Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1000/06.2TBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL
Data do Acordão: 06/23/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1817º E 1873ºDO C. CIV. (REDACÇÃO DA LEI Nº 14/2009, DE 1 DE ABRIL)
Sumário: I - A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do CC, aplicável ex vi do artigo 1873º do CC, constante do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, foi generalizadamente interpretada, designadamente pela jurisprudência do STJ, como significando a imprescritibilidade do direito de investigar a paternidade, com o fim da sujeição deste a prazos;
II – Esta circunstância conduziu ao intentar, subsequentemente à publicação do Acórdão contendo essa declaração (08/02/2006), de diversas acções de investigação de paternidades assentes na inexistência de qualquer prazo de caducidade;

III – A posterior aplicação retroactiva às acções intentadas neste pressuposto do prazo de caducidade constante da redacção introduzida no artigo 1817º do CC, operada pela Lei nº 14/2009 e decorrente do artigo 3º desta (determinando a aplicação da nova redacção aos processos pendentes à data da entrada em vigor do Diploma) ofende ostensivamente as expectativas fundadamente criadas ao abrigo do entendimento referido em I;

IV – Essa aplicação retroactiva viola, em tais situações, o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da CRP, acarretando a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 14/2009, quando aplicado a acções intentadas posteriormente à publicitação do Acórdão nº 23/2006 e anteriormente à entrada em vigor (02/04/2009) desta Lei;

V – O chamado “direito à historicidade pessoal”, enquanto direito à investigação e estabelecimento do respectivo vínculo biológico (paternidade ou maternidade), constitui uma dimensão do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1 da CRP;

VI – O legislador ao referir-se expressamente, no artigo 1801º do CC, a métodos científicos comprovados de prova do vínculo de derivação biológica, acentua o valor e sublinha a preferência por um estabelecimento da filiação alicerçado na verdade biológica alcançada através destes métodos;

VII – A intromissão no direito à incolumidade física de alguém (como compressão sobre um valor constitucionalmente relevante), representada pela sujeição aos testes em que se consubstanciam os métodos científicos de investigação da filiação (concretamente os testes de ADN), no confronto com o direito à investigação dessa filiação (na dimensão constitucional referida em V) apresentam-se como intromissões pouco significativas, que, numa lógica de ponderação dos direitos em confronto, deve ceder, com a consequente obrigação, para os sujeitos relevantes, de se submeterem a esses testes;

VIII – Tal obrigação de sujeição pode, nos termos do artigo 519º do CPC, incidir sobre terceiros relativamente ao vínculo de filiação, designadamente sobre os filhos do investigado, no caso de decesso deste.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. A..., nascida a 19/02/1949 (A. e no presente recurso Agravada), intentou, em 19/07/2006, a presente acção declarativa de condenação, seguindo a forma de processo ordinário e visando a investigação da respectiva paternidade (facto omisso no seu assento de nascimento, como se alcança de fls. 21), dirigindo-a contra B... (R., na dialéctica da acção apresentado como pretenso pai), invocando ser filha deste e pedindo o reconhecimento judicial de tal situação, alegando, além da filiação biológica, enquanto presunção desse facto, a verificação cumulativa das situações de “posse de estado” e de “sedução”, previstas, respectivamente, nas alíneas a) e d) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil (CC)[1].

            1.1. O R. foi pessoalmente citado (v. fls. 27) e veio a contestar, em 23/10/2006 (fls. 29/33 vº), negando em absoluto ser o pai da A.[2] e impugnando todos os factos-base invocados por esta enquanto suporte das presunções de paternidade que indicou no seu articulado inicial[3].

            1.1.1. Entretanto, em 02/11/2006, ocorreu o decesso do A. (v. documento de fls. 42 e a comunicação do seu Mandatário a fls. 41), situação que motivou a suspensão da instância (fls. 51) e a dedução pela A. do incidente de habilitação de herdeiros, consubstanciado no apenso A, culminando este com a prolação da Sentença de fls. 18/20 desse apenso, a qual habilitou a prosseguir na acção em substituição do R. os seus dois filhos C... e D... (Habilitados, os quais ocupam neste recurso a posição de Agravantes). E, com efeito, no presente processo, juntaram os Habilitados procuração passada em favor do Exmo. Mandatário subscritor da contestação apresentada pelo seu pai (fls. 68/69), prosseguindo na acção.

            1.2. Atingiram os autos, assim, a fase de condensação, na qual foram os diversos pressupostos processuais objecto de apreciação tabeliónica (fls. 73) e elaboradas as peças condensatórias (factos provados e base instrutória) de fls. 73/76.

            1.3. Na fase de julgamento, no início da primeira sessão da audiência documentada na acta de fls. 175/176, foi suscitada pelo Exmo. Juiz, aludindo à posição da A. expressa no seu articulado inicial (consubstanciada no artigo 28º transcrito na nota 2 deste Acórdão), a questão da realização de exames de sangue ou ADN, instando as partes, designadamente os Habilitados, a pronunciarem-se sobre essa questão, não equacionada na fase de instrução do processo. A tal respeito, recolhe a acta, desde logo, a seguinte afirmação dos Habilitados:


“[…]
Pelos habilitados do R. foi dito, neste acto, que ocorreu cremação do R. num dos dias subsequentes ao seu óbito.
[…]”
            [transcrição de fls. 175]

            E regista a mesma acta a seguinte tomada de posição por banda da A.:


“[…]
Face à impossibilidade dos testes pedidos, entre a A. e o R., já falecido (pois as cinzas não contêm elementos de ADN necessários), requer, assim, a A., que os referidos testes sejam realizados, caso o Tribunal o permita, através da recolha dos mesmos elementos entre a A. e os ora Habilitados, sendo que se considera que a existência de tais elementos são essenciais antes da audição de qualquer testemunha, para a descoberta da verdade material.
[…]”
            [transcrição de fls. 175]

            Reservando-se os Habilitados uma posterior tomada de posição (o que motivou a não continuação da audiência, v. fls. 176), viriam a fazê-lo, através do requerimento de fls. 180/182, concluindo este com as duas afirmações que aqui se transcrevem:


“[…]
5 - Em conclusão existe um manifesto abuso de direito quer na interposição da acção, quer no requerimento agora formulado pela A., que mais não representa do que um «autêntico tiro no escuro».
6 – Face ao exposto, o requerimento da A. deve ser indeferido, até porque se alguma justificação e oportunidade o exame pudesse ter, seria após a produção de toda a prova testemunhal, para eliminar alguma possível dúvida. É que, a provar-se na audiência de julgamento que a mãe da A. tinha uma vida sexual livre, com diversos homens simultaneamente, e concretamente com os irmãos e os tios do investigado, qual o interesse e o contributo do exame requerido?!
[…]”
            [transcrição de fls. 181vº/182]

            No mesmo requerimento, antecedendo estas duas conclusões, no contexto da afirmação pretérita do R. na contestação, reproduzida neste Acórdão na nota 3, supra, de que a mãe da A. teria mantido relações sexuais com dois irmãos e tios daquele (do R.), contestam a relevância, para o efeito de prova da paternidade aqui apreciada, de possíveis testes de ADN, envolvendo a A. e os Habilitados, juntando a fls. 185/186 um “parecer pericial” por eles solicitado, elaborado no IPATIMUP (acrónimo de Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto)[4].

            Suscitou este requerimento dos Habilitados a formulação pelo Tribunal (concretamente pelo Exmo. Juiz de julgamento) do pedido de esclarecimento indicado a fls. 191, ao Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), mostrando-se a resposta deste organismo junta a fls. 193[5].

            1.4. Surge, então, o despacho de fls. 197/198vº – constitui este o despacho objecto do presente agravo – cujo pronunciamento decisório que ora nos interessa é o seguinte:


“[…]
[A]o abrigo do artigo 519º do Código de Processo Civil, determina-se a realização dos exames científicos requeridos a fls. 175 destes autos pela A. […] (através da recolha a esta mesma demandante e aos RR./Habilitados […] dos elementos tidos por cientificamente necessários).
[…]”
            [transcrição de fls. 198vº]

Justifica-se o Tribunal numa série de considerações, nas quais avulta, à laia de conclusão, a seguinte:


“[…]
[E]stando em causa, nos presentes autos (e para o que ora nos importa), a mobilização de meios científicos de prova – e em nome do princípio básico de que a todo o indivíduo assiste o direito, sendo tal possível, a ver legalmente estabelecidos e reconhecidos os seus vínculos biológicos –, torna-se bastante importante tentarmos a realização dos exames pretendidos pela demandante [tanto mais que, conforme informação prestada pelo Instituto de Medicina Legal, a fls. 193, «(…) nas perícias de investigação da paternidade biológica com recurso a familiares, os valores de probabilidade alcançados irão depender quer do grau de parentesco relativamente ao pretenso pai, quer dos perfis genéticos que cada um destes familiares tem»].
Se tais exames se revelarem inconclusivos (ou, ao invés, conclusivos em um dos sentidos propugnados pelas partes na acção…), bom, essa será uma contingência sempre inerente a qualquer causa judicial…
[…]”
            [transcrição de fls. 198vº]

            1.5. Inconformados, interpuseram os Habilitados o presente recurso de agravo (requerimento de fls. 202/203) pedindo a subida imediata e a fixação de efeito suspensivo ao mesmo, pretensões que foram atendidas no despacho de admissão de fls. 237/238.

            Apresentaram os Habilitados/Agravantes a fls. 242/254 as respectivas alegações, rematando-as com as seguintes conclusões:


“[…]
– O presente recurso versa sobre o douto despacho que, deferindo o requerimento da A. apresentado no início da audiência de julgamento, ordenou a realização dos exames científicos, através da recolha à A. e aos RR. habilitados dos elementos biológicos necessários com vista a estabelecer a identificação biológica de filiação (paternidade) daquela;
– A presente acção baseia-se na presunção legal advinda da posse de estado e no facto naturalístico da procriação biológica, pelo que o exame apenas se destinaria à prova deste último;
– Encontra-se documentalmente provado nos autos que a mãe da A., permanecendo sempre no estado de solteira, teve cinco filhas todas registadas com omissão da respectiva paternidade;
– Está também alegado pelo R. inicial da acção que a mãe da A. fazia vida sexual livre, ou seja, com os homens que a procuravam para satisfazer os seus apetites sexuais, nomeadamente com dois irmãos e dois tios do próprio R., nomeadamente nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da A.;
– Alegou ainda o R. que a A. instaurou a presente acção com objectivos meramente económicos, pois durante toda a sua vida e até 2004, já com 57 anos de idade, nunca visitou, telefonou ou escreveu àquele pretenso pai, apenas o tendo visitado uma vez em 2004 e duas vezes em 2006, para lhe pedir dinheiro, um terreno ou uma casa, encontrando-se o R. já muito doente, com alterações de memória e períodos de confusão mental;
– O Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto emitiu parecer no sentido de, face à ausência de material biológico do pretenso pai, ser impossível estabelecer através de perícia genética a sua paternidade relativamente à A., adiantando que apenas se poderá estabelecer probabilisticamente o parentesco entre familiares sobrevivos do pretenso pai, podendo contudo suceder que, caso o verdadeiro pai da A. seja parente próximo daquele pretenso pai, o resultado obtido corresponda a uma sobre-estima do verdadeiro valor da probabilidade pretendida. Ou seja, o resultado obtido pode falsamente apontar o R. inicial como provável pai da A. caso o verdadeiro pai desta seja um parente próximo daquele R., pelo que nesta situação se imporia também um exame genético aos parentes próximos daqueles irmãos e tios do R., por estes já terem falecido.
– O INML confirma também a tese expendida no parecer do IPATIMUP, não se tendo, contudo, pronunciado sobre a hipótese de o verdadeiro pai da A. ser um parente próximo do R., uma vez que tal hipótese não lhe foi colocada;
– O douto despacho recorrido perante a factualidade exposta entendeu, por um lado, que a realização dos exames científicos ordenados não violam o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar dos RR. Habilitados, nem o direito à sua integridade física e moral, a não ser no caso de «manietação» dos RR. tendente à realização daqueles exames. Por outro lado, entendeu que no caso de os resultados se virem a apresentar como inconclusivos isso será uma contingência sempre inerente a qualquer causa judicial.
– Ora, o mero acto de recolha do material biológico necessário pode, desde logo, lesar ou não a integridade física dos RR. Habilitados, dependendo do método utilizado e do material a recolher, Contudo, aquele acto de recolha do material biológico implica inevitavelmente uma exposição e um prejuízo moral para aqueles RR., por estarmos em presença de pessoas com alguma notoriedade;
10ª – Acresce que, por força do exame, cada um dos RR. Habilitados verá ser transposta para os autos a sua própria identificação genética, com todos os riscos que aquela transposição e esta identificação comportam, podendo em última instância os resultados obtidos colocar em causa a identidade genética que eles no presente momento presumem ter. Nesta situação todos aqueles direitos dos RR. Habilitados serão irremediavelmente atingidos e violados;
11ª – Por outro lado, a posição conformista assumida no douto despacho recorrido perante a hipótese de resultados inconclusivos é inaceitável no caso presente, porquanto são postos em causa aqueles direitos inerentes à personalidade dos RR. Habilitados, acrescendo ainda que não existe a mínima possibilidade de ressarcimento dos danos não patrimoniais causados, pois, nada tendo, a A. ficará totalmente impune.
12ª – Ou seja, o douto despacho recorrido é claramente violador dos princípios constitucionalmente garantidos (cfr. artigo 26º, nº 1 da CRP);
13ª – Nas circunstâncias concretas, existe ainda exercício abusivo do direito da A., atentatório dos mais elementares princípios da boa fé e dos bons costumes, sendo totalmente inadmissível e chocante no caso presente a imputação da paternidade do R. inicial da presente acção – ou a qualquer outro homem em concreto – face ao comportamento sexual da mãe da A. que se alega na contestação e se comprova pelos diversos assentos de nascimento das suas cinco filhas, factos que a A. pura e simplesmente omitiu. Ou seja, a presente acção representa um «tiro no escuro», uma autêntica «lotaria». Isto para além da A. ser movida por interesses de índole meramente económico.
14ª – Quando muito, o exame apenas seria de admitir após a produção da restante prova e por forma a podê-la complementar, pois caso se provem os factos insertos nos quesitos 11 a 15 da base instrutória, o exame será absolutamente desproporcionado, face aos interesses em conflito, e inútil.
15ª – O douto despacho recorrido violou os artigos 70º, nº 1, 80º, nº 1 e 334º do CC e os artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
[…]”
            [transcrição de fls. 249/254]

            1.6. Entretanto, em 12/06/2009 (6ª feira), já depois do processo se encontrar inscrito em tabela, agendado para a sessão de 16/06/2009, apresentaram os Habilitados/Agravantes o requerimento de fls. 266/268, que motivou o adiamento para a presente sessão (23/06/2009). Nesse requerimento, a propósito da publicação da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, que alterou a redacção dos artigos 1817º e 1842º do CC[6], indicando a aplicação da mesma “[…] aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor” (artigo 3º respectivo), vieram os Agravantes sublinhar a questão dos prazos de propositura da acção de investigação de paternidade decorrentes da alteração introduzida por esta Lei (vale aqui a remissão para o artigo 1817º do CC constante do artigo 1873º do mesmo Código), extraindo dessa circunstância a superveniência da perda de utilidade da realização dos exames de ADN determinados no despacho agravado.

            Para compreensão do sentido do requerimento dos Agravantes relativamente ao presente recurso, considera-se útil proceder aqui à transcrição dos seguintes trechos da referida peça:


“[…]
A presente acção foi instaurada com base: a) [n]a filiação biológica (matéria dos quesitos 2, 3 e 4 da B.I.); b) [n]a presunção de paternidade prevista no nº 1, alínea a) do artigo 1817º do CC (matéria dos quesitos 5, 6, 7, 8 e 9 da B.I.).
Isto significa que a A. não tem de provar directamente a filiação biológica, porque está agora impedida de a invocar directamente face à caducidade estabelecida no nº 1, alínea a do artigo 1817º do CC.
Esta filiação biológica apenas pode ser provada por presunção, ou seja, através da demonstração que foi tratada como filha pelo pretenso pai. Ou seja, o Tribunal não tem agora que conhecer directamente do facto biológico da procriação, perdendo assim qualquer utilidade a matéria alegada nos quesitos 2, 3 e 4 da B.I., que deve ser dada sem efeito por não ter interesse para a decisão da causa, uma vez que tal factualidade não integra a única causa de pedir que se mantém válida.
Ora, o exame de ADN requerido pela A. e que constitui o objecto do recurso de agravo pendente, destina-se directamente à prova da filiação biológica e não dar resposta aos quesitos cuja factualidade integra a presunção de paternidade prevista no nº 1, alínea a) do artigo 1817º do CC.
Ou seja, o exame requerido e ordenado no despacho recorrido perdeu assim qualquer utilidade, pois não poderão resultar dele quaisquer dados ou elementos tendentes a provar a matéria consubstanciadora da presunção de paternidade (única causa de pedir válida no presente momento) […].
Face ao exposto, deverá ordenar-se a eliminação dos quesitos 2, 3 e 4 da B.I. e declarado inútil o exame ordenado no douto despacho recorrido, revogando-se este, face àquela alteração legal superveniente.
[…]
            [transcrição de fls. 266vº/267]
 


II – Fundamentação


            2. Encetando a apreciação do agravo, ocorre consignar, preambularmente, que o âmbito objectivo deste se define, como sucede com todos os recursos, através das conclusões formuladas pelos recorrentes [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[7]]. Todavia, exteriormente a essas conclusões – rectius, posteriormente a elas –, emergiu como questão (adicional) que importará abordar a supervenientemente introduzida pelos Agravantes através do requerimento de fls. 266/268 ( já indicado e caracterizado no item 1.6. supra).

Reconduz-se esta outra questão à ponderação da incidência, no conhecimento do elemento temático em causa no agravo (a pertinência da realização dos exames de ADN determinados pelo despacho de fls. 197/198vº), da entrada em vigor das alterações introduzidas no artigo 1817º do CC (aqui aplicável ex vi do artigo 1873º do CC) pela Lei nº 14/2009.  

           

Trata-se, pois, em qualquer dos casos, tanto face às conclusões em si mesmas consideradas, como face ao requerimento de fls. 266/268, de controlar a pertinência da determinação, contida no despacho agravado de fls. 197/198vº, da realização de exames de ADN, visando a determinação da paternidade da A. e envolvendo, além desta, os Habilitados, enquanto filhos do pretenso pai (R. inicial da acção) entretanto falecido.

Assim, ficcionando a introdução de uma espécie de elemento adicional nos argumentos conclusivos do agravo, o problema suscitado pelos Agravantes no requerimento de fls. 266/268 posicionar-se-á como a questão da incidência de uma alteração legislativa, superveniente à interposição e motivação do recurso, de inegável vocação projectiva para o passado, no desenvolvimento e na própria utilidade deste mesmo recurso. Aliás, em bom rigor, tal incidência, enquanto típica questão de direito (a publicação, na pendência do recurso, da Lei nº 14/2009, em função da aplicação da mesma aos processos pendentes, decorrente do respectivo artigo 3º), pode e deve ser tratada por esta Relação (v. artigo 664º do CPC), valendo aqui a ideia de que a vinculação temática da instância de recurso à reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido, sempre salvaguarda a apreciação de matérias que se prefigurem como de conhecimento oficioso[8]. E isto vale – desde já adiantamos o que a subsequente exposição tornará claro –, como não poderia deixar de ser, dado o disposto no artigo 204º da Constituição da República Portuguesa (CRP), para a aferição da constitucionalidade das disposições legais cuja aplicação em concreto a dilucidação do recurso venha a convocar.

Começaremos, assim – e nestes termos fica a incidência do presente recurso tematicamente caracterizada –, a apreciação do agravo pela abordagem desta questão particular: (1) o sentido que aqui podem apresentar as alterações introduzidas pela Lei nº 14/2009 ao prazo de propositura das acções de investigação de paternidade, face ao elemento em causa no despacho recorrido, questão que pressupõe que se encare a incidência do elemento de direito transitório introduzido pelo artigo 3º da citada Lei nº 14/2009. Seguidamente (2), a persistir a utilidade desse elemento (a possível realização dos exames determinada no despacho agravado), consideraremos as questões suscitadas pela realização desses exames, face às particularidades do caso concreto.

Entretanto, relativamente às incidências práticas da acção que importará tomar em conta neste recurso, consigna-se que pressuporemos, enquanto elementos factuais e circunstanciais a considerar no processo argumentativo subsequente, todos e cada um dos actos processuais relatados no antecedente item – rectius, o respectivo conteúdo –, actos que se encontram, como é bom de ver, documentalmente provados.

É, pois, com base neste enquadramento que procederemos à apreciação do agravo.

2.1. (1) A potencial relevância na presente situação da entrada em vigor da Lei nº 14/2009, decorre da circunstância, já antes sublinhada, desse Diploma conter uma norma de direito transitório (o artigo 3º) estabelecendo a aplicação do mesmo – rectius, das alterações por ele introduzidas nos artigos 1817º e 1842º do CC – “[…] aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”. Tal aplicação, cujo sentido de projecção retroactiva da lei (nova) relativamente a um tipo específico de situações passadas (aquelas em que já se encontre pendente uma acção visando a constituição do vínculo de filiação), tal aplicação, dizíamos, significaria, desde logo, e basta aqui movermo-nos no quadro de uma corriqueira “interpretação declarativa”[9], que a presente acção de investigação de paternidade viesse, supervenientemente, a perder muito do seu sentido.

É certo que os Agravantes fazem, no requerimento de fls. 266/267, uma (discutível) separação no seio da causa de pedir, projectando-a na permanência da utilidade da acção, entre a questão da pretensão do estabelecimento da filiação biológica (para a qual interessariam os testes) e a do estabelecimento do mesmo vínculo com base nas presunções elencadas no artigo 1871º do CC[10], para as quais os testes já seriam – dizem-no os Agravantes – espúrios. Discordamos totalmente desta asserção. De qualquer forma, mesmo tendo presente que o artigo 1817º do CC (tanto na nova como na antiga redacção) contém, no confronto entre o nº 1 e os restantes números, não tanto prazos distintos mas formas diversas de contar o prazo de propositura de uma acção de investigação de paternidade em situações particulares (as previstas nos nºs 2 a 4 desse artigo 1817º), situações que se expressam na presença de circunstâncias instrumentais (as presunções) dotadas de um valor especial, mesmo tendo isto presente, dizíamos, a questão da aplicação da lei nova a situações passadas, representadas estas pelas acções já propostas à data da entrada em vigor da Lei nº 14/2009, permanece como uma questão operante neste processo e relativamente a este recurso, implicando ela que se determine – e isso só pode passar pela aplicação em concreto do artigo 3º da Lei nº 14/2009 – o sentido que aqui apresenta a projecção retroactiva de um (novo) prazo de exercício do direito de acção que, algo paradoxalmente, projectaria, também retroactivamente, uma extinção superveniente desse prazo.

Lembramos que isto só sucede – só sucederia, a aplicarmos o artigo 3º da Lei nº 14/2009 – passando por cima daquilo que resultaria da aplicação do critério geral da nossa lei substantiva, estabelecido no artigo 297º do CC, para as situações de sucessão de leis no tempo nos casos – e seguimos aqui a formulação de J. Baptista Machado – em que o decurso dum prazo funciona “[…] como pressuposto da aquisição ou da perda dum direito subjectivo”[11]. Com efeito, aplicando à presente situação a tal regra geral (no caso a que se extrairia da mensagem teleológica contida no artigo 297º, nº 1 do CC[12]), o efeito dessa aplicação só poderia consistir na salvaguarda, considerando-o tempestivamente exercido, do direito de acção aqui plasmado em 2006, ou, dizendo o mesmo por outras palavras, considerando não ter caducado o direito de acção aqui exercido. E esta asserção, no efeito pretendido alcançar pelo Legislador da Lei nº 14/2009, encerra o completo absurdo da situação: tratar-se-ia de dizer, aplicando a nova redacção do artigo 1817º, nº 1 do CC aos processos pendentes, como pretende o legislador, que um direito de acção exercido tempestivamente[13] no passado caducaria, por intempestividade, no futuro.

Seja como for, temos o artigo 3º da Lei nº 14/2009, e este é claro no intuito de projectar as alterações introduzidas pelo Diploma nos processos pendentes, sendo sua vocação substituir-se às tais regras gerais antes enunciadas. Ora, tal disposição, enquanto dado jurídico de facto, constitui um dado interpretativamente inultrapassável, sendo certo que a letra da lei é, na consequência directamente visada, inequívoca – repetimo-la mais uma vez: “[aplicar-se a lei nova] aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”.

Sublinhamos este facto pois entendemos não existir na norma em apreço espaço interpretativo algum que se abra a qualquer entendimento-outro que não passe, pura e simplesmente, por uma leitura concordante com o sentido gramatical óbvio do texto: a todos os processos pendentes em que se investigue uma paternidade (para nos cingirmos à hipótese aqui em causa) “aplicam-se” os novos prazos para a propositura dessa acção, retirando-se o efeito do respectivo esgotamento quando, ao tempo da propositura dessa acção, esse prazo – verifica-se agora – já se mostrasse transcorrido.     

É que, tem aqui pleno sentido a regra decorrente do artigo 9º, nº 2 do CC, “[n]ão pode[ndo] […] ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. E esta asserção constitui uma questão de direito constitucional aplicado, reportando-se ao papel do juiz, num Estado de direito democrático, traduzindo uma aplicação prática do princípio da separação de poderes (artigos 2º e 203º da CRP). Vale aqui a máxima interpretativa clássica, formulada nos anos quarenta do século passado pelo Juiz do Supremo Tribunal Federal norte-americano Felix Frankfurter: “ainda que os tribunais não estejam subjugados pela letra da lei, têm nela o seu limite”[14]. É neste sentido, aliás, que o respeito pela letra da lei constitui, em si mesmo, um problema de natureza constitucional, como o caracteriza Aharon Barak: “[a] asserção de que a linguagem estabelece o limite inultrapassável da interpretação traduz uma asserção constitucionalmente relevante […]. De acordo com o princípio da separação de poderes, o papel constitucional do juiz como intérprete é o de «interpretar» um texto criado por quem (o legislador) dispõe desse poder. Na sua qualidade de intérpretes os juízes não dispõem de poder ou autoridade para «criar» novos textos legais”[15]. Aliás, tudo isto se poderia resumir na caracterização feita por J. Baptista Machado da letra da lei como limite inultrapassável da interpretação:


“[…]
A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do artigo 9º, nº 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) «que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso». Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto «falhado» se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. Afasta-se assim o exagero de um subjectivismo extremo que propende a abstrair por completo do texto legal quando, através de quaisquer elementos exteriores ao texto, descobre ou julga descobrir a vontade do legislador.
[…]”[16]

            Aqui, com efeito, o legislador foi tão claro – disse tão claramente aquilo que queria –, que ninguém pode ter dúvidas quanto ao efeito por ele pretendido.

            Sublinhar este aspecto apresenta neste caso uma intencionalidade muito particular, sendo certo que a norma a que nos vimos referindo (o artigo 3º da Lei nº 14/2009) coloca, como veremos de seguida, importantes problemas de conformidade constitucional (consideramo-la inconstitucional), valendo a expressividade da sua letra, enquanto exclusão de uma possível alternativa assente naquilo que usualmente se qualifica como opção pela interpretação conforme à Constituição, enquanto manifestação de uma preferência pela conservação (salvação) das normas. Com efeito, como refere J. J. Gomes Canotilho, “[…] a interpretação das leis em conformidade com a Constituição deve afastar-se quando, em lugar do resultado querido pelo legislador, se obtém uma regulação nova e distinta, em contradição com o sentido literal ou sentido objectivo claramente recognoscível da lei […]”[17]. Nestes casos, acrescenta o mesmo Autor, sendo esse “[…] sentido objectivo claramente recognoscível da lei […]” antagónico de normas ou princípios constitucionais, o caminho que se impõe ao intérprete – ao intérprete juiz – é, pura e simplesmente, o da recusa da aplicação da norma, no quadro do acesso à Constituição facultado a todos os tribunais, desconcentradamente, pelo artigo 204º da CRP.

            2.1.1. Coloca-se, pois, a questão da desconformidade à Constituição do artigo 3º da Lei nº 14/2009, importando equacionar aqui o problema.

            A nossa jurisprudência constitucional foi confrontada, desde o final dos anos 80 do século anterior (concretamente desde 1988), em sede de fiscalização concreta, com suscitações de questões de inconstitucionalidade referidas aos prazos de caducidade das acções de investigação de paternidade, previstos no artigo 1817º do CC, norma aplicável em função do disposto no artigo 1873º do mesmo Código. A primeira resposta fornecida pelo Tribunal teve lugar através do Acórdão nº 99/88 (Cardoso da Costa)[18], que decidiu, com um voto de vencido (Luís Nunes de Almeida), não julgar inconstitucional o estabelecimento desses prazos, vendo-os como elementos condicionadores e não restritivos dos direitos fundamentais invocados em apoio dessa imputação de desconformidade constitucional (muito centrada, então, no princípio da igualdade entre filhos nascidos dentro e fora do casamento)[19].

            Resumindo, em traços muito largos, o caminho percorrido, posteriormente ao Acórdão nº 99/88, pela nossa justiça constitucional, detectamos uma paulatina aproximação ao entendimento do prazo limite de propositura de uma acção de investigação de paternidade previsto no nº 1 do artigo 1817º do CC (dois anos após a maioridade do investigante – 20 anos de idade), como comportando uma violação dos princípios constitucionais decorrentes da conjugação dos artigos 26º, nº 1 (direito à identidade pessoal), 36º, nº 1 (direito de constituir família) e 18º, nº 2 (princípio da proporcionalidade) da CRP. Essa aproximação culminou com a prolação do Acórdão nº 486/2004 (Paulo Mota Pinto)[20], julgando inconstitucional o referido artigo 1817º, nº 1, decisão esta posteriormente confirmada, no Plenário do Tribunal (num recurso ao abrigo do nº 1 do artigo 79º-D da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), pelo Acórdão nº 11/2005 (Paulo Mota Pinto)[21].

            Seguiram-se a este aresto diversas decisões sumárias positivas de inconstitucionalidade, todas elas remetendo para o citado Acórdão nº 11/2005, que formaram o bloco das três decisões positivas que originaram, interposto pelo Ministério Público, o recurso que desencadeou a fiscalização abstracta sucessiva (artigo 281º, nº 3 da CRP) do artigo 1817, nº 1 do CC, aplicável (já que sempre estiveram em causa investigações de paternidade) ex vi do disposto no artigo 1873º do CC, recurso este que originou a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral plasmada no mencionado (v. nota 14, supra) Acórdão nº 23/2006.

            Importa recordar aqui o pronunciamento decisório emitido pelo Tribunal Constitucional nesse aresto, sublinhando ter sido ele publicado (rectius, publicitado) na I Série do Diário da República do dia 8 de Fevereiro de 2006:


“[…]
[O] Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
[…]”

            Um traço marcante desta decisão – poderíamos mesmo dizer da linha decisória que lhe subjaz –, cujo sentido se colhe inequivocamente na respectiva fundamentação, consistiu na assumida subtracção do Tribunal a um pronunciamento que abrangesse no juízo de desconformidade constitucional da norma em questão, a existência de prazos ou o estabelecimento de qualquer prazo – fosse ele qual fosse, se excedente dos dois anos posteriores à maioridade do investigante – de caducidade do direito de acção: o Tribunal nunca disse – repete-se e sublinha-se –, que a fixação de qualquer prazo seria inconstitucional, apenas considerou constitucionalmente inadequado o prazo dos dois anos subsequentes à maioridade. Com efeito, disse a tal respeito o Tribunal:


“[…]
Importa começar por deixar bem vincado que, na averiguação da conformidade constitucional da solução limitativa, actualmente consagrada na norma ora em apreço, o que está em questão não é qualquer imposição constitucional de uma «ilimitada (…) averiguação da verdade biológica da filiação». Pese embora a tese defendida pelo recorrente, de que qualquer caducidade da acção de investigação de paternidade é inconstitucional, no presente recurso está apenas em questão o concreto limite temporal previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, de dois anos a contar da maioridade ou emancipação (portanto, no máximo, os vinte anos de idade do investigante). Não constitui, assim, objecto do presente processo apurar se a imprescritibilidade da acção corresponde à única solução constitucionalmente conforme. Antes o que está em causa é, apenas, a constitucionalidade da específica limitação prevista nesta norma, que (salvo casos excepcionais, como o da existência de «posse de estado») exclui o direito a averiguar a paternidade depois dos 20 anos de idade: a acção «só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação». É este limite temporal de «dois anos posteriores à maioridade ou emancipação», e não a possibilidade de um qualquer outro limite, que cumpre apreciar – e, consequentemente, só sobre aquele específico limite temporal, previsto actualmente no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, se poderá projectar o juízo de (in)constitucionalidade a proferir.
[…]”[22]
            [sublinhado acrescentado]

            A consequência para a norma em causa nesta decisão do Tribunal Constitucional, resulta, para dizer-mos o óbvio, do texto da Constituição (artigo 282º, nº 1) e traduziu-se na produção de “[…] efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional […] determina[ndo] a repristinação das normas que ela haja eventualmente revogado”. Remete-se aqui para a caracterização deste efeito, feita por José Manuel Cardoso da Costa:


“[…]
Como se infere [do artigo 282º, nº 1], a Constituição não prevê propriamente a declaração de «nulidade» da norma; a simples declaração de inconstitucionalidade […] tem, porém, um efeito equivalente, pois que opera, em princípio, com eficácia ex tunc (artigo cit. nºs 1 e 2), eliminando ab initio do universo jurídico a norma inconstitucional […] e os seus efeitos.
[…]”[23]

O efeito normal – chamemos-lhe assim – da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral contida no Acórdão nº 23/2006, traduzir-se-ia, pois, na repristinação da norma antecessora do artigo 1817º, nº 1 do CC. Ora, sendo certo que o prazo nesta previsto foi desde logo introduzido pela versão inicial do Código Civil de 1967 (Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966)[24], seríamos remetidos, por via do efeito repristinatório, para uma “recuperação” do regime do Código de Seabra, no trecho temporal deste posterior à chamada “Lei da protecção dos filhos” da I República (Lei nº 2 de 25 de Dezembro de 1910, publicada no Diário do Governo, nº 70, de 27 de Dezembro de 1910)[25].

Note-se que a crítica deste regime foi assumida, no âmbito dos trabalhos preparatórios do actual Código Civil, no final dos anos 50 do século passado, por Manuel Gomes da Silva, nos seguintes termos:


“[…]
Deixando-se o reconhecimento da filiação à simples iniciativa dos interessados […] e permitindo-se as acções de filiação mesmo depois da morte dos pais, acontece que na grande maioria dos casos os filhos ilegítimos crescem ao abandono sem qualquer educação e amparo e, só quando suspeitam terem provindo de um pai rico, procuram, geralmente já em adultos e depois da morte dele, investigar a paternidade.
Este sistema conduz ao resultado de anular por completo aquilo que constitui verdadeiramente o núcleo das exigências da justiça acerca dos filhos ilegítimos – a atenuação, na medida do possível, dos efeitos da ilegitimidade sobre a formação da personalidade – e conduz, como resultado positivo, apenas àquilo que menos se justifica e mais prejudica a família legítima; a exigência tardia de bens materiais que já não concorrem para modificar a situação moral e social dos filhos ilegítimos e são extorquidos, quiçá muitas vezes com fraude, àqueles que desde há muito tinham legítima expectativa sobre esses bens.
[…]
Impõe-se inverter os termos do problema, quer para assegurar a protecção dos pais à grande maioria dos filhos ilegítimos, quer para proteger a família legítima contra investigações feitas em momento em que já não têm verdadeiro interesse social e em que a defesa da família é, na prática, muito difícil.
[…]
Paralelamente procurámos condicionar a investigação de paternidade com maior cautela do que a lei presente.
A orientação foi em tudo sempre a mesma: estimular as investigações nas idades inferiores, não só por ser nessas idades que o reconhecimento tem real interesse social, mas também por nos parecer que as possibilidades de prova são tanto mais esbatidas, quanto mais remoto é o nascimento; encarando o problema por este último aspecto, fomos, até, levados a dosear os prazos de caducidade das acções por forma variável, segundo o maior ou menor valor que atribuímos à prova indiciária, contida nas respectivas condições de admissibilidade.
[…]”[26]
            [sublinhado acrescentado]

            E foi este regime de prazos de propositura das acções de investigação de paternidade, assim fundamentado aquando da preparação do Código Civil, que foi incluído em 1967 no texto do artigo 1854º, nº 1. Foi este regime que posteriormente transitou no essencial para o artigo 1817º, nº 1, na revisão de 1977 do Código, sendo que o legislador desta Reforma, nas palavras de Guilherme de Oliveira, considerou tal regime de prazos “[…] uma «restrição proporcional» do direito de investigar a paternidade, para defesa de interesses basilares do sistema jurídico, como eram a «segurança jurídica», a viabilidade prática dos processos judiciais no sentido de atingirem a verdade, e o exercício dos direitos conforme às suas finalidades legais – porque era disto que se tratava quando se falava da necessidade de garantir «segurança» aos pretensos pais, do perigo de «envelhecimento das provas» e do uso do direito de investigar só para obter heranças”[27]. Foi este, enfim, o regime que se deparou ao Tribunal Constitucional no processo que culminou com a prolação do Acórdão nº 23/2006.

            Ora, seria a recuperação serôdia do sistema anterior a este, antecedente do Código Civil (a recuperação do sistema que vigorou entre 1910 e 1967), que a ideia de repristinação introduziria, após a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Cabe sublinhar, todavia, que a aceitação incondicional dos efeitos repristinatórios neste caso não se afiguraria uma solução particularmente feliz, no sentido de adequada à realidade presente: traduziria a reintrodução de um regime de complicada compatibilização prática com o actual, encarado este na sua unidade estrutural, dado que assentava e pressupunha (o sistema anterior a 1967) conceitos de difícil transposição para o presente, prefigurando-se neste caso a repristinação como uma solução pouco razoável, desfasada do nosso tempo (que não é o 1967, mas também não é o de 1910) exterior ao espírito do sistema e que não contribuiria para a unidade lógica deste[28]. Isso mesmo, aliás, foi intuído e afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), quando foi confrontada com a questão das consequências da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 1817º, nº 1 do CC. É este o sentido, com efeito, da afirmação contida no Acórdão do STJ de 17/04/2008 (Fonseca Ramos)[29], de que “[a] questão decidida pelo Tribunal Constitucional, no sentido da inconstitucionalidade do prazo de caducidade, não repristina qualquer norma, apenas deixa sem prazo tais acções”.

            Claro que existiria, para o intérprete aplicador, uma outra alternativa de resposta ao efeito de desaparecimento do prazo do nº 1 do artigo 1817º do CC, decorrente da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Referimo-nos à supressão dessa falta de prazo – tendo presente que o Tribunal, como se disse antes, não inviabilizou a fixação de todo e qualquer prazo –, através da criação, “[…] dentro do espírito do sistema […]” (integrado este à luz do pronunciamento do Tribunal Constitucional) de um (outro) prazo de caducidade das acções de investigação de paternidade que, alargando substancialmente os dois anos subsequentes à maioridade (que correspondem hoje em dia aos 20 anos de idade), criasse um espaço temporal de equilíbrio e viabilidade, referidos à maturidade do investigante, para o exercício do direito a ver judicialmente estabelecida a respectiva paternidade. Tratar-se-ia de uma opção assente na detecção de uma lacuna, enquanto incompletude (uma situação que deixou de estar prevista) de um sistema que na sua essência postularia uma regulação daquela situação, através do estabelecimento de um prazo[30]. Agir-se-ia, assim, num quadro de integração de uma lacuna, com base no nº 3 do artigo 10º do CC, ou seja, “criando” o próprio intérprete a norma (contendo o prazo) como “[…] se [este] houvesse de legislar dentro do espírito do sistema”.

            Constituiria este um caminho possível – sublinhamos aqui o adjectivo “possível” –, face ao Acórdão nº 23/2006, caminho este que reputamos de perfeitamente conforme às legis artis interpretativas[31].  

            2.1.1.1. Não foi este, todavia – e trata-se de um dado de facto a reter –, o caminho invariavelmente seguido pela nossa jurisprudência, concretamente a do STJ, quando confrontada com o problema de extrair consequências, em casos concretos, da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo até aí previsto no nº 1 do artigo 1817º do CC. Corresponderam esses casos concretos, maioritariamente, a situações em que foram propostas acções de investigação de paternidade, por quem já não preenchia o (desaparecido) pressuposto temporal previsto na referida norma: trataram-se de acções propostas para além (muito para além) dos dois anos posteriores à maioridade do investigante.

            Com efeito, e trata-se de um dado invariavelmente presente na jurisprudência do STJ, posteriormente ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, sempre foi afirmada – e foi-o enfaticamente e como concreta ratio decidendi da consideração de um exercício tempestivo do direito de acção – que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo previsto naquele nº 1, suprimia todos os prazos, deixava, enfim, de sujeitar a qualquer prazo a propositura de uma acção de investigação de paternidade.

            Esta asserção – e constitui este um outro elemento marcante do entendimento pelo STJ da decisão do Tribunal Constitucional – apareceu, também invariavelmente, associada à de que “[o] direito a conhecer a paternidade […] é um direito inviolável e imprescritível” (trecho do sumário do Acórdão do STJ de 17/04/2008, citado na nota 30).

            Esta compreensão do problema havia recebido um importante contributo doutrinário, ainda antes do Acórdão nº 23/2006 (e quando o entendimento do Tribunal Constitucional ainda não se mostrava perfeitamente definido), através de um importante texto de Guilherme de Oliveira (o estudo citado na nota 28, supra), no qual este Autor anunciava, isto em 2004, a sua mudança de entendimento[32], quanto à questão da compatibilidade constitucional dos prazos previstos no Código Civil para a instauração de acções de investigação de paternidade:


“[…]
A circunstância de a lei prever um prazo de caducidade para a acção de investigação tem por consequência que, por vezes, um pretenso filho não dispõe da possibilidade de constituir um vínculo de maternidade ou de paternidade. Este regime é sentido como uma injustiça da lei, sobretudo quando um pretenso filho está muito convencido de que ganharia a acção se o deixassem promovê-la. Daí os pedidos de declaração de inconstitucionalidade que foram apresentados ao Tribunal Constitucional.
Estes pedidos não tiveram provimento e, de certo modo, eu tive alguma responsabilidade nestas decisões, pois publiquei, em 1983, afirmações que foram usadas na sustentação da tese vencedora […].
Hoje tenho as maiores dúvidas em defender isso.
[…]”[33]

            O entendimento de Guilherme de Oliveira quanto ao caminho a seguir, nos termos justificados ao longo desse texto, era o da imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade (no sentido de existência de fundamento constitucional para não as sujeitar a qualquer prazo de caducidade), terminando com a seguinte síntese conclusiva:


“[…]
Julgo, em suma, que se tornou sustentável alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos artigos 1817º e 1873º do CC.
[…]”[34]

            E, antevendo as consequências dessa inconstitucionalidade, caracterizava-a esse mesmo Autor nos seguintes termos:


“[…]
O que, a ser admitido, tornaria o regime inaplicável pelos tribunais. O direito do filho deveria então poder ser exercitado a todo o tempo, durante a sua vida – contra o suposto pai ou contra outros legitimados em seu lugar.
[…]”[35]

            Foi esta antevisão dos efeitos da inconstitucionalização do artigo 1817º do CC que, em certo sentido, guiou a nossa jurisprudência quando, mais tarde, foi confrontada pelo problema real resultante da supressão na ordem jurídica portuguesa, mercê da declaração de inconstitucionalidade, dos prazos previstos nessa norma, concretamente do prazo previsto no nº 1 dela.

            Esta linha foi seguida, e não conhecemos posições divergentes, pelos Acórdãos do STJ (e seguimos uma ordem cronológica) de 14/12/2006 (Alves Velho)[36], 31/01/2007 (Borges Soeiro)[37], 23/10/2007 (Mário Cruz)[38], 17/04/2008 (Fonseca Ramos)[39] e de 03/07/2008 (Pires da Rosa)[40]. Em todos estes colhemos uma afirmação expressa da imprescritibilidade das acções de investigação da paternidade, na sequência da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral:


“[…]
Se bem interpretamos a declaração de inconstitucionalidade não contendo nem prevendo qualquer restrição nem aludindo a cláusulas de salvaguarda, elimina completamente a norma no que respeita à subsistência do termo estabelecido no prazo-regra para o exercício do direito de investigar.
[…]
E, assim sendo, perante o acolhimento da ideia da inconstitucionalidade de qualquer prazo, assente na de imprescritibilidade do direito de investigar, essencialmente fundada na «diminuição do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família» e na desproporcionalidade de restrições, afigura-se-nos que não podem deixar de estar abrangidas pela mesma declaração de inconstitucionalidade as normas que, como a do nº 4, se limitam a alargar prazos em razão do concurso de pressupostos que a norma geral dispensa.
[…]”
            [Acórdão de 14/12/2006]


“[…]
O respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade não só do direito de investigar como do de impugnar.
[…]”
            [Acórdão de 31/01/2007]


“[…]
O Tribunal Constitucional já declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do artigo 1817º, nº 1 para a propositura da acção de investigação com base na investigação biológica pura, referindo que a acção pode ser proposta a qualquer momento independentemente do prazo. […] Devem também considerar-se inconstitucionais os demais números do mesmo artigo, uma vez que no seu núcleo está precisamente o mesmo direito constitucional à identidade e dignidade pessoal […].
[…]”
            [Acórdão de 23/10/2007]


“[…]
O direito ao conhecimento da ascendência biológica, deve ser considerado um direito da personalidade e, como tal, possível de ser exercido em vida do pretenso progenitor e continuado se durante a acção morrer, correndo a acção contra os seus herdeiros, por se tratar de um direito personalíssimo, imprescritível, do filho investigante. […] Esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se inscreve no direito de personalidade é um direito inviolável e imprescritível.
[…]”
            [Acórdão de 17/04/2008]


“[…]
O Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 […], que declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do nº 1 do artigo 1817º do CC […], acentua claramente a ideia de imprescritibilidade das acções de reconhecimento de um estado pessoal, por um indeclinável respeito pelo direito fundamental à identidade pessoal […].
[…]”
            [Acórdão de 03/07/2008]

            2.1.1.2. A valoração deste entendimento jurisprudencial uniforme apresenta uma enorme relevância, quando se trata (e é o que aqui sucede) de apreciar a incidência do artigo 3º da Lei nº 14/2009 nas acções (acções pendentes) intentadas posteriormente à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do nº 1 do artigo 1817º do CC, nos casos em que o investigante, constata-se agora em função da aplicação desse artigo 3º[41], “não dispunha” no passado, segundo a lei nova, de prazo para a propositura da acção (10 anos posteriores à sua maioridade ou emancipação). A projecção retroactiva desta lei nova aos processos pendentes à data da entrada em vigor da mesma, frustra intoleravelmente a confiança depositada pelo proponente da acção – confiança que precisamente o levou a propor essa acção – num entendimento perfeitamente consolidado e indiscutível, segundo o qual a propositura dessa acção não estaria sujeita a qualquer prazo.

            Esta consequência valorativa, que de tão evidente quase nem necessita de ser explicitada, induz, através da aplicação a um caso como este (acção proposta em 19/07/2006) da disposição transitória constante do artigo 3º da Lei nº 14/2009, uma evidente violação do princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança ínsitos no princípio do Estado de direito democrático, decorrente do artigo 2º da CRP.

            Com efeito, não se pode, com uma expressividade tão intensa quanto a acima caracterizada, criar uma situação de efectiva tutela de uma expectativa de se dispor de uma faculdade expressa num direito de acção, determinar-se (em função dessa expectativa) o desencadear dessa faculdade e, a posteriori, retirar-se retroactivamente essa faculdade, projectando-se para trás a caducidade dessa faculdade concretizada num direito de acção já exercido.

            De tão evidente no seu carácter absurdo, por referência ao senso comum e ao princípio constitucional antes citado, nem necessitaria esta asserção de inconstitucionalidade da invocação de muitos precedentes justificativos. Sublinhar-se-á, porém, que o Tribunal Constitucional, desde o órgão seu antecessor, a Comissão Constitucional, vem conferindo ao princípio da confiança a natureza de norma de controlo da retroactividade de normas (da projecção retroactiva ou retrospectiva de normas), fora dos casos previstos nos artigos 29º, nº 3 e 103º, nº 3 da CRP, quanto a frustração de expectativas legítimas criadas ao abrigo de um regime legal anterior, sejam destruídas de forma manifesta, arbitrária ou opressiva (v. o Parecer da Comissão Constitucional nº 14/82[42]). Resumindo a essência da jurisprudência do Tribunal Constitucional nestas situações, remetemos para a síntese feita no Parecer do Conselho Consultiva da Procuradoria Geral da República de 29/04/1992 (Henriques Gaspar)[43]:


“[…]
A retroactividade das leis (ou a produção de efeitos retrospectivos), embora não excluída directamente pela Constituição, fora das hipóteses previstas nos artigos 18º, nº 3 e 29º, pode, todavia, afectar o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição.
[…] A lei retroactiva, ou que produza efeitos quanto a situações ou relações constituídas no passado e ainda subsistentes no momento em que entra em vigor, viola o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito quando a produção de tais efeitos se revele opressiva, intolerável e inadmissível, por afectar em medida acentuada a confiança que os cidadãos têm o direito de depositar na continuidade das relações jurídicas constituídas e seus efeitos.
[…]”

            E isto mesmo foi sublinhado por Armindo Ribeiro Mendes, a propósito do regime transitório estabelecido na Reforma do Processo Civil de 1995, ao caracterizar o entendimento da nossa jurisprudência constitucional sobre tal matéria:


“[…]
[E]m acórdãos de 1987 e de 1990, na esteira da jurisprudência [constitucional] alemã, o Tribunal Constitucional português julgou serem inconstitucionais normas que previam – ao menos na interpretação judicial das mesmas – a extinção de recursos pendentes, se estes não estivessem inscritos em tabela em certa data, e a aplicação imediata dos novos valores das alçadas aos processos pendentes […].
Em especial no Acórdão nº 287/90, o Tribunal Constitucional considerou que, face à tradição nacional decorrente de dados legislativos acolhidos de diferentes diplomas que se sucederam no tempo, a aplicação imediata do novo valor das alçadas aos processos pendentes, constante do artigo 106º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1987, seria susceptível de afectar expectativas das partes com que elas podiam razoavelmente contar, sendo tal afectação excessiva e extraordinariamente onerosa, o que conduzia à inconstitucionalidade da solução.
[…]”[44]

            E este entendimento da indevida projecção retroactiva de leis (fora das proibições específicas atinentes à lei criminal e tributária), permanece presente na jurisprudência recente do Tribunal Constitucional, quando essa retroactividade, afirma-o o Tribunal, “[…] acarreta o efeito perverso de permitir a aplicação do novo regime a factos ocorridos anteriormente à sua publicação”, como se disse no Acórdão nº 615/2007 (Ana Guerra Martins)[45], particularizando-se numa declaração de voto (Maria Lúcia Amaral) que o princípio da confiança é afectado quando o legislador “[elege], como critério de aplicação da lei nova, um facto totalmente alheio à manifestação de vontade dos particulares (ao tempo e ao modo dessa mesma manifestação) [lesando] de forma excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária, as expectativas legítimas que os particulares depositavam na continuidade da Ordem Jurídica e na previsibilidade do seu devir”.

            Não temos dúvidas quanto à aplicação de todas estas considerações (no sentido da inconstitucionalidade) à situação criada pelo artigo 3º da Lei nº 14/2009, ao projectar retroactivamente, nos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (02/04/2009, v. o respectivo artigo 2º), as alterações (fixação) dos prazos de caducidade das acções de investigação de paternidade, quando essas acções tenham sido intentadas anteriormente à Lei nº 14/2009 e posteriormente à publicação do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 (08/02/2006) e conduzam, em sede de aplicação do referido Diploma, à constatação do esgotamento (no “passado”) desse prazo e à consequente inviabilização do prosseguimento dessas acções pendentes à data da entrada em vigor desse mesmo Diploma.

            Esta constatação conduz, inexoravelmente, à inconstitucionalidade material desse artigo 3º da Lei nº 14/2009, por violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da CRP, e à consequente recusa de aplicação dessa norma (o referido artigo 3º), nos termos do artigo 204º da CRP.

            É o que adiante, na parte decisória deste Acórdão, se fará expressis verbis, retirando-se por agora, em função de tal entendimento, a consequência da subsistência da utilidade da apreciação deste recurso, nos exactos termos configurados ao tempo da sua subida a esta instância, ou seja, por referência à decisão recorrida e às conclusões transcritas no item 1.5. deste Acórdão, com base na situação que se configurava posteriormente ao Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional e anteriormente à lei nº 14/2009. Perdem, pois, qualquer sentido as pretensões veiculadas pelos Agravantes a este Tribunal no requerimento de fls. 266/268[46].

            Permanecendo a utilidade do recurso em todos os seus elementos e vertentes, designadamente na não caducidade do respectivo direito de acção referido à data da propositura, em 19/07/2006, da presente investigação de paternidade, importa apreciar, agora, a questão dos exames determinados no despacho agravado.

 

2.2. (2) Os exames de ADN mandados realizar no decurso do julgamento (embora não seja dito expressamente no despacho que os exames são deste tipo, retira-se do seu contexto intrínseco e da referência ao que foi requerido a fls. 175 que desse tipo de exames se trata), nos exactos termos em que a sua realização foi determinada na primeira instância, envolvem quem é parte na acção (os Habilitados são-no inquestionavelmente) embora se possa dizer, num determinado sentido, que estão dirigidos a “terceiros”, aferindo esta qualidade relativamente à relação de derivação biológica (filiação/paternidade) que a causa de pedir da presente acção expressa[47].

A realização de exames, com aceitação de se sujeitar a eles – e trata-se este de um dado a reter –, foi expressamente mencionada em vida pelo pretenso pai (então R. na acção), aquando da contestação, nos termos que tivemos oportunidade de deixar transcritos supra na nota 4 (artigo 39º da contestação a fls. 32vº) e para os quais aqui remetemos. Reconhece-se que a questão da realização desses exames, nos (novos) termos em que passou a colocar-se após o decesso do R./pretenso pai, apresenta contornos específicos que importará ter presentes e ponderar, mas não nos parece que a expressa aceitação dos exames pelo R., enquanto visado directo pela pretensão da A., tenha passado à categoria de elemento totalmente irrelevante no novo contexto processual gerado com a morte do R.. Não se trata aqui de atribuir a essa anuência um efeito projectivo para além da morte do anuente, uma espécie de expressão de algo aparentado a uma vontade processual “testamentária” de vincular os seus filhos a, também eles, anuírem, mas – repete-se – essa aceitação não é absolutamente despicienda na avaliação da situação que supervenientemente se configurou[48]. Aliás, tratou-se essa declaração do R. exarada na contestação, tal como sucedera com a correspondente declaração da A. inserta na petição inicial, de um significativo acto procedimental de natureza postulativa, “[…] destinado à obtenção de uma decisão [do tribunal]  com determinado conteúdo […]”[49]. Foi basicamente o que sucedeu aqui, embora com a nuance, não irrelevante, do “ponto de chegada” postulado (a decisão determinativa dos exames pressuposta pela prática do acto postulativo) ter ocorrido num contexto processual subjectivamente específico, já algo distinto do desencadeado através da prática pelo A. do acto processual com as apontadas características.

É o diverso contexto em que as coisas neste processo se vieram a colocar, quanto à questão da sujeição a exames postulada inicialmente por ambas as partes, que importa aqui valorar. 

2.2.1. Movemo-nos num quadro referencial – moveu-se o Exmo. Juiz a quo ao assumir a opção aqui questionada pelos Agravantes – em que é a própria lei substantiva a conter um significativo elemento de intencionalidade probatória, através da expressa alusão ao uso da prova pericial (artigo 1801º do CC, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro[50]). Vinca-se, assim, uma clara opção de preferência por um estabelecimento da filiação tributário do princípio da verdade biológica, cientificamente comprovada, que faça coincidir o estatuto jurídico de filho com a realidade do correspondente vínculo de derivação biológica. A esta opção preside o intuito de ultrapassar, na medida do possível, as habituais vias alternativas à (desejada) prova directa, cientificamente estabelecida, do referido vínculo, a saber: as vias decorrentes da prova indirecta consubstanciada no recurso às presunções legais de paternidade, previstas nas cinco alíneas do nº 1 do artigo 1871º do CC ou, fora destas, resultantes das “[…] presunções naturais ou judiciais, alicerçadas em regras ou máximas de experiência, nos termos consentidos pelo artigo 351º do CC”[51].

A concretização deste elemento no processo – outra não pode ser a mensagem normativa contida no artigo 1801º do CC – implicará, em muitas situações, um uso mais intenso pelo juiz dos poderes instrutórios decorrentes do artigo 265º, nº 3 do CPC[52]. Com efeito, como refere Paula Costa e Silva:


“[…]
Que a realização de testes de ADN no âmbito de processo de investigação da filiação é admissível, resulta expressamente do artigo 1801º do CC, preceito que tem sido alvo de crítica pois que se limita a afirmar alguma coisa que decorre já do princípio da liberdade de prova, vigente no nosso sistema.
Que o juiz possa ordenar a realização de testes de ADN parece decorrer em linha directa dos poderes instrutórios do tribunal, expressamente previstos no artigo 265º do CPC.
[…]”[53]

            Quanto à recusa de sujeição aos exames pelos (por alguns dos) sujeitos passivos visados, que aqui nos surge na forma “preventiva” de contestação ao despacho que os determinou, embora apresente nesta situação algumas incidências específicas que adiante ponderaremos, traduz-se essa recusa pelos Agravados, fundamentalmente, na convocação da habitual corte de argumentos de pendor constitucional, referidos a uma suposta ofensa do direito à integridade pessoal e à liberdade dos visados (só alguns deles) pelos exames (artigos 25º e 27º da CRP). Tratam-se de argumentos normalmente empregues nestas situações, repetidos ad nauseam, sobre os quais existem múltiplos precedentes jurisprudenciais, afastando, em termos gerais, a sua relevância[54]. O ora relator abordou, aliás, esta questão, num contexto não totalmente coincidente com o aqui em causa, mas argumentativamente relevante para muitos dos aspectos suscitados pelos Agravantes, num Acórdão desta Relação proferido 12/12/2006 (processo nº 562/2002.C1)[55] para cuja argumentação remetemos aqui.

            A questão de constitucionalidade pretendida suscitar pelos ora Agravantes não tem qualquer sentido, constitui mesmo um falso argumento, sendo desmontada por variadíssimos precedentes persuasivos do Tribunal Constitucional, que sustentam, precisamente, a asserção contrária à veiculada neste recurso pelos Habilitados. Veja-se, por exemplo, incidindo sobre uma situação de recusa à realização de exames de paternidade, seguida da actuação do artigo 519º, nº 2 do CPC, o Acórdão nº 616/98 (Artur Maurício)[56], do qual extraímos o seguinte trecho:


“[…]
[M]esmo pressupondo [o] constrangimento [decorrente do artigo 519º, nº 2 do CPC[57]] sempre resultaria um adequado equilíbrio, constitucionalmente admissível, na tutela dos direitos em presença.
É notório o valor probatório, em acções de investigação de paternidade, dos exames de sangue, cujos resultados –  saliente-se – tanto podem ser favoráveis ao A. como ao R. pretenso progenitor.
Presente no caso o direito do R. à sua integridade física, não deixa de estar igualmente em causa, naquelas acções, um outro direito fundamental – o direito do [investigante] à identidade pessoal, consagrado no artigo 26º nº 1 da CRP. No ensinamento de Gomes Canotilho e Vital Moreira, o sentido deste último direito «é o de garantir aquilo que identifica cada pessoa como indivíduo, singular e irredutível (abrangendo) seguramente, além do direito ao nome, um direito à historicidade pessoal» («Constituição da República Anotada», anotação II ao artigo 26º). E mais adiante dizem os mesmos autores:
«O direito à historicidade pessoal designa o direito ao conhecimento da identidade dos progenitores, podendo fundamentar um direito à investigação da paternidade ou da maternidade».
[…]
Ora, neste confronto de direitos e interesse, a normação ordinária pertinente não se afiguraria arbitrária ou gratuita se se entendesse limitado o direito do R. à sua integridade física, tendo muito especialmente em conta, por um lado, o objectivo da norma que admitiu o exame de sangue como meio probatório na acção de investigação de paternidade e os efeitos, em sede probatória, da recusa em efectuá-lo e, por outro, o grau mínimo de ofensa corporal em que se traduz esse mesmo exame.
Violado não é, assim, o artigo 25º da CRP pelos artigos 1801º do Código Civil e 519º nº 2 da CPC. […]”[58]

           

Este é o entendimento do Tribunal Constitucional relativamente ao equilíbrio de direitos que uma sujeição indesejada de alguém a testes de paternidade não deixa de expressar[59]. Note-se, desde logo, que o ênfase colocado pelo Tribunal na dimensão do direito à “historicidade pessoal”, enquanto emanação concreta do direito à identidade pessoal, expresso no artigo 26º, nº 1 da CRP, não deixou também de motivar, embora com o desvalor acima apontado, a alteração introduzida no Código Civil, nos artigos 1817º e 1842º, pela já amplamente referida Lei nº 14/2009, de 1 de Abril[60]. E, sublinhe-se, enfim, ainda no quadro de uma apreciação valorativa da jurisprudência do Tribunal Constitucional, com incidência nos argumentos de constitucionalidade aqui convocados, que é a especificidade desse direito à “historicidade pessoal” que conduziu o Tribunal, a propósito do limite global de cinco anos à interposição de um recurso de revisão (prazo previsto no artigo 772º, nº 2 do CPC), a proferir uma decisão positiva de inconstitucionalidade, no Acórdão nº 209/2004 (Gil Galvão)[61], e uma decisão negativa, no Acórdão nº 310/2005 (Rui Moura Ramos)[62]. Com efeito, estando em causa em ambas as decisões o mesmo prazo respeitante ao recurso de revisão (e até os mesmos pressupostos do recurso de revisão), a especificidade da primeira situação, justificativa da ultrapassagem da consolidação absoluta propiciada pelo caso julgado, residiu, precisamente, na circunstância de estar em causa uma acção respeitante ao estabelecimento do vínculo de filiação, quando o segundo Acórdão se referia a um processo (de inventário) cuja incidência era, em exclusivo, de natureza patrimonial[63].

Serve tudo isto para sublinhar que o argumento de inconstitucionalidade referido à determinação judicial da realização de (da sujeição de alguém a) exames de ADN, não apresenta, nos termos em que é aqui colocado pelos Agravantes, nenhuma virtualidade que o destaque, num debate em torno da compatibilização dos diversos direitos fundamentais envolvidos, da generalidade das situações consideradas pela nossa jurisprudência constitucional. Embora sejam os Habilitados e não o seu pai (primitivo R.) os destinatários directos da injunção de se sujeitarem a esses exames, não deixamos de continuar a ver neste tipo de situações, e especificamente nesta, uma relevante actuação do “direito ao conhecimento das origens genéticas”[64], alcandorado à categoria de “direito fundamental” por referência à chamada “cláusula aberta” do artigo 16º, nº 1 do texto constitucional, através de uma intersecção interpretativa do “princípio da dignidade da pessoa humana” (artigo 1º da CRP) com o “direito à identidade pessoal” (artigo 26º, nº 1 da CRP)[65], num domínio em que a compatibilização com a posição protagonizada pelos terceiros sujeitos passivos do exame nos parece exigir a cedência da posição destes últimos, com base em argumentos de proporcionalidade. Com efeito, a quase insignificância da intromissão na integridade física de alguém representada por uma simples “zaragatoa bocal”[66], não atinge, no confronto dos valores aqui envolvidos, qualquer patamar de relevância quanto ao direito à incolumidade física e, no mais que se diz [no mais que os Agravantes dizem: “[…] exposição e um prejuízo moral para [eles] por estarmos em presença de pessoas com alguma notoriedade” (fls. 252)]. Além de não ser evidente que as coisas assumam o sentido que os Agravantes pretendem atribuir-lhes[67], não deixa esta Relação de ver um equilíbrio perfeitamente aceitável, estabelecido entre posições jurídicas antagónicas, mas carentes de uma compatibilização relacional, com base em regras e princípios dotados de estalão constitucional[68].

Aliás, a incidência pretendida pelos Agravantes na presente situação de alguns dos argumentos que adiantam na motivação do recurso levariam – a não estarmos perante um uso menos apropriado ou feliz da linguagem na configuração de argumentos – a resultados inaceitáveis e absurdos ou que não deixam de ser reversíveis, colocando-os (a eles Agravantes) numa posição substancialmente idêntica à “desvaliosamente” atribuída à Agravada. Referimo-nos, no primeiro caso (argumentos absurdos), ao argumento “estranho” (para usarmos um eufemismo) de que a investigação da respectiva paternidade pela filha de alguém que foi (ou é apresentada como) sexualmente promíscua, constituiria um “abuso de direito” (é isto mesmo o que está escrito na conclusão 13ª do recurso acima transcrita). E referimo-nos, no segundo caso (argumentos reversíveis), à imputação à A. de prosseguir “interesses de índole meramente económic[a]” (fls. 253): acaso não poderemos, enquanto observadores exteriores, seguindo a mesma racionalidade, dizer o mesmo dos Habilitados? É certo que todos nós tendemos a expressar uma visão benevolente das nossas próprias motivações no confronto com as motivações alheias, mas as coisas não deixam de valer pelo que realmente valem e o mais seguro nesta matéria, quando se trata de especular sobre intenções alheias, é limitarmo-nos à interpretação do Direito, face aos factos objectivamente considerados, não formulando conjecturas sobre essas motivações. O mais seguro é, enfim, quando pensamos nos motivos que movem cada um nestes casos, ficarmo-nos pela teoria da “análise económica do Direito” quando nos encara a todos, à partida, como “egoístas racionais”[69].

2.2.2. Existe, todavia, e há que o abordar no que apresenta de específico, o problema de serem os Habilitados e não o primitivo R. os destinatários passivos dos testes de ADN determinados pelo Tribunal a quo. Trata-se, porém, de uma questão mais aparente que real, face aos dados fundamentais do problema. Estamos desde logo – e estamos formalmente – perante quem é parte neste processo, em função de uma Sentença de habilitação, e que não deixa de prosseguir, dadas as particularidades deste tipo de acção, interesses pessoais, como o são os referentes ao estabelecimento de laços familiares próprios. A sujeição a exame tem, pois, sentido, quase em termos praticamente coincidentes com os que se colocavam para o pai dos Agravantes (que, repete-se, aceitou sujeitar-se aos exames).

Esta problemática não é, aliás, ignorada pela nossa doutrina, enquanto dado de facto produtor de consequências no processo, como resulta do Estudo já anteriormente citado de Paula Costa e Silva (v. nota 54, supra): “[a] possibilidade de se recorrer a outros indivíduos, para além daquele que é investigado, a fim de se realizarem testes de ADN no âmbito de acções de investigação da filiação deverá estar sempre presente”[70]. É neste sentido, aliás, que o artigo 519º do CPC dirige a sua facti species impositiva a “[t]odas as pessoas, sejam ou não partes na causa […]” (nº 1), sendo que os Agravantes até são parte na presente causa.

2.2.3. E resta-nos, para integral cobertura dos argumentos dos Agravantes, as questões técnicas pretendidas suscitar quanto à relevância dos testes na presente situação.

Valem aqui – valem no argumentário dos Agravantes – elementos de facto (a afirmação de ter existido relacionamento sexual da mãe da A., no período legal da concepção, com familiares do pretenso pai) meramente hipotéticos, ainda não demonstrados (ainda ninguém produziu prova das respectivas afirmações) e que, como tal, não podem funcionar como algo distinto daquilo que realmente são, neste momento: simples hipóteses; afirmações de factos ainda carentes de produção de prova. Não pode, assim, condicionar-se a organização da prova pericial considerada – e bem – como primordialmente relevante (até porque poderá levar, desde já, a uma exclusão da paternidade do investigado), em função de simples cenários hipotéticos. Tenha-se presente que a produção dessa prova não perde em absoluto relevância face à demonstração desses cenários (remete-se aqui para uma leitura objectiva e desapaixonada da informação prestada pelo IPATIMUP a fls. 185/186, a cuja transcrição procedemos na nota 5).

Seja como for, os Agravantes não são neste processo os “pontífices” (do Latim pontifex: construtor de pontes) da aproximação do Tribunal ao conhecimento científico que se mostre relevante para a valoração da prova pericial. Vale aqui a inteira capacidade do Instituto Nacional de Medicina Legal para desempenhar tal tarefa, enfim, para avaliar todos os elementos que na apreciação dos exames devam ser tidos em conta (desde já ao realizá-los, como se determinou, ou, mais tarde, a auxiliar o Tribunal a valorá-los face à globalidade da prova recolhida[71]), sem prejuízo da faculdade das partes, e dos Habilitados em concreto, de aportarem elementos de contextualização ou de compreensão da prova pericial, relativamente à qual vigora um princípio de livre apreciação racionalmente motivada (artigo 389º do CC)[72]. Trata-se, todavia, para as partes, de fornecerem elementos de compreensão da prova, não de condicionarem (menos ainda de bloquearem) a actividade instrutória do Tribunal.

2.3. Vale tudo isto – o percurso argumentativo precedentemente desenvolvido neste item 2.2. (2) – como afirmação da inteira correcção do despacho agravado, ao determinar, no preciso momento em que o fez, a realização de testes de ADN, com sujeição aos mesmos da A. e dos Habilitados. Sobre estes (A. e Habilitados) impende o dever geral e especial de respeitarem e acatarem essa determinação do Tribunal. É o que decorre do artigo 519º do CPC.

2.4. Na formulação deste entendimento – além da recusa de aplicação do artigo 3º da Lei nº 14/2009 – se esgota a apreciação do recurso por esta Relação, no quadro dos limites objectivos do respectivo pronunciamento (daquele que é apto a formar caso julgado) face ao concreto thema decidendum. Todavia, a benefício da clarificação da situação, embora se trate de uma espécie de obiter dictum, não deixaremos de sublinhar que a primeira instância disporá, na ulterior marcha do processo, de inteira liberdade de apreciação e de reacção à conduta das partes, no caso de estas, contumazmente, pretenderem inviabilizar a produção da prova pericial ordenada. Valerá, nesse caso, sempre, a liberdade do julgador de aplicar o Direito, no quadro das legis artis interpretativas, optando pela consideração da recusa nos termos propugnados por uma ou outra das correntes interpretativas a tal respeito conhecidas[73]. Nada está, a este nível, vinculativamente pré-definido, permanecendo a resposta a fornecer a essa eventualidade como uma questão em aberto.

2.5. Resta, assim, formular uma decisão, não sem que antes deixemos aqui nota, em síntese, dos elementos fundamentais do antecedente percurso argumentativo:


I – A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do CC, aplicável ex vi do artigo 1873º do CC, constante do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, foi generalizadamente interpretada, designadamente pela jurisprudência do STJ, como significando a imprescritibilidade do direito de investigar a paternidade, com o fim da sujeição deste a prazos;
II – Esta circunstância conduziu ao intentar, subsequentemente à publicação do Acórdão contendo essa declaração (08/02/2006), de diversas acções de investigação de paternidades assentes na inexistência de qualquer prazo de caducidade;
III – A posterior aplicação retroactiva às acções intentadas neste pressuposto do prazo de caducidade constante da redacção introduzida no artigo 1817º do CC, operada pela Lei nº 14/2009 e decorrente do artigo 3º desta (determinando a aplicação da nova redacção aos processos pendentes à data da entrada em vigor do Diploma) ofende ostensivamente as expectativas fundadamente criadas ao abrigo do entendimento referido em I;
IV – Essa aplicação retroactiva viola, em tais situações, o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da CRP, acarretando a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 14/2009, quando aplicado a acções intentadas posteriormente à publicitação do Acórdão nº 23/2006 e anteriormente à entrada em vigor (02/04/2009) desta Lei;
V – O chamado “direito à historicidade pessoal”, enquanto direito à investigação e estabelecimento do respectivo vínculo biológico (paternidade ou maternidade), constitui uma dimensão do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1 da CRP;
VI – O legislador ao referir-se expressamente, no artigo 1801º do CC, a métodos científicos comprovados de prova do vínculo de derivação biológica, acentua o valor e sublinha a preferência por um estabelecimento da filiação alicerçado na verdade biológica alcançada através destes métodos;
VII – A intromissão no direito à incolumidade física de alguém (como compressão sobre um valor constitucionalmente relevante), representada pela sujeição aos testes em que se consubstanciam os métodos científicos de investigação da filiação (concretamente os testes de ADN), no confronto com o direito à investigação dessa filiação (na dimensão constitucional referida em V) apresentam-se como intromissões pouco significativas, que, numa lógica de ponderação dos direitos em confronto, deve ceder, com a consequente obrigação, para os sujeitos relevantes, de se submeterem a esses testes;
VIII – Tal obrigação de sujeição pode, nos termos do artigo 519º do CPC, incidir sobre terceiros relativamente ao vínculo de filiação, designadamente sobre os filhos do investigado, no caso de decesso deste. 


  


III – Decisão


            3. Face ao exposto, decide-se:

A) Recusar a aplicação, por inconstitucionalidade material, do artigo 3º da Lei nº 14/2009, de 1 Abril, enquanto norma de direito transitório que manda aplicar, no que respeita ao prazo de propositura de uma acção de investigação de paternidade, retroactivamente, a redacção introduzida por essa Lei no artigo 1817º do Código Civil (aplicável por força do disposto no artigo 1873º do CC), a uma acção que (como esta) foi proposta subsequentemente à publicação (em 08/02/2006) do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional[74], e que se encontrava pendente à data da entrada em vigor (em 02/04/2009) dessa Lei nº 14/2009;

B) Fundar tal recusa de aplicação na violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, previsto no artigo 2º da Constituição;

C) Negar provimento ao presente agravo, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida (a decisão constante do trecho final do despacho de fls. 197/198 vº), respeitante à sujeição dos Habilitados ora Agravantes aos testes de ADN determinados nessa decisão.

            Custas pelos Agravantes.


[1] Logo no articulado inicial (consta este de fls. 14/19), indicou a A. o seguinte:
“[…]
28º - Refira-se desde já, que a A. não se opõe, e até requer de imediato se proceda aos testes de identificação biológica de filiação, quer através de amostras de sangue, quer através de exames de ADN, que se mostrem necessários à descoberta da verdade material.
[…]”
                [transcrição de fls. 17]
[2] Na contestação, no contexto da atribuição à mãe da A. de ter mantido relações sexuais com diversos indivíduos durante o período legal da concepção daquela, referiu o R., entre outras situações, a seguinte:
“[…]

14º
Aliás, o R. teve dois irmãos (E... e F... ) e dois tios (G... e H... ), todos já falecidos, sendo certo que pelo menos o E... e o G... conviveram com a mãe da A. e com ela satisfizeram as suas necessidades sexuais, nomeadamente durante o período em que ocorreu a gravidez de que resultou o nascimento da A., ou seja, nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento, não sendo também de excluir que o mesmo se tenha passado com o F... e com o H....
[…]”
                [transcrição de fls. 30, ênfase no original omitido aqui]
[3] Neste articulado incluiu o R. o seguinte trecho:
“[…]
39º
Inexistindo, face ao já exposto, qualquer presunção de paternidade, o R. não se opõe a quaisquer testes com vista a apurar a paternidade biológica da A., até porque esta não pode sair ilesa das afirmações difamatórias que lançou sobre aquele.
[…]”
                [transcrição de fls. 32 vº]
[4] Aqui se transcreve o conteúdo deste, sublinhando-se que os pressupostos da pergunta formulada pelos Habilitados constam de fls. 183/184, incluindo a hipótese de a mãe da A. ter mantido relações sexuais no período legal da concepção com dois irmãos e dois tios do R.:
“[…]
1. Nas circunstâncias descritas (ausência de material biológico do pretenso pai) é impossível estabelecer, através de perícia genética, a sua paternidade relativamente à A.
2. O que se pode, nestas circunstâncias, é estabelecer, pelo menos probabilisticamente, o parentesco entre familiares sobrevivos do pretenso pai, o que neste caso corresponde a, obtidos os perfis genéticos, comparar a verosimilhança relativa das hipóteses:
H1 – os dois filhos de AAOCB [o R.] são meios-irmãos paternos da A.
H2 – os dois filhos de AAOCB não são aparentados com a A.
3. Faz-se notar que o enquadramento formal explicitado no ponto anterior assume que os citados dois filhos de AAOCB o são do ponto de vista genético e não apenas legal.
4. As probabilidades referidas em 2. poderão não apresentar valores considerados suficientemente convincentes para alicerçar uma decisão, particularmente se os dois filhos estabelecidos de AAOCB forem de sexo masculino (a situação mais favorável seria a de ambos serem de sexo feminino), embora exista uma razoável expectativa de, no caso de AAOCB não ser, de facto, o pai da A., se encontrarem situações de incompatibilidade genética.
5. As mesmas probabilidades são estabelecidas supondo que H1 e H2 são mutuamente exclusivas e exaustivas. Assim, caso o verdadeiro pai da A. seja parente próximo de AAOCB, aquela razão de verosimilhança corresponde a parente próximo de AAOCB, aquela razão de verosimilhança corresponde a uma sobre-estimativa do verdadeiro valor da probabilidade pretendida.
[…]”
                [transcrição de fls. 186]
[5] Diz essa resposta:
“[…]
[C]umpre-nos informar que nas perícias de investigação da paternidade biológica com recurso a familiares, os valores de probabilidade alcançados irão depender quer do grau de parentesco relativamente ao pretenso pai, quer dos perfis genéticos que cada um destes familiares tem.
Mais se informa que, se pudéssemos dispor de material biológico da mãe da A. (se ainda for viva), muito contribuiria para o total esclarecimento do exame solicitado. No entanto, só após a realização da perícia solicitada, será possível determinar qual a probabilidade de paternidade do falecido B... relativamente a A....
[…]”
                [transcrição de fls. 193]
[6] Esta entrou em vigor no dia 02/04/2009 (v. respectivo artigo 2º).
[7] Este último, por estar aqui em causa um processo iniciado em 2006, na existência e redacção que apresentava anteriormente à reforma do regime dos recursos introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1 do mencionado diploma). Note-se que, pela mesma razão, qualquer disposição do CPC citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterada pelo Decreto-Lei nº 303/2007, o é na versão anterior ao referido Diploma.
[8] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, Lisboa, 1997, pp. 395/396.
[9] Utilizando a formulação clássica de Ferrara, referindo-se às situações de coincidência absoluta entre o resultado da interpretação lógica e o da gramatical, diremos que se “[fala] de interpretação declarativa, porque não se faz mais que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo” (Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, antecedido de Manuel A. Domingues de Andrade, Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 147).
[10] Adiante (nota 48) teremos oportunidade de referir esta questão a propósito da caracterização da causa de pedir nas acções de investigação ou reconhecimento judicial da paternidade.
[11] Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968, p. 161. Como refere este Autor, “[a]s soluções fixadas pelos artigos 297º e 299º [do CC] representam soluções geralmente defendidas pela doutrina, já com base nos princípios gerais de direito transitório, já com fundamento em razões de equidade ou de prática conveniência. Por isso, parece que podemos dizer destes dois preceitos que eles formam, com os artigos 12º e 13º, um conjunto de regras de validade geral sobre os conflitos de leis no tempo” (pp. 161/162).
[12] Porque em rigor não se trata de criar um novo prazo mais curto (a situação directamente prevista na norma), mas de criar um prazo onde anteriormente parecia não existir prazo algum.
[13] Exercido tempestivamente porque o foi posteriormente à prolação do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional (Paulo Mota Pinto), o aresto contendo a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do nº 1 do artigo 1817º do CC. Tenha-se presente que data tal Acórdão de 10/01/2006 e foi publicado no Diário da República, I Série-A, de 08/02/2006, estando disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060023.html.
[14] Cit. por Ahron Barak,  in Purposive interpretation in Law, Priceton, Oxford, 2005, p. 19. A máxima, que na tradução perde muita da sua força é, no original, a seguinte: “While courts are no longer confined to the language, they are still confined by it”.
[15] Ibidem.
[16] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 189.
[17] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Almedina, Coimbra, s.d., p. 1210.
[18] Está publicado no Diário da República, II Série, nº 193, de 22/08/1988.
[19] Tratou-se, por parte do Tribunal Constitucional, de aplicar a distinção, clássica na doutrina alemã mas sempre discutível, entre restrição (einschränkung) e configuração (ausgestaltung), entendendo-se que nem todas as normas de direito ordinário que têm que ver com uma posição abarcada por um direito fundamental se traduzem em restrições deste, podendo antes configurá-lo, e isso dispensá-las-á, nesta visão das coisas, de uma justificação jusfundamental, face (entre nós) ao artigo 18º, nº 2 da CRP (v. a caracterização desta distinção em Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986, pp. 300/307).  
[20] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040486.html.
[21] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050011.html.
[22] Tenha-se presente que num voto concorrente particular constante deste Acórdão nº 23/2006, a Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, sublinhou que julgava censurável, no artigo 1817º, nº 2 do CC, tão-só, “[…] a fixação de um prazo impreterível de dois anos para a caducidade do direito de propor a acção […]”.
[23] A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3ª ed. revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 2007, p. 93.
[24] Cujo artigo 1854º, nº 1 estabelecia: “[a] acção de investigação de maternidade ou paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua emancipação ou maioridade”. Foi este regime, no aspecto que especificamente aqui nos interessa, que transitou, com a reforma do Código Civil introduzida pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, para o actual artigo 1817º do CC.
[25] Na sua versão original o artigo 130º do Código de Seabra proibia a acção de investigação de paternidade ilegítima, excepto nos casos de escrito do pai declarando expressamente a paternidade, de existência de posse de estado ou de estupro violento ou rapto coincidentes com a época do nascimento.
Este regime, no que aqui nos interessa, foi substituído, em 1910, numa das primeiras leis da República, pelas seguintes disposições da mencionada Lei nº 2 de 25/12/1910:
“[…]
Artigo 37º
A acção de investigação de paternidade ou maternidade só pode ser intentada em vida do pretenso pai ou mãe, ou dentro do ano posterior à sua morte, salvas as seguintes excepções:
1º. Se os pais falecerem durante a menoridade ou demência dos filhos, porque neste caso, têm estes o direito de intentar a acção, contanto que o façam antes que expirem os primeiros quatro anos da sua emancipação ou maioridade ou do estabelecimento da sua razão;
2º. Se o filho obtiver, depois do prazo de um ano indicado neste artigo, um documento escrito e assinado pelos pais, em que estes revelem a sua paternidade; porque, neste caso, pode propor a acção a todo o tempo em que haja alcançado o sobredito documento, se realmente provar que o obteve dentro dos seis meses que procederam a proposição da demanda; isto sem prejuízo das regras gerais acerca da prescrição dos bens.
[…]
Artigo 42º
Os herdeiros dos filhos podem prosseguir nas acções de investigação pendentes, mas só podem intentá-las de novo tendo o filho falecido, ou tendo caído em demência, na ocasião em que ainda lhe era lícito propor a acção nos termos do artigo 37º, nº 1, e havendo falecido nesse estado sem que a acção tivesse sido proposta pelo tutor.
§ único. Esta acção prescreve pelo lapso de um ano, contado desde o falecimento do filho.
[…]”
[26] “O Direito da Família no Futuro Código Civil (segunda parte)”, no BMJ, nº 88 (1959), pp. 86 e 89 (cfr., caracterizando o regime introduzido em 1967, Francisco Pereira Coelho, Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol II, tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 240/241).
[27] “Caducidade das Acções de Investigação”, na Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, nº 1/2004, p. 9.
[28] Diz-nos a doutrina, que“[e]mbora não se estabeleçam restrições aos efeitos repristinatórios, estes não devem aceitar-se incondicionalmente. Tendo em conta a sua razão de ser, é lógico que […] entre nenhuma norma e a norma repristinada, seja esta a solução mais razoável […]” (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit. pp. 1004/1005).
[29] Correspondente ao processo com o nº 08A474, estando este disponível no sítio do ITIJ, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9192ebc240ebcdf28025742e0039f69e.
[30] Nisto reside a essência do conceito de lacuna jurídica (v. J. Baptista Machado, Introdução ao Direito…, cit., p. 194).
[31] Cumpre frisar, no entanto, que este caminho foi expressamente recusado pelo Acórdão do STJ de 17/04/2008, indicado na nota 30, supra (v., parecendo sugerir a criação de um prazo pelo intérprete, J. P. Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 290, nota 1)
[32] Relativamente à obra Critério Jurídico da Paternidade, Coimbra, 1983, pp. 463/471.
[33] “Caducidade das Acções de Investigação”, cit. p. 7 (referia-se o Autor, obviamente, às decisões do Tribunal Constitucional anteriores à sequência que viria a culminar no Acórdão nº 23/2006).
[34] Ob. cit., p. 13.
[35] Ibidem, nota 18.
[36] Correspondente ao processo com o nº 06A2489, estando este disponível no sítio do ITIJ, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/29ee5e5bef8d6b578.
[37] Correspondente ao processo com o nº 06A2489, estando este disponível no sítio do ITIJ, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ed9c408697a4d9a3.
[38] Correspondente ao processo com o nº 07A2736, estando este disponível no sítio do ITIJ, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/35f82e7c0f604ca48.
[39] Indicado na nota 30, supra.
[40] Correspondente ao processo com o nº 07B3451, estando este disponível no sítio do ITIJ, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/577e988adaee374f8.
[41] Em função da aplicação retroactiva de um prazo determinada por esse artigo 3º.
[42] Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 19, Imprensa Nacional Casa da Moeda, s.d., p. 195.
[43] http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/7fc0bd52c6f5cd5a802568c0003fb410/6ed7db854e02595.
[44] “As Disposições Transitórias dos Diplomas da Reforma do Processo Civil”, in Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pp. 17/18.
[45] http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070615.html.
[46] Algumas delas, aliás, enquanto pretensões dirigidas a esta instância num recurso de agravo incidente sobre uma questão muito concreta, totalmente desprovidas de sentido (referimo-nos, por exemplo à determinação de alterações – por sinal indevidas – da base instrutória). 
[47] Seguimos aqui, a propósito da definição da causa de pedir nestas acções, a caracterização de Carlos Lopes do Rego: “[…] a causa de pedir nas acções de investigação ou reconhecimento da paternidade é o facto naturalístico da procriação biológica do filho pelo réu a quem a paternidade é imputada, perspectivado como facto natural dotado de relevância jurídica” (“O Ónus da Prova nas Acções de Investigação da Paternidade: Prova Directa e Indirecta do Vínculo de Filiação”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Vol. I – Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 781). No requerimento de fls. 266/268 os Agravantes parecem confundir a causa de pedir, em si mesma considerada (a relação de procriação daquele filho por aquele pai), com os factos instrumentais ou indiciários consubstanciados na existência de alguma das presunções elencadas no artigo 1871º do CC.
[48] Até porque, sendo de presumir que a aceitação do R. de se sujeitar a exames não excluiria a recolha do material para os mesmos após a sua morte, deparamo-nos com a hipotética circunstância de ter sido um acto dos seus filhos, ora Habilitados – a opção pela cremação do corpo do seu pai –, que inviabilizou aquilo que o seu pai, aparentemente, não se opunha que viesse a acontecer.
Sem querermos especular (até porque esta questão pode ser posteriormente esclarecida na primeira instância, no quadro da caracterização do comportamento dos Agravantes relativamente a esta acção, designadamente para efeitos de aferição da facti species do artigo 344º, nº 2 do CC), sem querermos especular, dizíamos, poderá ter interesse a reconstituição da tomada de decisão de cremação do corpo do R., designadamente na sua referenciação temporal à data da morte. Sublinha-se que a certidão de fls. 42 fala em sepultação (“Sepultado no cemitério do Prado do Repouso […]”), desconhecendo-se se isso correspondeu a “inumação” (no sentido da definição contida na alínea e) do artigo 2º do Decreto-Lei nº 411/98, de 30 de Dezembro) ou, desde logo, ao depósito das cinzas resultantes de “cremação” de “cadáver não inumado” (culminando o funeral), isto no sentido de opção dos legitimados nos termos do artigo 3º, nº 1 do Decreto-Lei nº 411/98 [cfr. artigos 2º, alíneas f) e h), 4º, nº 1 (redacção do Decreto-Lei nº 5/2000, de 29 de Janeiro), 15º, 19º e 31º do mesmo Diploma]. Tenha-se presente que à data da morte do R. (Novembro de 2006), vigorava a redacção do artigo 71º do Código de Registo Civil introduzida pelo Decreto-Lei nº 228/2001, de 20 de Agosto, já não prevendo, em contraste com o regime pregresso, o averbamento no assento de óbito do acto de cremação (mas existirá, feito por alguém e em algum momento, o requerimento de cremação).
[49] Paula Costa e Silva, Acto e Processo. O dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 208 – e, continuando a citação: “[…], através do exercício de influência psicológica sobre o juiz. A esta categoria seriam recondutíveis não apenas os actos através dos quais a parte pede alguma coisa, mas também os actos que não comportam qualquer pedido. Entre estes últimos estão as afirmações e as produções de prova” (ibidem).  
[50]
Artigo 1801º
Exames de sangue e outros métodos científicos
Nas acções relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados.
[51] Carlos Lopes do Rego, O Ónus da Prova…”, cit. p. 782.
[52]“Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
[53] “A Realização Coerciva de Testes de ADN em Acções de Estabelecimento da Filiação”, in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, vol II, Almedina, Coimbra, 2002, p. 593.
[54] Veja-se, entre muitos possíveis, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/03/1997 (Fernando Fabião), proferido no processo nº 96A901, disponível no sítio do ITIJ em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a893c17476226d7a802568fc003b4c0.
[55]http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/fe01ed05ee6647d380257249005a4c9
[56] http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980616.html.
[57] Estava em causa neste aresto uma imputação de desconformidade constitucional dirigida aos artigos 1801º do CC e 519º, nº 2 do CPC, no contexto de uma investigação de paternidade.
[58] Num sentido inteiramente concordante com esta argumentação, cfr. Francisco Pereira Coelho, Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, cit., pp. 41/44.
Na mais recente edição da obra citada no Acórdão, referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, anotando o artigo 26º:
“[…]
O direito à historicidade pessoal designa o direito ao conhecimento da identidade dos progenitores (cfr. AcTC nº 157/05), podendo fundamentar, por exemplo, um direito à investigação da paternidade ou da maternidade, mesmo em alguns casos em que, prima facie, a lei parece estabelecer a preclusão do direito de accionar nas acções de investigação de paternidade (cfr. AcsTC nºs 456/03, 525/03 e 486/04).
[…]” (CRP Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4ª ed. revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 462).
[59] O Tribunal Constitucional, aliás, relembrou recentemente a relevância desse precedente, citando-o no Acórdão nº 155/2007 (Gil Galvão), a propósito do caso especial da realização de exames de ADN em processo penal (v. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070155.html)
[60] Tratou-se em ambos os casos de cumprir injunções decorrentes da jurisprudência do Tribunal Constitucional (no caso do artigo 1817º, nº 1 através do já amplamente referido Acórdão nº 23/2006), injunções essas que sempre contiveram uma afirmação enfática e inequívoca desse “direito à historicidade pessoal”, quanto a uma adjectivação muito ampla do direito a investigar e ver declarada judicialmente a própria relação de filiação [vejam-se, entre outros possíveis, os recentes Acórdãos nºs 609/2007 e 279/2008 (José Borges Soeiro), http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070609.html; http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080279.html]
[61] http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040209.html.
[62] http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050310.html.
[63] V. Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 684/686.
[64] Que Rafael Vale e Reis define como “[…] a faculdade que deve ser reconhecida a todo o ser humano de, sem entraves injustificáveis, aceder à identidade dos respectivos progenitores e, eventualmente, ver essa ligação biológica reconhecida juridicamente” (“Direito ao conhecimento das origens genéticas – desenvolvimentos no direito alemão e o seu cotejo com a recente jurisprudência do Tribunal Constitucional português”, in Revista do Ministério Público, nº 116, Outubro-Dezembro de 2008, p. 191, nota 5).
[65] Esta é a posição de Rafael Vale e Reis, no Estudo citado na nota anterior (pp. 193/194); sobre a natureza da “cláusula aberta” do artigo 16º, nº 1 da CRP, v. José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª ed., reimpressão, Almedina, Coimbra, 2006, p. 75 e ss..
[66] Os Habilitados enquanto médicos (quanto à Habilitada colhe-se na Internet o dado de ser ginecologista) conhecem a incomensurável distância que vai desta insignificância a outros métodos, realmente intrusivos e vexantes, requeridos por outros tipos de exames de clínica forense.
[67] Quem, fora deste processo, precisa de saber da sujeição dos Habilitados a exames? Acaso não constitui uma explicação (de resto a verdadeira explicação) socialmente aceitável a de que a sujeição a estes exames – a assentar a construção da acção pela A. em algo realmente ocorrido – decorre de actos que lhes não são a eles (Habilitados) imputáveis; actos ocorridos num passado longínquo e sempre protagonizados por outras pessoas? Que responsabilidade pode ser imputada aos filhos nos hipotéticos – sublinha-se, hipotéticos – actos menos virtuosos dos seus pais?
[68] “Mesmo que se admitisse que a realização de um teste de ADN atinge a integridade física, esta violação não é arbitrária. Ela apresenta-se como absolutamente necessária para o exercício de um outro direito constitucional, a saber, o direito à identidade pessoal” (Paula Costa e Silva, “A Realização Coerciva de Testes de ADN…”, cit., p. 597).
[69] A ciência económica sempre reconheceu o “individualismo metodológico” do homo oeconomicus, falando mesmo, a este respeito, de comportamento “racionalmente egoísta”. É esta a base, na teoria económica, da chamada “hipótese REMM” [do inglês, resourceful, evaluating, maximising man; v. Hans-Bernd Schäfer, Claus Ott, Manual de Análisis Económico del Derecho Civil, Editorial Tecnos, Madrid, 1991 (tradução da edição alemã de 1986), pp. 61 e segs.]: “[u]ma das hipóteses […] mais importantes da teoria económica […] assenta na suposição de que todos os homens prosseguem os seus próprios interesses, na maioria das situações egoisticamente, e que procedem racionalmente na consecução deste objectivo” (ibidem).
[70] “A Realização Coerciva de Testes de ADN…”, cit., p. 587.
[71] Caberá ao Tribunal – mas é ao Tribunal que cabe –, neste caso reforçadamente, adoptar uma postura activa de diálogo com o INML na caracterização dos exames pretendidos e das específicas incidências e contingências deles, mesmo que probabilísticas. Aliás, existem elementos de potenciação do resultado dos exames, indicados pelo INML a fls. 193 (v. nota 6) que poderão, ainda, ser explorados. Referimo-nos à possibilidade de obtenção de material genético proveniente da mãe já falecida da A..
[72] Pois, “[…] a livre valoração da prova é «livre» só no sentido de não estar sujeita a normas jurídicas que predeterminem o resultado dessa valoração. A operação consistente em julgar o apoio empírico que um conjunto de elementos e julgamento conferem a uma determinada hipótese está sujeita aos critérios gerais da lógica e da racionalidade” (Jordi Ferrer Beltrán, La valoración racional de la prueba, Marcial Pons, Madrid, 2007, p. 45).
[73] Todos conhecemos que há interpretações que valoram a recusa aos exames, para lá do plano processual, no plano substancial, sendo o recusante parte, no quadro da inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344º, nº 2 do CC (é o caso de Carlos Lopes do Rego, “O Ónus da Prova…”, cit. p. 787). Tal como existe quem não exclua a possibilidade de realização coerciva dos exames (é caso de Paula Costa e Silva, “A Realização Coerciva de Testes de ADN…”, cit., pp. 597/599).
[74] Contendo a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do CC, aplicável por força do artigo 1873º do CC, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo a partir de dois anos da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1 e 18º, nº 2 da CRP.