Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
165/06.8TBGVA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO
ACTIVIDADE DESPORTIVA
SUA ABRANGÊNCIA
Data do Acordão: 09/08/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: DEC. LEI Nº 146/93, DE 26/04 E DEC. LEI Nº 10/2009, DE 12/01. DANOS NÃO PATRIMONIAIS.
Legislação Comunitária:
Sumário: I – O controlo pelo Tribunal da Relação da matéria de facto fixada na primeira instância, com base no acesso à gravação áudio dos depoimentos aí prestados, dirige-se à detecção de manifestos erros de julgamento, não se traduzindo numa substituição da “livre apreciação” racionalmente justificada da prova testemunhal feita pelo Tribunal a quo, pela “livre apreciação” do Tribunal ad quem.

II - O Dec. Lei nº 146/93, de 26/04 (entretanto substituído pelo Dec. Lei nº 10/2009, de 12/01), sujeitou a cobertura dos riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva ao regime de seguro obrigatório.

III – A circunstância deste “seguro obrigatório da actividade desportiva” abranger acidentes in itinere para os treinos e as competições implica que a obrigação de segurar se refere à actividade desportiva em sentido amplo, abrangendo actividades preambulares e sequenciais do treino e da competição.

IV – O regime legal deste seguro abrange, obrigatoriamente, enquanto cobertura mínima, além da indemnização por morte, a indemnização por invalidez, total ou parcial, sem qualquer limitação percentual (artºs 4º do DL 146/93 e 5º do DL 10/2009), significando isto que qualquer percentagem de desvalorização funcional permanente estará, obrigatoriamente, coberta pelo seguro.

V – Uma cláusula inserta num contrato de seguro desportivo que cubra a obrigação de segurar estabelecida na lei (e que, por isso, se traduz num “seguro obrigatório”) não pode excluir a indemnização de desvalorizações funcionais permanentes inferiores a 10%.

VI – A nulidade desta cláusula (artº 294º CC) resolve-se com a projecção directa no contrato da norma imperativa (no caso o artº 4º do DL 146/93) que manda indemnizar todas as incapacidades permanentes gerais, a qual passa a “integrar” o contrato, em substituição do trecho violador dessa disposição legal, aproveitando-se o restante da cláusula e do contrato.

VII – Corresponde esta substituição à primazia da ideia de conservação do negócio contendo cláusulas nulas, através da chamada “eficácia mediata das normas imperativas”, funcionando esta como “outra solução”, alternativa à nulidade (à supressão do negócio ou da cláusula nula), resultante da lei (trecho final do artº 294º CC).

VIII – O DL nº 146/93, no seu artº 4º, nº 1, al. a), ao referir a cobertura mínima abrangida pelo seguro desportivo de grupo ao “pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva”, não contém qualquer restrição aos danos patrimoniais resultantes do acidente quanto à incidência obrigatória do seguro (rectius, não contém qualquer exclusão de danos não patrimoniais).

IX – A inexistência de uma cláusula, num contrato referido à obrigação de segurar emergente do DL 146/93, que contenha uma expressa exclusão da cobertura de danos não patrimoniais, deve ser entendida, de acordo com a regra in dúbio contra stipulatorum, própria da interpretação de um contrato de seguro, como cobertura deste tipo de danos.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. A... (A. e neste recurso Apelante)[1] demandou a agremiação desportiva denominada “B...” (1ª R. e Apelada no presente recurso), pedindo a condenação desta a satisfazer-lhe globalmente a indemnização de €22.500,00[2], acrescida de juros.

            Invoca, suportando tal pedido, que, sendo ele atleta não profissional desta R., praticando nas equipas desta a modalidade desportiva de basquetebol, sofreu no dia 30 de Abril de 2004, cerca das 17h35m quando “[…] efectua[va] o aquecimento físico que antecedia o treino desse dia” (artigo 9º da petição inicial) um acidente com a rede de uma tabela do qual resultou a amputação de parte do dedo anelar da mão direita (o dedo ficou acidentalmente preso na rede do cesto da tabela provocando a referida mutilação por arrancamento).

A responsabilidade da 1ª R. resultaria da circunstância de, sendo ela Segurada de um “seguro de acidentes pessoais”, tomado pela Federação Portuguesa de Basquetebol (Tomador)[3], sendo entidade Seguradora a C... (2ª R./Interveniente e Apelada no contexto deste recurso)[4], seguro do qual o A. seria, naquelas condições, a “pessoa segura[5], sendo que a 1ª R., omitindo a participação do indicado acidente à Seguradora, inviabilizou o pagamento por esta da indemnização a que o A. se considera com direito ao abrigo desse contrato de seguro, entendendo que o evento infortunístico em causa sempre estaria coberto pelo mesmo.

            Suportando este entendimento (depois de caracterizar a indicada omissão de participação à Seguradora) diz o A. no seu articulado inicial:


“[…]

44º
Essa falta foi culposa, tornando [a] R. [refere-se à 1ª R.] como responsável do prejuízo que a mesma causou ao A. – artigo 798º do Código Civil.
45º
Se o R. entender de forma diferente, ou seja, […] que a seguradora pode e deve ser responsabilizada, o A. sugere-lhe que requeira a intervenção principal provocada daquela.
46º
Se isso não acontecer, deve o R. pagar ao A. a quantia global de €22.500,00.
[…]”
            [transcrição de fls. 6]
           

1.1. Contestou a R. (a 1ª R.), impugnando os factos centrais do argumentário do A., reportando o acidente a um período temporal e factualmente exterior (anterior) ao treino no qual o A. iria participar a partir das 18h[6], significando isto que o acidente não se encontraria, em função desse elemento temporal e situacional, coberto pelo seguro (pela incidência situacional deste).

Requereu adicionalmente esta R., nos termos já indicados na nota 4, a intervenção da 2ª R., adiantando que, na sequência do acidente foi informada, pela Direcção da Associação de Basquetebol da Guarda, da circunstância daquela concreta ocorrência não se encontrar abrangida na cobertura do mencionado seguro[7], omitindo, em função disso, a participação do mesmo.

1.2. Contestou a 2ª R. (Seguradora), indicando que a não participação do sinistro implicou – teria como consequência – a sua não consideração no âmbito do contrato[8] e que a descrição do acidente fornecida pela 1ª R., excluiria a sua cobertura pela cláusula 2.1. do contrato de seguro[9], tal como não abrangeria a responsabilidade desta R. a existência (conforme indica o A.) de uma incapacidade parcial permanente de 4% (as condições gerais da Apólice apenas cobririam uma IPP igual ou superior a 10%)[10], além de que o contrato não cobriria danos não patrimoniais.

1.3. Finda a fase dos articulados, foi o processo objecto de saneamento, fixação dos factos interlocutoriamente provados e elaboração, em vista do julgamento, da base instrutória (todos estes elementos estão contidos no despacho de fls. 138/143).

1.3.1. Em sede de saneamento, aí qualificada como “questão prévia” e fora da apreciação tabeliónica dos pressupostos formais da instância, equacionou e resolveu o Tribunal a questão da “[r]esponsabilidade da Seguradora pelo facto do sinistro lhe ter sido comunicado para além do prazo previsto no contrato de seguro” (ou seja, a questão do sinistro não ter sido comunicado à Seguradora nos termos previstos no contrato)[11].

Aí, aludindo às alternativas interpretativas configuradas face ao artigo 440º do Código Comercial[12], considerou-se (decisoriamente) o seguinte:


“[…]
Tendo presente este quadro factual, contratual e legal, há que concluir que o facto do tomador do seguro [a 1ª R.] não ter participado atempadamente o sinistro apenas a faz incorrer em responsabilidade perante a seguradora, pelas eventuais perdas e danos que esta tenha sofrido derivados de tal omissão.
[…]
Assim, há que concluir que a provar-se a factualidade carreada e tendo em conta a intervenção provocada e seus termos, a Seguradora poderá ser responsável, por via e nos termos do contrato de seguro celebrado, pelos danos derivados do sinistro ocorrido, não havendo razões para afastar essa responsabilidade derivada da omissão de participação daquele por parte da tomadora do seguro […]”[13]
            [transcrição de fls. 139]

           

1.4. Realizou-se (com gravação da prova testemunhal) o julgamento documentado a fls. 251/255, 262/265 e 286/288, findo o qual, fixados que foram, por referência à base instrutória, os factos provados (despacho de fls. 289/292), proferiu a Exma. Juíza do Círculo de Seia a Sentença de fls. 299/304 (esta constitui a decisão objecto do presente recurso), julgando a acção improcedente, absolvendo ambas as RR. do pedido.

1.5. Inconformado, interpôs o A. o presente recurso de apelação, motivando-o a fls. 316/337, formulando a rematar tal motivação as seguintes conclusões:


“[…]
1) A factualidade dada como provada nas alíneas c), d), f), g), i), l) e m) da fundamentação de facto, é, por si só, suficiente para que se conclua que o R. violou o seu dever contratual de comunicar o sinistro à R. seguradora, inobservando o disposto no artigo 798º do Código Civil.
2) A apólice de seguro que assegurava os riscos inerentes à actividade que o A. desempenhava para o R., abrange não só os treinos propriamente ditos como também o período temporal que decorre entre as deslocações dos atletas até ao local do treino e deste até ao seu destino posterior.
3) Donde resulta que se o acidente ocorreu imediatamente antes da hora para a qual estava formalmente designado o treino (18 h), e já no interior do pavilhão, só pode concluir-se que o sinistro se verificou nesse período temporal e só porque o treino se iria iniciar, devendo, por isso, ser enquadrado na apólice do seguro.
4) É certo que no momento do acidente, não se encontrava ainda no interior do pavilhão nem o treinador nem nenhum dirigente do R., mas a verdade é que está demonstrado que era habitual os jovens do Clube chegarem antes da hora reservada para o basquete (ponto bb) dos factos provados) e também era habitual exercitarem-se fisicamente fazendo aquecimento de forma visível para todos os presentes.
5) Não ficou provado, nem nenhuma dos RR. alegou, que alguma vez proibiu os seus atletas de entrarem no pavilhão e começarem o treino com exercícios físicos e com bola antes das 18 horas ou antes da chegada de qualquer técnico ou treinador.
6) Sendo que a resposta afirmativa dada ao quesito 25, significando apenas que não foi dada autorização expressa aos atletas para fazerem treino físico sem a presença do treinador ou dirigente, não quer dizer o inverso, seja, que os atletas foram proibidos ou impedidos de o fazer.
7) Aliás, a matéria dada como provada nos pontos bb) e cc) da sentença, só permitem concluir que os atletas tinham autorização tácita (não expressa) para chegar antes da hora e para se exercitarem fisicamente de forma não orientada por ninguém.
8) Esta falta de proibição expressa e esta autorização tácita, constituem omissão do dever de vigilância do Clube R. sobre os seus atletas, que deviam controlar e orientar, até por serem menores, obrigando-o a reparar os danos que essa omissão provocou – artigo 486º do Código Civil e Ac. RE de 27/08/99 já citado.
9) Já estão demonstrados factos que caracterizam as lesões sofridas pelo A. e os danos morais e patrimoniais que o afectam, sendo equitativo condenar-se o R. Clube no pagamento da indemnização de €22.500,00 peticionada nos autos.
10) Foram incorrectamente julgados, por erro notório de apreciação da prova, os pontos 24, 25, 30, 32 e 34 da base instrutória, que deveriam merecer a resposta sugerida nestas alegações, em face dos depoimentos prestados pelas testemunhas D..., E... E F... (constantes das cassetes já mencionadas) e não contrariadas por nenhuma outra prova produzida.
11) A sentença recorrida violou ou interpretou incorrectamente o disposto nos artigos 483º, 486º, 798º, 566º e 569º do Código Civil.
[…]”
            [transcrição de fls. 334/336]

            A esta motivação responderam a 1ª R. (fls. 359/370) e a 2ª R. (fls. 375/379), ambas pugnando pela manutenção da Sentença apelada.


II – Fundamentação


            2. Encetando a apreciação do recurso, importa ter presente que as conclusões formuladas pelos Apelantes operaram a delimitação temática do respectivo objecto [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[14]].

            Emergem das conclusões do Apelante dois elementos de discordância da Sentença recorrida, em certo sentido apresentados como alternativos. Discute-se, desde logo – suscitando o exercício por esta Relação dos poderes de modificação da decisão de facto, previstos no artigo 712º, nºs 1 e 2 do CPC –, a correcção, por referência a determinados elementos da prova testemunhal indicados pelo Apelante[15], de alguns dos factos emergentes do julgamento na primeira instância. Este constitui o primeiro elemento (se preferirmos, o primeiro fundamento) do recurso (a).

            Subsequentemente – subsequentemente, numa perspectiva lógica, já que o Apelante trocou a ordem das coisas, parecendo pretender discutir o enquadramento jurídico da situação, independentemente da impugnação dos factos –, com ou sem essa almejada alteração da matéria de facto, dirige-se a crítica do Apelante às diversas vertentes jurídicas do problema respeitante à cobertura pelo seguro do acidente aqui em causa. Este constitui o segundo elemento do recurso (b), estando nele abrangidas as duas incidências subjectivas (responsabilidade do Tomador do seguro/1ª R.; responsabilidade da Seguradora/2ª R.) configuráveis relativamente à obrigação de indemnizar, por referência ao contrato de seguro invocado pelo Apelante, ao evento infortunístico caracterizado como desencadeante da cobertura pelo indicado seguro e às modalidades indemnizatórias cobertas pelo pedido formulado (danos patrimoniais e danos não patrimoniais).

            São estas, pois, as duas vertentes gerais da apelação que importa considerar na exposição que se segue.

            2.1. (a) Começando pela matéria de facto – pela apreciação do fundamento do recurso que a esta se refere –, importa caracterizar, preambularmente, qual o conteúdo dos poderes de reapreciação dos factos por parte desta Relação, no quadro traçado a tal respeito pelo artigo 712º, nº 1, alínea a) do CPC. Tenha-se presente, desde logo, que o relacionamento desta instância com a prova pessoal (a prova que o Apelante considera ter sido mal apreciada em alguns aspectos) se efectua indirectamente, através do acesso às gravações áudio realizadas na audiência de julgamento.

Assim, sublinhar o carácter mediato do relacionamento deste Tribunal com esta prova assume relevância, dando sentido à asserção de que o controlo que ora se exerce se refere à detecção e correcção, sendo caso disso, “[…] de manifestos erros de julgamento [e] de falhas mais ou menos evidentes na apreciação da prova”[16], sendo certo – e seguimos  aqui, desta feita, a argumentação constante do Acórdão do STJ de 10/05/2007[17] – que o legislador do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro (que estruturou o 2º grau na apreciação da matéria de facto, com base no registo da prova produzida em audiência) “[…] afora pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento – preferiu acreditar, em regra, no juiz que faz a imediação da prova [, p]or mais qualificado que possa parecer, pela natureza e a hierarquia das coisas, um juízo feito num tribunal superior”.

            Com efeito, a valoração da prova testemunhal assenta no princípio da livre apreciação [artigo 396º do Código Civil (CC)], expressando este a aceitação de uma margem de ponderação subjectiva do julgador, irrepetível num controlo por terceiros, não existindo fundamento prático ou legal, dentro da lógica própria de um acesso mediato dos factos (assente, tão-só, na audição da gravação sonora de depoimentos), para que o Tribunal de recurso substitua a “livre apreciação” do julgador imediato, pela sua (mediata) “livre apreciação”. A ideia de um recurso de natureza substitutiva quanto aos factos, não implica qualquer “substituição” de “livres apreciações”[18]: o julgamento dos factos não se repete, controla-se a racionalidade da fixação de determinados factos e não de outros; a substituição opera fora de um quadro valorativo em que a instância de recurso se limite a invocar, substituindo-a à da instância recorrida, a “sua” “livre apreciação” da prova testemunhal.

É que, como sugestivamente refere Jordi Ferrer Beltrán, “[a] livre valoração da prova é «livre», só no sentido de não estar sujeita a normas jurídicas que predeterminem o resultado dessa valoração. Com efeito, a operação consistente em julgar o apoio empírico que um conjunto de elementos de julgamento aportam a determinada hipótese, está sujeita aos critérios gerais da lógica e racionalidade”[19], querendo isto dizer que é no controlo do carácter lógico e racional das respostas, por referência à prova produzida, que se exerce o poder da Relação de actuar sobre o julgamento dos factos, quando estão em causa asserções que assentam na prova testemunhal.

            2.1.1. Valem estas considerações de pendor geral, para caracterizar o alcance da operação concreta de controlo da prova empreendida nesta instância, face às críticas dirigidas pelo Apelante a essa dimensão do julgamento pelo Tribunal a quo. Procedeu-se, com efeito, à audição do registo sonoro (quatro cassetes) de toda a prova testemunhal produzida perante a primeira instância, colhendo-se uma impressão valorativa que não faz emergir as respostas à base exaradas a fls. 289/292 como manifestamente incorrectas ou resultantes de uma valoração inadequada, porque não racionalmente justificável, da prova produzida.

As asserções de facto do Tribunal contestadas pelo Apelante referem-se, fundamentalmente, à qualificação do período temporalmente antecedente do treino marcado para as 18h e à visão do relacionamento da 1ª R. (dos seus responsáveis desportivos) com as actividades preambulares desse treino normalmente desenvolvidas pelos jovens atletas durante esse período. Adiante, no desenvolvimento do processo argumentativo deste Acórdão, veremos que os factos, nos exactos termos em que foram fixados pelo Tribunal a quo, até não inviabilizam a pretensão do A. quanto ao significado desse período como integrado na actividade desportiva promovida pelo “B...”. Seja como for, quanto aos factos aqui considerados, não estamos em condições de alterar, por descabidas, as respostas da primeira instância. É que as críticas do Apelante assentam a este respeito numa visão muito subjectiva do significado de alguns dos depoimentos prestados, sendo que esta Relação, ouvindo esses depoimentos – aliás, ouvindo todos os depoimentos prestados no julgamento – não detecta erros manifestos cometidos na valoração dos mesmos que impusessem respostas distintas das que foram, fundamentadamente, consideradas adequadas pela Exma. Juíza do Círculo Judicial de Seia.

Sublinha-se aqui, relativamente aos depoimentos indicados pelo Apelante (D..., F..., E... e, na mesma linha, poderíamos ainda referir o depoimento da testemunha Maria Fernanda Ventura da Fonseca Bernardo Sequeira) a pouca expressividade dos mesmos, assentes fundamentalmente em impressões pouco acertivas e extrapolações, não correspondendo – longe disso – à transmissão de factos directamente observados e recordados, ao tempo do depoimento, com um mínimo de exactidão.

Não está, pois, esta instância em condições, dentro dos parâmetros de controlo antes apontados, de fixar factos distintos dos da primeira instância, nos trechos indicados pelo Apelante em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto. Poder-se-ia, porventura, obter uma redacção mais impressiva de algumas respostas, mas isso sempre seria isso mesmo, uma questão de redacção, e não uma fixação de factos distinta.  

            2.1.2. Improcedendo o recurso nesta dimensão – no fundamento reportado aos factos, que assim se têm por definitivamente assentes –, importa aqui consignar, como ponto de partida da subsequente exposição, quais os factos provados, transcrevendo o elenco constante da Sentença a fls. 300/303:


“[…]
a) O Club R. é uma associação privada sem fins lucrativos que desenvolve actividades de carácter social, cultural e desportivo (alínea A) dos factos assentes);
b) O aludido Club constituiu uma secção desportiva para dar formação a jovens na área do basquetebol e para participar em torneios e campeonatos concelhios, distritais e nacionais dessa modalidade (alínea B) dos factos assentes);
c) Em 5 de Abril de 2004, o A. era atleta iniciado da [1ª R.], treinando e jogando basquetebol por conta do Club (alínea C) dos factos assentes);
d) Tinha o estatuto de não profissional e estava inscrito na Federação Portuguesa de Basquetebol e na Liga de Clubes de Basquetebol (alínea D) dos factos assentes);
e) O Club R. era e é filiado da Associação de Basquetebol da Guarda (alínea E) dos factos assentes);
f) Nessa qualidade subscreveu, como segurado, um seguro de acidentes pessoais feito pela Federação Portuguesa de Basquetebol junto da Seguradora C... através da apólice n’ 01.4488 (alínea F) dos factos assentes);
g) Tal apólice garante os riscos decorrentes de acidentes corporais de todos os jogadores não profissionais de Basquetebol ocorridos durante a prática desta modalidade, em jogos, treinos e nas respectivas deslocações e desde que em representação ou sob o patrocínio do respectivo clube, devendo, nos termos da cláusula 9° das condições particulares da apólice, o sinistro ser comunicado dentro do prazo ai estabelecido imediato à ocorrência (alínea G) dos factos assentes);
h) Na data do acidente, o A. fazia 14 anos (alínea H) dos factos assentes).
[…]
i) No dia 30 de Abril de 2004, cerca das 17 horas e quarenta e cinco minutos, antes do treino designado para as 18:00 desse mesmo dia, o A. e um outro colega encontravam-se no pavilhão gimnodesportivo de Gouveia em lançamentos com a bola, e a tentarem atingir com a mão o aro do cesto colocado na parte lateral do pavilhão (resposta aos pontos 1º, 26° e 27º da base instrutória).
j) O pavilhão estava reservado pela [1ª R.] para a prática de basquetebol a partir das 18:00 (resposta aos pontos 2º e 30º da base instrutória).
l) Na sequência do exercício físico referido na resposta ao ponto 1°, o A. ao pular e no esforço de tocar no ar[o], ficou com o parte do dedo presa no fio de nylon que compõe a rede do cesto (resposta aos pontos 3º e 28º da base instrutória). 
m) Ficou com dois terços da falange distal do 4° dedo da mão direita amputados (resposta aos pontos 4° e 29° da base instrutória).
n) E não foi possível a sua reimplantação (resposta ao ponto 5º da base instrutória).
o) Em consequência das lesões, o A. ficou com uma incapacidade permanente geral de 2% a partir da data da consolidação, sofrendo, 
- um período de incapacidade temporária geral total de 30 dias;
- incapacidade temporária geral parcial de 30 dias;
- incapacidade temporária parcial para as actividades escolares de 60 dias (resposta aos pontos 8º, 13º, 14º, e 15º da base instrutória).
p) Tem sido um estudante com aproveitamento escolar (resposta ao ponto 10º da base instrutória).
P[-A]) O A. nunca mais jogou basquetebol, desporto de que gostava muito e que praticava com dedicação (resposta ao ponto 12º da base instrutória).
q) 0 A. ainda foi socorrido no Local pelo INEM que diagnosticou a lesão e tentou controlar a hemorragia que entretanto ocorrera (resposta ao ponto 16º da base instrutória).
r) Foi depois transportado para o centro de Saúde de Gouveia e daí transferido para os HUC, onde lhe fizeram o tratamento adequado (resposta ao ponto 17º da base instrutória).
s) O A. sofreu dores com a amputação e com os tratamentos a que foi sujeito (resposta ao ponto 18º da base instrutória).
t) No dia do acidente, o A. passou por momentos de angústia, pavor e aflição (resposta ao ponto 19º da base instrutória).
u) A falta é visível para quem se relaciona presencialmente com o A. (resposta ao ponto 20º da base instrutória).
v) O A. foi motivo de chacota por parte de alguns jovens da sua idade que troçavam com a sua limitação (resposta ao ponto 21º da base instrutória).
x) A perda do aludido dedo é notória e angustia e envergonha o A. (resposta ao ponto 22º da base instrutória).
X[-A]) No aludido dia o treino de uma das equipas de basquetebol da [1ª R.], a de juniores masculinos, à qual o [A] se juntava frequentemente, encontrava-se designado para as I8.00h., tal como constava do calendário de ocupação do Pavilhão Municipal (resposta ao ponto 23º da base instrutória).
z) À hora referida no ponto 1°, decorria um treino de Andebol (resposta ao ponto 24º da base instrutória).
aa) Nenhum atleta tinha autorização expressa para fazer treino físico ou técnico antes do início do treino, e sem a presença do treinador ou de um dirigente (resposta ao ponto 25º da base instrutória).
bb) Era habitual os jovens do “B...” chegarem antes da hora reservada para a prática do basquetebol (resposta ao ponto 31º da base instrutória).
cc) Exercitavam-se fisicamente, então de forma não orientada por qualquer treinador ou supervisionada por qualquer dirigente do Clube, no interior do pavilhão, de forma visível para todos os presentes (resposta ao ponto 32º da base instrutória).
dd) Ocasionalmente os horários eram alterados (resposta ao ponto 33º da base  instrutória).
[…]”
            [transcrição de fls. 300/303]

2.2. (b) Fixados que se mostram os factos, sendo eles os mesmos que a primeira instância considerou na decisão apelada, importa recuperar aqui o argumento inicial do Apelante na motivação do recurso, segundo o qual esses factos (mesmo com o exacto conteúdo considerado pelo Tribunal a quo na Sentença) sempre suportariam a procedência da pretensão expressa através da acção, com o consequente ressarcimento indemnizatório do acidente a cargo de uma ou de outra das RR..

Confluem na apreciação do problema assim colocado (na procura de uma resposta à questão de saber se o acidente ocorrido ao A. é indemnizável nos termos por ele propugnados) diversas condicionantes argumentativas cujo esclarecimento prévio importará alcançar. A simplicidade expositiva da Sentença é particularmente ilusória neste caso, sendo certo que o problema configurado pelo A. era (é) bem mais complexo do que aparenta, ou do que aparentou ao Tribunal a quo. Com efeito, está em causa com o contrato de seguro cuja cobertura é reivindicada pelo Apelante, como se disse e sublinhou na nota 4, supra – e como inexplicavelmente parece ter sido esquecido por todos os intervenientes processuais na primeira instância –, um seguro de natureza obrigatória, a saber, ao tempo relevante para esta acção e recurso: o seguro – repete-se, o seguro obrigatório – previsto e regulamentado pelo Decreto-Lei nº 146/93, de 26 de Abril (DL 146/93), entretanto substituído (sem aplicação ao caso presente), como também se mencionou na nota 4, pelo Decreto-Lei nº 10/2009, de 12 de Janeiro (DL 10/2009). Não colhe, com efeito, um hipotético argumento afirmando que este concreto contrato de seguro corresponderia a um seguro distinto do obrigatório previsto no DL 146/93, porque o decalque dos termos deste pelo contrato é verdadeiramente esmagador (afora a questão do défice de cobertura contratual adiante apreciado) e, principalmente, porque a obrigação de segurar correspondente, impendente sobre as federações desportivas, decorrente do citado Diploma (respectivo artigo 3º, adiante transcrito), foi aqui pretendida cumprir – notoriamente –, pela Federação Portuguesa de Basquetebol, através do contrato de seguro discutido nestes autos. Nunca se poderia, pois, pretender subtrair este contrato de seguro ao regime do DL 146/93.

Traduz esta questão (a correspondência do contrato aqui em causa ao seguro obrigatório previsto no DL 146/93) um elemento fulcral na economia do presente recurso, importando esclarecê-la devidamente.

É o que se procurará fazer nos subsequentes passos expositivos.

2.2.1. Para que tudo fique claro quanto à incidência na presente situação do DL 146/93, importa ter presente estar em causa a prática, pelo A. integrado num clube desportivo e no desporto federado, de uma modalidade desportiva: o basquetebol.

Transcreveremos aqui, fundamentando a aludida aplicação do DL 146/93, algumas das normas que integram este Diploma, nos trechos que a ulterior exposição mostrará serem fundamentais na apreciação das diversas questões suscitadas pelo recurso:

Artigo 1º
(Objecto)
1 – O presente diploma regula o seguro desportivo.
2 – O seguro desportivo cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva, incluindo os decorrentes de transportes e viagens em qualquer parte do mundo.
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Artigo 2º
(Obrigatoriedade do seguro)
O seguro desportivo é obrigatório para todos os agentes desportivos inscritos em federações dotadas de utilidade pública desportiva, nomeadamente:
a) Praticantes desportivos profissionais e não profissionais;
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Artigo 3º
(Seguro desportivo de grupo)
1 – As federações referidas no artigo anterior instituirão, mediante contrato celebrado com entidades seguradoras, um seguro desportivo de grupo, ao qual poderão aderir os praticantes e agentes desportivos não profissionais nelas inscritos
2 – Cabe às federações desportivas a responsabilidade do pagamento à entidade seguradora do prémio do seguro de grupo.
Artigo 4º
(Riscos cobertos pelo seguro de grupo)
1 – As coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo de grupo são as seguintes:
a) Pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva;
b) Pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar e de repatriamento.
2 – As coberturas, riscos e valores do seguro podem ser diferenciados, relativamente aos praticantes desportivos, em função da sua inserção ou não inserção no percurso da alta competição.
Artigo 5º
(Adesão ao seguro desportivo de grupo)
1 – A adesão individual dos agentes desportivos ao seguro desportivo de grupo realiza-se no momento da inscrição nas federações desportivas.
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Artigo 10º
(Falta de seguro)
1 – As federações desportivas que procedam à inscrição de agente desportivo que não fique abrangido pelo seguro desportivo obrigatório ou por seguro que garanta cobertura igual ou superior, bem como as entidades que promovam ou organizem provas desportivas sem terem celebrado seguro desportivo adequado, respondem, em caso de acidente desportivo, nos mesmos termos em que responderia a empresa seguradora, caso houvesse seguro.
---------------------------------------------------------------------------------------

         Todas estas disposições apresentam actualmente equivalência (mas, repete-se, sem aplicação ao presente caso) no articulado do DL 10/2009 (v., deste último, enquanto correspondentes aos acima transcritos do DL 146/93, os artigos 1º, 2º, 5º[20] e 20º do indicado Diploma de 2009), sublinhando-se desta “lei nova” (DL 10/2009), dada a sua natureza de regra interpretativa condensadora de princípios hermenêuticos de vocação projectiva geral, respeitantes ao contrato de seguro (aplicados no DL 10/2009 enquanto manifestação de uma realidade que lhes é anterior), sublinhando-se da “lei nova”, dizíamos, a disposição visando a existência de exclusões no contrato concretizador deste seguro obrigatório:

Artigo 6º
(Exclusões)
As apólices de seguro desportivo não podem conter exclusões que, interpretadas individualmente ou consideradas no seu conjunto, sejam contrárias à natureza da actividade desportiva ou provoquem um esvaziamento do objecto do contrato de seguro.

Note-se que a justificação da existência de um seguro obrigatório com incidência temática na actividade desportiva não profissional consta do exórdio do DL 10/2009, em termos que, dada a perspectivação histórica aí apresentada dessa obrigatoriedade, afigura-se-nos útil transcrever aqui, estando em causa a lei cujo trato sucessivo retrospectivo nos conduz, precisamente, ao DL 146/93 aqui considerado (v. a nota 22, infra):


“[…]
O desporto, até por definição, é uma actividade predominantemente física, exercitada com carácter competitivo. Cobrir os riscos, através da instituição do seguro obrigatório, é uma necessidade absoluta para a segurança dos praticantes.
Para alcançar tal desiderato, no desenvolvimento da Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro, Lei de Bases do Sistema Desportivo[21], foi publicado o Decreto-Lei nº 146/93, de 26 de Abril, diploma pelo qual se instituiu o regime jurídico do seguro desportivo, enquanto seguro obrigatório.
Com os seguros obrigatórios atende-se a uma necessidade social fundamental, a de assegurar que o beneficiário chegue, efectivamente, a usufruir da cobertura. É certo que um sistema de seguros não evita o risco, mas previne o perigo das vítimas não obterem o ressarcimento.
[…]”[22]

Constitui a categoria dos seguros obrigatórios um elemento fundamental da moderna actividade seguradora, expressando ela um dos pólos da distinção mais intuitiva que podemos configurar nessa actividade: a existência de seguros obrigatórios e de seguros facultativos. A existência (rectius, a celebração e o essencial do conteúdo) destes últimos é entregue à autonomia das partes (tratando-se de uma actividade, pode esta ser coberta ou não, nas suas incidências, por um seguro). Diversamente, a categoria dos seguros obrigatórios pressupõe uma celebração imposta por disposição legal em sentido amplo, verificados determinados pressupostos associados a essa obrigatoriedade (constitui exemplo paradigmático o da circulação automóvel[23]).

É este – integração no domínio dos seguros obrigatórios – o caso da actividade desportiva, e é este o caso que aqui nos interessa.

Claro que, assentando a actividade seguradora em instrumentos revestindo a forma contratual – sintomaticamente o Diploma que a regula [presentemente o Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (DL 72/2008)] tem a designação de “regime jurídico do contrato de seguro” –, a existência de seguros obrigatórios, cuja regulamentação pressupõe elementos necessários (elementos que as partes não podem afastar), numa espécie de reserva de conteúdo mínimo da relação contratual correspondente, a existência de seguros obrigatórios, dizíamos, acaba por introduzir um importante elemento modelador do conteúdo desta relação. É que, sendo ela contratual (nela há sempre, à partida, alguém que celebra com alguém um contrato de seguro) acaba ela por traduzir uma convergência entre elementos negociais estabelecidos no quadro da autonomia das partes (se quisermos, negociados livremente) e elementos necessários (se quisermos, imperativos), modelados exteriormente ao exercício dessa autonomia e, em certo sentido, a ela subtraídos.

Adaptando os termos do nº 1 do artigo 405º do CC[24], respeitantes ao conteúdo da liberdade contratual, diremos que, no quadro (contratual) de um seguro obrigatório, no qual exista (como aqui sucede), para além da obrigação de cobertura por um seguro referido à situação prevista, uma regulamentação legal específica de alguns dos conteúdos do seguro imposto, em múltiplos aspectos da sua incidência, tendem a ser mais intensos – em alguns casos, esmagadores mesmo – os chamados “limites da lei” na fixação do conteúdo contratual e na inclusão de cláusulas. A liberdade de modulação da relação contratual aparece-nos nestes casos, frequentemente, bastante mitigada e como uma faculdade quase residual.

Aliás, esta especificidade do contrato de seguro (a presença de importantes elementos de modelação exterior, positiva ou negativa, da relação contratual correspondente) não se reduz ao sector dos chamados seguros obrigatórios, aparecendo mesmo no domínio dos seguros facultativos através da sujeição, destes como dos obrigatórios, ao regime das “cláusulas contratuais gerais”[25], dada a fortíssima presença, nuns e noutros, de “[…] cláusulas padronizadas, previamente elaboradas pela seguradora, que o tomador do seguro – e, eventualmente, o segurado – subscreve […]”[26].

O “pano-de-fundo” do seguro é, todavia, o de um contrato – o contrato de seguro[27] –, assumindo-se a modelação (legal) exterior no seguro obrigatório como uma incidência num contrato e, frequentemente, como uma vicissitude de uma relação contratual. A situação que nos ocupa confirma, aliás, amplamente, esta asserção.

Por ora, interessa-nos reter, enquanto dado relevante na ulterior exposição, aquilo que a decisão apelada omitiu: estamos, com a prática do Desporto, no âmbito da qual se produziu o evento infortunístico aqui em causa (independentemente de outras incidências que tal evento circunstancialmente possa suscitar), num domínio coberto por um seguro obrigatório, sendo este o que resulta do DL 146/93[28]. O contrato de seguro invocado pelo A. (o contrato de seguro apreciado na Sentença) tem, pois, como referência inultrapassável a obrigação de segurar decorrente das disposições acima transcritas do DL 146/93.

2.2.2. Assente isto, importa esclarecer, ainda no quadro preambular da caracterização dos elementos gerais relevantes para a apreciação do recurso, as questões colocadas pela pretensão indemnizatória formulada pelo A., designadamente no que concerne à entidade contra quem tal pretensão é dirigida.

A indemnização visada assenta na ocorrência de um acidente situacionalmente reconduzido pelo A. à prática organizada do desporto (chamemos-lhe assim, acentuando o elemento institucional dessa prática desportiva através da integração do praticante num clube e numa federação desportiva[29]) e decorre da existência do contrato de seguro que o A. juntou com o seu articulado inicial.

A indemnização pretendida é, fundamentalmente, a que resultaria da cobertura do acidente por esse contrato de seguro (esta é a tese defendida pelo A.), decorrendo a formulação dessa pretensão indemnizatória contra a 1ª R. (que não assume nesse contrato a posição de segurada[30]) de uma visão particular da incidência da conduta desta R. (da 1ª R.) relativamente à efectiva cobertura do evento ocorrido ao A., enquanto atleta da 1ª R., por esse contrato de seguro. Com efeito, entende o A., em primeira linha (linha à qual associou o seu pedido principal dirigido contra a 1ª R.), que a não participação do acidente à Seguradora inviabilizou – em rigor, prefigurava-se como susceptível de inviabilizar – o accionar do seguro e, consequentemente, o pagamento da indemnização prevista no contrato, resultando tal eventualidade (o não pagamento da indemnização) da conduta da 1ª R. ao não participar o acidente.

Esta foi a configuração primordial e principal do pedido formulado pelo A. ora Apelante, sendo nesse contexto que a referência ao artigo 798º do CC adquire sentido, na economia expositiva e argumentativa da acção intentada pelo A. contra a 1ª R.. Ambos adquiriram direitos e são destinatários de deveres prestacionais ao abrigo do contrato de seguro (o A. como pessoa segura a 1ª R. na posição de segurada) e as respectivas situações são configuráveis no quadro da responsabilidade contratual[31].

Todavia, conforme resulta da transcrição dos artigos 44º a 46º da p.i., feita no item 1. deste Acórdão, o A. também configurou como hipótese a responsabilização indemnizatória, no âmbito desta acção, da Seguradora 2ª R. – no que implicou a formulação implícita, mas inequívoca, de um pedido aparentemente alternativo, mas realmente subsidiário[32], contra esta 2ª R. –, aventando o chamamento da mesma à acção por iniciativa da 1ª R. (para sermos exactos, por iniciativa sugerida a esta 1ª R.)[33].

E esta R., com efeito, aceitando efectivamente a sugestão do A., assim procedeu, nos termos que deixámos atrás relatados no item 1. e na respectiva nota 5, sendo que suscitou a intervenção, como sua associada, da Seguradora 2ª R., e esta, por sua vez, contestou a acção negando a sua responsabilidade indemnizatória (v. artigo 328º, nº 1 do CPC), aceitando, todavia, e é isso o que aqui importa frisar, a existência do seguro invocado, travando na dialéctica deste processo a discussão induzida pelo A. através da propositura da acção.

A contestação da R./Chamada, Seguradora, assentou, primordialmente (v. item 1.2. e respectiva nota 9) – e independentemente da afirmação da não cobertura daquele acidente naquelas circunstâncias pelo contrato –, na afirmação de que a não participação do sinistro excluía a responsabilidade da Seguradora R. (tornava “[…] nulo e de nenhum efeito o sinistro […]”, disse na contestação a 2ª R., citando uma cláusula contratual).

2.2.2.1. Esta questão foi equacionada pelo Tribunal no despacho saneador a fls. 138/139, nos termos que tivemos oportunidade de relatar circunstanciadamente no item 1.3.1. deste Acórdão, decidindo-se aí (no despacho de fls. 138/139) – e, sublinha-se, decidiu muito acertadamente o Exmo. Juiz que elaborou tal despacho – que a não participação do acidente à seguradora não implicava a desresponsabilização desta pelo evento ocorrido (v. nota 14, supra). O entendimento decisoriamente expresso nesse despacho (data esse despacho de 23/04/2007[34]) foi, com efeito, inteiramente conforme à caracterização feita pela nossa doutrina e jurisprudência (anteriormente ao DL 72/2008) a respeito da incidência da omissão do dever de participação do sinistro na responsabilização da seguradora por este:


“[…]
Se a participação não for feita nos referidos 8 dias [no prazo previsto no artigo 440º do Código Comercial], o segurado responde pelos danos que cause ao segurador, com a demora – artigo 440º. Trata-se de uma sanção bastante efectiva, uma vez que o segurador apenas terá de descontar esses danos na indemnização que irá pagar. O artigo 440º é imperativo. A sanção não pode, designadamente pelas condições gerais, ser alargada ao ponto de se considerar ineficaz o seguro, por falta de participação atempada.
[…]”[35]

O dado a reter é aqui, como se indicou, que o Tribunal de primeira instância (o Juiz que saneou o processo) entendeu inoperante a cláusula 9.4. do contrato (v. o seu texto a fls. 14, cfr. nota 9, supra; adiante trataremos a questão da inoperância de cláusulas contratuais ofensivas de normas imperativas no caso dos seguros obrigatórios) aceitando que a responsabilidade indemnizatória pelo acidente poderia recair (a demonstrarem-se as restantes circunstâncias desencadeadores da cobertura do seguro) sobre a Seguradora 2ª R.. E importa reter, igualmente, que a asserção em causa nesse despacho, referida ao que integrava a invocação de uma excepção peremptória pela 2ª R.[36], foi aí decidida negativamente, recebendo, por ausência de impugnação do despacho contendo tal decisão, nos termos do artigo 510º, nº 3 do CPC (ex vi do trecho final da alínea b) do nº 1 da mesma disposição), a cobertura do caso julgado próprio da sentença: o caso julgado material[37].

Ficou, pois, assente neste processo, com a cobertura do caso julgado material, através da consolidação do despacho saneador, que a não participação do acidente ocorrido ao A., pela Segurada 1ª R. à Seguradora 2ª R., não afastou a possibilidade de responsabilização desta última pelo pagamento, ao abrigo do contrato de seguro com esta celebrado, da prestação (ao A.) devida pela ocorrência de um evento previsto no seguro.

Vale isto por dizer, que, a emergirem na subsequente exposição os restantes elementos propiciadores da cobertura do seguro em causa, emergirá também, em função da actuação concreta da relação de subsidiariedade dos pedidos formulados pelo A. (como atrás vimos), a responsabilidade da 2ª R. ao abrigo do contrato de seguro aqui em causa. E emergirá, consequentemente, por exclusão lógica, a não responsabilidade da 1ª R. face ao A., nos termos em que este configurou no articulado inicial a sua pretensão principal dirigida contra esta 1ª R..

2.2.3. Prosseguindo na senda da fixação dos pressupostos necessários à dilucidação desta vertente do recurso [fundamento equacionado no item 2.2. (b) supra], importa agora esclarecer o elemento circunstancial temporal e factual em que ocorreu o acidente. Tenha-se presente que a Sentença impugnada, em sede de enquadramento jurídico dos factos (trecho de fls. 303/304), considerou negativamente, por referência à pretensão do A., esse elemento circunstancial (adiante indicaremos os factos caracterizadores desse elemento), concluindo não ter “[…] o A. prova[do] a ilicitude da conduta do R., pressuposto da invocada responsabilidade contratual, nos termos do artigo 798º do [CC], como também da responsabilidade extracontratual, em conformidade com o disposto no artigo 483º, do mesmo diploma legal […]” (fls. 304).

Os elementos fácticos aqui relevantes são, desde logo, os que conferem ao A. a categoria de atleta federado (praticante de basquetebol não profissional) da 1ª R. e referenciam à actividade desportiva dos atletas basquetebolistas desta o seguro consubstanciado na apólice nº 01.4488, emitida pela Seguradora 2ª R. (alíneas c), d), e) e f) dos factos a fls. 300/301) e os que caracterizam a ocorrência do acidente nos 15 minutos que antecederam a hora marcada para o treino organizado pela 1ª R., para a tarde do dia 30/04/2004 (treino no qual o A. participaria).

Adicionalmente, e embora os factos talvez pudessem ser na sua enunciação (redacção) um pouco mais expressivos na caracterização da intencionalidade da presença do A. naquele local naquelas condições, podemos considerar, ponderando globalmente os factos provados e extrapolando o seu inequívoco significado, que a permanência do A. (com outros colegas de treino) no recinto onde teria lugar, pouco depois, esse treino, visava a participação neste e estava funcionalmente ligada a essa incidência da actividade desportiva daquele consistente na prática do basquetebol como atleta do “B...”.

Seria ilógico, com efeito (para não dizer atentatório do senso comum), pretender que a realização de saltos para a tabela (ensaiando repetidamente o movimento de encestar próprio da modalidade[38]), no local do treino, nas condições em que a própria 1ª R. o descreve, de um atleta que se encontra equipado para a realização de um treino de basquetebol marcado para pouco depois (10/15 minutos depois), não esteja funcionalmente ligada ao objecto desse treino (o adestramento para a prática competitiva do basquetebol) e não traduza, funcionalmente, a actividade desportiva do A. como atleta basquetebolista da 1ª R.. E nem é preciso ter sido praticante de alguma modalidade desportiva para intuir, dada a sua evidência, esta realidade.

E note-se que esta ponderação significante dos factos não é alterada quando encaramos as coisas à luz do que adicionalmente consta das alíneas aa), bb) e cc) do elenco fáctico acima transcrito. Se era habitual os jovens basquetebolistas do “B...”, mesmo sem uma autorização expressa do clube, chegarem (para os treinos) antes da hora reservada para a prática do basquetebol, equiparem-se e exercitarem-se fisicamente (no local do treino) de forma (ainda) não orientada pelo treinador, em circunstâncias visíveis para todos os presentes, se isto era assim – e os factos dizem-nos que era assim que as coisas se passavam –, não vemos como se pode pretender subtrair à integração na prática desportiva do A., promovida e enquadrada pela 1ª R., essa actividade “sociologicamente” preambular do (mas causalmente integrada no) treino[39], exercida nas condições descritas, isto para o efeito de cobertura pelo contrato que preenchia a obrigatoriedade, estabelecida no DL 146/93, de segurar os riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva.

A caracterização do que constituem “actividades desportivas”, para o efeito do preenchimento da facti species de cobertura do seguro obrigatório previsto no DL 146/93, é vista pelo Supremo Tribunal de Justiça, numa decisão que aqui apresenta certo valor de precedente persuasivo, como expressão de um confronto potencial de duas concepções de acto desportivo, sendo uma ampla e outra restritiva. Da existência de uma cobertura legal in itinere (artigo 1º, nº 2 in fine do DL 146/93, acima transcrito) deduz interpretativamente o nosso mais alto Tribunal estar em causa neste tipo de seguro um “conceito mais alargado de acto desportivo” propiciador de uma cobertura a actos preparatórios, preambulares e sequenciais daquilo que, numa visão restritiva da actividade desportiva, constituem “actos desportivos” (o treino “formal”, chamemos-lhe assim, e a competição)[40].   

2.2.3.1. O seguro aqui em causa – que é, como se demonstrou, o seguro obrigatório previsto no DL 146/93 – “[…] cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva” (artigo 1º, nº 2). Traduz, pois – e utilizamos aqui por facilidade expositiva e evidente adequação interpretativa as definições constantes do DL 72/2008 – um “seguro de pessoas”, no sentido em que o definem (agora) os artigos 175º e 176º deste Diploma:

Título III
Seguro de pessoas
Capítulo I
Disposições comuns
Artigo 175º
Objecto
1 – O contrato de seguro de pessoas compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou de um grupo de pessoas nele identificadas.
 2 – O contrato de seguro de pessoas pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efectivo montante do dano e prestações de natureza indemnizatória.

Artigo 176º
Seguro de várias pessoas
1 – O seguro de pessoas pode ser contratado como seguro individual ou seguro de grupo.[41]
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Em Direito a ideia de risco em geral (e na concreta incidência num contrato de seguro) refere-se a “[…] eventualidades danosas potenciais […][42], sendo inquestionável que o evento infortunístico que originou a perda de parte do dedo pelo Apelante, nas circunstâncias em que teve lugar o acidente desportivo consubstanciador desse evento aqui ajuizado, se mostra abrangido pelo seguro contratado com a 2ª R., valoradas as circunstâncias desse evento – como antecedentemente o fizemos – enquanto expressão de uma actividade desportiva enquadrada pela 1ª R. e, nessa medida, sujeitas (se quisermos, abrangidas) pela obrigação de segurar emergente do DL 146/93, concretamente nos seus artigos 1º, nº 2 e 2º.

2.2.4. Assente que o acidente aqui em causa correspondeu efectivamente a um acidente desportivo, inerente à actividade desportiva do Apelante enquanto basquetebolista da 1ª R., e que provocou ao A. uma incapacidade parcial permanente avaliada em 2%, importa valorar as condições concretas do contrato de seguro no que tange a esse tipo de incidência. Interessa-nos aqui a parte em que a Sentença apelada (secundando a posição da 2ª R. expressa na contestação respectiva) considerou que a determinação médico-legal no Segurado de uma “incapacidade permanente geral” de 2% (v. o trecho de fls. 204 do relatório de fls. 201/205), sempre excluiria, em função da cláusula 3.1.2 do contrato de seguro – que diz abranger, tão-só, uma invalidez permanente igual ou superior a 10% (v. transcrição desta na nota 11, supra) –, a cobertura das consequências desta situação concreta[43].

Todavia, não é – não pode ser – assim. A cobertura legalmente estabelecida (obrigatória, dado ser essa a natureza do seguro) no artigo 4º, nº 1, alínea a) do DL 146/93, refere-se, como “[…] cobertur[a] mínim[a] abrangid[a] pelo seguro desportivo de grupo […]”, no que aqui apresenta relevância, ao “[p]agamento de um capital por […] invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva[44], deduzindo-se que, sendo obrigatória, no mínimo, a cobertura da invalidez permanente parcial, essa obrigação se refere a toda e qualquer incapacidade permanente parcial (IPP), e não só à que seja igual ou supere os 10% de incapacidade.

Ora, é sabido que “[o]s seguros obrigatórios só podem cabalmente desempenhar a função social para que foram criados se à vítima forem inoponíveis quaisquer excepções resultantes do contrato”[45], sendo esta claramente a situação que aqui se configura (no contrato de seguro de que o Apelante era beneficiário como segurado; “pessoa segura” na terminologia do contrato, v. nota 6, supra, que agora coincide com a terminologia legal, consagrada no DL 72/2008) através da existência no contrato de uma cláusula cujo efeito prático se traduz na redução da cobertura (obrigatória) de todas as IPP, frustrando o carácter imperativo do artigo 4º do DL 146/93 – ao abrigo de tal cláusula (ao abrigo do contrato) as IPP cobertas seriam (é o que a 2ª R. pretende e a Sentença aceitou) só aquelas que igualassem ou superassem os 10%.

2.2.4.1. Importa caracterizar a incidência no caso concreto desta situação.

Assente que o artigo 4º, nº 1, alínea a) do DL 146/93 contém uma norma imperativa, resulta que a cláusula contratual em causa, restringindo a cobertura a uma IPP igual ou superior a 10%, traduz um elemento negocial celebrado contra disposição legal de carácter imperativo, sendo, por isso, nula, nos termos do artigo 294º do CC. O contrato valeria, assim, no resto (no resto que não ofendesse normas imperativas) sendo suprimida a cláusula 3.1.2. o que o deixaria, numa primeira leitura, amputado da parte que contém a forma de determinação da atribuição patrimonial a realizar à pessoa segura nos casos de IPP.

O problema que assim se suscita apresenta uma inegável semelhança com aquele que é identificado e tratado na nossa doutrina sob a designação “eficácia mediata das normas imperativas” e que é entendido, por alguma doutrina, como uma situação distinta da redução do negócio, à qual, portanto, se não aplicaria a previsão do artigo 292º do CC[46], dado não haver lugar, nestas situações, à determinação de se as partes teriam “concluído o negócio sem a parte viciada”.

Esta situação – aquilo a que se chama “eficácia mediata das normas imperativas” – é objecto de uma disposição expressa no Código Civil italiano (o artigo 1339º), estabelecendo, no que aqui nos interessa, que as cláusulas impostas pela lei inserem-se automaticamente no contrato, ainda que em substituição das cláusulas não conformes insertas pelas partes[47].

Esta questão é tratada, aprofundadamente, por Luís A. Carvalho Fernandes, transcrevendo-se aqui algumas das considerações tecidas por este Autor a respeito da figura da chamada “eficácia mediata das normas imperativas”:


“[…]
O papel do direito cogente que de imediato se apresenta à nossa consideração, e que a doutrina com mais frequência assinala, traduz-se, no caso da sua violação, em aniquilar o preceito negocial violador. Este não pode ter valor jurídico pela simples razão de que, se assim não fosse, estaria posto em causa o comando normativo e, consequentemente, o fim que ele visa. No Direito português esta solução tem tradução imediata no regime definido no artigo 294º do [CC] […]. A nulidade assim estabelecida pode estender-se a todo o negócio ou circunscrever-se à cláusula negocial violadora, quando este resultado seja imposto por preceito normativo específico ou pelo regime geral contido no artigo 292º do [CC] […].
[…]. Consiste [esta solução], contudo, num meio que opera pela negativa, com o duplo inconveniente de não assegurar a prevalência dos fins que o legislador privilegia e de poder até voltar-se, na prática, contra aquele dos intervenientes do acto cujo interesse se visava tutelar […].
[…]
Este resultado só se pode alcançar se a actuação da norma imperativa for além da simples destruição da estipulação negocial violadora. Necessário se torna, para tanto, que o próprio conteúdo da norma injuntiva prevaleça, se torne eficaz. […]. A doutrina italiana identifica este fenómeno jurídico, à luz do artigo 1339º do Codice, como «inserção automática de cláusulas ou substituição de cláusulas».
Pela nossa parte, entendemos mais adequado defini-lo como eficácia mediata da norma imperativa ou injuntiva.
[…]”[48]

E acrescenta o mesmo Autor a este respeito, particularizando o funcionamento prático daquilo que qualifica como “eficácia mediata das normas imperativas”:


“[…]
[A] lei fixa, de modo imperativo, certos limites máximos que interferem com o conteúdo válido do negócio, porquanto limitam a sua eficácia no plano temporal ou quantitativo. Se a injunção legal for violada, só é afectada a cláusula excessiva, então considerada nula. Contudo, o negócio não fica a subsistir como se a cláusula não existisse; no lugar dela prevalece a estatuição legal definidora do conteúdo máximo admissível para o acto.
As razões que justificam esta solução são de índole diversa, mas todas elas se prendem com a necessidade de fazer prevalecer o regime legal, por só este assegurar a solução tida como mais adequada à composição dos interesses em causa. Se assim não acontecesse, se a cláusula nula fosse eliminada sem mais, isso podia envolver uma solução injusta para alguma das partes ou pôr em causa interesses de ordem geral, de natureza social ou económica, que aos dos contraentes se devem sobrepor.
[…]
Esta tarefa positiva das normas imperativas assume […] particular relevância quando […] a injunção normativa é estabelecida no interesse de uma das partes – a «parte débil» […] – e contra a outra. Nestes casos, a destruição do negócio acabaria por redundar em benefício do contraente mais forte, que só quis contratar nos termos que violam o comando legal, e voltar-se-ia contra a parte mais fraca, a quem interesse manter o negócio com o conteúdo […] da lei, frustrando-se o fim visado pela norma.
[…]”[49]

A aplicação no contexto do caso concreto desta construção (sublinhamos que se trata, entre nós, fundamentalmente, de uma construção interpretativa[50]) pode suscitar algumas questões que importará esclarecer. Prendem-se estas com a consideração de que as condições negociais estabelecidas no contrato de seguro no segmento violador da norma imperativa têm, relativamente a esta, uma base negocial restritiva (menos ampla), no sentido em que conferem menos cobertura que a imposta pela referida norma imperativa (abrangem menos do que esta impõe), sendo que a integração automática no negócio do conteúdo mais amplo da norma imperativa, conduz a uma ampliação quantitativa do objecto negocial, não tendo as partes entrado em linha de conta no contrato com esse elemento que, não obstante exigido pela lei, traduz uma ampliação da cobertura visada no contrato de seguro. Referimos esta questão, porque a doutrina citada parece propender a situar a integração no negócio da norma imperativa numa lógica de restrição (redução) de um conteúdo negocial mais amplo.

No trecho acima transcrito, Luís Carvalho Fernandes tende a caracterizar a norma imperativa como contendo “limites máximos” ultrapassados no negócio concreto (fala neste na existência de uma “cláusula excessiva”), parecendo funcionar a “eficácia mediata” (a integração da norma imperativa no negócio) como a restrição quantitativa de um conteúdo mais amplo. Ora, o que aqui sucede é, um pouco, o contrário: a integração no negócio da norma imperativa opera uma ampliação da cobertura negocial estabelecida em desobediência ao comando legal imperativo anterior ao negócio.

Seja como for, continuamos a ver aqui, mesmo que isso signifique uma ampliação da cobertura negocialmente estabelecida (da qual, aliás, é beneficiário o destinatário da protecção visada pela norma imperativa: destinatário que não foi parte no processo negocial), continuamos a ver aqui, dizíamos, uma situação que justifica a integração no negócio do conteúdo legal imperativo desrespeitado, como projecção de um conteúdo obrigatório que quem contrata (quem contratou) naquelas condições concretas tinha (tem) a obrigação de conhecer (artigo 6º do CC) e de respeitar, celebrando contratos conformes à lei.

Considera-se na jurisprudência italiana, a propósito da interpretação do artigo 1339º do Codice Civile[51], que o princípio da inserção automática de cláusulas aí estabelecido não se refere às situações em que se não perspective uma substituição pura e simples de cláusulas contratuais contrárias a normas imperativas, mas, apenas, a integração de lacunas da manifestação da vontade contratual. A inserção automática visa obter a substituição de uma realidade definida (a cláusula ilegal) por outra realidade definida (o conteúdo da norma imperativa regulando o exacto espaço ocupado pela cláusula ilegal), e não colmatar lacunas de regulamentação em espaços da relação negocial deixados livres pelas partes. Trata-se, enfim, de operar uma inserção automática no negócio de uma disposição legal imperativa (em si mesma suficiente para modelar aquele segmento concreto da relação contratual), disposição que as partes tinham obrigação de conhecer e de com ela contar na conclusão do negócio nas condições concretas em que o celebraram.

Ou seja – e esta asserção encerra a essência do caminho que aqui propugnamos –, o artigo 294º do CC ao excepcionar da nulidade decorrente da ofensa a disposição legal de carácter imperativo as situações “[…] em que outra solução resulte da lei”, está a ressalvar a suficiência do conteúdo da norma imperativa, feito repercutir no negócio, como elemento de aproveitamento global deste. Aliás, o próprio instituto da redução, o regime emergente do artigo 292º do CC, pode perfeitamente ser visto como dirigido, num primeiro momento lógico, à supressão da cláusula legalmente desconforme, seguido da ampliação da obrigação, se esse é, como aqui sucede, o sentido da disposição legal que acarreta a supressão da cláusula negocial indevidamente restritiva.

É isto, enfim, o que aqui se fará, dando à cobertura referente à IPP (invalidez permanente, na linguagem do contrato) o exacto conteúdo da alínea a) do artigo 4º, nº 1 do DL 146/93: pagamento de um capital por invalidez permanente parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva. 

2.2.5. A prevalência (se quisermos: a integração automática; a eficácia mediata; a sobreposição) do regime imperativo legal opera aqui, portanto, através da “entrada” no clausulado do conteúdo do regime obrigatório (do regime que já era obrigatório ao tempo da celebração do contrato de seguro aqui em causa, que data do ano de 2000[52]), sendo que esta incidência, compaginada com a parte não afectada (subsistente) da cláusula contendo a redução inadmissível da cobertura e o restante conteúdo contratual, significa o pagamento pela Seguradora 2ª R. – isto no que aos danos patrimoniais diz respeito – da parte correspondente do capital fixado nas condições particulares constantes de fls. 83/96 (que é – e transcrevemos a cláusula 5.1. das condições particulares a fls. 87 – “[m]orte ou invalidez permanente: até 5.000.000$00[/€24.939,89”]) aqui determinado através da tabela de desvalorização que faz parte integrante das Condições Gerais da Apólice [no caso a “Tabela de Desvalorização por Invalidez Permanente” que consta das “Condições Gerais” de fls. 281/285, no trecho que se refere a “Membros Superiores e Espáduas – Amputação de Anelar Direito” (fls. 285 e 96) e indica a percentagem de 8%][53].

Refere-se a indemnização acabada de caracterizar, como dissemos, a danos patrimoniais (na petição inicial o A. avaliou-os em €15.000,00, v. artigo 24 do referido articulado a fls. 4 e nota 3, supra), importando encarar agora a questão dos danos não patrimoniais, igualmente peticionados pelo A. /Apelante (artigo 33 da petição inicial a fls. 5 e nota 3, supra, sendo que o A. os avalia aí em €7.500,00).   

2.2.5.1. Argumenta a 2ª R. Seguradora que o contrato de seguro não prevê qualquer indemnização por danos não patrimoniais. Esta afirmada não previsão significa – e estamos a valorar o sentido objectivo deste argumento da Seguradora –, tão-só, a inexistência de uma cláusula no contrato que expressamente (se quisermos, chamando-os pelo nome) se refira a danos não patrimoniais. Trata-se, porém, de um argumento que não podemos qualificar de absoluto, no sentido de actuar num plano de evidência que não deixa lugar a outro entendimento interpretativo. Com efeito, recolocando as coisas no plano argumentativo que temos por adequado, o que nos parece evidente no texto do contrato, não é a exclusão da indemnização de danos não patrimoniais, mas, pelo contrário, a não qualificação da natureza do dano indemnizável e, consequentemente a não exclusão de que o dano a cobrir seja de natureza não patrimonial.

Visar o seguro aqui em causa (no contrato e na lei) uma cobertura referida ao risco – trata-se, como antes se sublinhou, de um seguro de pessoas referido aos riscos relativos à integridade física dos praticantes desportivos – não exclui que se indemnizem danos não patrimoniais, desde que estes, como refere o trecho final do nº 1 do artigo 496º do CC “[…] pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”[54]. A questão deve ser equacionada em paralelo relativamente ao regime legal (à cobertura obrigatória deste seguro) estabelecido(a) no DL 146/93 e ao regime convencional decorrente do texto do contrato.

O regime legal decorre aqui, fundamentalmente do texto da alínea a) do nº 1 do artigo 4º do DL 146/93, que fala, como “cobertura mínima”, no “[p]agamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva”. Ver aqui (neste texto) uma exclusão da cobertura de danos não patrimoniais, traduz uma restrição do sentido (amplo) da cláusula legal, consistente na introdução de uma distinção onde ela não existe (ubi lex non distinguit, nec interpres distinguere debet). Trata-se, pois, de uma leitura restritiva sem fundamento interpretativo. É certo que uma invalidez é essencialmente uma incapacidade funcional e esta expressa-se, primordialmente, num dano patrimonial, associado desde logo a uma incapacidade para o trabalho. Mas a disposição legal não é exactamente a qualificação do tipo de dano o que faz: fala de um “capital” (“[p]agamento de um capital […]”) que cubra a “morte ou invalidez”. Isto inclui todos os tipos de danos – rectius, não exclui os danos não patrimoniais.

E as coisas não se colocam num plano distinto deste quando encaramos o contrato em si mesmo, à luz da ausência do elemento textual traduzido na exclusão de indemnizações referidas a danos não patrimoniais [v. o artigo 6º (“Riscos Cobertos”) das condições gerais, a fls. 281/282]. Também aqui não se deve distinguir aquilo que o contrato não distingue, valendo, por isso, a regra própria da interpretação de um contrato de seguro, in dubio contra stipulatorum, conforme à qual uma ambiguidade do texto contratual deve ser entendida, no sentido de interpretada, como abrangendo o conteúdo indemnizatório mais amplo, aqui correspondente à não exclusão da cobertura dos danos não patrimoniais.

Vale isto, enfim, pela afirmação – que apresentará consequências decisórias no presente recurso – de que o seguro aqui em causa não exclui, contrariamente ao que pretende a Seguradora/Apelada, a indemnização por danos não patrimoniais (“danos morais”), sendo que os aqui detectados (os que vemos caracterizados nas alíneas s) a x) do elenco fáctico supra transcrito), pela sua gravidade objectiva (dores, angústia, afectação da auto-imagem física de um jovem, enquanto valor positivo da sua afirmação pessoal)  merecem, indubitavelmente, a cobertura do direito.

Haverá, pois, que os fixar – que também os fixar –, sendo que, no quadro de uma avaliação equitativa estabelecido no artigo 496º, nº 3 do CC, valorando as incidências deste tipo de dano no quadro das circunstâncias em que o mesmo se verificou, julgamos adequada uma quantificação em €2.500,00.   

2.2.5.2. O montante indemnizatório concreto a satisfazer pela Seguradora 2ª R., depende, isto no que tange aos danos patrimoniais, da aplicação (do cálculo da incidência) do critério indicado a sublinhado no item 2.2.5. deste Acórdão, sendo que esta Relação remeterá tal quantificação (a dos danos patrimoniais) para posterior liquidação da sentença, nos termos do artigo 661º, nº 2 do CPC[55], por entender não emergirem inequivocamente dos autos todas as incidências práticas que possibilitem (a este Tribunal) uma aplicação segura desse critério (o limite máximo é aqui – embora estejamos seguramente longe desse valor – os €15.000,00 respeitantes aos danos patrimoniais com os juros respectivos).

2.2.5.3. O resultado final assim alcançado representa, enfim, tomando por referência a incidência da decisão deste recurso na configuração das pretensões do A. (com as vicissitudes subjectivas que caracterizaram o desenvolvimento do processo), na sucumbência da pretensão dirigida contra a 1ª R. (a absolvição desta do pedido será confirmada) e na parcial procedência da pretensão dirigida contra a 2ª R. (esta será condenada em parte do pedido).

Finalmente, com interesse para a fixação de ambos os montantes indemnizatórios apurados, não haverá lugar à redução de qualquer importância a título de franquia, porque esta constitui, por definição, um encargo do tomador e não da pessoa segura[56].

2.3. Resta-nos, pois, formular o pronunciamento decisório, não sem que antes deixemos sumariados os traços fundamentais do antecedente percurso argumentativo:


I – O controlo pelo Tribunal da Relação da matéria de facto fixada na primeira instância, com base no acesso à gravação áudio dos depoimentos aí prestados, dirige-se à detecção de manifestos erros de julgamento, não se traduzindo numa substituição da “livre apreciação” racionalmente justificada da prova testemunhal feita pelo Tribunal a quo, pela “livre apreciação” do Tribunal ad quem;
II – O Decreto-Lei nº 146/93, de 26 de Abril (entretanto substituído pelo Decreto-Lei nº 10/2009, de 12 de Janeiro), sujeitou a cobertura dos riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva ao regime de seguro obrigatório;
III – A circunstância deste “seguro obrigatório da actividade desportiva” abranger acidentes in itinere para os treinos e as competições implica que a obrigação de segurar se refere à actividade desportiva em sentido amplo, abrangendo actividades preambulares e sequenciais do treino e da competição;
IV – O regime legal deste seguro abrange, obrigatoriamente, enquanto cobertura mínima, além da indemnização por morte, a indemnização por invalidez, total ou parcial, sem qualquer limitação percentual (artigos 4º do DL 146/93 e 5º do DL 10/2009), significando isto que qualquer percentagem de desvalorização funcional permanente estará, obrigatoriamente, coberta pelo seguro;
V – Uma cláusula inserta num contrato de seguro desportivo que cubra a obrigação de segurar estabelecida na lei (e que, por isso, se traduz num “seguro obrigatório”) não pode excluir a indemnização de desvalorizações funcionais permanentes inferiores a 10%;
VI – A nulidade desta cláusula (artigo 294º do CC) resolve-se com a projecção directa no contrato da norma imperativa (no caso o artigo 4º do DL 146/93) que manda indemnizar todas as incapacidades permanentes gerais, a qual passa a “integrar” o contrato, em substituição do trecho violador dessa disposição legal, aproveitando-se o restante da cláusula e do contrato;
VII – Corresponde esta substituição à primazia da ideia de conservação do negócio contendo cláusulas nulas, através da chamada “eficácia mediata das normas imperativas”, funcionando esta como “outra solução”, alternativa à nulidade (à supressão do negócio ou da cláusula nula), resultante da lei (trecho final do artigo 294º do CC).
VIII – O DL 146/93, no seu artigo 4º, nº 1, alínea a), ao referir a cobertura mínima abrangida pelo seguro desportivo de grupo ao “[p]agamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva”, não contém qualquer restrição aos danos patrimoniais resultantes do acidente quanto à incidência obrigatória do seguro (rectius, não contém qualquer exclusão de danos não patrimoniais);
IX – A inexistência de uma cláusula, num contrato referido à obrigação de segurar emergente do DL 146/93, que contenha uma expressa exclusão da cobertura de danos não patrimoniais, deve ser entendida, de acordo com a regra in dubio contra stipulatorum, própria da interpretação de um contrato de seguro, como cobertura deste tipo de danos.  


III – Decisão


3. Assim, na parcial procedência da apelação, decide-se condenar a 2ª R./Interveniente, C...:

A) A satisfazer ao A. A..., a título de danos patrimoniais, nos termos do artigo 661º, nº 2 do CPC, o que vier a ser liquidado através da aplicação do critério definido no item 2.2.5. deste Acórdão;

B) A satisfazer, ainda, ao mesmo A., a título de danos não patrimoniais, a quantia de €2.500,00.

Acrescem a estas importâncias (as respeitantes a danos patrimoniais e não patrimoniais) – e, consequentemente, também nisso se condena a 2ª R. – juros à taxa legal desde a citação (09/10/2006, v. fls. 65), até integral pagamento.

Confirma-se no restante (absolvição do pedido da 1ª R. “B...”) a Sentença recorrida.

3.1. A 2ª R. C..., aqui Apelada – parcialmente vencida que é –, pagará, em ambas as instâncias, 25% das custas apuradas.

O A./Apelante, pagaria – por ter ficado vencido parcialmente (parte dos montantes peticionados) – as custas restantes. Todavia, como beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (v. fls. 305), tendo em conta o disposto no artigo 13º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, inexiste fundamento legal para que o mesmo seja aqui condenado no pagamento das referidas custas[57]. Omite-se, pois, neste Acórdão, essa condenação.

Coimbra,


(J. A. Teles Pereira)

(Jacinto Meca)

(Luís Falcão de Magalhães)



[1] Ao tempo da propositura da acção (18/05/2006) menor (nasceu em 30/04/1990, v. fls 117) e, por isso, representado pelos seus pais, G... E H.... O A., após ter atingido a maioridade, assumiu a acção, ratificando o processado anterior promovido pelos seus pais (v. a procuração de fls. 260).
[2] Resultando esta quantia da soma das seguintes parcelas: €15.000,00 a título de “lucros cessantes ou danos patrimoniais” (artigo 24º da petição inicial); €7.500,00 a título de “dano moral” (artigo 33º da petição inicial).
[3] Existiu, ao longo do processo (por banda de todos os intervenientes: Partes e Juiz), a omissão de uma dimensão argumentativa que a situação sub judicio necessariamente colocava, omissão que gerou um evidente défice argumentativo da Sentença, determinando um resultado que esta Relação considera incorrecto. Com efeito – e parece que ninguém deu por isso –, o contrato de seguro em causa corresponde (concretiza), necessariamente, ao chamado “seguro obrigatório desportivo”, previsto, no que ao enquadramento temporal aqui em causa (Abril de 2004) diz respeito, pelo Decreto-Lei nº 146/93, de 26 de Abril (este Diploma foi substituído, entretanto e sem directa aplicação à presente situação, pelo Decreto-Lei nº 10/2009, de 12 de Janeiro). Na subsequente exposição esta questão será objecto de um tratamento mais desenvolvido.
[4] A intervenção da Seguradora foi provocada pela 1ª R. na sua contestação (essa hipótese havia, aliás, sido aventada pelo A., que implicitamente a considerou como uma possibilidade no artigo 45º da p.i. adiante transcrito) e foi admitida, como intervenção principal (artigo 325º, nº 1 do Código de Processo Civil), através do despacho de fls. 58/61. Para o processo argumentativo deste recurso, tem interesse sublinhar desde já, a propósito da aceitação da intervenção da Seguradora (intervenção provocada suscitada pela 1ª R., como associada dela própria), que a mesma se funda na hipotética existência de uma situação litisconsorcial decorrente do acidente poder ser considerado coberto pelo seguro. Esta particularidade do contrato de seguro, tributária da sua qualificação como contrato a favor de terceiro, tem um importante esteio na nossa jurisprudência – v. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/03/1989 (Meneres Pimentel), publicado no BMJ 385,563; enquanto exemplo mais recente, v. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/01/2009 (José Augusto Ramos), proferido no processo nº 5127/2008-1, disponível na base de jurisprudência do ITIJ em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f8b69bb8694303bd (pode este Acórdão ser pesquisado em qualquer dos “campos” indicados).
[5] V. as definições constantes do Documento nº 1 junto com a petição inicial (fls. 7/15), aqui transcritas nos trechos relevantes:
“[…]
Definições
Artº. 1º.
1.1. – Tomador do Seguro: Federação Portuguesa de Basquetebol, que se responsabiliza pelo pagamento do prémio do Seguro.
1.2. – Segurados: A Federação (Selecções Nacionais), as Associações (Selecções Distritais e/ou Regionais) e os Clubes Filiados nas Associações de Basquetebol Distritais e/ou Regionais
1.3. – Pessoas Seguras: Todos os Jogadores de Basquetebol (não profissionais) e Agentes Desportivos, de ambos os sexos, a partir da data de entrada das suas inscrições (novas e/ou revalidações), que conste na informática da Federação Portuguesa de Basquetebol e que esta se obriga a enviar, pelo menos trimestralmente, ao Consultor/Assistente.
1.3.1. – Conforme Protocolo estabelecido entre a Federação Portuguesa de Basquetebol e a liga dos Clubes de Basquetebol, os Jogadores (Não Profissionais) inscritos nesta Liga, bem como os Agentes Desportivos nas mesmas condições, são, também e para todos os efeitos, considerados Pessoas Seguras pela presente Apólice.
1.4. – Seguradora: C....
[…]
1.6. – Acidente Corporal: Acontecimento fortuito, súbito e violento ou não, devido a causa exterior e estranha à vontade da Pessoa Segura e que nela cause lesões corporais.
[…]”
                [transcrição de fls. 8]

[6] Diz a 1ª R.:
“[…]
15
O início do treino estava agendado para as 18h e nesse (como em qualquer outro dia e em relação a qualquer outro treino), nada os atletas poderiam executar – quer em termos de trein[o] físico quer técnico – sem a presença de um treinador e de um dirigente.
16
A essa hora – 17h40m – decorria um treino de Andebol e no Pavilhão encontravam-se apenas 3 atletas do B..., já que por norma os demais só chegariam por volta das 18h.
[…]
18
Ou seja, e para todos os efeitos, o que pudesse ter acontecido ao Daniel, naquela hora e momento, escapava ao conhecimento e controlo de qualquer técnico ou responsável do R., uma vez que nenhum atleta tinha autorização para fazer o que quer que fosse antes do início do treino.
19
Ou seja, a R. é, sempre foi e sempre será, responsável pelo que aconteça após o início e até ao final de cada treino (ou de um jogo se a circunstância fosse esta), mas nunca poderá assumir qualquer responsabilidade fora desse enquadramento de tempo e espaço.
[…]
21
Na verdade e antes que lhe tivessem sido dadas quaisquer instruções – o que só poderia acontecer por volta das 18h – o A... decidiu «entreter-se» em brincadeiras e lançamentos com bola, o que fazia juntamente com outro atleta.
22
Para além desses exercícios, o A...«disputava» com o outro colega (também atleta) a primazia de quem chegava mais alto com a mão, tentando atingir o aro do cesto, o qual se encontrava colocado na parede lateral do pavilhão.
[…]
24
E foi nesse «exercício arriscado», de todo desaconselhado, que o A... se magoou na rede de nylon do cesto, já que ao pular, e no esforço de tocar no aro, ficou com o dedo preso no fio que compõe a rede.
[…]”
                [transcrição de fls. 41vº/42]
[7] Diz a 1ª R., desta feita:
“[…]
46
Com efeito, contactou a Direcção da Associação de Basquetebol da Guarda a quem relatou e descreveu o sucedido.
47
Foi informada, então, pelos seus dirigentes, que o caso não configurava uma situação de sinistro, suposta abrangida pelas disposições da Apólice referente ao Contrato de Seguro celebrado pela Federação Portuguesa de Basquetebol junto da C....
[…]”
                [transcrição de fls. 44]

[8] Remete aqui a 2ª R. para a cláusula 9.4. do contrato (v. fls. 14), dizendo na contestação:
“[…]
12º [D]e acordo com o disposto no artigo 9º, nº 4 «A falta de cumprimento dos prazos atrás indicados (8+5=13 dias) implica ser considerado,… nulo e de nenhum efeito o sinistro participado.
13º Pelo que, uma vez não participado o sinistro dos autos, não poderá a C... ser responsabilizada pelo sinistro dos autos.
[…]”
                [transcrição de fls. 67]
[9] Desta consta, com interesse para a situação:
“[…]
Âmbito de Cobertura
Artº. 2º.
Pela presente Apólice, a Seguradora garante os riscos consequentes de acidentes corporais, quando em participação nas actividades abaixo descritas:
2.1. – Jogadores: Quando ocorridos durante a prática de Basquetebol, em jogos, treinos e/ou estágios, assim como durante as respectivas deslocações, em qualquer meio de transporte (com excepção de veículos de duas rodas com ou sem motor), de e para os locais onde tenham lugar as respectivas actividades e, desde que, em representação ou sob o patrocínio do Tomador de Seguro, Associações Distritais e/ou Regionais, Liga dos Clubes (quando não profissionais), Clubes ou Entidades Oficiais.
[…]”
                [transcrição de fls. 9]
[10] Consta do clausulado da Apólice, num trecho que a subsequente exposição mostrará ser fundamental para a abordagem e resolução do recurso, o seguinte texto:
“[…]
Esta Apólice garante os seguintes riscos:
[…]
3.1.2. – No caso de invalidez permanente igual ou superior a 10% (dez por cento), clinicamente constatada e sobrevinda no decurso de dois anos a contar da data do acidente, a Seguradora pagará a parte do correspondente capital determinado pela tabela de desvalorização que faz parte integrante das Condições Gerais da Apólice.
[…]”
                [transcrição de fls. 10, ênfase ausente do original]
[11] Diz-se no despacho, identificando essa questão:
“[…]
Sustentam as partes que não foi participado o acidente dentro do prazo contratualmente previsto para o efeito, sendo que a seguradora argúi ainda que tal implica que seja considerado nulo e de nenhum efeito o sinistro participado.
[…]”
                [transcrição de fls. 138; v. a nota 9, supra]
[12] Este é aplicável à situação aqui ajuizada (note-se que foi, entretanto – a partir de 01/01/2009 –, revogado pelo artigo 6º, nº 2, alínea a) do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o novo “regime jurídico do contrato de seguro”).  
[13] Fundou-se este entendimento – e adiantamos que o reputamos de correcto e relevante para uma correcta abordagem do presente recurso – no Acórdão da Relação de Lisboa de 08/03/2007 (Sousa Pinto), proferido no processo nº 9677/06-2, disponível, na pesquisa por estes campos, no sítio do ITIJ em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/eeb533e55cd3acc5802572ab00596412 (é o seguinte o respectivo sumário: “[o] incumprimento da cláusula inserta em contrato de seguro que estipula ser de oito dias o prazo para o tomador de seguro participar por escrito o acidente, apenas faz incorrer este em responsabilidade perante a seguradora pelas eventuais perdas e danos que esta tenha sofrido, derivados de tal omissão, não implicando a desresponsabilização da seguradora pelo evento ocorrido”).
[14] Este último, por estar em causa um processo iniciado anteriormente a 1 de Janeiro de 2008, na redacção que apresentava anteriormente à reforma do regime dos recursos introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Note-se que, pela mesma razão, qualquer disposição do CPC citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterada pelo DL nº 303/2007, o é na versão anterior a este Diploma.
[15] Num recurso em que se impugne a matéria de facto, a especificação dos meios de prova prevista no artigo 690º-A, nº 1, alínea b) do CPC, não necessita de constar das conclusões, v., neste sentido, os Acórdãos desta Relação (Jorge Arcanjo), de 13/05/2008 (processo nº 372/04.8AAND.C1) e de 03/06/2008 (processo nº 245-B/2002.C1), disponíveis na base de jurisprudência do ITIJ, para pesquisa nos campos indicados, respectivamente nas seguintes localizações: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb53003ea1c61802568d9005cd5bb/171e03f7d2c8f3e2 e http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/bc3774b42c238fee. A este respeito, desde já se adianta, relativamente à impugnação da matéria de facto, empreendida por referência ao artigo 712º, nºs 1 e 2 do CPC, ter o Apelante dado cumprimento aos ónus decorrentes do nº 1 do citado artigo 690º-A.

[16] Acórdão do STJ de 14/03/2006 (Ferreira Girão), na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XIV, Tomo I/2006, pp. 130/131.
[17] Proferido no processo nº 06B1868 (Pires da Rosa), disponível, sob estes campos de pesquisa, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3bd4510d626cc929802572d80032c28
[18] O legislador, aliás, assumiu este condicionalismo – e disso deixou um rasto expresso – ao consignar no preâmbulo do referido Decreto-Lei nº 39/95 o seguinte:
“[…]
[O] objecto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova […]”.
[19] La valoración racional de la prueba, Marcial Pons, Madrid, 2007, p. 45.
[20]
Artigo 5º
(Coberturas mínimas)
1 – O seguro desportivo cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respectiva actividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respectivas deslocações, dentro e fora do território português.
2 – As coberturas mínimas abrangidas pelo seguro desportivo são as seguintes:
a) Pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva;
b) Pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento.
3 – O seguro desportivo dos praticantes abrangidos pelo regime de alto rendimento tem coberturas e valores mínimos diferenciados, nos termos do disposto no artigo 11º.
[21] Vale esta referência – que é a relevante para o DL 146/93 aqui aplicável – para o artigo 16º da Lei nº 1/90:
Artigo 16º
(Seguro desportivo e segurança social)
1 – É assegurada a institucionalização de um sistema de seguro obrigatório dos praticantes desportivos enquadrados na prática desportiva formal, o qual, com o objectivo de cobrir os particulares riscos a que estão sujeitos, protege em termos especiais o praticante desportivo de alta competição.
2 – Outras categorias de agentes desportivos cuja actividade comporte situações especiais de risco estão igualmente abrangidas no seguro de regime obrigatório.
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Este Diploma (a Lei nº 1/90) foi revogado pela Lei nº 30/2004, de 21 de Julho (a questão do seguro obrigatório era aí prevista no artigo 70º). Esta última foi, por sua vez, revogada pela Lei nº 5/2007, de 16 de Janeiro (Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto), que refere o seguro dos agentes desportivos no respectivo artigo 42º.
Trata-se – tratou-se sempre, desde 1990 – da institucionalização de um regime de seguro obrigatório referido à prática desportiva.
[22] Claro que a estes elementos poderemos acrescentar – e trata-se da introdução de um argumento de relevância constitucional, mesmo que referido a um princípio de pendor programático – uma referência, neste caso, ao artigo 70º, nº 1, alínea d) da Constituição ([o]s jovens gozam de protecção especial para efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente […] [n]a educação física e no desporto […]) e, em termos gerais, ao artigo 79º do texto constitucional: “1. [t]odos têm direito à cultura física e ao desporto. 2. [i]ncumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e colectividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como prevenir a violência no desporto”.
[23] Nos termos presentemente resultantes do artigo 4º, nº 1 do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, que aprovou o sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel:
Artigo 4º
(Obrigação de seguro)
1 – Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
[24] “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”.
[25] Resultante do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, alterado sucessivamente pelo Decreto-Lei nº 220/95, de 31 de Agosto e pelo Decreto-Lei nº 249/99, de 7 de Julho.
[26] Pedro Romano Martinez, “Cláusulas contratuais gerais e cláusulas de limitação ou de exclusão da responsabilidade no contrato de seguro”, in Scientia Iuridica, tomo LV, nº 306 – Abril/Junho, 2006, p. 241 (v., sobre a aplicação da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais ao contrato de seguro, pp. 242/243 e António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2007, pp. 764/768)
[27] O artigo 1º do DL 72/2008 define o “conteúdo típico” do seu objecto nos seguintes termos: “[p]or efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
Na definição dada por José Vasques, constitui contrato de seguro “[…] o contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de um valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto” (Contrato de Seguro, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 94).
[28] E importará não esquecer neste caso, por autorização do artigo 12º do DL 146/93, a Portaria nº 757/93, de 26 de Agosto, contendo a fixação dos capitais mínimos obrigatórios (que as condições concretas aqui ultrapassam, cfr. Artº 5º do Documento nº 1 junto com a p.i. a fls. 12).
[29] A existência do seguro obrigatório referido pressupõe, com este sentido, a prática organizada do desporto (rectius, a integração no desporto organizado em clubes e federações), excluindo logicamente uma actividade individual ou circunstancialmente conjunta (tipo grupo de amigos) de lazer com pendor ou carácter desportivo, por mais sistemática que tal prática se assuma.
[30] Que não é, por definição, quem se encontra obrigado a satisfazer ao segurado a prestação do segurador, embora seja titular passivo (devedor) de deveres prestacionais diversos no âmbito do contrato de seguro. Utilizando os exactos termos da lei actual (DL 72/2008), aqui feitos valer como argumento de semelhança, dir-se-á, citando o nº 1 do artigo 102º do DL 72/2008, que “[o] segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”.
[31] Diz o artigo 798º do CC que “[o] devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”. Parece, pois, que o entendimento primordial do A. (aquele que se expressa no pedido principal formulado contra a 1ª R.) é o de que o não percebimento da atribuição patrimonial decorrente da cobertura da situação pelo seguro, se ficaria a dever ao comportamento dessa 1ª R. ao não participar o acidente, pressupondo o A. que essa não participação inviabilizaria a cobertura pelo seguro. Essa não cobertura representaria, assim, o prejuízo do A., decorrente de uma falta contratual culposa da 1ª R., enquanto segurada – ou seja, enquanto parte na relação complexa representada pelo contrato de seguro, cuja incidência subjectiva foi enunciada (transcrevendo a pertinente cláusula contratual) na nota 6, supra.
[32] Estamos aqui, claramente, num domínio de aparência de alternativa do pedido (artigo 468º do CPC) que, por falta de existência de um direito que por sua natureza ou origem seja alternativo, deve ser reconduzido à formulação de um pedido subsidiário (artigo 469º do CPC). Constata-se, com efeito, que a prestação contratual do seguro, por verificação do evento visado pela cobertura, não preenche a facti species das obrigações alternativas (artigo 543º do CC).
Esta situação, que a doutrina qualifica como alternativa aparente, é equacionada por José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, nos seguintes termos:
“[…]
Só a alternativa real pode dar lugar a pedido alternativo. Não está abrangida pelo preceito [pelo artigo 468º do CPC] a alternativa aparente, isto é, a situação em que o autor formula dois ou mais pedidos, reconhecendo que só um é substantivamente procedente, e pede ao tribunal que atenda apenas um deles, porque só a um sabe ter direito.
A alternativa aparente só é possível sob a forma de subsidiariedade (artigo 469º [CPC]): o autor terá de escolher aquele de, entre os pedidos que quer deduzir a título principal, passando o restante ou restantes a pedidos subsidiários.” (Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 258).
[33] Tenha-se em conta que, na configuração legal aqui em causa (referimo-nos à anterior ao DL 72/2008), a existência de acção directa sobre a seguradora, por banda do lesado, é (era) indiscutível, resultando, na justificação normalmente fornecida pela nossa jurisprudência (v. nota 5, supra) da caracterização do contrato de seguro, facultativo ou obrigatório, de responsabilidade civil (e isto vale para o “seguro de pessoas” em que o segurado não é o tomador, v. item 2.2.3.1., infra) como contrato a favor de terceiro (v. J. C. Moitinho de Almeida, “O Novo Regime do Contrato de Seguro. Breves Considerações Sobre a Protecção dos Segurados”, in Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra Editora, pp. 24/25).
“ O contrato a favor de terceiro pode ser definido como o contrato em que uma das partes (o promitente) se compromete perante outra (o promissário) a efectuar uma atribuição patrimonial em benefício de outrem, estranho ao negócio (o terceiro)” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, p. 249). A correspondência deste tipo de situações, estabelecidas em sede de contratos de seguro, ao regime do contrato a favor de terceiro, é referida pela doutrina italiana, sempre que o promissário tenha – mas só se tiver – um interesse próprio na concretização da promessa (cfr. Giuseppe Ferri, Manuale di Diritto Commerciale, 5ª ed., UTET, Turim, 1984, pp. 927/930).
[34] Sublinhamos aqui a sua data para tornar clara a inaplicabilidade, então, do regime constante do artigo 101º do DL 72/2008 e, ao invés, a sujeição da situação ao artigo 440º do Código Comercial, como correctamente se considerou nesse despacho de fls. 138/139.
[35] António Menezes Cordeiro, Manual…, cit., p. 817.
[36] Dizer que a não participação do acidente, nos termos em que a 2ª R. o faz nos artigos 12º e 13º da sua contestação (v. nota 9, supra), torna “nulo e de nenhum efeito o sinistro”, consiste na invocação de um facto (a não participação) que, pressupondo a apetência do direito invocado pelo A. (a cobertura do acidente pelo seguro), se traduz na invocação de um facto extintivo deste (a não participação). Corresponde, enfim, tal linha defensiva, à invocação de uma excepção peremptória (artigo 493º, nº 3 do CPC).
[37] “Hoje [hoje é na redacção aqui em causa do artigo 510º do CPC], a redacção do nº 1-b e da 2ª parte do nº 3, qualificando a decisão sobre a excepção peremptória, sem distinguir entre procedência e improcedência, como decisão de mérito e atribuindo-lhe, também em qualquer caso, o valor de sentença […], vieram solucionar a questão em conformidade com a última orientação referida [a que “entendia que o juiz podia decidir no despacho saneador pela improcedência duma excepção peremptória, com sujeição desta decisão a recurso de apelação”]. O «valor de sentença» estatuído pelo nº 3 é, restritiva mas claramente, o da sentença de mérito, ainda que parcial” (José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, cit., pp. 403/404).
[38] Embora todos as conheçamos, v. a definição das características e objectivo do jogo na versão portuguesa da Wikipedia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Basquetebol#Objetivo_do_jogo.
[39] O que se pretende sublinhar, num uso algo impróprio da expressão “sociologicamente”, é a circunstância do senso comum tender a associar a conduta do A. naquelas circunstâncias concretas à actividade desportiva deste no quadro do treino que se lhe seguiria (uma espécie de in itinere comportamental para o treino). A Sociologia estuda o comportamento humano em função do meio e os processos que interligam os indivíduos em associações grupos e instituições e a percepção social do significado desse comportamento nessas múltiplas inserções situacionais. O desporto constitui um subsistema social e origina representações específicas nos observadores exteriores. É neste sentido que dizemos que “sociologicamente” aquela actividade é representada como associada – no sentido de preambular – ao treino. 
[40] Estamos a referir-nos ao Acórdão do STJ de 06/05/2004 (Bettencourt de Faria), proferido no processo nº 03B2984, disponível, na pesquisa por estes campos, na base de jurisprudência do ITIJ em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6a3bb43e457001ac.
[41] A caracterização assim obtida do tipo de seguro aqui em causa como seguro de pessoas, deve ser compaginada, enquanto elemento diferenciador, com a definição do “seguro de responsabilidade civil” (daquilo que não é o seguro em causa neste processo) fornecida pelo DL 72/2008 na sua parte especial:
Seguro de responsabilidade civil
[…]
Regime comum
Artigo 137º
Noção
No seguro de responsabilidade civil, o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros.
[42] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol., Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1980, p. 368. Sofia de Sequeira Galvão, considerando esta definição algo redundante – “eventualidades… potenciais” – propõe que por risco se entenda “[…] a possibilidade de um dano que alguém suporta como titular de uma posição jurídica […]” (Reflexões Acerca da Responsabilidade do Comitente no Direito Civil Português, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1990, pp. 52/53).
[43] Referimo-nos ao trecho da Sentença onde se afirma o seguinte:
“[…]
Ora, em primeiro lugar, constata-se que, em virtude da ocorrência dos autos, o A. ficou a padecer de uma incapacidade geral permanente de 2%, inferior ao limite mínimo de 10% de invalidez permanente coberto nos termos da apólice […], pelo que resulta evidente a improcedência do pedido contra a seguradora.
[…]”
                [transcrição de fls. 303]
[44] Não colhe aqui o argumento de que o nº 2 do mesmo artigo 4º aceita diferenciações nas coberturas (“[…] em função da […] inserção ou não […] no percurso da alta competição”), porque essas diferenciações só podem actuar, dentro da lógica de todo o artigo 4º, referida à obrigatoriedade do seguro decorrente do artigo 2º, como acréscimos de cobertura ao mínimo garantido pelo nº 1 do artigo 4º.
[45] J. C. Moitinho de Almeida, “O Novo Regime do Contrato de Seguro…”, cit. p. 28. Esta asserção tem, aliás, assento inquestionável na jurisprudência comunitária, v. o Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 28/03/1996 (caso Ruiz Bernáldez), publicado na Colectânea da Jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, I-01829 e disponível no sítio http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61994J0129:PT:HTML#MO.
[46] “A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada”.
[47] No seu conteúdo original diz o artigo:
1339. Inserzione automática di clausole. – Le clausole, i prezzi di beni o di servizi, imposti dalla legge [o da norme corporative], sono di diritto inseriti nel contratto, anche in sostituzione delle clausole difformi apposte dalle parti (v. G. Pescatore, C. Ruperto, Códice Civile anotato com la giurisprudenza della corte costituzionale, della corte di cassazione e della giurisdizioni amministrative superiore, 9ª ed.,Tomo I, Giuffrè Editore, Milão, 1993).
[48] A Conversão dos Negócios Jurídicos Civis, Quid Juris, Lisboa, 1993, pp. 537/538 (trata-se esta obra da tese de Doutoramento do Autor; encontra-se uma exposição mais sucinta na Teoria Geral do Direito Civil, II, 4ª ed., revista e actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, pp. 513/516).
[49] A Conversão…, cit., pp. 543/546.
[50] Que era referida, sem a designação aqui utilizada, por Carlos Alberto da Mota Pinto nas edições da Teoria Geral do Direito Civil posteriores a 1985, a propósito do regime decorrente dos artigos 13º e 14º do Decreto-Lei nº 446/85 (cláusulas contratuais gerais):
“[…]
Nos contratos de adesão, verificada a nulidade de certas cláusulas por violarem proibições legais, existe um regime especial (previsto nos artigos 13º e 14º do [DL 446/85]), que visa proteger o interesse do aderente: este pode optar pela manutenção dos contratos singulares, mesmo que algumas das suas cláusulas sejam nulas, vigorando, na parte afectada, as normas supletivas aplicáveis” (Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 638)
[51] E colhemos essa informação através da citação, em anotação ao artigo 1339º, por G. Pescatore e C. Ruperto (Codice Civile…, cit. p. 1976) de uma decisão da Cassazione de 19/12/1992.
[52] E com o qual, por isso mesmo, a Seguradora já tinha, então (e desde 1993), obrigação de contar e, consequentemente, de integrar nos respectivos contratos.
[53] Considera-se aqui ter existido “amputação de anelar direito” (porque existiu amputação no anelar direito), não estabelecendo a Tabela qualquer distinção do quantum dessa amputação. Como refere Pedro Romano Martinez:
No contrato de seguro padronizado, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, não se aplica o disposto no artigo 237º do [CC], que aponta para o equilíbrio entre as prestações, pois o artigo 11º, nº 2 da [Lei das Cláusulas Contratuais Gerais] determina que, na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente. «Trata-se duma regra tradicional, expressa desde os romanos através de brocardos como ambiguitas contra stipulatorum e que se veio a consolidar na jurisprudência dos diversos ordenamentos» [a citação é de Menezes Cordeiro]. A regra in dubio contra stipulatorum – que será a seguradora mesmo quando se limite a fazer um convite a contratar – evita que as situações duvidosas beneficiem o autor das cláusulas, impondo-se-lhe um maior cuidado na sua elaboração” (“Cláusulas contratuais gerais e cláusulas de limitação ou de exclusão…”, cit., p. 252; v., uma aplicação prática desta regra interpretativa no Acórdão de 19/12/2006, proferido pelo ora relator no processo nº 339/2001.C1, disponível (na pesquisa em qualquer destes campos) na base de jurisprudência do ITIJ em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/5196dd312f4e60128025725e0053e290).
[54] A cobertura de danos não patrimoniais em sede de responsabilidade pelo risco é genericamente aceite pela nossa doutrina. V., por todos, Mário Júlio de Almeida Costa: “[q]uanto à responsabilidade civil pelo risco, a solução logo decorre de se lhe estenderem [à responsabilidade pelo risco], na parte aplicável, as disposições respeitantes à responsabilidade por factos ilícitos (artigo 499º [do CC]” (Direito das Obrigações, 11ª ed., revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 2008, p. 603).
[55] O seja, “[…] em incidente posterior à condenação, determinando [este, quando deduzido] a renovação da instância extinta e processando-se nos termos do processo sumário de declaração (artigo 47º, nº 5, 378º, nº 2, 380º, nºs 3 e 4 [do CPC])” (Carlos Lopes do Rego, “Requisitos da Obrigação Exequenda”, in Themis, Ano IV, nº 7, 2003, p. 71).
[56] “A franquia é uma importância estabelecida na apólice que fica a cargo do tomador do seguro em caso de sinistro. Pode estabelecer-se como um montante fixo ou como uma percentagem do valor do capital seguro. A franquia permite reduzir o prémio, responsabilizando-se o tomador do seguro por uma parte do prejuízo. […] [A] franquia não é oponível a terceiros lesados, sendo estes indemnizados pela totalidade dos danos sofridos, até ao limite da garantia da apólice” (esta é a definição de franquia fornecida no sítio do Instituto de Seguros de Portugal, em http://www.isp.pt/NR/exeres/D36B557A-8F88-4878-8909-692AAB5F6F32.htm.
[57] Caso venha a adquirir meios económicos suficientes – e só então a questão se colocará –, haverá que ser intentada acção declarativa para efectivação dessa responsabilidade: é o regime que resulta da conjugação dos nºs 1 e 3 do artigo 13º da Lei nº 34/2004.