imediato da actuação do autor dos factos, e nessa sequência ofendidas da prática de crime, que contem com menor se 18 anos de idade, que nos primeiros anos de vida tenham vivido com denunciado da prática do crime de violência doméstica. sendo ofendida do crime sua mãe, tendo sido o denunciado figura adulta de referência da criança/menor durante esse período, é testemunha especialmente vulnerável nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 26.° da Lei n.º 93/95, de 14 de Julho:
Destarte, requer-se a V. Exas. se dignem.
11 — Revogar o despacho recorrido por ter aplicado norma distinta daquela a que é subsumível o caso concreto, determinando-se que sejam tomadas declarações para memória futura do menor ………, nascido cm ………, actualmente com 11 anos de idade (id. a f1s. 90),  por esta ser vítima especialmente vulnerável nos termos do disposto artigo 2.º. alínea b) da Lei n,º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-¬A. n ° 1. alíneas a) i e iii e b) e n.° 3 do Código de Processo Penal:
12 - Sendo esta, aliás. a única interpretação dos artigos artigo 2.º. alínea b) da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A. n.º 1. alíneas a i) e b). e n.° 3 do Código de Processo Penal, conforme aos ditames dos artigos 8.º e 69º, n.º 1. da Constituição da República Portuguesa:
Caso assim se não entenda.
13 - Revogar o despacho recorrido por não considerar a testemunha menor …….., nascido em ……..,  actualmente com 11 anos de idade. especialmente vulnerável, nos termos e para os efeitos do artigo 26.º da Lei n.º 93/95. de 14 de Julho, determinando-se a sua substituição por outro que determine a tomada de declarações para memória futura da mesma, visto que é testemunha especialmente vulnerável na acepção de tal diploma legal - tenra idade, viveu com a ofendida e o agressor nos primeiros anos de vida, período crucial ao seu desenvolvimento, sendo o agressor ex-companheiro da progenitora, e por isso figura adulta de referência. e terá de prestar depoimento em audiência, na qual estará presente o arguido.
14 - Por ser esta interpretação do artigo 26. ° da Lei. n.º 93/99, de 14 de Julho, a única conforme aos ditames dos artigos 8. ° e 69.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
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3. Junto desta instância, a Digna Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu Visto.
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Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Questões a decidir
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cf. por todos, o Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, Iª Série-A, de 28/12/95).
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A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se devem ser admitidas as declarações para memória futura indeferidas pelo juiz a quo no despacho recorrido.
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II.2. Decisão recorrida
É o seguinte o teor do despacho recorrido:
Pedido de tomada de declarações para memória futura
Veio a Exª Sr Procuradora, titular do inquérito requerer a tomada de declarações para memória futura de ……, nascido em ……., contando, por isso, quase com 12 anos de idade.
Alega para tanto que:
Se investigam nestes autos factos suscetíveis de consubstanciar, em abstrato, a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152°, n°. 1, alínea b) e n.°2, alínea a), do Código Penal por parte do denunciado AA….. contra BB….., mãe do menor.
Reporta-se ao regime jurídico decorrente da Lei 112/2009, de 16/09, ao art.° 67-A do CPP, mormente quanto a extensão do conceito legal de vitima a crianças que hajam sofrido danos causados, entre outros, por maus tratos decorrentes de exposição a contextos de violência doméstica, à Convenção de Istambul e à vulnerabilidade, ope legis, das pessoas em causa.
Sobre a realidade participada aos autos, vulgo factos refere que estes pela sua gravidade, o grau elevado de risco, o facto do denunciado ter mantido uma relação análoga às dos conjugues com a vítima, assumindo uma função parental para com este (apenas filho daquela), constituem focos geradores de vitimização do menor, sendo expetável que este se venha a sentir intimidado e aterrorizado caso tenha de depor em julgamento.
Ademais, tratar-se-á de pessoa que presenciou os factos, mormente os de dia 01.09.2023.
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Vejamos primeiramente o que se respiga dos autos.
Os autos iniciaram-se com o auto de denuncia de fls. 8, datado de 15 de junho de 2022.
Ali se lavrou, além do mais, que pelas 03.40hrs o ex-companheiro da queixosa BB…..compareceu em sua casa, ali tendo entrado sem o seu consentimento, pedindo para ver os filhos, estando acordada acedeu ao seu repto, uma vez ali dentro este, depois de ver os filhos, começou a chorar lamentando o facto de a queixosa ter dado entrada em tribunal de processo de regulação de poder paternal.
Como este estava embriagado disse-lhe para vir no dia seguinte, no entanto este tentou entrar na casa do seu pai, pretendendo agredi-lo por, supostamente, andar a difamá-lo nos cafés, não logrou entrar, mas danificou a porta da casa do pai, verbalizando ainda que se ela desaparecesse com os filhos iria matar o seu pai.
A fls. 17 surge aditamento aquele auto, datado do mesmo dia, mas pelas 11.50hrs, ali se referindo que o OPC retornou ao local porque o suspeito se encontraria de novo ali, tendo então a vítima verbalizado perante a entidade policial que estava com os menores e o suspeito chegou junto à porta de casa do seu pai vociferando sobre o que ele andava a dizer acerca dele a terceiras pessoas.
Mais disse que o suspeito lhe telefona constantemente e que vai apertar o pescoço ao pai e o vai matar.
Desta feita, adita que durante oito anos de união de facto sofreu violência, física e Psicológica, sendo apodada de puta, não prestar nada como pessoa e como mulher, tendo sido uma vez agredida com um apertão no pescoço, um murro na face e uma chapada na mão.
Motivos pelos quais terminou a relação há cerca de 5 meses.
A fls. 21 em 17.06.2023, a vitima referindo-se à vivencia com o suspeito e sobre os factos referiu, além do mais, que:
Viveram em união de facto cerca de oito anos, mas era "uma relação, muito instável, ele ia e vinha, viver, viver quase não vivemos juntos''.
Terminaram a relação há cinco meses, não depende do denunciado e recebe RSI, acha que o mesmo não trabalha, mas ele estava na apanha da ameijoa.
Que o denunciado fuma ganza, bebe de vez em quando com os amigos e que, por vexes, chega a casa bêbado.
Sobre os factos durante o período de vivencia, como casal, ou pelo menos intermitentemente como tal, atento o acima por esta referido, disse não pretender prestar declarações, frisando.
Sobre a separação que "(...) ele deu-me uma palmada na mão, eu também respondi-lhe da mesma forma, dei-lhe uma chapada na cara. Foi por isso que nos separamos e foi na casa da morada onde eu vivo".
Mais disse que "(...) ele chegava a casa tarde e praticamente não estava com os filhos e isso a mim custa-me. Sou sozinha com duas crianças pequenas. Eu da palmada só fiquei com a mão vermelha, ele é que ficou com a cara inchada.”
Sobre as injurias disse que "(...) é sempre pelo telefone, nunca presencialmente, quando discutimos porque quer ver os filhos, mas não a hora que ele quer e tem de me ajudar a sustentá-los. Porque normalmente ele quer ver os filhos à noite, por volta das 22.00hrs, 23.00hrs e desta última vez foi pelas 03h40m, então eu oponho-me e discutimos, ele chama-me parva, estupida, eu depois respondo-lhe à letra e ele chamam-me de vaca, nunca devias ter nascido, nada mais."
"(...) sou eu que sustento os meus filhos, ele dá-me vinte euros às vezes por semana, às vezes dá-me dez euros, nunca me dá quantia certa (…)”
"Já pedi a guarda dos meninos e dia 28 junho 2022 vou apresentar-me com o meu Advogado no tribunal do Seixal."
Relativamente aos factos de dia 15 de junho de 2022 disse que a discussão nem foi diretamente consigo, mas com o seu pai que mora por baixo, tendo o suspeito entrado porque a porta estava aberta e, embora fossem cerca das três horas da madrugada e estar acordada, não deu por nada.
Mais disse que ele queria ver os filhos e só lhes queria dar um beijo, chamou-o à atenção que não era hora, deixou-o dar um beijo aos filhos e vê-los, mas disse que tinha de se ir embora, ele verbalizou que queria a sua família de volta, sentou-se e começou a chorar, altura em que ele refere que o pai da queixosa andou a falar mal dele e desceu as escadas indo direto à porta da casa do pai, o pai negou andar a falar mal dele, mas ele continuou a culpabilizar o seu pai, insistiu para que ele se fosse embora, mas o mesmo retornou para-junto da casa do pai partindo-lhe o vidro da porta com murros e pontapés. "(...) ele estava todo cortado".... andou por ali até ela chamar a polícia, mas depois fugiu",
"(.,,) Não foi a mim que ele ameaçou, eu temi pelo meu pai, não foi por mim por isso chamei a polícia".
Esclareceu ainda que o suspeito não é possuidor de arma de fogo, que os menores por vezes presenciavam as discussões entre ambos.
Por fim disse que é a primeira queixa que apresenta, quer que ele se acalme e que mude, tornou-se uma pessoa agressiva e que não era assim, que só faz estas coisas quando bebe e fuma, de resto que é um bom pai.
Perante o exposto a primeira ficha de risco a fls. 38, datada de 15.06.2022, dá conta de situação de risco elevado.
Segundo o aditamento de fls. 57 em 22.07.2022 foi entregue à vítima aparelho móvel de teleassistência, comummente conhecido como botão de pânico.
A fls. 65 é ouvido o pai da vítima. pessoa que ao que tudo indica, sempre foi vizinho da filha, com estatuto de vítima nestes autos, disse que:
"Nunca presenciou o denunciado a agredir sua filha. Frisando, nunca na vida.
Nunca presenciou marca de agressão.
Nunca presenciou o denunciado injuriar a filha.
Reside por baixo dos dois envolvidos e nunca se apercebeu nem ouviu gritaria da sua filha em casa.
O denunciado apenas partiu o vidro da porta, que lhe chamou à razão tendo o mesmo depois pedido desculpas.
Nada sabe sobre a desavença do casal".
A fls.70. com data de 28.11.2022, consta acta da conferencia de pais, à qual faltou o denunciado (que ainda não se logrou encontrar), onde a vítima verbalizou, além do mais, perante o Juiz titular do processo que "(...) o progenitor tem visitado semanalmente os filhos e tem contribuído com € 100,00 semanais para despesas.
Ele não tem telefone e vive com a mãe".
Nessa altura foi estabelecido um regime provisório ficando os menores a cargo da mãe, uma vez que o progenitor os visita na casa desta.
Mais se fixou a prestação alimentícia em €200,00 e que o pai combinaria com a mãe os contactos com os menores.
A fls. 75 surge acionamento de alarme, no dia 13.082023, pelas 03.01 da manhã, por duas vezes, ali se mencionado que a vítima referiu tê-lo feito porque o denunciado ali ter comparecido e estar a dar pontapés à porta, o mesmo não foi avistado e pelas 04hrs29m, contactada a vitima, pela mesma foi dito que estava a aguardar transporte para ir para casa de familiares porque o denunciado continua a regressar, indo levar os filhos para um lugar seguro.
A fls. 78, pelas l4hrs38m mesmo dia, novo acionamento do alarme; ali se referindo que o "agressor acabou de lhe tirar o filho à porta da casa da sua irmã, já fez ameaças e esteve a insultá-la, tal como fez ontem".
Mais ali se referiu que a mesma se encontrava bem em segurança em casa, mas que o denunciado lhe tirou o dispositivo e o atirou para dentro de uma escola.
Ainda ali se refere que os agentes da policia foram muito desagradáveis, dizendo-lhe que que esta situação não era de V.D e que não podia estar sempre a tocar no botão.
Ainda sobre este episódio de 13.08.2023, refere-se no aditamento n°.8 a fls. 104  que, no local contactaram a vitima que disse "(...) ter acionado o aparelho de teleassistência por ter tido uma divergência com o suspeito referente à guarda dos menores, mas que a situação já eslava resolvida.
Que aquando do acionamento do boião não existia qulquer situação referente a V.D (...)”.
Mais ali se refere que a vitima informou que o suspeito ficou frustrado com essa atitude e retirou-lhe o botão de alarme, arremessando-o para parte incerta (aparelho que anteriormente é referido ter sido atirado para dentro da escola onde foi recolhido, embora danificado).
A fls. 83 é solicitada com data de 24.08.2023 audição da vitima, desconhecendo-se qual a resposta a tal oficio.
*
No aditamento n.°11 datado de 01.09.2023, a fls, 86 é esclarecido que a vitima verbalizou ao OPC que pelas 15hrs30m "o suspeito se dirigiu à sua residência a fim de visitar o filho de ambos, esta disse-lhe que de momento não o podia fazer e o denunciado aceitou e seguiu o seu destino".
Pelas 16hrs30m ele regressou de novo e de forma agressiva forçou a entrada no prédio, danificando a fechadura da porta do r/c, não logrou entrar em casa, porque a Sra ………, apesar de empurrada, ajudou a fechar a porta, situação presenciada pelo seu filho …….
Acionou o botão de pânico e ele fugiu para parte incerta.
Ulteriormente é referido que pelas 18h10m o suspeito estaria a interagir com a vitima no jardim de infância, uma vez chegado o OPC ao local, o suspeito que estava com a filha ao colo, entregou-a à mãe e colocou-se em fuga num velocípede.
Pedidos esclarecimentos à vitima, por esta foi referido que o denunciado a abordou no local onde esta ia buscar a filha à escola e pegou nela com o intuito de lhe dar um beijo, não a querendo voltar a entregar à mãe, motivos pelos quais carregou novamente no botão de pânico,
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A fls. 88 com data de 07.09.2023 vem a vitima juntar manuscrito, referindo que no dia 01.09.2023 foi vitima de V.D, realidade a que todos assistiram e que quer que o suspeito não se aproxime mais dela, uma vez chamou a policia porque de estava bêbado e super agressivo e o filho estava a vomitar, por isso não "quero mais conviver com ele, sem lhe tirar os direitos dos filhos, simplesmente não o quero perto de mim, ele que veja os filhos com uma assistente social ou com a policia, ou com um psicólogo".
Conhecendo
Revisitados os autos vejamos agora a sua vertente jurídica e que abarcará, em nosso entendimento, a apreciação da excecionalidade do instituto e a excecionalidade da sua realização sem que exista arguido constituído nos autos.
Quanto á excecionalidade do instituto.
Dispõe sobre esta matéria o art.° 271° n.°s 1 e 2 do Cóct. Proc. Penal que:
"1 — Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítimas de crimes sexuais, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 — No caso de processo-crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vitima não seja ainda maior.
3 — Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento, para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor".
A este propósito refere-se igualmente, com interesse pára o requerido, no art.° 67­A, alínea b) do mesmo diploma legal, que se considera vitima especialmente vulnerável a vítima "C..) cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da siva idade, do seu estado de saúde 'ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vititnização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilibrio psicológico ou nas condições da sua integração social".
Mais estatui-se no seu n.°3 que as "As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideracnis vitimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do nº 1, vindo assim a atribuir a classificação de vítimas especialmente vulneráveis às vítimas de criminalidade violenta, criminalidade na qual se insere o ilícito em causa nos termos do disposto no art. 1°, j), do Código Processo Penal.
Relativamente às vitimas de violência doméstica, a par da lei 130/2015, de 04/09 (que consagrou o estatuto da vítima) e da lei 93/99, de 14 de Julho, na redação da lei 42/2010, de 03.09 (que consagrou o regime jurídico de protecção das testemunhas) e a própria lei adjectiva, que no art.° 352 do C.P.P consagrou a possibilidade de afastamento do arguido da sala de audiências aquando da prestação de depoimento da testemunha, o diploma relativo a esta temática mostra-se previsto na lei n° 112/2009, de 16/09, que estabeleceu um Regime Jurídico especifico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência das suas Vitimas, prescrevendo no seu art.° 16°, n° 2, que:
"As autoridades apenas devem inquirir a vitima na medida do necessário para os fins do processo penal."
Estatuindo-se ainda no art.° 33°, n° I, sob a epígrafe "Declarações para memória futura", que:
"O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento."
Prevê-se igualmente no art° 32 deste diploma que as vítimas podem ser inquiridas com recurso à videoconferência ou teleconferência sempre que tal se revele necessário para garantir a prestação de declarações ou de depoimento sem constrangimentos.
Segundo a exposição de motivos da Proposta de Lei n.° 248/X/4ª, que esteve na base da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro: "Sendo a prevenção da vitimização secundária um aspecto axial das políticas hodiernas de protecção da vitima, estabelece-se, sempre que tal se justifique, a possibilidade de inquirição da vítima no decurso do inquérito a fim de que o depoimento seja tomado em conta no julgamento, ou ainda, no caso da vítima se encontrar impossibilitada de comparecer em audiéncia, a possibilidade de o tribunal ordenar, oficiosamente, ou a requerimento, que lhe sejam tomadas declarações no lugar em que se encontra, em dia e hora que lhe comunicará"(vide DR II série A, n.° 58/X/4, de 22-1:2009, págs. 30-53, sublinhado nosso).
O legislador veio, assim, estabelecer um regime de antecipação de prova diferenciado do previsto no art.° 271° do C.P.P, desde logo porque confere legitimidade para a vitima requerer a sua tomada de declarações, trata-se, assim, de um regime mais favorável e que visou reforçar a tutela judicial da vítima, como se refere no art.° 3° al a) do diploma em causa, visa-se uma protecção célere e eficaz da vítima de molde a prevenir a sua vitimização secundária e a sujeição a pressões desnecessárias.
No tipo criminal de violência doméstica, atendendo ao carácter excepcional do instituto e porque não decorre directamente da lei a obrigatoriedade da diligência, como acontece com as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, em que a tomada de declarações para memória futura é obrigatória, como resulta do n° 2, do artigo 271°, do CPP e conforme também claramente se depreende da exposição de motivos da Proposta de Lei n.° 248/X/4ª, que esteve na base da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, onde se esclarece que a mesma deverá ter lugar sempre que tal se justifique, a questão que se coloca é a de saber qual o critério para decidir pela tomada de declarações para memória futura da vítima de maus tratos ou violência doméstica.
Relativamente ao critério que deve nortear o juiz na admissão ou rejeição da prova antecipada em matéria de violência doméstica, segundo alguma jurisprudência deverá tratar-se quase de uma obrigatoriedade, como que uma imposição ao juiz, na realidade segundo depreendemos do douto aresto da RL de 05.03.2020, relatado pelo Exm° Relator, Sr Desembargador Almeida Cabral no âmbito do processo 779/19.6PARGR-AL1-9 consultável in www .dgsi.pt decidiu-se que:
"Deve ser indubitavelmente permitido à vitima (...) por crime de violência doméstica, num quadro de factos indicados de uma gravidade e violência acentuadíssima contra aquele perpetrados pelo arguido, que continuam até a correr no decurso do processo, consubstanciados até em ameaças de morte e constante importunação da vitima, a prestação do seu depoimento mediante "declarações para memória futura", para, além do mais proteger a vitima do impacto que os factos alegadamente praticados pelo arguido/agressor tiveram ou têm ainda na sua vida, e também para que o depoimento possa, se necessário, ser tomado no futuro em conta no julgamento".
Mais se exarou no corpo daquele douto aresto a propósito da aplicação do art. 33° da Lei 112/2009 "(...) estando os direitos e interesses das vítimas de violência doméstica tutelados, agora, pela Lei n.º 112/2009, neste "poder" que é conferido ao juiz está implícito o "dever" de, à luz das elementares regras do bom senso e dos respectivos juízos de oportunidade, tudo fazer no sentido de precaver a recolha e a conservação de uma prova que é fundamental, tão fundamental que, muitas vezes, até acaba por ser a única.
Diz o Mm.° Juiz "a quo" que, na perspectiva do recorrente Ministério Público", a tomada de declarações para memória futura em situações de alegada violência doméstica acaba por se tornar "automática".
Dir-se-á, porém, que, não sendo rigorosamente assim, é "muito assim",
Efectivamente, casos há de crimes de violência doméstica em que, nada, manifestamente, justifica este tipo de preocupação na recolha antecipada de prova. Por isso se compreende o poder de decisão que o já citado art.° 33.° confere ao juiz, analisando o caso concreto e aferindo do interesse e oportunidade na realização da diligência (sublinhado nosso),
Porém, na nossa perspectiva, o art.° 33.° em causa haverá de ser interpretado no sentido de o juiz, como regra, dever deferir a pretensão dos requerentes, só assim não decidindo quando, objectiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada de prova, contrariamente ao aqui entendido pelo Mm,' Juiz "a quo", cuja regra já parece ser a do indeferimento, excepto quando haja "razões especiais", no caso concreto, para deferir a realização da mesma diligência (...)"
"Assim, como se disse, atenta a superior relevância dos interesses em causa, entende-se que a regra haverá de ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, até no exercício do "dever de protecção" à mesma vítima consagrado no art.° 20.°, n.° 2 da Lei n.° 112/2009, só em casos excepcionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se devendo indeferir o mesmo requerimento.
Deste modo, se a vítima ou o Ministério Público requerem a tomada de declarações para memória futura é porque nisso veem interesse, sendo este, também, necessária e consequentemente, o interesse da comunidade, os quais, afinal, todos passam pela descoberta da verdade e pela efectiva realização da justiça." (vide ainda Ac da RL de 30.04,2014 em que foi Relatora a Exm" Srª Desembargadora Drª Maria do Carmo Ferreira no âmbito do processo n.° 14/20.4PBRGR-A.L1)
Já no Ac. da Rel. De Lisboa de 11-1-2012, proferipo no âmbito do proc. n.° 689/11.5PBPDL, 3ª Secção, em que foi Relator o Exm° Desernbargador Carlos Almeida, disponível em www.pgdlisboaut., concluiu-se, além do mais, que.
"XI. Admitindo o artigo 33.° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar na lei um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar.
XII. A nosso ver, esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.
XII. Seja como for, a decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou de propiciar que a vítima exerça o direito que o Código lhe atribui [artigo 134.°, n.°1, alínea a)] de se recusar a depor. Ela tem esse direito em qualquer momento em que deva depor."
Adite-se ao acabado de expender o facto de no n.° 1 do artigo 24.° da já mencionada Lei 130/2015, de 04/09 (que consagrou o estatuto da Vitima), também se Jstatuir a possibilidade de audição antecipada da vitima especialmente vulnerável no decurso do inquérito a pedido do Ministério Público ou da vitima, a fim de que o seu depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.° do Código de Processo Penal.
Em ambas os regimes estaremos perante vítimas especialmente vulneráveis, a única diferença que descortinamos entre estes é que no caso do crime de violência doméstica o legislador presume essa especial vulnerabilidade e no caso do regime geral do estatuto da vitima esta tem de depender dessa alegação.
Seja como for ambos os regimes comungam de uma mesma realidade, e que reside precisamente na especial vulnerabilidade da vitima, já quanto à consequência processual da diligência a sua repetição assume contornos distintos.
Na realidade se atentarmos no teor do art° 33 da Lei 112/2009, de 16/09, o que o n°1 deste preceito legal estatui é que tal depoimento pode, "se necessário", (realidade consonante com o n.°7 deste mesmo preceito legal), ser tomado em conta no julgamento, não impedindo a sua nova audição em julgamento, e na Lei 130/2015 de 04/09 o que se estatui é que tal diligencia impede a repetição das declarações em audiência, salvo -se "for indispensável" à descoberta da verdade.
Com efeito, não há a menor duvida que se tratam de regimes de prova de natureza excepcional e que apresentam como escopo comum, o facto de estarmos perante vitimas especialmente vulneráveis, sendo certo que no caso das vitimas de violência doméstica essa especial vulnerabilidade presume-se ope legis, realidade que embora lhes confira um regime especifico e mais vantajoso do que o previsto nos demais regimes, não lhe suprime o caracter de excepionalidade.
Aliás, vigorando no nosso ordenamento jurídico o principio da mediação, trata o excepcional como normal constituiria de per si um claro desvio àquele principio e à regra de excepcionalidade do regime em causa.
Como refere o Exrn° Conselheiro Cruz. Bucho no estudo intitulado "Declarações para memória futura" de 02.04.2012, consultável em
www.trg.pt/ficheiros/cstudos/declaraeoes para_memoria_futura.pdf, estamos perante uma diligencia de caracter excepcional que consagra uma excepção ao principio da mediação e que, nessa medida, não permite o exercício de um contraditório com igual plenitude ao que decorre da audiência de discussão e julgamento, constituindo, por isso, uma diligencia delimitativa dos direitos de defesa do arguido[1].
Não desconhecemos igualmente o art.° 56°, n.° 2 da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (aprovada Resolução da Assembleia da República n.° 4/2021, de 21 de janeiro) onde se veio consagrar que uma criança vítima e uma criança testemunha de violência contra as mulheres e estas, sendo vitimas de violênéia doméstica, deverão, se caso disso, beneficiar de medidas de priotecção especiais, trata-se, contudo, de uma exceção à regra.
Os inquéritos não se podem transmutar, por regra, em processos antecipatórios da prova cuja produção deve decorrer, por regra, em audiência de discussão e julgamento, sede privilegiada para o exercício do contraditório em toda a sua plenitude.
Por último sempre se dirá que, mesmo sufragando entendimento que a tomada de declarações para memória futura constitui uma regra e o indeferimento a excepção, afirmando-se mesmo. como se refere no citado douto aresto do Exm° Sr ° Desembargador Almeida Cabral, que tal diligencia acaba por se tornar automática, conforme decorre do trecho "Dir-se-á, porém, que, não sendo rigorosamente assim, é "muito assim", não se deixa de avaliar o caso concreto por forma a aquilatar da necessidade e adequação da .diligencia, ou seja reverte-se sempre para o caso concreto por forma a justificar essa excepcionalidade.
A remessa para a análise do caso concreto, na falta de norma expressa de carater injuntivo constitui, quanto a nós, um corolário lógico do pedido antecipatório de produção de prova, sob pena de o instituto passar a ser "uma regra cega" e o Juiz de Instrução se reconduzir a uma "mera figura decorativa", tipo juiz "carimbeiro”, que não pode avaliar o caso concreto e os interesses em confronto, vendo-se compungido a chancelar todas estas situações de forma acrítica[2].
Quanto à excecionalidade da realização da diligencia sem arguido constituido.
Como acima se referiu a excecionalidade do instituto resulta logo do facto do próprio legislador estipular, como regra, o principio da mediação e da concentração das diligencias de prova em audiência de discussão e julgamento, onde impera o principio do 8ontraditório em toda a sua plenitude, não deixando igualmente de prever a faculdade da testemunha depor em audiência de julgamento sem a presença do arguido e até dentro do espaço físico do tribunal, mas em local distinto daquele em que se encontra o arguido, mormente em sala apropriada por videoconferência.
Ora, quanto à realização de diligencias antecipatórias da prova, embora esteja acometida ao Ministério Público, enquanto titular do inquérito, a competência para determinar a constituição do suspeito como arguido (vide o disposto no art.° 58°, n.°1 al a) do CPP), a realização da diligencia pressupõe que exista fundada suspeita da prática de crime pela pessoa visada, sendo certo que a ausência de constituição do suspeito como arguido não obsta à realização da diligencia, deve, contudo, o tribunal, para assegurar o principio do contraditório, nomear um defensor para assegurar a defesa do eventual autor dos factos ainda que seja desconhecido, conforme se decidiu no Ac da RP, de 23.11.2016, consultável in www.dgsi.pt  "Antes da constituição de arguido, podem ser tomadas declarações para memória futura, nos casos em que o mesmo ainda não esta identificado ou em casas excepcionais, mas sendo sempre obrigatória a nomeação de defensor e a sua presença no acto podendo ali exercer os direitos que a lei reconhece ao arguido".(vide ainda Ac do TRP de 23.1 1.2016 consultável no mesmo site e Ac RP in CJ XXV1,2, 228 de 18.04.2001)
Ainda a este propósito decidiu-se igualmente no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Novembro de 2016, proferido no processo n.° 382/15.0T9MTS.P1, in www.dgsi.pt, a que "Aderimos (..) a esta solução interpretativa a admitir a possibilidade de tornada de declarações para memória futura sem que tenha havido constituição de arguido, nas situações em que o inquérito corra contra pessoa não determinada - em que o suspeito, portanto, não está ainda identilicado - ou em que se conheça a identidade do suspeito mas não tenha sido possível constitui-lo arguido, por desconhecimento ou dificuldade de localização para notificação em tempo útil.
Para além disso, ainda podemos conceber a realização daquela diligência antes da constituição de arguido, nas situações em que o inquérito já detrminou a sua identidade e o mesmo é localizável, mas em que o Ministério Público, por ratões de discricionariedade táctica na investigação, opta por retardar o interrogatório e constituição de arguido. Estas serão, porém, situações muito excepcionais, a ver casuisticamente, nas que se possa aceitar como proporcional e razoável sacrificar o respeito pelo principio do contraditório pleno aos interesses da realização da justiça e desdoberta da verdade materiaI".
Tratam-se de situações de natureza excecional que não se podem transmutar em regra, como refere igualmente o autor no estudo supra citado, "(...) correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.
Se é certo que, o juízo sobre a decisão de constituição de arguido compete à autoridade que dirige o inquérito, verificadas as circunstâncias previstas no n.° 1 do artigo 272.° o interrogatório é obrigatório. A falta de interrogatório como arguido, no inquérito de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.°, n.°2, alínea d) do C.P.P.
Mas, conforme é entendimento dominante, a lei não consagra o dever de realização imediata do interrogatório de pessoa determinada contra quem corre inquérito.
Por outras palavras, "a injunção legal de interrogatório de pessoa determinada contra quem corre inquérito não compreende uma directriz sobre o tempo do interrogatório do suspeito, que deve ser decidido no quadro da estratégia definida em concreto para o inquérito como actividade."
Mas, sem grave quebra do princípio da lealdade, nem o Ministério Público, nem o órgão de polícia criminal, podem cair na tentação de omitir a constituição de arguido, retardando-a com o único propósito ou objectivo de, por este meio ardiloso, o arguido e o seu defensor (que aquele tem o direito de escolher - art.º 32.°, n. °3 da Constituição da República) serem afastados da produção antecipada de prova („)".[3]
Por fim, não poderemos deixar de citar a este propósito o Ae. do TRL, de 11.04.2023, consultável in www.dgsi.pl onde se decidiu que:
"A possibilidade de tomada de declarações para memória futura sem que haja arguido constituído, é excepção às correspondentes regras, designadamente à que prevê o contraditório pleno.
Como assim, o requerimento da respectiva diligência terá de ser, sob pena de indeferimento, fundamentado caso a caso e com factos concretos que justifiquem a necessidade e proporcionalidade do procedimento (sublinhado nosso).
Por isso é inadmissível que, seja por que forma for, se constitua em regra geral nos processos por crime de violência doméstica, ou em qualquer outro, tal como a obrigatoriedade de tomada de declarações para memória futura.
Nesta conformidade e quanto a esta matéria, a Directiva 5/2019 da PGR é ilegal".
Analisado o regime legal e jurisprudência que temos por pertinente respiga-se dos dados supra sumulados que:
1. Estamos perante um processo que se iniciou há cerca de um ano e três meses;
2. Foram ouvidas a alegada vitima, o pai desta e foram feitos vários aditamentos ao processo, essencialmente na sequencia de chamados por esta dos OPC ao local na decorrência de acionamento do, comummente conhecido como, botão de pânico, o ultimo dos quais de 01.09.2023 num contexto relacionado dom os filhos da vitima e do suspeito;
3. Aquando da queixa, que esteve na génese do auto de denuncia de fls. 8, reportou-se a uma situação envolvendo a visita do suspeito aos filhos, rivalidade que, atento o teor dos dados transmitidos pela vitima, se nos prefigura como absolutamente inapropriada, atendendo à sua hora tardia, não deixamos, contudo, também de reter como estranho que esta estivesse acordada àquela hora da madrugada;
4. Apesar do exposto o certo é que tudo o que se terá passado envolveu a questão dos menores e basicamente o pai da alegada vitima, pessoa já ouvida nos autos e cujo depoimento não podia ser mais antagónico do que o dá sua filha, realidade não despicienda uma vez que sempre foi vizinho do alegado casal;
5. Neste conspecto, a vítima, quando de novo inquirida referiu não pretender falar sobre o período de vivencia em comum (cuja coabitação e partilha de interesses nos afigura duvidosa, face ao acima exposto), e, referindo-se ao termo da relação que, segundo os seus dizeres, ocorrera cerca de cinco meses antes, disse que o suspeito, devido a discussão entre ambos por causa dos filhos, lhe deu uma palmada na mão, tendo esta lhe dado uma estalada (diremos mais, um valente bofetão, uma vez que, confortne as sua declarações, ele ficou com a cara inchada), realidade que não deu azo a qualquer outra interação fisica ou verbal.
6. Mais decorre dos autos que foi disponibilizado à alegada vitima um aparelho de teleassistência em 22.07.2022, aparelho cuja utilização começa só a verificar-se ulteriormente à conferencia de pais de 28.11.2022, registando-se apenas o acionamento de tal dispositivo em agosto e setembro, ambos de 2023, ou seja cerca de 9 meses após a aludida diligencia;
7. Revertendo igualmente para os dados cronológicos dos autos facilmente se constata que aquando da conferencia de pais a vitima já beneficiava do aludido dispositivo, o certo é que apesar de ali referir ao Mm° Juiz que, além do pai já pagar, ao que tudo indica, cerca de 100 por cada filho (contrariando o anteriormente referido nos autos), verbalizou que o pai visitava os filhos numa base semanal, ora se assim é, então, entre a data de fixação do dispositivo em causa, até o mês de novembro, ou seja cerca de 4 meses nada se terá passado entre a alegada vitima e o suspeito;
8. Ora volvendo, desta feita, aos acionamentos dos apelidados botões de pânico, basta ver o seu teor, os aditamentos subsequentes e a que supra fizemos questão de sumular, para se constatar que não há um único registo clinico de agressão física ou verbal entre a vitima e o suspeito, nem tão-pouco há registo de violência verbal relativamente à realidade vertida no aditamento de fls. 86, datado de 01.09,2023, gravitando toda a realidade em torno da questão dos filhos comuns (vide fls. 86, 102 e 104), aliás o manuscrito de fls. 88 constitui corolário disso mesmo, a alegada vitima não quer que ele se aproxime de si para efeitos de ver os menores, uma vez que de acordo com o estabelecido provisoriamente quanto à regulação do poder paternal, as visitas- são realizadas através de marcação entre a mãe e o pai;
9. Ademais a vitima sempre enfatizou desde o inicio que a situação de ameaças foi sempre entre o suspeito e o seu pai, que o motivo que a levou a chamar a policia foi o receio de que ele fizesse algo de mal ao seu pai, aliás até refere que o suspeito se cortou todo no vidro da porta de casa do pai, realidade a que se reporta no aditamento de fls. 17 acima sumulado e que data de 15.06.2022 (antes do depoimento de 17.06.2022, onde não reproduziu de todo o que ali ficou vertido);
10. Desconhece-se qual a resposta aos ofícios de fls. 100, 106, 109, havendo referencia a uma senhora devidamente identificada a fls 86, que aparentemente terá conhecimento direto dos factos reportados a 01.09.2023, nada se sabendo sobre esta matéria.
***
Face ao supra referido e não nos embrenhado, por ora, quanto à forte indiciação do Crime em causa, não nos parece de todo que esteja devidamente justificado o pedido de recurso a esta diligencia antecipatória de prova, não sendo legalmente aceitável/compreensível que o titular do inquérito não elenque os factos relativamente aos quais pretende que seja inquirida a testemunha, não fixando de todo o objecto da causa, expondo, outrossim, questões de natureza genérica, típicas dos oficias expedidos ao O.P.C. aquando da delegação de competências, distorcendo-se a finalidade da diligencia legalmente classificada como de tomada de declarações para memória futuf-a, realidade antecipatória da prova que pode, por isso, ser valorada em juízo, dispensando-se à audição da pessoa visada na diligencia, situação não confundível com pura agremiação de prova, aliás nem se tolhe como é que desta forma seria possível respeitar o principio do contraditório, evitando-se audições subsequentes da vitima e a sua revitimização.[4]
Acresce que o suspeito foi sempre identificado pela queixosa/vitima, o que sucedeu logo aquando da denuncia, e se é certo que pelos motivos contantes de fls. 73 e 86, ainda não foi possível a sua audição e constituição como tal, também não menos certo é que os autos já perduram há mais de um ano e nenhumas démarches foram encetadas com vista A sua constituição como tal.
Entendemos, pois, que o titular do inquérito não Justifica a necessidade de realização da diligencia sem que o suspeito tenha sido constituído como arguido, nem da necessidade de produção antecipada da prova nesta fase do processo com os dados já agremiados para os autos.
Por fim, embora não referido no requerimento do Titular do inquérito, reportando-nos à Diretiva 5/2019 da PGR (ponto A do Capitulo 1V, aplicável por via do ponto B) e que impõe que o Ministério Público requeira obrigatoriamente, em certas circunstancias, a tomada de declarações para memória futura de alegadas vitimas de violência doméstica),[5] referida no ultimo dos mencionados Acórdãos da Veneranda Relação de Lisboa, não podemos afirmar que na presente situação estamos perante "circunstâncias que objectivamente sejam susceptíveis de agravar a vulnerabilidade" da vítima enquanto motivo para recurso à diligencia excecional de produção antecipatória de prova, sujeitando um menor a uma deslocação a juízo perante os dados encimados e ainda com diligencias de agremiação de prova em curso.
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Decisão
Face ao exposto, sopesando os interesses da vitima, os interesses da investigação, os interesses do suspeito, ainda não constituído arguido, os princípios da mediação em que se alicerça o processo penal, a excepcionalidade do instituto e a situação narrada nos autos, associados ainda à total ausência de elementos que permitam concluir pela absoluta necessidade de assegurar a genuinidade, espontaneidade, autenticidade da prova e da saúde mental da vitima ou dos que com ela coabitem, indefere-se as diligências de tomada de declarações para memória futura requeridas pelo Ministério Público, por se entender que não se mostram reunidas, no actual estádio processual, as circunstancias de excepcionalidade para a sua realização, não decorrendo dos autos, na opinião do tribunal, nenhuma das circunstancias factuais que as poderiam determinar.
Termos em que se indefere a requerida audição do menor ……...
Notifique.
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Para apreciação da questão em causa, deve ter-se ainda presentes as seguintes circunstâncias processuais que resultam dos autos de processo principal (confrontada a certidão que se mostra junta):
a) de acordo com o despacho que solicita a tomada de declarações para memória futura, investiga-se a prática por parte do denunciado AA….. de um crime de violência doméstica, sobre a ex-companheira, progenitora do menor, o qual, alegadamente, presenciará os factos já indiciados, mormente os alegadamente ocorridos no dia 01.09.2023 (aditamento junto a fls. 87 do processo principal e cuja cópia consta da referida certidão).
b) …… nasceu no dia …….
c) Na data da apresentação do requerimento do Ministério Público, não se encontrava constituído arguido.
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II.3. Apreciação do Recurso
O Ministério Público, vem recorrer do despacho proferido em 18.09.2023, no qual o Sr. Juiz a quo indeferiu a tomada de declarações para memória futura ao menor ……, nascido em ……., promovidas pelo Ministério Público visando que as mesmas pudessem, se necessário, ter valor probatório em julgamento, porquanto nos presentes autos existem indícios da prática pelo denunciado AA…., de factos suscetíveis de integrar um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152º, nºs 1, al. b), 2. al. a), do Código Penal, na pessoa da sua ex-companheira, BB….., progenitora do referido menor.
Como se viu, o Sr. Juiz de Instrução Criminal, fundamentou a questionada decisão na excecionalidade do instituto da prova antecipada em matéria de violência doméstica, bem como por, no seu entender, não ter sido devidamente justificado o pedido de recurso à diligência em causa, não sendo igualmente admissível que o titular do inquérito não elenque os factos relativamente aos quais pretende que seja inquirida a testemunha. Mais se estriba no facto de a prestação antecipada de depoimento dever ocorrer com observância das garantias de defesa e do princípio do contraditório, para que possa ser valorada em audiência de julgamento, o que, no entendimento do Mmº. JIC, não se verifica no caso dos presentes autos, uma vez que ainda não existe arguido constituído.
Acrescenta o Mmº. Juiz a quo um último argumento que se reconduz à ausência de circunstâncias que objetivamente sejam suscetíveis de agravar a vulnerabilidade da vítima, sujeitando um menor a uma deslocação a juízo numa fase em que decorrem diligências de prova.
Vejamos então a questão suscitada.
A recolha de declarações para memória futura foi inicialmente pensada pelo legislador português como meio preventivo de recolha de prova suscetível de perder-se ou inviabilizar-se antes do julgamento, tendo contudo ampliado o respetivo âmbito para proteção das vítimas (cfr. Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar José António Henriques dos Santos Cabral Eduardo Maia Costa António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes António Pereira Madeira António Pires Henriques da Graça, 4.ª Edição Revista, pág. 963).
A Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência às suas Vítima, regula autonomamente as declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica.
Assim, dispõe no seu art.º 33.°:
«1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do acto processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.
4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352º, 356º, 363º e 364º do Código de Processo Penal.
6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.
7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.»
Também o Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 4.09., estabelece no seu art. 24º, nº 1 idêntica previsão quanto às vítimas especialmente vulneráveis: «O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.° do Código de. Processo Penal.»
Em ambas as situações, a produção antecipada da prova não tem tanto a ver com o risco adveniente da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento, mas fundamentalmente com a salvaguarda dos interesses da proteção das vítimas, por forma a evitar a revitimação, direito que é garantido à vítima por aquelas leis (art.º 22º da Lei nº 112/2009 e art.º 7º da Lei nº 130/2015), possibilitando desta forma que ela encerre os episódios de que foi vítima e não seja submetida a sucessivas inquirições que a obriguem a recordar e vivenciar repetidamente os mesmos acontecimentos, visto que só será prestado novo depoimento, em casos excepcionais (nº 7 do art. 33º da citada Lei).
No caso dos autos, está em causa a investigação de um crime de violência doméstica, previsto no art.° 152º, n.° 1, al. b) e nº 2, al. a) do CP, punido com pena de prisão de dois a cinco anos, alegadamente cometido pelo denunciado sobre a ex-companheira, progenitora do menor.
Por outro lado, de acordo com o despacho que solicita a tomada de declarações para memória futura, o menor ……., nascido em ……, reside com a progenitora e terá presenciado, pelo menos, alguns dos factos em investigação, pelo que alegadamente será uma vítima indirecta dos actos de violência doméstica em investigação dirigidos à sua progenitora.
É quanto basta para se concluir que o menor é também ele vítima à luz do estatuído no art. 67º- A, nº 1, a) iii), do CPP.
E ainda que, à data em que foi requerida a sua tomada antecipada de declarações, não lhe tivesse sido atribuído ainda o estatuto de vítima especialmente vulnerável, que decorre do estabelecido nos arts. 1º, al. j) e 67º-A, nº 3 , do CPP,  tal não impedia a sua audição antecipada nos termos requeridos pelo Ministério Público pois que, apesar de a Lei n.° 112/2009 distinguir entre vítima e vítima especialmente vulnerável, quando, no seu art.° 33.°, prevê a possibilidade de produção antecipada de prova, não exige qualquer especial vulnerabilidade da vítima para que seja possível ouvi-la em declarações para memória futura, impondo apenas que se trate de vítima de crime de violência doméstica.
Deste modo, à luz do exposto, a tomada de declarações para memória futura do menor ……., alegadamente vítima “indireta” de violência doméstica por parte do denunciado não é obrigatória.
Realmente, conforme decorre do transcrito art. 33º, nº 1, é inegável que cabe ao juiz de instrução decidir se procede ao ou não à requerida audição em declarações para memória futura, apreciando o caso concreto, aferindo do interesse e necessidade de tal audição, sempre norteado pelo princípio da descoberta da verdade material, procurando prevenir as situações de vitimização secundária.
Sempre se dirá, no entanto, que do nosso ponto de vista, requerida a prestação de declarações para memória futura de vítimas de violência doméstica, o juiz apenas poderá indeferir o exercício de tal direito quando, objetiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada da prova.
Assim, aderimos à jurisprudência dos Tribunais Superiores, que cremos ser maioritária,  que se tem pronunciado no sentido de que, atenta a superior relevância dos interesses em causa, a regra haverá de ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, até no exercício do “dever de proteção” àquela consagrado no art. 20º da Lei n.º 112/2009, e só em casos excepcionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se deve indeferir o mesmo requerimento (neste sentido, veja-se, entre outros, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 09.11.2016, proferido no Processo nº 5687/15.7T9AMD-A.L1, 05.03.2020, proferido no Processo nº 779/19.6PARGR.A.L1, 04.06.2020, proferido no Processo nº 382/19.0PASXL.A.L1 e de 07.03.2023, proferido no Processo nº 658/22.0T9LRS-A.L1-5, da Relação de Coimbra de 07.04.2021, proferido no Processo nº 86/20.1T90FR-A.C1 e da Relação do Porto de  03.05.2023, todos acessíveis in www.dgsi.pt.).
Voltando ao caso dos autos, os factos nestes indiciados, referidos pelo Ministério Público no despacho em que requereu a diligência, realçados na sua motivação de recurso, e também descritos pelo M.mº Juiz a quo, justificam e são razão suficiente para que se proceda à requerida tomada de declarações para memória futura.
Com efeito, a prestação antecipada de declarações pelo menor, agora com 12 anos de idade, pode não só evitar a perda de memória dos acontecimentos que presenciou e vivenciou (e que tenderá a esquecer) com o rigor necessário à descoberta da verdade material, permitindo a preservação da integridade da prova, como também salvaguardará a vítima, de futura exposição em julgamento, minimizando a sua vitimização secundária.
Em função da sua fragilidade decorrente da sua idade e da relação emocional relativamente à vítima directa da eventual prática do indiciado crime de violência doméstica, sua progenitora, e ao seu agressor, pai dos seus irmãos mais novos com quem coabitou durante anos, assumindo um papel semelhante ao da sua progenitora, ou de pelo menos, colaborador desta, deve evitar-se a exposição do menor em julgamento.
Ademais, a valoração do depoimento que vier a ser prestado pelo menor será feita na altura própria pelo tribunal de julgamento e, por essa razão, não pode o Mmº Juiz de instrução estar a antecipar que o menor não pode testemunhar de modo processualmente útil ainda com diligências de investigação em curso.
Quanto ao argumento oferecido pelo Mmª Juiz de Instrução, de não terem sido elencados os factos relativamente aos quais pretende o Ministério Público que seja inquirida a testemunha, cabe-nos referir que este Tribunal não perfilha desse entendimento, uma vez que no despacho em que requereu a diligência consignou aquele, ainda que de forma algo genérica, as questões que pretende que o menor esclareça e cuja concretização ocorrerá no decurso da diligência, consoante o conhecimento que o menor revelará quanto à factualidade em causa.
Por último, embora haja jurisprudência que considere que a lei apenas admite a tomada de declarações para memória futura nos casos em que haja arguido constituído, com o argumento que só é possível exercer o contraditório que a diligência pressupõe nas situações em que existe já uma pluralidade de sujeitos processuais, com posições antagónicas em relação ao objeto da prova (nesse  sentido, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 18.04.2001 e da Relação de Évora de 29.03.2005, CJ, ano XXVI, tomo 2, pág. 229 e ano XXX, tomo 2, pág. 269, respetivamente), nesta temática seguimos o entendimento que tem considerado que a proteção dos interesses na realização da justiça e da descoberta da verdade material levam a que se deva aceitar a possibilidade de se realizar a diligência de declarações para memória futura nos casos em que o inquérito corra contra pessoa não determinada ou não tenha sido possível constitui-lo arguido, por desconhecimento  ou dificuldade de localização para notificação em tempo útil, nomeando-se então defensor e a sua notificação e comparência no acto (neste sentido, entre outros, os Acs. da Relação do Porto de 13.07.2005, proferido no Processo nº 0540595, de 12.10.2005, proferido no Processo nº 0544648 e 01.02.2006, proferido no Processo nº 0515949, da Relação de Lisboa de 07.02.2012, proferido no Processo nº 3610/10.4TAALM.L1.5 e de 22-03-20011, proferido no Processo nº 432/06.0JDLSB.L1.5, acessíveis em www.dgsi.pt.).
No caso concreto, como decorre do acima sintetizado, o Ministério Público justificou as razões para o requerido, tendo a este propósito aduzido que o denunciado não foi ainda constituído arguido porque até ao momento, o órgão de polícia competente, responsável pela investigação não o conseguiu localizar para esta diligência (conforme, aliás, decorre da informação de fls. 67 junta à certidão).
O previsto no art. 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16/09, legitima, pois, a tomada de declarações ao menor, com a maior brevidade possível, de forma a evitar-se a repetição da sua audição como testemunha, face ao indiciamento da prática do crime de violência doméstica por parte do suspeito que é o ex-companheiro da progenitora do ….. e o progenitor dos seus dois irmãos uterinos mais novos, importando, desde já, protegê-lo e evitar a sua vitimização secundária que a exposição à audiência de julgamento – num ambiente formal e público, inelutavelmente potenciaria, sendo também inegável o impacto que os factos alegadamente praticados por aquele suspeito na sua presença tiveram ou têm ainda na sua vida.
Não existe, por conseguinte, fundamento para a rejeição da diligência requerida pelo Ministério Público de tomada de declarações para memória futura ao menor ………, dado que claramente não se trata de uma situação em que, objetiva e manifestamente, se evidencia a total desnecessidade e manifesta irrelevância na recolha antecipada de prova.
Donde e sem necessidade de mais considerações, por tudo o deixado expendido entendemos que é de revogar o despacho proferido que deve ser substituído por outro que designe data para a tomada de declarações para memória futura da vítima ……., conforme requerido pelo Ministério Público.
Nesta medida, procede o interposto recurso.
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III. DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam as juízes desta 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público revogando o despacho proferido que deve ser substituído por outro que, que designe data para a tomada de declarações para memória futura do menor ……., procedendo-se à nomeação de defensor ao suspeito, a convocar para aquele ato, caso não venha, entretanto, a ser constituído arguido.
Sem custas
Notifique.

Lisboa, 12 de outubro de 2023
As Juízes Desembargadoras
Amélia Carolina Teixeira
Paula Cristina C. Bizarro
Carla Carecho
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[1] Na realidade, esclarece o ilustre Conselheiro a este propósito que:
O legislador não contém "(...) nenhuma norma a determinar que a tomada de declaraçôes para memória futura se processa "com observáncia das formalidades estabelecidos para a audiência" (cfr. artigos 318.° n."4, 319.°, n. °3 e 320.). limitando-se a determinar que na parte respeitante à produção da prova antecipada "(...), o reenvio geral para a disciplina da audiência de julgamento, estatuindo que "é correspondentemente aplicável o disposto nos artigo 352º, 356º,363.° e 364.° "(artigo 271.°, nº 6)".
E se é certo que procurou configurar a produção antecipada de prova como uma "antecipação parcial da audiência de julgamento", "(...) existem importantes desvios às regras que imperam em audiéncia, desde logo porque exclui a publicidade/ e a possibilidade de inquirição ao nivel do interrogatório que é sempre feito pelo juiz (...)".
Acresce que, contrariamente ao que sucede na audiência de julgamento "(...) em que a testemunha é inquirida por quem a indicou, sendo depois sujeita a contra-interrogatório (artigo 348º), a inquirição das testemunhas é sempre feita pelo juiz:, com ressalva das perguntas adicionais que são formuladas directamente pelo Ministério Público, advogados do assistente e das partes civis e do defensorl(artigo 371°, nº 5)".
Por fim, enquanto factor limitativo dos direitos de defesa, refere o Ilustre Ilustre Conselheiro que "(...) os próprios poderes do juiz de instrução são muito distintos dos de julgamento, uma ve: que "(...) em sede de inquérito e no rimbito da prova antecipada o juiz de instrução não tem, porém, o poder dever de ordenar oficiosamente "a produção de meios de provo cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e da boa decisão da causa" (artigo 340.)".
[2] Vide igualmente quanto à necessidade de apreciação dos factos e a ponderação entre a gravidade destes, os interesses da justiça, da mediação e de protecção das vítimas, o Ac da R,C no âmbito do proc.° n.° 86/20.1T9OFR-A.CI, consultável em www.dgsi.pt em que foi relatora a Exmª Srª Desembargadora Isabel Valongo, onde, embora dando-se provimento ao recurso do M.P, não se deixou de apreciar a casuística e a necessidade da diligencia, e se decidiu que:
"1— Por força do disposto no n.° 3 do artigo 67-A do CPP, as vitimas de condutas constitutivas do crime de violência doméstica integram-se, ope legis, na categoria de "vítimas especialmente vulneráveis".
I! — Dai decorre a faculdade concedida ao juiz- de tomada antecipada de declarações das referidas vitimas, devendo a pretensão solicitada para a realização do dito acto ser deferida, excepto quando, objetiva e manifestamente, se revele totalmente desnecessária". (sublinhado nosso).
Realidade, diremos nós, que só pode decorrer da análise que o juiz faça do requerimento em função do contexto dos factos, tendo em atenção ao disposto nos art.° 16°, n.°2, 20°, n.°3, 22°, n.° 1 e 2 e 33, n.° 1, todos da Lei 112/2009, de 16/09, aliás, a não ser assim, deixa de fazer qualquer sentido a remessa dos autos ao juiz para apreciar o requerimento do M.P, não lhe sendo concedida a possibilidade de avaliar e sopesar. tal realidade, mormente como se referiu no Ac da RG in proc°n.° 846/20.3PBBRG.G1 de 12/10/2020 em que foi Relator o Exm° Sr Desembargador António Teixeira, citando outro acórdão da RL, sobre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo (cfr. artigo 16°/2 da lei 112/2009) e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça, avançando-se como critérios orientadores:
A complexidade do processo, que em muito resulta da personalidade das pessoas envolvidas; A importância que a inquirição da queixosa tem para o apuramento da verdade em toda a sua extensão;
A relevância que para a correcta valoração da prova tem, especialmente neste caso, o contacto directo do juiz de julgamento com as fontes de prova (principio da imediação em sentido estrito) e a produção concentrada de todos os meios de prova na audiência de julgamento;
A circunstância de a tomada de declarações da vítima para memória futura durante a fase de inquérito não evitar, muito provavelmente, uma nova inquirição no decurso da audiência;
O facto de essa inquirição, desde que realizada com as cautelas previstas na lei, não pôr previsivelmente em causa, de uma forma significativa, a saúde psíquica da vítima;
[3] Vide igualmente Acórdão do Tribunal da Relacão de Évora de 18/10/2018, processo n." 207/14.3PATVR.E2, in www.dgsi.pt, onde se decidiu que- "Como se vem entendendo. as declarações para memória futura configuram-se como uma antecipação do julgamento, porquanto as mesmas podem vir a ser utilizadas para formar a convicção do tribunal.
Daí que se tenham de garantir certas prorrogativas na sua tomada, nomeadamente a garantia do funcionamento do principio do contraditório, enquanto principio estruturante do processo e forma de garantia , dos direitos de defesa, art.° 32.°, n.° 5. da CRP"
[4] O ónus de seriar os factos e os meios de prova dando-os a conhecer ao arguido compete ao titular do inquérito, realidade que apenas não será de observar em situações de muita urgência e em fases muito preliminares do processo.
[5] Segundo a qual o Ministério Público "requer obrigatoriamente a tomada de declarações para memória finura nas situações de: (...) ii) avaliação de risco da vitima de nivel médio associada a circunstancias que objectivamente sejam susceptíveis de agravar a vulnerabilidade daquela, designadamente qualquer uma das seguintes: a) aumento do número de episódios violentos e/ou da gravidade dos meamos, em particular no último mês, acompanhado da convicção da vítima de que o denunciado ou arguido pode matá-la; b) existência de processo(s) contra o denunciado ou arguido pela prática de crime(s) contra a vida, integridade (isica ou de ameaça, bem como a repetida verbalização perante familiares ou pessoas próximas da vítima da intenção de a matar"