Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5376/21.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: INVALIDADE DO TESTAMENTO
INCAPACIDADE ACIDENTAL
DEMÊNCIA
PRESUNÇÃO DE SITUAÇÃO DE INCAPACIDADE NATURAL
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 638.º, N.º 7, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 2188.º, 2189.º, 2190.º E 2199.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Intentado recurso, tendo como objecto a reapreciação de prova gravada, o recorrente goza do benefício do prazo previsto no nº 7 do artº 638 do C.P.C., ainda que não cumpra os ónus específicos previstos no artº 640 do C.P.C, por serem distintos os requisitos de admissibilidade do recurso (de aferição prévia) e os requisitos de admissibilidade formal da impugnação da matéria de facto, cujo incumprimento apenas determina a rejeição do recurso na parte afectada.
II – A regra geral estipulada no artº 2188.º do C.C. é de que têm capacidade para testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer, esclarecendo o artº 2189.º deste diploma legal, que são incapazes de testar os menores não emancipados e os que foram declarados incapazes de testar em acção para acompanhamento de maior.

III – O testamento lavrado por incapaz é nulo (cfr. artº 2190.º do C.C.).

IV – Já o testamento feito por quem se encontrava em estado de incapacidade acidental é anulável (cfr. artº 2199.º do C.C.).

V – O ónus de prova de que a testadora sofria de doença do foro psíquico que a incapacitava de querer e entender o acto de testar, cabe à parte que invoca esse facto como causa do pedido de anulação do testamento, assim viciado (cfr. artºs 2199 e artº 342.º, nº1 do C.C.).

VI – No entanto, se resultar provado que a testadora sofria de doença do foro psíquico, em contínua actividade e progressão, como a demência, é de presumir que, no momento da feitura do testamento, aquela se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária, incumbindo à beneficiária do testamento fazer a prova de que, no momento da feitura deste testamento, apesar da situação demencial, a testadora se encontrava num momento de lucidez e capaz de querer e entender o sentido da sua declaração.


Sumário elaborado pela Relatora
Decisão Texto Integral:

Proc. Nº 5376/21.3T8CBR.C1- Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra -Juízo Local Cível da Comarca da Figueira da Foz-J...

Recorrente: AA

Recorridos: BB

            CC

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Sílvia Pires

                                         Luís Ricardo


*


Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO

 AA, veio intentar acção declarativa de condenação contra BB, peticionando que fosse declarado nulo o Testamento Público celebrado em 28.05.2021 no Cartório Notarial da Sr.ª Dr.ª DD, ou se assim se não entender, anulável e a R. condenada a reconhecer que não é herdeira da quota disponível da herança da testadora, sua avó, EE com todas as demais consequências legais.

Para fundamentar o seu pedido alega que no dia 28 de Maio de 2021, EE, avó da A. e R., entretanto falecida, outorgou um testamento em que instituiu a ré herdeira da sua quota disponível. Sucede que à data da outorga daquele testamento a referida EE já não se encontrava na posse das suas faculdades mentais que lhe permitissem decidir e dispor dos seus bens, sofrendo de demência, desde pelo menos, 29 de Março de 2021.


*

Citada a R., veio esta invocar a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, a sua ilegitimidade por estar desacompanhada do seu esposo e ainda a excepção da caducidade da acção por terem decorrido 13 meses entre a outorga do testamento e a citação.

No mais, defende-se por impugnação e requer a condenação da autora como litigante de má fé.


*

A autora apresentou resposta à excepção de caducidade e pugnou pela improcedência das excepções invocadas.

*

Na sequência de convite para o efeito, foi apresentada petição inicial aperfeiçoada e requerida e admitida a intervenção principal do cônjuge da R. CC.

*

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, com enunciação do objecto do litígio e dos temas de prova, após o que, realizada audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção integralmente improcedente, absolvendo a R. do pedido formulado.

*


Não conformada com esta decisão, impetrou a A. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem, no que se reporta ao recurso interposto e admitido da sentença final:

(…).


*


Pela R. foram interpostas contra-alegações, constando das suas conclusões o seguinte:

(…).


*


QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:
a) Se o recurso é intempestivo pela inaplicabilidade do prazo previsto no artº 638, nº7, do C.P.C.;
b) Se foram cumpridos pelo apelante os ónus previstos no artº 640 do C.P.C. para a impugnação da matéria de facto e se, na apreciação da prova o tribunal incorreu em error in judicando;
c) Se o testamento invocado nos autos é anulável por incapacidade acidental da sua testadora, em consequência de doença psíquica, abrangendo o período da prática do acto;


*


Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores-adjuntos, cumpre decidir.


*

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

“Factos provados

Encontram-se provados os seguintes factos:

A) A. e R. são netas de EE, com última residência conhecida em Estrutura Residencial para Idosos (ERPI) denominada “...”, sita em ... – ..., entretanto falecida em 25 de Setembro de 2021, com 89 anos.

B) A supra identificada EE outorgou um Testamento Público em 28 de Maio de 2021 no Cartório Notarial da Srª Drª DD, sito em Rua ..., ... – ..., pelo qual nomeou herdeira da sua quota disponível da sua herança a ora R. BB.

C) A referida Testadora em 10.04.2021 deu entrada na ERPI “...”, em ..., ..., por carecer de apoio e acompanhamento de terceiras pessoas quer quanto à sua alimentação, quer quanto à sua saúde e higiene pessoal.

D) Em 15.07.2021 a ora A. apresentou no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Cível da Figueira da Foz – Juiz ..., uma acção especial de Acompanhamento de Maior a favor da acima identificada EE, a qual correu termos com o processo nº 1195/21.....

E) Na sequência da normal tramitação do ora referido processo a situação clínica da EE, foi objecto de audição e perícia psiquiátrica.

F) EE faleceu no dia 25 de Setembro de 2021.

G) Em virtude do óbito, e por decisão datada de 29.09.2021, foi determinada a extinção da instância do processo referido em D) por impossibilidade superveniente da lide.

H) À data da outorga do testamento a EE presentava uma acuidade visual inferior a 1/10 em ambos os olhos decorrente da degenerescência macular da idade.

I) Nesse mesmo dia 28.05.2021, e também perante a Dr.ª DD, notária do Cartório Notarial sito na Rua ..., ..., na ..., a outorgante EE outorgou uma procuração, pela qual instituiu a aqui ré como sua procuradora.

J) Desde, pelo menos, 29 de Março de 2021, a EE padecia de demência e, por vezes, não sabia a sua idade e não reconhecia o nome dos seus familiares.

K) Não obstante o descrito em C), H) e J), no momento na outorga do testamento referido em B), a EE conseguia compreender o que a rodeava, que ao celebrar aquele testamento beneficiaria a Ré em relação à Autora, o que queria, e estava capaz de sugerir à ré o agendamento daquele testamento.

L) A acção entrou em juízo em 09.12.2021 e a ré foi citada em 23.06.2022.

Factos não provados

1) À data da outorga do testamento, a EE, por vezes não sabia onde estava, não sabia em que ano estava, acreditava ter uma idade muito inferior à que tinha, e não compreendia perguntas simples que lhe faziam.”


*

DA TEMPESTIVIDADE DO RECURSO


Nas suas contra-alegações invocam os recorridos a intempestividade deste recurso, por a recorrente, em seu entender, não cumprir os requisitos previstos pelo artº 640 do C.P.C. para a impugnação da matéria de facto com fundamento em prova gravada, concluindo pela não verificação dos pressupostos para o alargamento do prazo geral constante do artº 638, nº1, do C.P.C., permitido apenas para os casos em que a parte pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, conforme decorre do nº 7 deste preceito.

Decidindo

A questão colocada pelos requerentes é controvertida na doutrina e jurisprudência, perfilhando-se a este respeito três posições: uma que defende que a rejeição do recurso por não cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640, nº2, al. a), do C.P.C. impõe sempre a rejeição da totalidade do recurso se apresentado no prazo alargado previsto no artº 638, nº7; outra que defende que só pode beneficiar deste prazo o recorrente que nas suas conclusões deduza impugnação da matéria de facto indicando a reapreciação da prova gravada e a especificação dos factos impugnados, não bastando a sua inclusão nas alegações; outra que defende que sempre que seja indicado como objecto de recurso a reapreciação de prova gravada, independentemente de, nas alegações ou nas conclusões, serem cumpridos os requisitos exigidos pelo artº 640 do C.P.C., é aplicável o prazo alargado do nº 7 do artº 638 do C.P.C., por não serem confundíveis os pressupostos para a tempestividade do recurso e os de admissibilidade da impugnação da matéria de facto.

Desde já manifestamos que aderimos a esta última posição, tendo em conta as diferentes razões que presidem ao disposto no artº 638, nº7, do C.P.C. e ao art. 640 do C.P.C.

Com efeito, do disposto no nº 7, do artº 638 do C.P.C., resulta que o recorrente que deduza impugnação da matéria de facto, com fundamento na reapreciação de prova gravada, beneficia do acréscimo de 10 dias ao prazo geral para interposição de recurso previsto no nº1 deste preceito, passando assim este prazo contínuo para os 40 dias, justificado pela necessidade de audição da prova gravada que se pretende ver reapreciada e pelo eventual esforço de transcrição de depoimentos (cfr. previsto no artº 640, nº2, l a) do C.P.C.)

No entanto, ao contrário do que alegam os recorridos, este prazo previsto no nº7 do artº 638 do C.P.C., não está dependente nem do mérito da impugnação, nem do cumprimento adequado dos ónus impostos ao recorrente pelo artº 640 do C.P.C. 

São questões distintas. Os prazos para interposição de recurso, constituem pressupostos necessários à sua admissibilidade, sem o cumprimento dos quais a decisão proferida não é mais susceptível de impugnação, transitando em julgado.

O incumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto, com reapreciação de prova gravada, previstos no artº 640 do C.P.C., podendo determinar a rejeição da apreciação (total ou parcial) deste fundamento do recurso, não impõe, no entanto, a rejeição imediata da totalidade do recurso, por extemporâneo, com fundamento no facto de o recorrente não beneficiar do prazo alargado previsto no nº7 do artº 638 do C.P.C.

O ónus imposto ao recorrente de cumprimento dos requisitos formais previstos no artº 640 do C.P.C., destina-se a permitir a reapreciação da prova pelo tribunal superior, admitido que foi o recurso, por a delimitação do objecto deste recurso depender do cumprimento destes ónus, sem prejuízo do dever inquisitivo que resulta para o tribunal ad quem nos artºs 640, nº2, al b) e 662, nº1 e 2, do C.P.C.

Nestes termos, o incumprimento dos ónus constantes deste preceito, podendo ter como consequência a rejeição do recurso nessa parte (artº 640, nº2, al a) do C.P.C.), nenhum efeito tem na admissibilidade do recurso com fundamento na sua tempestividade.

Conforme se refere em Ac. do STJ de 28/04/16[3]não pode ser feita qualquer associação entre a admissibilidade formal da impugnação da decisão da matèria de facto e a tempestividade do recurso de apelação (…) A tempestividade dos recursos constitui um pressuposto processual atinente à sua admissibilidade, pelo que de modo algum o resultado alcançado aquando da apreciação do seu mérito poderá interferir em tal pressuposto cuja satisfação se deve reportar ao momento da sua interposição.” (negrito nosso).

Ainda no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 06/06/2018[4], defende que “Se o recorrente, ao explanar e ao desenvolver os fundamentos da sua alegação, impugnar a decisão proferida na 1ª instância sobre a matéria de facto, pugnando pela sua alteração/modificação, mas omitindo nas conclusões qualquer referência a essa decisão e a essa impugnação, essa questão não faz parte do objeto do recurso. (…) Apesar de não haver lugar à reapreciação da prova gravada, por não fazer parte do objeto da apelação, continua a justificar-se o alongamento do prazo, por mais 10 dias, para a interposição da apelação, se na alegação o recorrente tiver impugnado a decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente, indicando e transcrevendo os trechos dos depoimentos gravados que, no seu entender, impõem a alteração da matéria de facto”.

Igualmente na doutrina RUI PINTO[5], defende que para o acréscimo deste prazo “é irrelevante se o recorrente cumpre adequadamente o ónus de especificação previsto no artigo 640”.

É esta, repetimos, a solução que se nos afigura mais compatível com a norma do artº 638, nº7, do C.P.C., cuja verificação é prévia ao conhecimento da materialidade do recurso e do cumprimento dos ónus de impugnação pelo recorrente, impondo-se apenas a consideração do recurso como extemporâneo nos casos em que das alegações ou conclusões, pese embora manifestada a intenção de recorrer da matéria de facto com recurso a prova gravada, não constasse nem de umas, nem de outras, a concreta e efectiva impugnação, nem qualquer menção aos depoimentos gravados que justificariam a alteração da decisão.

No caso em apreço, a recorrente indica como objecto do recurso a impugnação de facto com reapreciação da prova gravada, e transcreve, embora em discurso indirecto os excertos em que se baseia e indica os minutos da gravação em que estes excertos podem ser ouvidos. Nestes termos, constando desta apelação a efectiva menção a meios de prova gravados, ainda que se viesse a julgar não cumpridos integralmente os ónus impostos pelo artº 640 do C.P.C., tal decisão em nada interfere com a prévia verificação do prazo para interposição de recurso previsto no artº 638, nº7, do C.P.C.

Nesta medida, mostra-se tempestiva a interposição deste recurso.

Nada obsta, pois, à apreciação do recurso quanto aos fundamentos de facto e de direito nele, invocados.


***

DA REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Insurge-se a recorrente contra a decisão proferida sobre a matéria de facto, peticionando que seja considerado como não provado o facto descrito na alínea K) e aditado á matéria de facto, o facto não provado sob o nº1.

Para o efeito alega que os factos constantes desta alínea K), não resultaram provados indicando:

-o teor do relatório pericial elaborado na acção de acompanhamento de maior intentada em favor da testadora, que considerou a existência de um estado de demência profunda, com início, pelo menos, em 29/03/21, meio de prova que a Srª Juíza de primeira instância desvalorizou, sem o poder fazer, por se tratar de prova pericial que exige especiais conhecimentos técnicos;

-as mensagens de whattsapp trocadas entre A. e R. relativas à sua avó, das quais resulta reconhecido pela própria R., o seu estado de confusão e incapacidade em data anterior à elaboração do testamento;

-o depoimento da testemunha FF do qual resultou que “a Ré desde 2010 estava afastada da avó, por ter estudado em ... e por ter vivido e trabalhado na ..., que só por força dos presentes autos é que a Ré passou a indicar uma morada na ..., a fim de ser citada - em 23.06.2022, que EE já não conseguia tomar decisões sobre si, designadamente a escolha do Lar, apoios de que carecia, sobretudo, no final de 2020, início do ano de 2021, o seu estado físico e psíquico se vinha a deteriorar e que não conseguia inclusive fazer compras, até antes de entrar para o Lar. Já depois de ter entrado no Lar confundia muitas vezes se estava em casa e no Lar, que acamou em meados de Maio e que não recuperou a mobilidade, a partir dessa altura já era alimentada por sonda e que já nessa altura não reconheceu a testemunha e a Autora.”;

-o depoimento da testemunha GG do qual “resulta claro que a Ré emigrou para a ..., que só a partir de 2020 passou a residir em Portugal, pelo que esse facto por si, não poderia concorrer para a convicção do Tribunal “a quo” que esta neta, Ré nos autos, merecia ser beneficiada pela via do testamento.”

Decidindo:

Do cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640 do C.P.C.;

Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, versa o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (nº 2, al. a), do artº 640 do C.P.C.).

Em relação ao cumprimento dos ónus impostos por este preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» [6]

Conforme defende ABRANTES GERALDES[7], “o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto, que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões (…) Deve ainda especificar na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos (…) deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus da alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto.

Resulta, assim, do disposto neste preceito legal que o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto, deve cumprir um ónus geral, de integração da impugnação nas conclusões (cfr. artº 639 do C.P.C.) e dois ónus específicos: o primeiro descrito nas diversas alíneas do nº1 do artº 640 do C.P.C., obriga à indicação precisão dos pontos de facto impugnados, dos concretos meios probatórios que imporiam decisão diversa, indicados em relação a cada facto, e da resposta alternativa que lhes haveria de ser dada; em relação a este último ónus há ainda a considerar que, de acordo com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 12/2023 (publicado no DR-230/2023, SÉRIE I de 2023-11-28), deve este ser considerado cumprido ainda que o recorrente não indique nas “conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”; o segundo, contido no seu nº2, exige que, em caso de ser invocada prova gravada, a indicação exacta das passagens em que se funda o impugnante, sem prejuízo do dever de investigação oficiosa que é imposto ao tribunal.

O incumprimento do ónus geral e do específico exigido pelo nº1 do artº 640 do C.P.C., impõe a imediata rejeição do recurso, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento.

Já o incumprimento do ónus secundário de indicação exacta das passagens das gravações em que se funda o seu recurso, só deve conduzir à rejeição deste recurso, “nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso[8].

Com efeito, o cumprimento deste ónus, deve obedecer aos critérios de proporcionalidade e de razoabilidade, entendendo-se que desde que seja feita a indicação do conteúdo do depoimento, ainda que descrito “em discurso indirecto, ainda que sem indicar o início e termo da passagem relevante de cada depoimento, permitindo o exercício do contraditório pela contraparte, bem como o exame, sem grande dificuldade, pelo tribunal da Relação, leva a dar como substancialmente cumprido o ónus do art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC.[9] 

Ocorre que a recorrente, embora de forma imperfeita, cumpre este ónus. Indica a recorrente, em abono da sua pretensão de ver o facto considerado como provado sob a alínea K), não provado e, provado o facto que se deu como não provado sob o ponto 1, no teor do relatório pericial, confirmado pelas mensagens de whattsapp trocadas entre A. e R. e ainda, no que se reporta à prova gravada, no depoimento das testemunhas FF e GG, cujo depoimento transcreve, embora em discurso indirecto, indicando as passagens da gravação “minuto 7:13 a 27:00” e “minuto 11:40 a 18:06”, respectivamente.

Esta indicação permite o exercício do contraditório pela parte contrária, bem como a actuação dos deveres que estão cometidos a este tribunal, por via do disposto no artº 640, nº2, al. b) do C.P.C.

Com efeito, da conjugação do disposto no artº 640, nº2, al. b) e 662 do C.P.C., resulta o dever do tribunal ad quem de, na apreciação desta impugnação, efectuar uma verdadeira reapreciação da prova feita, de molde a sustentar e confirmar a decisão de primeira instância, ou alterá-la se os meios de prova produzidos e considerados no seu todo, impuserem essa alteração[10], bem como sindicar, mesmo oficiosamente, a decisão da primeira instância, se dela resultar que ocorreu violação do direito probatório material.

Nestes termos, nada obstando ao conhecimento da impugnação que é feita da matéria de facto, a Srª Juíza a quo, fundamentou da seguinte forma a sua decisão:

“No que respeita à capacidade volitiva e cognitiva da testadora no momento da outorga do testamento, foram essenciais os depoimentos das testemunhas arroladas pela ré que permitiram concluir que, não obstante a testadora sofrer de demência e estar fisicamente dependente de terceiros, aquando da outorga do mesmo encontrava-se perfeitamente lúcida e capaz de entender o sentido da sua declaração testamentária.

O Relatório pericial juntos aos autos, proveniente da acção especial de maior acompanhado referente à EE, conclui, é certo, que a examinada, para além da cegueira, padece de um quadro de demência com início em 29 de Março da 2021 (data dos atestados de doença), dele constando que no exame que lhe esteve subjacente a examinada mostrou-se desorientada em termos alopsíquicos e autopsíquicos, tendo dificuldade em responder ao que lhe era perguntado ou compreender as questões que lhe são colocadas, e que o estádio actual da demência é muito avançado. Contudo, há que ter em consideração que não é referida a realização de testes e exames auxiliares de diagnóstico que revelem a etiologia e o estádio da doença, designadamente à data da outorga do testamento, que a mesma estava medicada (sendo que em 29.03.2021 tomava um único medicamento – Ginkgo Bilola 40mg - para tratamento de demência ligeira a moderada – cfr. atestado de doença e bulas do infarmed juntas com a contestação), e que o exame a que respeita o Relatório Pericial teve lugar em 03.09.2021, ou seja, mais de três meses após a outorga do testamento (28.05.2021) e seis meses após a emissão dos atestados de doença (29.03.2021). Não permite, pois, por si só demonstrar que à data da outorga do testamento o estado da EE fosse o documentado no Relatório.

Acresce que as testemunha arroladas pela ré, com excepção de DD (Sra. Notária que não demonstrou recordar-se da situação concreta, tendo, contudo, explicado o procedimentos habituais e que a levam a rejeitar a prática do acto caso se aperceba de que a pessoa não está capaz de o compreender) deram conta que a testadora, apesar das dificuldades físicas e de visão, estava perfeitamente consciente e lúcida, tendo as testemunhas HH e GG, que intervieram também como testemunhas no testamento, confirmado o seu teor, designadamente que a Sra. Notária explicou o conteúdo à testadora e que esta confirmou ser sua vontade fazer o testamento a favor da ré. Aliás, afirmou também a testemunha HH que quando a visitou no lar, a EE já dizia que ia deixar “as coisas à BB”, sendo que a testemunha GG também referiu que no acto da outorga, a testadora explicou à Sr. Notária a razão de querer testar a favor da ré. Também a testemunha II, funcionário do cartório onde foi lavrado e o testamento, explicou os procedimentos que antecedem a outorga dos documentos, que na mesma data foi outorgada uma procuração, e referiu recordar-se da EE, até porque foi lá mais que uma vez com a neta (a ré), e tratava-se de uma pessoa idosa “bem disposta”, tendo sido assertivo quanto ao estado de consciência e lucidez da mesma. Finalmente, o depoimento da testemunha FF, marido da autora, não logrou contrariar os demais. Com efeito, pese embora afirme que desde finais de 2020 a EE foi perdendo a capacidade de decidir (em sentido oposto também referiu que em Março de 2021 a EE tinha intenção que a autora “ficasse” na conta bancária da avó com a ré, que nela já constava e que era quem efectuava os pagamentos, o que só não foi concretizado porque aquela não conseguir assinar) e que desde que foi para o Lar (Abril) teve um agravamento muito rápido, não concretiza a data a partir da qual a EE deixou de conseguir comunicar.

De toda a prova testemunhal resultou também claro que a ré esteve mais presente na vida na avó, pelo menos nos últimos anos, prestando-lhe um acompanhamento mais próximo que a autora (a que não será alheia a circunstância facilitadora da ré ter domicílio na mesma cidade que a avó) o que é congruente com a vontade de a (à ré) querer compensar, testando a seu favor.

Cotejados todos os meios probatórios, é de concluir que a EE, no momento da outorga do testamento, estava capaz de compreender que ao celebrar aquele testamento beneficiaria a Ré em relação à Autora e de se determinar de acordo com essa vontade.”

Conhecendo da impugnação há que referir, em primeiro lugar que o ónus de prova de que a testadora sofria de doença do foro psíquico que a incapacitava de querer e entender o acto de testar, cabe à parte que invoca esse facto como causa do pedido de anulação do testamento, assim viciado (cfr. artºs 2199 e artº 342, nº1 do C.C.)

No entanto, feita essa prova, ou seja, resultando provado que a testadora sofria de doença do foro psíquico, em contínua actividade e progressão, como a demência, é de presumir que, no momento da feitura do testamento, aquela se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária, incumbindo à beneficiária do testamento fazer a prova de que, na data da feitura deste testamento, apesar da situação demencial, a testadora se encontra num momento de lucidez e capaz de querer, expressar e entender o sentido da sua declaração.

No mesmo sentido, aliás, se pronunciou o recente Acórdão do STJ de 20/06/2023[11], considerando que “compete ao interessado na anulação do testamento provar que o testador sofria de doença, que no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente.”

Competindo à A. o ónus de prova de que a testadora, em período consentâneo com a elaboração do acto que se pretende anular, sofria de doença do foro psíquico que afectava a sua capacidade de testar e dispor dos seus bens, prossegue o citado Acórdão do STJ de 20/06/2023, no sentido de que “caberá à outra parte provar que não obstante a incapacidade do testador o ato que se pretende anular foi praticado num momento excecional e intermitente de lucidez.”[12]

Corresponde, conforme se assinala ainda no Ac. do STJ de 14/10/2021[13], ao “id quod plerumque accidit que, provado o estado de demência em período que abrange o acto anulando, seja de presumir que, na data do mesmo acto, aquele estado se mantinha sem interrupção.”

Estabelecido o ónus de prova que incumbia a cada parte, a A. efectuou a prova de que a testadora, em período que abrange a prática do acto, sofria de demência, atestada por perícia efectuada no âmbito de acção de acompanhamento de maior, com início, pelo menos, em 29 de Março de 2021, tendo este testamento sido outorgado em 28 de Maio desse mesmo ano.

Constituindo a demência uma doença do foro psíquico, conforme resulta do relatório pericial junto como doc. 5 à p.i., é uma “doença degenerativa cerebral (crónica) de instauração lenta, progressiva e irreversível, com perturbação de funções corticais superiores como a memória, pensamento, orientação, compreensão, cálculo, capacidade de aprendizagem, linguagem e juízo crítico.” existente desde data que o Sr. Perito indicou como tendo tido início pelo menos a 29 de Março de 2021, tendo em conta a “instauração lenta e progressiva deste tipo de quadros e à falta de outras informações clínicas.”

Nestes termos, aos RR. cabia o ónus de prova de que, apesar desta doença do foro psíquico, a testadora em momento consentâneo com a prática do acto se encontrava num momento excepcional de lucidez e perfeitamente capaz de querer e entender o acto e de dispor dos seus bens.

Considerou o tribunal a quo que esta prova foi feita pelo depoimento das testemunhas II (funcionário do cartório notarial que lavrou este testamento), HH e GG (testemunhas deste testamento), mais considerando que o relatório pericial foi elaborado mais de três meses depois do testamento, dele não constam quaisquer exames que tenham sido feitos à testadora e o mesmo “não permite, pois, por si só demonstrar que à data da outorga do testamento o estado da EE fosse o documentado no Relatório”. Estado que, reproduzindo o que consta documentado neste relatório em exame realizado em 03/09/2021, consistia em a testadora se encontrar “em cadeira de rodas, com instabilidade postural, olhos fechados, não estabelecendo contato visual com o tribunal (está praticamente cega). Mostra-se desorientada em termos alopsiquícos e autopsiquícos, tendo dificuldade em responder ao que lhe é perguntado, ou compreender as questões que lhe são colocadas. Não diz o seu nome completo, não se lembra inclusivamente da sua idade (diz ter 49 anos de idade), nem da data de nascimento. O discurso é muito pobre, por vezes ininteligível, escasso, com lentificação psíquica. A requerida encontra-se totalmente dependente para todas as actividades de vida diária básicas. Não tem mobilidade autónoma, encontra-se acamada, realizando levante diário para cadeirão. Tem atualmente úlceras de pressão decorrentes de mobilidade reduzida. (…) No caso em apreço a beneficiária encontra-se num estádio muito avançado do quadro demencial, com profunda deterioração cognitiva e total dependência de terceiros. Importa relevar que sofre, também, de incapacidade visual (quase cegueira total) em resultado de patologia oftalmológica grave.”

Já quanto às mensagens de WhatsApp, considerando-as para efeitos de prova do que fez constar da alínea J), a par deste relatório pericial, nenhuma relevância lhe conferiu no que toca à capacidade da testadora à data da elaboração do testamento, capacidade que fez assentar exclusivamente na prova testemunhal que indica, desvalorizando o depoimento da testemunha FF, pela sua relação marital com a A. e, não conferindo qualquer relevância ao depoimento da testemunha DD, Notária que lavrou este testamento, por esta dele se não lembrar, nem da testadora.

Analisemos então estes meios de prova.

A respeito da capacidade da testadora depôs a testemunha FF que afirmou que desde finais de 2020 começaram a notar que a testadora se repetia e se baralhava, não sabiam sequer se ela percebia o que lhe diziam, estando ainda praticamente cega e já sem conseguir sequer assinar - não imputando a testemunha esta impossibilidade a qualquer estado físico, mas antes a incapacidade psíquica - ou decidir sobre coisas simples como o que iria comer, não conseguindo dizer sequer a sua idade.

Mais referiu que, desde que a testadora deu entrada no lar, em Abril de 2020, decisão tomada pelas netas devido ao agravamento do seu estado psíquico e físico, este estado se agravou e que, indo visitá-la nessa ocasião, a encontraram em cadeira de rodas e muito baralhada, deslocalizada espacialmente, dizendo por vezes que se encontrava em sua casa. Já por alturas de finais de Maio, Junho, Julho, encontraram-na acamada, sendo que já muito raramente os reconhecia, necessitando inclusive de ser alimentada por uma sonda. Mais referiu que a testadora nunca recuperou desse estado que se agravou sempre, tendo sido um declínio muito rápido até à sua morte.

Este depoimento está conforme ao teor do relatório pericial realizado em sede de acção para acompanhamento de maior em favor da testadora, relatório que, em 3 de Setembro de 2021, consigna que a testadora EE, se encontra em estado de demência muito avançado e que, tendo em conta que se trata de uma doença com instauração lenta, existiria este estado, desde pelo menos 29 de Março de 2021, data do primeiro relatório médico que atestou a existência de um estado demencial.

Ora, é certo que no nosso ordenamento jurídico predomina o princípio da livre apreciação das provas, consagrado já no anterior artº 655º, nº 1, do Código de Processo Civil e no actual artº 607, nº5, do actual C.P.C. (Lei 41/2013), incluindo a pericial, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sem prejuízo daqueles factos que exijam formalidade especial ou prova documental, mas sem que isso signifique que se “queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra a prova; o sistema da prova livre não exclui, antes pressupõe a observância das regras de experiência e critérios da lógica. (…).”[14]

Estando a prova pericial incluída no âmbito das provas sujeitas à livre apreciação do julgador, o juízo técnico e científico inerente a este juízo pericial que justificou a produção deste meio de prova e que impõe a sua realização pelo Instituto de Medicina Legal e Forense e por perito na área (conforme o impõe o artº 467, nº3 do C.P.C. e o artº 2 do D.L. n.º 45/2004, de 19 de Agosto), está afastado, em princípio, dos normais poderes do cognição do tribunal, pelo que, sempre que dele divergir, deve o magistrado fundamentar esse afastamento, exigindo-se mesmo um acrescido dever de fundamentação.[15]

Posto isto, o relatório pericial não é um meio de prova estanque, podendo ser complementado ou contraditado por outros meios de prova, quer documentais (relatórios médicos, exames feitos à testadora), quer testemunhais, nomeadamente mediante o depoimento de testemunhas com especiais conhecimentos na área (especialistas na área da psiquiatria e/ou neurologia, médicos que tenham examinado a testadora), de forma a sobrepor-se à opinião do perito médico-legal.

Já não será de admitir o afastamento deste juízo pericial, meramente com base no depoimento de testemunhas não munidas destes especiais conhecimentos, sendo para o caso absolutamente irrelevante que o Sr. Perito não tenha solicitado testes e exames auxiliares de diagnóstico que revelem a etiologia e o estádio da doença, pois que podendo fazê-lo se o considerar necessário ao diagnóstico, não é obrigatório que o faça quando entender que o estado da examinanda e o relatório médico a que se refere permite o diagnóstico. Já a medicação prescrita a esta paciente também não afasta a conclusão a que chegou este relatório. Qualquer medicação é prescrita tendo em conta não só o estado do paciente, como os benefícios que com ela se esperam retirar e, neste caso, não se sabe sequer as razões para a permanência desta medicação.    

Posto isto, a respeito do estado psíquico da testadora quer no momento da feitura do testamento, quer posteriormente, depôs HH – testemunha neste testamento - no sentido de que a testadora se encontrava perfeitamente consciente e lúcida, muito bem disposta no dia do testamento (28 de Maio de 2021), comparecendo no cartório Notarial pelo seu pé, embora apoiada numa bengala, cheia de sentido de humor, fazia piadas, mais insistindo que esta se manteve coerente e lúcida até ao fim, referindo visitar esta testadora várias vezes no lar (pelo menos de quinze em quinze dias).

Este depoimento contradiz totalmente o estado descrito pelo Sr. Perito em 3 de Setembro de 2021 (demência muito avançada) e contradiz o estado descrito no relatório médico elaborado em 29 de Março de 2021, que refere estar esta testadora totalmente dependente de terceiros, sofrendo de demência, cegueira e várias outras doenças incapacitantes. O estado descrito por esta testemunha - coerente, lúcida, bem disposta, cheia de sentido de humor- não coincide de todo com o estado descrito no relatório pericial e no relatório médico elaborado em 29 de Março de 2021 e dele diverge de tal forma que dir-se-ia tratarem-se de pessoas distintas.

Já a testemunha GG – igualmente testemunha neste testamento – afirmou igualmente que a testadora se encontrava bem disposta, perfeitamente lúcida, saudável, embora se apresentasse de cadeira de rodas, não parecia sequer uma senhora de quase 90 anos, com um sentido de “humor muito marcante”, facto que até comentou com a R. Este estado, de pessoa saudável, bem disposta, perfeitamente lúcida, coerente e cheia de sentido de humor, não é igualmente compatível com o estado verificado em 3 de Setembro, nem com o estado que já vem descrito no atestado médico de 29 de Março, nem sequer com o estado relatado pela própria R. em mensagens remetidas via whattsapp à A. e juntas aos autos com o articulado de 12 de Dezembro de 2022.

Nestas mensagens, informa a R. a ora A., em 29 de Março de 2021, de que levara a avó ao médico e que terá sido feito “um update de relatorio clinico já incluindo a demência”, que tendo falado da “situação da avó a nível cognitivo (…) ela dp fez-lhe perguntas e conseguiu comprovar por si perguntou como e K eu me chamava nao soube dizer (…) perguntou a idade e a avo começou tipo a brincar e não respondeu mas soube dizer k tive na ... mt tempo e prg-me kt foi (…) e dp já tava a dizer k foi pc tempo”.

Já em posterior mensagem de 30 de Abril de 2021, ou seja, menos de um mês antes da elaboração do testamento, é ainda a mesma R. que comunica à A. a urgência em “passar os bens da avo para o nosso nome”, comunicando à irmã, em resposta a mensagem desta, que amanhã “pode ser tarde demais”, com a justificação de que a avó “não esta em plenas capacidades e daki a nada, como tu própria referiste, pode mt provavelmente acamar”.

Ora, as mensagens de whattsapp, como bem referiu o tribunal a quo, são meios de prova absolutamente lícitos, sendo a A. a destinatária das mensagens enviadas pela R. e delas não resultando que versem sobre qualquer assunto incluído na reserva da intimidade privada daquela R. e que, por essa via, pudessem obstar à sua inclusão nos autos como meio de prova lícita (artº 77 do C.C.).

E se podem ser considerados “documentos eletrónicos com força probatória [arts. 2º, a), 3º e 4, do DL nº 290-D/99, de 2-08 e art. 46º do Regulamento da União Europeia nº 910/2014, de 23-07-2014] e não contendo assinatura digital certificada por entidade credenciada serão apreciados nos termos gerais de direito, isto é, de acordo com as regras gerais da prova documental (art. 362º e ss. do CC).”[16]

Constituindo estas mensagens escritas trocadas entre A. e R. a respeito do estado físico e psíquico da testadora, documentos particulares sujeitos às regras gerais que regem sobre o valor probatório destes documentos, decorre do disposto no artº 376 do C.C. que estes, sendo apresentados contra o seu declarante e não sendo impugnada a sua autoria, fazem prova plena das declarações atribuídas ao seu autor, sendo que os factos incluídos nesta declaração, consideram-se provados na medida em que forem contrários ao interesse do seu declarante. Ora, são contrários aos interesses da sua declarante, ora R., os factos relativos ao estado de incapacidade da testadora, por demência, conhecido da R., existente pelo menos em 29 de Março de 2021, incapacidade que persistia em 30 de Abril de 2021, reconhecida pela R. e que se agravava, como a própria R. referia à ora A. e que justificava que esta insistisse com a irmã, que “amanha pode ser tarde demais”.

Este estado existente em 29 de Março, mas que de acordo com o depoimento da testemunha FF era muito anterior, o que se afigura credível e compatível com as regras de experiência comuns – antecedendo o estado de incapacidade geralmente a procura de um diagnóstico, por vezes em muitos meses – é absolutamente incompatível com o estado que é descrito pelas testemunhas HH e GG e não é sequer credível - de acordo com as regras normais da experiência comum e de acordo com o teor do relatório pericial - atendendo ao estado avançado de demência em 3 de Setembro, sabido que é uma doença de progressão lenta, que em 28 de Maio a testadora estivesse perfeitamente bem, lúcida, bem disposta, com um discurso cuidado.

Resta o depoimento da testemunha JJ, funcionário do Cartório Notarial onde foi lavrado este testamento. A forma solene, por escritura pública, seguida neste acto, e a presença de uma Srª. Notária e de duas testemunhas, poderia constituir um indício forte de que naquela ocasião - quer quando decidiu efectuar um testamento, quer no dia do acto, momentos que não são geralmente coincidentes - a testadora, por improvável que fosse, estava plenamente lúcida e capaz. Inclui-se nas funções do Notário, certificar-se, até onde o seu conhecimento o permitir, das capacidades do testador e da manifestação livre da sua vontade, podendo e devendo recusar o acto se dúvidas se suscitarem. Ainda assim, esta verificação obrigatoriamente imposta ao Notário, não é um juízo pericial, nem se mostra abrangida pela prova plena atribuída a estes documentos autênticos (artº 371 do C.C.).

Em matéria de reconhecimento da capacidade do testador, o juízo feito pelo Notário, constitui um mero indício da existência de capacidade do testador naquele momento, decorrente das perguntas que lhe devem ser feitas e das respostas que deve ser capaz de dar, sujeito à livre apreciação do julgador.

Ocorre que, neste específico caso, para além do depoimento verdadeiramente inusitado das testemunhas acima referidas, outros indícios existem que nos fazem concluir que neste caso, algo de verdadeiramente anormal se terá passado.

Com efeito, não deixa de se estranhar que, mencionando a testemunha II, que afirmou recordar-se tão bem da R. e da avó, com tantos pormenores descritivos, tratando a R. pelo nome próprio, referindo que se deslocaram muitas vezes ao Notário (avó e neta), sendo a avó uma pessoa educada e coerente, com “linguagem cuidada”, “falava bem”, bem disposta, nem parecendo a idade que tinha, cheia de sentido de humor (e recordando-se de forma similar todas estas testemunhas, HH, GG e II, do mesmo episódio sobre uma piada a respeito de um bolo, feita pela testadora), a Srª Notária não se recordasse de todo deste testamento, lavrado pouco mais de dois anos antes, por uma senhora que chega de ambulância ao Cartório Notarial (testemunha FF), provinda de um lar, idosa, cega, totalmente dependente de terceiros e apresentando-se de cadeira de rodas (testemunhas CC e GG), que “não assina por não poder”, como se este fosse um acontecimento perfeitamente comum, usual e pouco digno de memória, parecendo positivamente espantada e até alarmada quando lhe referiram estes factos, em especial o facto de a testadora estar cega.

A Srª Notária, em cuja presença alegadamente terá sido feito este testamento, não se lembra de todo, nem do testamento, nem da testadora, nem da situação, o ajudante lembra-se de tudo, com grande riqueza de pormenores e pretendendo fazer crer que a testadora, pessoa bem-falante, perfeitamente lúcida, nem parecia a idade que tinha e tudo compreendia, o testamento e a procuração lavrada no mesmo dia.

Em resumo, o depoimento destas testemunhas não nos merece a credibilidade que lhes deu o tribunal a quo. Pelo contrário, afigura-se absolutamente fora dos padrões normais da vida que uma pessoa idosa, dependente de terceiros para todas as actividades da sua vida diária, com demência e cega, que assim o estava em Março e Abril daquele ano, que em Setembro estava em estado de demência que o perito legal considerou muito avançada, numa doença de instauração e progressão lenta, tivesse tido naquele dia (e nos antecedentes porque os testamentos dependem de prévia intenção e marcação notarial), uma recuperação “milagrosa” e estivesse capaz de querer e entender o acto, o qual, no entanto, não assinou, constando aposta uma mera impressão digital e a menção de que “não assina por não o poder fazer”.

Acresce que nem a Notária (esta porque declarou não se recordar sequer do acto, muito menos de qualquer conversa ou interacção que tenha tido com esta testadora no sentido de avaliar a sua capacidade) nem a testemunha CC (que pelo contrário parece ter tido todas as interacções com esta testadora), foi capaz de explicar em concreto porque é que a própria, tão lúcida e bem disposta, não assinou (não sendo referido que não sabia assinar), referindo que “pensa ter sido por não ver”, como se a incapacidade visual, por si só, impedisse qualquer pessoa de assinar, desde que lhes seja indicado o local onde há-de ser aposta a assinatura.

A incapacidade de assinar, já verificada, de acordo com o depoimento da testemunha FF, no início de 2021, quando tentaram, sem o conseguir, a alteração das condições de movimentação da conta bancária da testadora, por forma a incluir as netas, resultará antes do seu estado demencial que, como é sabido, afecta também a capacidade de escrever e de assinar.

Volvendo ao Ac. do STJ (citado) “Como doença que clinicamente se reflete na degenerescência evolutiva das condições de perceção, compreensão, raciocínio, gestão dos atos quotidianos e da sua vivência existencial, aptidões de pensamento abstrato e concreto, discernimento das opções comportamentais básicas e fatores de funcionamento das relações interpessoais e sociais, o interessado na anulabilidade do testamento realizado por uma pessoa portadora deste quadro patológico apenas está obrigado a provar o estado de incapacidade de que o declarante padece por ser previsível, à luz da ciência e da experiência comum, que este tipo de situações não se compatibilizam com períodos de lucidez ou compreensão (normal) das situações vivenciais.”

Nestes termos, a presunção de incapacidade que resulta do estado de demência da testadora não só não se mostra contrariada pelos RR., como decorre dos relatórios médicos juntos aos autos que, se a testadora se encontrava em estado de demência, cega e dependente de terceiros, em 29 de Março de 2021, que em 3 de Setembro desse mesmo ano, se encontrava em estado demencial muito avançado, fixando-se o início da incapacidade desta testadora, pelo menos em 29 de Março de 2021, estaria igualmente incapaz por doença psíquica, em 28 de Maio de 2021, data em que foi feito este testamento.

Nestes termos, dá-se procedência à reclamação da apelante, dando-se como não provados os factos constantes da alínea K) e por provado o teor do ponto 1 da matéria não assente.

Mais se consigna por decorrer do relatório pericial junto aos autos e referido na alínea E) e da escritura pública consignada na alínea B), ao abrigo do disposto no artº 662, nº1, do C.P.C., o seguinte:

B.1. Neste testamento foi feita a menção de que a testadora “não assina por não poder”, sendo após aposta a impressão digital do indicador da mão direita.

E.1. N relatório pericial, em exame realizado em 3 de Setembro de 2021, fez o Sr. Perito médico-legal, constar que a examinanda se encontrava “em cadeira de rodas, com instabilidade postural, olhos fechados, não estabelecendo contato visual com o tribunal (está praticamente cega). Mostra-se desorientada em termos alopsiquícos e autopsiquícos, tendo dificuldade em responder ao que lhe é perguntado, ou compreender as questões que lhe são colocadas. Não diz o seu nome completo, não se lembra inclusivamente da sua idade (diz ter 49 anos de idade), nem da data de nascimento. O discurso é muito pobre, por vezes ininteligível, escasso, com lentificação psíquica. A requerida encontra-se totalmente dependente para todas as actividades de vida diária básicas. Não tem mobilidade autónoma, encontra-se acamada, realizando levante diário para cadeirão. Tem atualmente úlceras de pressão decorrentes de mobilidade reduzida.

(…)

No caso em apreço a beneficiária encontra-se num estádio muito avançado do quadro demencial, com profunda deterioração cognitiva e total dependência de terceiros. Importa relevar que sofre, também, de incapacidade visual (quase cegueira total) em resultado de patologia oftalmológica grave.

Pelo exposto, somos do parecer que um tal contexto clínico (demência e cegueira) impossibilita a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

Igualmente, impossibilita-a de exercer os seus direitos pessoais como, entre outros, os contemplados no artigo 147.º, n.º 2 do Código Civil, com especial relevo para o direito pessoal de testar.

Estas limitações não podem ser supridas pela cooperação e assistência de familiares.

Pelo exposto, do ponto de vista psiquiátrico forense, justifica-se plenamente que possa beneficiar de medidas de acompanhamento.”

E.2. Neste relatório fixou o Sr. Perito médico-legal o início desta incapacidade, pelo menos, em 29 de Março de 2021.


*


É a seguinte a matéria de facto consolidada:

A) A. e R. são netas de EE, com última residência conhecida em Estrutura Residencial para Idosos (ERPI) denominada “...”, sita em ... – ..., entretanto falecida em 25 de Setembro de 2021, com 89 anos.

B) A supra identificada EE outorgou um Testamento Público em 28 de Maio de 2021 no Cartório Notarial da Srª Drª DD, sito em Rua ..., ... – ..., pelo qual nomeou herdeira da sua quota disponível da sua herança a ora R. BB.

B.1. Neste testamento foi feita a menção de que a testadora “não assina por não poder”, sendo após aposta a impressão digital do indicador da mão direita.

C) A referida Testadora em 10.04.2021 deu entrada na ERPI “...”, em ..., ..., por carecer de apoio e acompanhamento de terceiras pessoas quer quanto à sua alimentação, quer quanto à sua saúde e higiene pessoal.

D) Em 15.07.2021 a ora A. apresentou no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Cível da Figueira da Foz – Juiz ..., uma acção especial de Acompanhamento de Maior a favor da acima identificada EE, a qual correu termos com o processo nº 1195/21.....

E) Na sequência da normal tramitação do ora referido processo a situação clínica da EE, foi objecto de audição e perícia psiquiátrica.

E.1. No relatório pericial, em exame realizado em 3 de Setembro de 2021, fez o Sr. Perito médico-legal, constar que a examinanda se encontrava “em cadeira de rodas, com instabilidade postural, olhos fechados, não estabelecendo contato visual com o tribunal (está praticamente cega). Mostra-se desorientada em termos alopsiquícos e autopsiquícos, tendo dificuldade em responder ao que lhe é perguntado, ou compreender as questões que lhe são colocadas. Não diz o seu nome completo, não se lembra inclusivamente da sua idade (diz ter 49 anos de idade), nem da data de nascimento. O discurso é muito pobre, por vezes ininteligível, escasso, com lentificação psíquica. A requerida encontra-se totalmente dependente para todas as actividades de vida diária básicas. Não tem mobilidade autónoma, encontra-se acamada, realizando levante diário para cadeirão. Tem atualmente úlceras de pressão decorrentes de mobilidade reduzida.

(…)

No caso em apreço a beneficiária encontra-se num estádio muito avançado do quadro demencial, com profunda deterioração cognitiva e total dependência de terceiros. Importa relevar que sofre, também, de incapacidade visual (quase cegueira total) em resultado de patologia oftalmológica grave.

Pelo exposto, somos do parecer que um tal contexto clínico (demência e cegueira) impossibilita a requerida de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

Igualmente, impossibilita-a de exercer os seus direitos pessoais como, entre outros, os contemplados no artigo 147.º, n.º 2 do Código Civil, com especial relevo para o direito pessoal de testar.

Estas limitações não podem ser supridas pela cooperação e assistência de familiares.

Pelo exposto, do ponto de vista psiquiátrico forense, justifica-se plenamente que possa beneficiar de medidas de acompanhamento.”

E.2. Neste relatório, fixou o Sr. Perito médico-legal o início desta incapacidade, pelo menos, em 29 de Março de 2021.

F) EE faleceu no dia 25 de Setembro de 2021.

G) Em virtude do óbito, e por decisão datada de 29.09.2021, foi determinada a extinção da instância do processo referido em D) por impossibilidade superveniente da lide.

H) À data da outorga do testamento a EE apresentava uma acuidade visual inferior a 1/10 em ambos os olhos decorrente da degenerescência macular da idade.

I) Nesse mesmo dia 28.05.2021, e também perante a Dr.ª DD, notária do Cartório Notarial sito na Rua ..., ..., na ..., a outorgante EE outorgou uma procuração, pela qual instituiu a aqui ré como sua procuradora.

J) Desde, pelo menos, 29 de Março de 2021, a EE padecia de demência e, por vezes, não sabia a sua idade e não reconhecia o nome dos seus familiares.

L) A acção entrou em juízo em 09.12.2021 e a ré foi citada em 23.06.2022.

M) À data da outorga do testamento, a EE, por vezes não sabia onde estava, não sabia em que ano estava, acreditava ter uma idade muito inferior à que tinha, e não compreendia perguntas simples que lhe faziam.

Factos não provados

1) No momento na outorga do testamento referido em B), a EE conseguia compreender o que a rodeava, que ao celebrar aquele testamento beneficiaria a Ré em relação à Autora, o que queria, e estava capaz de sugerir à ré o agendamento daquele testamento.


***

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A alteração da matéria de facto e o ónus de prova que atribuído a cada uma das partes nesta acção, permite concluir pelo desacerto da sentença proferida na primeira instância, por os factos apurados constituírem fundamento para anulação do testamento em causa.


Dos fundamentos de anulação de testamento por incapacidade do seu testador em consequência de doença psíquica;

Peticionando a A., nestes autos, indistintamente, a declaração de nulidade ou a anulação do testamento, da causa de pedir invocada não decorre qualquer causa de nulidade deste testamento, quer enquanto acto notarial (por violação dos preceitos contidos nos artºs 70 a 72 do Código do Notariado), quer por incapacidade de testar, quer da concreta disposição testamentária, mas antes a sua anulabilidade por incapacidade acidental da testadora.

Com efeito, no âmbito da disposição testamentária dispõe o artº 2188 do C.C., que têm capacidade testamentária activa “todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer.”, esclarecendo o artº 2189 do mesmo diploma legal que são incapazes de testar, os menores não emancipados e, nos casos em que a sentença proferida na acção de maior acompanhado o determine,  os maiores acompanhados, incapacidade que deve ser verificada na data de elaboração do testamento conforme decorre do disposto no artº 2191 do C.C.

Nestes casos, a lei comina de nulidade o testamento lavrado por incapaz (artº 2190 do C.C.). Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela[17], em relação aos afligidos por anomalia psíquica, a declaração de “interdição (…) cria assim uma verdadeira incapacidade absoluta de testar, que torna desnecessária a prova de que, no momento da elaboração do testamento, o testador se não encontrava em seu perfeito juízo, e que, inclusivamente, não admite a prova de que o testador, apesar de interditado, redigiu o testamento em seu perfeito juízo”.

No caso em apreço, o testador era maior de idade e não foi declarada a sua incapacidade por anomalia psíquica - extinguindo-se a acção para acompanhamento de maior pelo óbito - pelo que, não se enquadrando esta situação nos casos previstos nos artsº 2189, 2191 e 2194, todos do C.C., a consequência para a incapacidade do testador no momento da feitura do testamento, é a anulabilidade prevista no artº 2199 do mesmo diploma legal, decorrente da incapacidade do testador de “entender o sentido da sua declaração ou ausência do livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”, reportado ao momento em que o testamento é feito.[18]

Conforme refere, a este propósito, Oliveira Ascensão[19], não existindo interdição por anomalia psíquica, podendo, em princípio, o testador dispor livremente dos seus bens, limitado à quota disponível “será necessário provar que no momento em que o testamento foi realizado o sujeito encontrava-se sem as faculdades necessárias”, abrangendo todos os casos de alienação das faculdades mentais, ainda que mesmo por alguma causa acidental ou passageira, de forma a afectar a capacidade de discernimento ou de livre exercício da vontade, emitindo o testador uma vontade que, em circunstâncias normais, de lucidez, não emitiria.

É, assim, necessário, que no momento do testamento “o testador demonstre claramente possuir a necessária liberdade para querer e entender as disposições tomadas[20]demonstração que, claro, deve ser feita, no acto, perante o Notário, e para o que a lei o apetrecha com os meios testemunhais e periciais de que deve lançar mão, exactamente para assegurar in futurum a genuinidade e ausência de qualquer mácula na declaração que recolhe e formaliza e para prevenir os litígios sobre ela.[21]

Posto isto, sendo esta incapacidade, causa de anulabilidade do testamento (e não de nulidade), em consonância aliás com o já exposto no artº 257 do C.C., no âmbito da incapacidade acidental, mas sem a exigência de que este facto (incapacidade) seja notória ou conhecida do beneficiário do testamento, à A. interessada na declaração de anulabilidade deste testamento, incumbia o ónus da prova dos factos demonstrativos da incapacidade do testador, abrangendo o período temporal em que o testamento foi lavrado, nos termos do artigo 342, n.º 1, do C.C.

Só assim não sucederá se em momento que abrange o período do testamento, resultar demonstrado que o testador sofria de doença psíquica irreversível como a demência, sendo então de concluir que, “no momento da feitura do testamento, aquele se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária. (…) Naquela hipótese, incumbia à beneficiária do testamento fazer a prova de que, no momento da feitura do testamento, (…) o testador não foi influenciado pelo concreto estado demencial em que se encontrava”.[22]

Posto isto, dos autos resulta que a testadora se encontrava em 3 de Setembro de 2021, num estado de demência muito avançado, acamada, sendo já incapaz de comunicar, sem saber onde se encontrava, sem saber a sua idade ou nome, que este estado de demência existia já em 29 de Março de 2021, fixando o Sr. Perito médico-legal, a data provável de início da incapacidade da testadora, desde pelo menos 29 de Março de 2021. O óbito da testadora, entretanto ocorrido, determinou a extinção da lide na acção de acompanhamento de maior, mas não altera esta conclusão que decorre de um juízo médico. Ou seja, é o Perito que indica a data do início da incapacidade e o grau desta incapacidade.  

 Demonstrada esta doença psíquica existente desde data anterior à elaboração do testamento, ainda que não declarada esta incapacidade e fixado o seu início em acção de acompanhamento de maior, devido ao óbito da testadora, aos beneficiários deste testamento cabe o ónus de demonstrar que, pese embora este facto, a testadora, naquele momento, se encontrava num intervalo de lucidez e capaz de testar.

Ora, dos autos não resulta feita a prova de que a testadora, pese embora a doença psíquica que sofria, já em estado muito avançado, se encontrava num momento excepcional de lucidez, nem tal se afigura credível e possível, quer atendendo à doença psíquica de que padecia e à sua concreta evolução (lenta), quer ao facto de este estado ser anterior à elaboração do testamento, quer ao facto de esta testadora em momento ainda anterior à data do testamento se encontrar já cega, totalmente dependente de terceiros para as actividades da sua vida diária, de cadeira de rodas, estado conhecido da beneficiária deste testamento, como resulta das mensagens de whattsapp trocadas com a A.

Procede assim, na totalidade, pelas razões acima apontadas o recurso interposto pela recorrente.

 


*

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta relação em revogar a sentença recorrida, anulando o Testamento Público celebrado em 28.05.2021 no Cartório Notarial da Sr.ª Dr.ª DD, por incapacidade acidental da testadora EE.
Custas pela apelada (artº 527, nº1 do C.P.C.).

                                                           Coimbra 20/02/24


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Proferido no Proc. 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator Abrantes Geraldes, disponível in www.dgsi.pt. No mesmo sentido vide ainda Ac. do TRL de 08/01/13, proc. nº 1579/09.7YXLSB.L1-7, relatora Cristina Coelho, disponível in www.dgsi.pt
[4] Proferido no proc. nº 4691/16.2T8LSB.L1.S1, relator Ferreira Pinto; no mesmo sentido Ac. do STJ de 08/02/2018, proferido no proc. nº 8440/14.1T8PRT.P1.S1, relatora Maria da Graça Trigo, ambos disponíveis in www.dgsi.pt
[5] Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL, 2020, págs. 275/276.

[6] Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.
[7] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª ed., 2017, Almedina, pág. 155/156.
[8] Ac. do STJ de 3 de Outubro de 2019, Maria Rosa Tching, proferido no proc. n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2, disponível in www.dgsi.pt.
[9] Ac. do STJ de 27/01/22, Maria Graça Trigo, proferido no proc. nº 225/16.7T8FAR.E2.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.02.2016, no Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «Para que a decisão da 1.ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.»
De igual modo, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016, no Proc.1572/12.2TBABT.E1.S1, disponível na mesma base de dados, decidindo que «O Tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.»
[11] Proferido na Revista nº 5142/21.6T8CBR.C1.S1, de que foi relator Manuel Capelo, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Ainda no mesmo sentido os Acs. do TRG de 04/10/2017, proferido no proc. nº 1108/14.0TJVNF.G1, de que foi relator Pedro Damião e Cunha; de 06/05/2021, proferido no processo nº 152/19.6T8VRL.G1, de que foi relatora Fernanda Proença Fernandes; do TRP de 19/11/2020, proferido no proc. nº 5271/18.3T8MTS.P1, de que foi relator Aristides Rodrigues de Almeida, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[13] Proferido na Revista nº 152/19.6T8VRL.G1.S1, de que foi relator Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt
[14] Ac. do T.R.Lisboa de 11/03/2010, proferido no Proc. nº 949/05.4TBOVR-A.L1-8 , disponível in www.dgsi.pt
[15] Vide ainda o Ac. do S.T.J. de 06/07/2011, Relator Hélder Roque, proferido no Proc. nº 612/07.6TBLRA.C2.S1, in www.dgsi.pt

[16] Acórdão do TRG de 27/10/2022, proferidos no proc. nº 788/21.5T8VVD-C.G1., de que foi relator José Cravo; no mesmo sentido Acs. do TRL de 28/04/2022, proferido no proc, n.º 13609/21.0T8LSB-C.L1-8, de que foi relator Carlos Castelo Branco e do TRP de 08/06/2022, proferido no Proc. nº 293/20.7PAVFR.P1, de que foi relator José António Rodrigues da Cunha, todos disponíveis em dgsi.pt

[17] Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 309.
[18] Neste sentido vide Acs. do TRL de 26 de Maio de 2009, de que foi relator Roque Nogueira, publicitado in www.jusnet.pt ; de 15 de Dezembro de 2009, de que foi relatora Anabela Calafate, publicitado in www.jusnet.pt; e de 29/06/10, relator Luís Espírito Santo, proc. nº 4936/04.1TCLRS.L1-7, disponível in www.dgsi.pt
[19] ASCENSÃO, José de Oliveira, Direito Civil. Sucessões, Almedina, 2000, págs. 70 e 92.
[20] POLÓNIO, Pedro Psiquiatria Forense, Coimbra Editora. 1975, págs. 298.
[21] Ac. do STJ, de 05-07-2001 (CJ, Ano IX, Tomo II, página 151) e Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 29/06/17, proc. nº 13/15.8T8VCT.G1, disponível para consulta in www.dgsi.pt

[22] Ac. do S.T.J. de 24/05/2011., proc. nº 4936/04.1TCLRS.L1.S1,  disponível in www.dgsi.pt; no mesmo sentido vide Ac. do STJ, de 19-01-2016, relator Fonseca Ramos, Proc. nº 893/05.5TBPCV.C1.S1, e Ac. do T.R. Guimarães de 04/10/17, proc. nº 1108/14.0TJVNF.G1 e Ac. T. R. Porto de 04/05/15, proc. nº 1267/12.7TVPRT.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.