Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
651/06.0TBOBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
Data do Acordão: 07/06/2010
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1817º, Nº 1, 1842º, Nº 1, AL. C), DO CC (REDACÇÃO DA LEI Nº 14/2009, DE 1/04)
Sumário: I – Quanto à caducidade da acção de investigação de paternidade, o artº 1817º do CC, aplicável por força do artº 1873º CC (redacção do DL nº 496/77, de 25/11), estabelece um prazo-regra (nº 1) e prazos especiais (nºs 3, 4 e 5), consoante a causa de pedir seja directamente o vínculo biológico ou as presunções legais.

II – Assim, no nº 1 estatui-se que a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

III – No nº 4 estatui-se que se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquele; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado.

IV – Com a publicação da Lei nº 14/2009, de 14/04, foram alterados os artºs 1817º e 1842º CC, aumentando-se os prazos de caducidade, cujo artº 3º impõe a aplicação dessa lei aos processos pendentes – o artº 1817º prevê, agora, o prazo-regra de 10 anos posteriores à maioridade ou emancipação (nº 1) e prazos especiais (nº 3, als. a), b) e c)).

V – Contudo, é dogmaticamente mais consistente a tese da imprescritibilidade deste tipo de acções, por estar em causa o direito à identidade pessoal, no qual se insere o chamado “direito ao conhecimento da ascendência biológica”, enquanto direito fundamental – artº 26º, nº 1, CRP -, tratando-se de um direito de personalidade imprescritível.

VI – Assim, deve entender-se que, nesta matéria, os prazos de caducidade, sejam eles quais forem, traduzem uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, mais precisamente ao direito à historicidade pessoal, sendo, por isso, inconstitucionais as normas dos artºs 1817º e 1842º CC, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 1/04, com o alargamento dos prazos.

VII – As acções de investigação de paternidade e de impugnação da paternidade presumida, instauradas pelo filho, não estão sujeitas a prazos de caducidade.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

         1.1. - O Autor – A... – instaurou ( 23/8/2006 ) na Comarca de Oliveira do Bairro, acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus:

         1. B...

         2. C.... ( na qualidade de herdeira de D... )

         3. E...

4. F....

5. G....

Alegou, em resumo:

O Autor nasceu no dia 9 de Julho de 1973, em França, estando registado como filho de D... e B....

Em Agosto de 2005, tomou conhecimento que o seu pai biológico era H..., sendo que fora registado como filho de D..., por este ser casado com a sua mãe, B....

A sua mãe passou a viver maritalmente com H... desde 1970 e o Autor sempre foi reputado e tratado por H... e pelo público como seu filho.

D... nunca o reconheceu como sendo seu filho.

Pediu que de decida que:

(i) O Autor não é filho biológico de D...;

(ii) O Autor é filho biológico de H...;

(iii) A correcção do seu registo de nascimento.

Citados os Réus ( o Ministério Público ( fls.129) em representação dos 2º e 5º Réus ausentes ), apenas contestou a Ré E...( cf. fls.37 e segs. ), defendendo-se, além do mais, com a excepção da caducidade ( art.1842 nº1 c) CC), porquanto desde que atingiu a idade adulta o Autor sempre se declarou filho do H....

1.2. - No despacho saneador julgou-se procedente a excepção da caducidade, absolvendo-se os Réus dos pedidos.

Aduziu-se a seguinte fundamentação:

“ Considerando:

Que o autor A... nasceu no dia 9/7/1973 ( fls.19);

Que desde sempre sabe que o seu pai é H...;

Que a presente acção de impugnação da paternidade foi proposta no dia 23/8/2006 ( fls.2 );

Visto o disposto nos arts.1817 nº1 e 1842 nº1 c) ambos do C. Civil, na redacção atribuída pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, mostra-se caduco o prazo legal para a propositura da presente acção, o que consubstancia excepção peremptória de direito material, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição dos Réus do pedido – arts.279, 296, 298 nº2, 328, 329, 331 nº1 e 333 nº1 todos do C. Civil, e 493, nº1 e 3 e 496 ambos do CPCivil “.

1.3. – Inconformado, o Autor recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

[………………………………]

Contra-alegou a Ré E..., sustentando a improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. – Os elementos de facto:

O Autor, A..., nasceu no dia 9/7/1973, estando registado como filho de D... e de B... ( cf. fls.19 ).

H... faleceu no dia 16 de Agosto de 2005 ( fls.143 )

A presente acção foi proposta no dia 23/8/2006 ( fls.2 );

2.2. - Estamos perante acção de estado, acção complexa em que se pede simultaneamente o reconhecimento da paternidade, com base na presunção legal ( arts.1847 e 1871 nº1 a) CC ) e a impugnação da paternidade presumida, instaurada pelo filho (arts. 1828 e 1842 nº1 c) CC), sendo que ambos os direitos estão sujeitos pela lei ordinária a prazos se caducidade ( arts.1817, por remissão do art.1873, e 1842 CC).

Quanto à caducidade da acção de investigação de paternidade, o art.1817, aplicável por força do art.1873 CC ( redacção do DL nº 496/77 de 25/11) estabelece um prazo - regra ( nº1) e prazos especiais ( nºs 3, 4 e 5 ), consoante a causa de pedir seja directamente o vínculo biológico ou as presunções legais.

Assim, no nº1 estatui-se que a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

E no nº nº4 que se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquele; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado.

O Tribunal Constitucional, por acórdão nº 23/2006 ( Paulo Mota Pinto) de 10/1/2006 ( DR I Série de 8/2 ) declarou - “ a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817 do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873 do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26 nº1, 36, nº 1, e 18, nº2, da Constituição da República Portuguesa”.
No Acórdão nº 626/2009 (Cura Mariano), de 2/2/2009 (em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal Constitucional decidiu – “Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 26, nº1, e 18 nº 2, da Constituição, a norma constante do nº 3, do artigo 1817, do Código Civil, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade, para o exercício do direito de investigação da paternidade”.
E posteriormente, no Acórdão nº 65/2010 ( Sousa Ribeiro ), de 4/2/2010 ( www tribunal constitucional.pt ), o Tribunal decidiu:
“ Julgar inconstitucional, por violação dos arts.26 nº1 e 18 nº2 da Constituição, a segunda parte da norma constante do nº4 do art.1817 do Código Civil ( redacção a Lei nº 21/98 de 12 de Maio), aplicável por força do art.1873, do mesmo Código, na medida em que prevê, para a proposição da acção de investigação de paternidade, o prazo de um ano a contar da data em que tiver cessado voluntariamente o tratamento como filho”.

Sobre a caducidade da acção de impugnação da paternidade presumida, o art.1842 do CC estabelece no nº1 c) que “ a acção de impugnação de paternidade pode ser intentada pelo filho, até um ano depois de haver atingido a maioridade ou ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de um ano a contar da data em que teve conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.

Tem-se discutido se a doutrina do Acórdão do TC nº 23/2006 é aplicável às acções de impugnação de paternidade, também sujeitas a diversos prazos de caducidade, consoante sejam proposta pelo marido, pela mãe, ou pelo filho (art.1842 nº1 a), b) e c) CC ).

A este propósito, verifica-se ser divergente a jurisprudência do Tribunal Constitucional.

No Acórdão nº 609/07 (Borges Soeiro) de 11/12/2007 ( www.tribunalconstitucional.pt) o TC, partindo do argumento essencial de que não se podem colocar desproporcionadas restrições aos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, sustentou que “ as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817, nº1, do Código Civil estão, outrossim para a disposição contida no artigo 1842, nº 1 alínea c), do mesmo Código”, acabando por decidir pela “ inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 1842, nº 1, alínea c), do Código Civil, na medida em que prevê, para a caducidade do direito do filho maior ou emancipado de impugnar a paternidade presumida do marido da mãe, o prazo de um ano a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, por violação dos artigos 26, nº1, 36, nºs 1 e 18, nº 2 da Constituição da República Portuguesa”.

No Acórdão nº 179/10 ( Pamplona de Oliveira) de 12/5/2010, ( wwwtribunalconstitucional.pt) decidiu-se - “Não julgar inconstitucional, por violação do art.26 da Constituição, a norma do art.1842 nº1 alínea a) do Código Civil, quando, ao fixar um prazo de 2 anos, limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade”.

Considerou-se, para tanto, existir diferença entre a investigação da paternidade, em que “o que está em causa é o direito à identidade pessoal do investigante ( e relativamente à qual a imposição de um limite temporal pode implicar violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores )” e a impugnação em que o que importa é “ a definição do estatuto jurídico do impugnante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal “.

Não se crê que, à luz dos direito fundamental à identidade pessoal, se deva fazer tal diferença entre os dois direitos ( de investigação e de impugnação), pois sendo complexo o conteúdo do direito fundamental ao conhecimento das origens genéticas, isso “ implica também um direito “à eliminação da mentira” relativamente à historicidade pessoal, o qual pode traduzir-se na consagração de mecanismos legais ( maxime processuais) que permitam ao filho esclarecer a sua condição biológica relativamente ao progenitor juridicamente reconhecido como tal  ( é o exemplo que nos chega do direito alemão, como vimos), e/ou a tutela da possibilidade de impugnação pelo filho dos vínculos jurídicos da filiação estabelecidos, se eles não corresponderem à verdade biológica” ( VALE E REIS, “Direito ao conhecimento das origens genéticas”, RMP, ano 29, nº 116, pág.199).

Entretanto, já na pendência da acção, foi publicada a Lei nº 14/2009 de 14/4 que alterou os arts.1817 e 1842 do CC, aumentando os prazos de caducidade, cujo art.3º impõe a aplicação da lei aos processos pendentes.

O art.1817 prevê agora o prazo-regra de 10 anos posteriores à maioridade ou emancipação ( nº1 ) e prazos especiais ( nº3 a), b) e c) ).

Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no nº1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente, quando cesse o tratamento como filho pelo pretenso pai, a acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores ( nº3 b) ).

Estatui o art.1842 nº1 c) – “A acção de impugnação de paternidade pode ser intentada pelo filho, até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe”.

A norma de direito transitório do art.3º da Lei 14/2009, no que toca à aplicação retroactiva, tem sido julgada materialmente inconstitucional por violação do princípio da confiança, quando aplicada às acções de investigação intentadas posteriormente à publicação do Acórdão do TC nº 23/2006 ( cf., por ex., Ac RC de 23/6/2009 ( Teles Pereira), de 9/1/2010 ( Carlos Gil), de 16/3/2010 ( Gregório de Jesus ), em www dgsi.pt ).

Contudo, independentemente disso, adere-se, por ser dogmaticamente mais consistente, à tese da imprescritibilidade, tanto da acção de investigação de paternidade, como de impugnação da paternidade.

Argumenta-se, no essencial, em que ambas as acções assentam no “direito à identidade pessoal“, no qual se insere o “direito ao conhecimento da ascendência biológica”, enquanto direito fundamental ( art.26 nº1 da CRP ), tratando-se de um direito de personalidade imprescritível.

Foi nele que assentou a decisão de inconstitucionalidade proferida no Acórdão do TC nº 23/06:

“ O parâmetro constitucional mais significativo para aferição da legitimidade das limitações ao direito de investigar a paternidade encontra-se, porém, no “direito à identidade pessoal”, com que abre logo o n.º 1 do artigo 26.º da Constituição.

Importa notar, efectivamente, que a tese segundo a qual a norma em questão não é inconstitucional não se baseia na inexistência de um direito fundamental ao conhecimento da paternidade biológica, ou na exclusão deste direito do “âmbito de protecção” do direito fundamental à identidade pessoal, reconhecendo-se, antes, que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão deste direito fundamental. Assim, na jurisprudência deste Tribunal não tem sido posta em questão a existência de um interesse do filho, constitucionalmente protegido, a conhecer a identidade dos seus progenitores, como decorrência dos direitos fundamentais à identidade pessoal (e, também, do direito à integridade pessoal – artigos 25.º, e 26.º, n.º 1, da Constituição)”.

(…)

“ (…) o direito à identidade pessoal inclui, não apenas o interesse na identificação pessoal (na não confundibilidade com os outros) e na constituição daquela identidade, como também, enquanto pressuposto para esta auto-definição, o direito ao conhecimento das próprias raízes. Mesmo sem compromisso com quaisquer determinismos, não custa reconhecer que saber quem se é remete logo (pelo menos também) para saber quais são os antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficas e culturais, e também genéticas (cfr., aliás, também a referência a uma “identidade genética”, que o artigo 26.º, n.º 3, da Constituição considera constitucionalmente relevante)”.

Como se justificou no Ac RC de 23/6/2009 ( Teles Pereira), em www dgsi.pt, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do nº1 do art.1817 do CC, ex vi art.1873 CC, constante do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, foi generalizadamente interpretada, designadamente pela jurisprudência do STJ ( cf. por ex., Ac de 14/2/2006 ( Alves Velho ), de 31/1/2007 ( Borges Soeiro ), de 17/4/2008 ( Fonseca Ramos ), de 3/7/2008 ( Pires da Rosa ), disponíveis em www dgsi.pt ), como significando a imprescritibilidade do direito de investigar a paternidade, ou seja, com o fim da sujeição a qualquer prazo.

E esta posição é extensível, por idênticas razões, ao direito de impugnação da paternidade ( cf., por ex., Ac STJ de 7/7/2009 ( Oliveira Rocha), Ac RP de 24/11/2008 ( Anabela de Carvalho ) disponíveis em www dgsi.pt ).

Efectivamente – escreve-se no Ac STJ de 7/7/2009 - “ a valorização dos direitos fundamentais da pessoa, como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica fazem-na prevalecer sobre os prazos de caducidade para as acções de estabelecimento da filiação “.

Já depois das alterações introduzidas pela Lei nº 14/2009 de 1/4, a jurisprudência continuou a manter a mesma orientação, argumentando-se que os prazos de caducidade, sejam eles quais forem, traduzem uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, mais precisamente ao direito à historicidade pessoal, pelo que também são inconstitucionais as normas dos arts.1817 e 1842, na redacção introduzida pela referida lei, com o alargamento dos prazos ( cf, neste sentido, Ac STJ de 25/3/2010 ( Helder Roque ), de 8/6/2010 ( Serra Baptista ), Ac RL de 9/2/2010 ( Maria do Rosário Morgado ), Ac RP de 15/3/2010 ( Pinto Ferreira ) em www dgsi.pt ).

Na verdade, as razões justificativas do estabelecimento de prazos de caducidade para as referidas acções ( segurança jurídica do pretenso pai e herdeiros, o perecimento das provas, as finalidades egoístas ) assumem hoje menos peso no confronto com a nova dimensão do “direito à identidade pessoal” e o “direito à integridade pessoal”, sobretudo devido aos desenvolvimentos da genética e ao movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens.

Por isso, sobre o balanceamento dos direitos, e em jeito de síntese, elucida GUILHERME DE OLIVEIRA - “ Nesta balança em que se reúnem argumentos a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, e os argumentos a favor da protecção do suposto progenitor e da caducidade, creio que os pratos mudaram de peso”.

Depois de rebater o valor dado à garantia de “segurança jurídica”, designadamente com o dever de o suposto progenitor assumir as suas responsabilidades e com o facto de o sistema não revelar uma absoluta preocupação com a segurança social dos herdeiros ( qualquer herdeiro preterido pode intentar, a todo o tempo, uma acção de petição da herança ), de que a ideia de evitar a “caça às heranças” tem de se entender de outro modo e de que o argumento do “envelhecimento das provas “ perdeu consistência com a eficácia e generalização das provas científicas, sustenta, no entanto, o insigne Professor que em casos-limite, o direito imprescritível possa ser neutralizado através do abuso de direito ( art.334 do CC) – “ É razoável pensar que, nesses casos-limite, o autor possa ser tratado como se não tivesse o direito que invoca – porque nunca o quis usar quando podia fazê-lo, porque se guardou para um momento em que o suposto pai organizou a sua vida em favor de outros herdeiros, porque o autor não pretende mais do que facturar no seu activo patrimonial” – para concluir que – “ os progressos técnicos e os movimentos sociais de valorização das origens e de responsabilidade individual estão contra a limitação de investigar que resulta do prazo de caducidade “ (“ Caducidade das acções de investigação”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, pág49 e segs. ).

Também no direito comparado a regra é a da imprescritibilidade das acções, como no direito italiano ( art.270 CC), brasileiro ( art.1606 CC ), espanhol ( art.133 CC), alemão ( art.1600 CC) e de Macau ( art.1677 nº1 ).

Neste contexto, conclui-se pela inconstitucionalidade material das normas dos arts.1817 nº1 e 4 ( redacção da Lei nº 21/98 de 12/5) e 1842 nº1 c) do CC ( redacção do DL nº 496/77 de 25/11) e dos arts.1817 nº1 e 3 b) e 1842 nº1 c) CC ( redacção da Lei nº 14/2009 de 1/4, que estabelecem novos prazos de caducidade para a acção de investigação de paternidade e de impugnação da paternidade, respectivamente), por violação do art.26 nº1 da CRP.

Por isso, não se verifica a caducidade da acção, o que implica a revogação do despacho recorrido.

No entanto, mesmo que não se optasse pela imprescritibilidade das acções, também por outra via se impunha a revogação do despacho recorrido:

O Autor, com 32 anos de idade, propôs a acção em 23 de Agosto de 2006, fundamentando o pedido de reconhecimento da paternidade na posse de estado do pretenso pai, H..., falecido em 16 de Agosto de 2005.

Na versão primitiva do art.1817 nº4 CC, o prazo de caducidade era de um ano posterior à data da morte, pelo que já havia decorrido.

Contudo, a norma do art.1817 nº4 do CC, que fixa o prazo de um ano, é materialmente inconstitucional, por violação dos art.26 nº1 e 18 nº2 CRP.

Na versão da lei nova ( Lei nº 14/2009 ), o prazo é de três anos, posterior à cessação do tratamento como filho, que alegadamente ocorreu com a morte do pretenso pai.

Tratando-se de facto controvertido ( cf. arts.18º a 20º da petição e 1º e 3º da contestação), não podia o despacho recorrido, ao aplicar a lei nova, decidir, sem mais pela procedência da caducidade, por o estado do processo o não permitir ( art.510 nº1 b) CPC ).

Quanto ao pedido de impugnação da paternidade, estabelecendo o art.1842 nº1 c) CC o prazo de caducidade de um ano ( versão antiga ) e de três anos ( versão da lei nova), a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, e uma vez alegado que só em Maio de 2006, na sequência de uma acção instaurada contra ele é que pela primeira vez tomou conhecimento de que não era filho de D... ( cf. arts.13º a 15º da petição), facto controvertido ( cf. arts.1º e 3º da contestação ), também por aqui se vê que não podia o despacho recorrido decidir já pela caducidade.

2.3. - Síntese conclusiva:

1. As acções de investigação de paternidade e de impugnação da paternidade presumida, instauradas pelo filho, não estão sujeitas a prazos de caducidade.

         2. As normas dos arts.1817 nº1 e 4 ( redacção da Lei nº 21/98 de 12/5) e 1842 nº1 c) do CC ( redacção do DL nº 496/77 de 25/11) e dos arts.1817 nº1 e 3 b) e 1842 nº1 c) CC ( redacção da Lei nº 14/2009 de 1/4, que estabelecem novos prazos de caducidade ), são materialmente inconstitucionais, por violação dos art.26 nº1 e 18 nº2 da CRP.


III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:


1)

         Julgar procedente a apelação e revogar o despacho recorrido.

2)

         Recusar a aplicação, por inconstitucionalidade material das normas dos arts.1817 nº1 e 4 ( redacção da Lei nº 21/98 de 12/5) e 1842 nº1 c) do CC ( redacção do DL nº 496/77 de 25/11) e dos arts.1817 nº1 e 3 b) e 1842 nº1 c) CC ( redacção da Lei nº 14/2009 de 1/4, que estabelecem novos prazos de caducidade para a acção de investigação de paternidade e de impugnação da paternidade, respectivamente), por violação dos art.26 nº1 e 18 nº2 da CRP.

3)

         Condenar a apelada nas custas do recurso.

***
Relator: Des. Jorge Arcanjo
1º Adjunto: Des. Isaías Pádua
2º Adjunto: Des. Teles Pereira (vencido)

Voto de Vencido


            Sem prejuízo de concordar – como concordo – com a decisão de revogar o saneador-sentença apelado, que me parece incorrecto, desde logo pela razão alternativa apontada no final do Acórdão (subsistência de factos controvertidos relevantes para a contagem dos prazos de caducidade da investigação e da impugnação de paternidade, mesmo pressupondo o prazo de três anos introduzido pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril)[1], sem prejuízo disto, dizia, não votei a decisão no que tange à recusa de aplicação por inconstitucionalidade dos artigos 1817º, nºs 1 e 4 (redacção da Lei nº 21/98, de 12 de Maio) e 1842º, nº 1, alínea c) do Código Civil (redacção do Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro) e dos artigos 1817º, nº 1 e 3, alínea b) e 1842, nº 1, alínea c) do Código Civil (redacção da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril), entendendo tal recusa – como creio resultar da fundamentação do Acórdão – como referida ao estabelecimento de todo e qualquer prazo de caducidade para as acções de investigação e impugnação de paternidade.

            Com efeito, não tenho por seguro que o “direito à historicidade pessoal”, enquanto direito à investigação e estabelecimento do respectivo vínculo biológico (paternidade ou maternidade), no quadro do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1 da CRP, acarrete a inconstitucionalidade material do estabelecimento de todo e qualquer prazo, seja ele qual for, de caducidade para este tipo de acções. Reconheço que o entendimento que aqui fez vencimento corresponde ao sentido invariavelmente afirmado pela mais recente jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, concretamente pelo STJ[2]. Todavia, não excluo que a fixação de um prazo de caducidade particularmente alargado, seguramente superior ao de 10 e de 3 anos decorrente da Lei nº 14/2009 – por exemplo, no caso do primeiro destes, um prazo de 20 anos, tomando por referência o estabelecido no artigo 309º do CC –, não excluo, dizia, que a fixação desse prazo alargado possa representar, mesmo pressupondo a enorme densidade axiológica do direito à identidade pessoal e a sua tendencial preponderância, um ponto de equilíbrio aceitável entre a afirmação deste e a do valor da segurança jurídica representado pela estabilização a longo prazo das relações familiares, designadamente no seu elemento patrimonial, enquanto solução conforme à actuação do princípio da proporcionalidade previsto no nº 2 do artigo 18º do texto constitucional.

            Sublinho a este respeito que o Tribunal Constitucional nunca afirmou a inconstitucionalidade da existência de prazos, fossem eles quais fossem, de caducidade das acções visando o estabelecimento da paternidade ou da maternidade – o Tribunal, aliás, sempre recusou expressamente estender as suas apreciações para além dos específicos prazos que se lhe apresentavam no caso concreto[3] –, permanecendo a possibilidade da existência de prazos como questão em aberto na nossa jurisprudência constitucional.  

É neste sentido que, sem prejuízo de um aprofundamento da questão – que para mim permanece como questão em aberto –, e tendo presente que o caso concreto propiciava aproximações alternativas, não acompanho a exclusão de todo e qualquer prazo de caducidade deste tipo de acções afirmada no presente Acórdão.


(J. A. Teles Pereira)


[1] A que acrescentaria a recusa por inconstitucionalidade da aplicação do artigo 3º da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, aplicação esta que funcionou como ratio decidendi da decisão apelada, isto por se tratar de acção pendente em 02/04/2009, nos termos afirmados no Acórdão de 23/06/2009 desta Relação (o qual relatei), proferido no processo nº 1000/06.2TBCNT.C1, disponível no sítio do ITIJ, em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/51f7fd06d4beb50c802575e8002fedd4.
Note-se que esta circunstância – acção proposta em 23/08/2006, posteriormente à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral consubstanciada no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 –, levaria no caso concreto, quanto à investigação de paternidade e, por identidade de razão, à impugnação, a considerar como nunca caduco o exercício deste concreto direito deste A. de averiguar a respectiva paternidade.
[2] V., por exemplo, o recente Acórdão de 08/06/2010 (Serra Baptista), proferido no processo nº 1847/08.5TVLSB-A.L1.S1, disponível na base do ITIJ no endereço: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b32e46ade0311f538025773c00594732.
[3] V., desde logo, o Acórdão nº 23/2006 (Paulo Mota Pinto), disponível no sítio do Tribunal em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060023.html.