Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | TELES PEREIRA | ||
Descritores: | ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA ENRIQUECIMENTO POR PRESTAÇÃO ÓNUS DE ALEGAÇÃO ÓNUS DA PROVA | ||
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Data do Acordão: | 09/17/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR, 1º JUÍZO | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 342º E 473º C. CIVIL. | ||
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Sumário: | I – O enriquecimento sem causa, enquanto fonte obrigacional específica, pressupõe a existência de uma “causa justificativa” da deslocação patrimonial, sendo que só por referência à alegação desta causa se pode constatar a sua falta. II – No caso do chamado “enriquecimento por prestação” do empobrecido, a obrigação de restituir assenta na efectiva inexistência, não verificação ou posterior desaparecimento da concreta “causa justificativa” que presidiu a essa prestação. III – A “causa justificativa”, sendo um dos elementos integradores da obrigação de restituir decorrente do artigo 473º do CC, carece de alegação e prova dos respectivos factos constitutivos, especificamente dirigidas à produção desse efeito (restituição). IV – A falta de prova da “causa justificativa” alegada implica, relativamente ao enriquecimento sem causa, o accionar, por ausência dos pertinentes factos constitutivos, das “regras de decisão” previstas no artigo 342º do CC. V – Assim, o enriquecimento sem causa não traduz uma regra “residual” de decisão (não traduz sequer uma regra de decisão), que seja desencadeada, no que à obrigação de restituir respeita, pela indemonstração da causa de uma deslocação patrimonial, cuja invocação se dirigia a outro efeito (como seja a restituição de uma quantia mutuada). VI – Nestes casos, invocação de ter existido um mútuo sem que se tenha logrado prová-lo, a acção improcede, sendo descabido determinar a restituição do que foi prestado aos alegados mutuários com base no suposto enriquecimento sem causa destes. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I – A Causa
1. Em 18 de Janeiro de 2009[1] O… (A. e Apelado neste recurso) demandou A… e mulher, P… (RR. e Apelantes), afirmando ter “emprestado” a estes dois RR, em função de uma relação pessoal de amizade, a quantia global de €42.500,00, isto em três entregas (entre Julho de 2004 e Junho de 2005), respectivamente de €12.500,00, €25.000,00 e €5.000,00, comprometendo-se os destinatários desses empréstimos a devolverem metade dos montantes (€21.500,00) até ao fim do ano de 2005 e o restante até ao fim de 2006. Nada devolveram os RR., afirma-o o A., fazendo descaso das insistências deste para esse efeito. Ora, desrespeitando estes mútuos a forma legal prevista no artigo 1143º do Código Civil (CC)[2], já que não foi empregue escritura pública nem sequer utilizada a forma escrita simples (terão sido sempre mútuos verbais), tratar-se-iam de mútuos nulos, devendo, em função dessa incidência, ser restituído tudo o que prestado fora (artigo 289º, nº 1 do CC). É, enfim, o que o A. pretende nesta acção: que seja declarado nulo o mútuo (os mútuos) e que os RR. sejam condenados a devolver os €42.500,00, com juros contados desde a respectiva citação. 1.1. Os RR. impugnaram esta pretensão e os respectivos fundamentos referenciando os valores transferidos para eles pelo A. à transmissão a este de posição na sociedade “L…, Lda.”. 1.2. Em julgamento foi a acção decidida pela Sentença de fls. 290/299 – esta constitui a decisão objecto deste recurso –, julgando procedente, “por provada” (foi a expressão empregue pelo Senhor Juiz a quo), condenando-se os RR. a satisfazerem ao A. a quantia de €42.500,00 e juros nos termos peticionados. Fundou-se esta procedência no instituto do enriquecimento sem causa – questão não invocada por qualquer das partes ao longo do processo –, fazendo o Tribunal decorrer da indemonstração da tese do A. e da indemonstração da tese dos RR. o desencadear dessa obrigação de restituir, nos termos do artigo 473º do CC[3]. 1.3. Inconformados, recorreram os RR., concluindo o seguinte a rematar a motivação do recurso: II – Fundamentação 2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pelos Apelantes – transcrevemo-las no item 1.3. supra – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[4]. Com efeito, fora das conclusões só valem, nesta sede, questões que se configurem como de conhecimento oficioso (di-lo o trecho final do artigo 660º, nº 2 do CPC). Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas. E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações. O fundamento do recurso resume-se a saber se o instituto do enriquecimento sem causa, como observámos não invocado pelo A. na acção (nem sequer a título subsidiário[5]), face à indemonstração em paralelo da tese do A. e da tese dos RR. – face, pois, a um non liquet total – seria convocável, como considerou o Senhor juiz a quo, como verdadeira regra residual de decisão face à dita indemonstração de qualquer das teses em confronto na acção. Poderíamos reduzir tudo, assim, ao controlo da aplicação do enriquecimento sem causa na hipótese vertente, a saber: quando alega o A. um mútuo (e este é nulo por falta de forma), como causa da transferência patrimonial, contrapondo o R. que a transferência patrimonial entre os dois ocorreu, por outra causa, concretamente que teve como causa o pagamento do valor resultante da execução de um contrato (aqui de uma cessão de quotas), sendo que nem a versão do A. nem a versão do R. logram demonstração – daí o indicado non liquet total. Note-se que o Tribunal a quo entendeu que a não prova de qualquer destas versões conduziria à aplicação do artigo 473º do CC, consequentemente ao desencadear da obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa. Existe, todavia, um problema com esta decisão – é o problema que se coloca neste recurso –, consistente no postergar, substituída pelo enriquecimento sem causa, da chamada regra de decisão contida no artigo 342º, nº 1 do CC, enquanto norma vocacionada para resolver as hipóteses de non liquet quanto aos fundamentos da acção configurada pelo A.: “[à]quele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado”. É este descaso, feito pela decisão recorrida sem qualquer explicação, da regra de decisão decorrente da chamada teoria das normas (do artigo 342º do CC)[6] que aqui nos perturba e interpela vivamente, exigindo um aprofundamento argumentativo da questão, testando a correcção da linha decisória seguida pela primeira instância. Antes de mais, porém, importa reter os factos provados (os factos considerados pela primeira instância e que aqui ninguém contesta). 2.1. Ora, esses factos considerados provados na instância precedente foram os seguintes: 2.2. Preambularmente sublinhamos que esta questão – o assumir do enriquecimento sem causa como uma espécie de regra de decisão a aplicar em situações de non liquet total – já foi tratada pelo ora relator, com uma distinta formação da presente, no Acórdão desta Relação de 04/12/2007[7] (que na subsequente argumentação seguiremos de perto em muitos aspectos). Tratava-se nesse caso da alegação pelo autor de ter ocorrido um mútuo e da contraposição pelo réu de ter existido, isso sim, uma doação, não se provando nem uma nem outra das hipóteses[8]. Neste caso, o confronto entre as duas versões não envolve a alegação pelo R. de uma doação, mas antes de um negócio oneroso referido, ao que parece, a responsabilidades emergentes para o A. da cessão das quotas de uma sociedade, sendo que existe uma especificidade na doação, que tem expressão na essência significativa do brocardo latino donatio non praesumitur[9], no sentido em que “[o]s negócios jurídicos gratuitos, no confronto com os negócios jurídicos onerosos, manifestam alguma ‘fraqueza’, consubstanciando posições objecto de uma protecção menos intensa, que tenderá a ceder face a negócios onerosos incidentes sobre o mesmo bem”[10]. Todavia, a incompatibilidade irresolúvel entre a existência – rectius, a alegação da existência – de um mútuo e a contraposição a este de um negócio oneroso que exclui a obrigação de devolução do mesmo que foi prestado que caracteriza o mútuo, não deixa de trazer à colação, sem o acrescento interpretativo da tendencial prevalência do negócio oneroso sobre o gratuito, essa incompatibilidade estrutural e, consequentemente, a necessidade de recorrer, face à indemonstração de qualquer das versões contrapostas, a uma regra de decisão que permita ultrapassar o tal non liquet total, no quadro referencial da obrigação de julgar que se impõe aos juízes, mesmo em ambiente de dúvida final insanável (artigo 8º, nº 1 do CC). Foi neste quadro – quer-nos parecer – que o Senhor Juiz a quo recorreu aqui ao enriquecimento sem causa, substituindo-o à regra de decisão que, ancorada no nº 1 do artigo 342º do CC, o levaria a ficcionar como demonstrada a tese dos RR., por indemonstração da tese do A.[11], fazendo aquela prevalecer sobre a tese do mútuo invocada pelo A., prevalência esta que conduziria, neste caso, a manter nos RR. a deslocação patrimonial efectuada pelo A., rectius a conservar o status quo ante à acção visado alterar pelo A. 2.2.1. Confronta-nos assim a decisão apelada com o sentido teleológico profundo de um instituto, o enriquecimento sem causa, de grande relevância na prática dos tribunais, dotado de uma vasta história – remonta ao direito romano[12] –, sendo indicado por Claus-Wilhelm Canaris como “princípio geral de direito”[13], sendo que o nosso Código Civil o enuncia, na sugestiva expressão de Luís de Menezes Leitão, “[…] como um princípio em forma de norma […]” no artigo 473º, nº 1[14]. Na doutrina portuguesa constitui obra de referência no tratamento do enriquecimento sem causa o trabalho deste último Autor, “O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil”[15], que seguiremos de perto nas subsequentes considerações. Contém o mencionado artigo 473º, nº 1 uma cláusula geral cuja amplitude conduziria, na base da sua utilização indiscriminada, ao efeito perverso de colocar “[…] em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo”, facultando a interposição de uma acção exigindo a restituição do enriquecimento sempre que se reunissem os pressupostos directamente previstos na norma em causa: “a) existência de um enriquecimento; b) obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) ausência de causa justificativa para o enriquecimento”[16]. Como primeiro elemento de “contenção” da amplitude da cláusula geral, encontramos a chamada regra da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, constante do artigo 474º do CC, que afasta a “[…] restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”. E, enfim, pensando na hipótese de pura e simples indemonstração da tese do autor, que invoca uma causa concreta para a atribuição patrimonial que alega ter efectuado ao réu, não deixamos de ver uma espécie de solução distinta do recurso ao enriquecimento sem causa, a existência da regra de decisão ancorada no artigo 342º, nº 1 do CC. Paralelamente a esta ideia de subsidiariedade, a própria evolução doutrinária da figura do enriquecimento sem causa, tem contribuído para uma maior precisão na definição do domínio de aplicação do instituto, quebrando, em certo sentido, o seu enquadramento unitário, através de um aprofundamento da caracterização das situações concretas que determinam uma obrigação de restituir, à luz de um princípio geral de afastamento do enriquecimento sem causa. Retratámos assim, grosso modo, a evolução dogmática do instituto, entre uma concepção dita tradicional ou clássica, denominada “teoria unitária da deslocação patrimonial”, e a concepção, decorrente dos trabalhos dos juristas alemães Walter Wilburg e Ernst Von Caemmerer, denominada “doutrina da divisão do instituto”[17]. Esta última, à qual adere expressamente Menezes Leitão[18], reconduz o enriquecimento sem causa a “[…] duas categorias principais, sendo uma delas relativa às situações de enriquecimento geradas com base numa prestação do empobrecido e outra abrangendo as situações de enriquecimento não baseadas numa prestação, atribuindo-se nesta última papel preponderante ao enriquecimento por intervenção”[19]. É no sentido das antecedentes considerações que Menezes Leitão sintetiza nas seguintes teses a construção dogmática do instituto do enriquecimento sem causa: Ora, encarando a situação invocada pelo A. (emprestei dinheiro aos RR. e eles não o devolveram no prazo convencionado), como hipótese de Direito, na perspectiva do enriquecimento sem causa, só poderia estar em causa uma situação dita de enriquecimento por prestação. Com efeito, referindo-se esta categoria específica “[…] a situações em que alguém efectua uma prestação a outrem, mas se verifica uma ausência de causa jurídica para que possa ocorrer por parte deste a recepção dessa prestação”[21], constatamos ser basicamente deste tipo a situação aqui invocada pelo Apelado. Assim, sendo evidente ter ela na sua génese uma prestação do Apelado aos Apelantes, importará acrescentar que, nestas situações de enriquecimento por prestação, “[…] o requisito fundamental do enriquecimento sem causa é a realização de uma prestação, que se deve entender como uma atribuição finalisticamente orientada, sendo por isso, referida a uma determinada causa jurídica, ou na definição corrente na doutrina alemã dominante como «o incremento consciente e finalisticamente orientado de um património alheio»”, sendo que “[…] a ausência de causa jurídica deve ser definida em sentido subjectivo, como a não obtenção do fim visado com a prestação”[22]. Ora, é relativamente a este último elemento – a existência de um determinado fim para a realização da prestação que se frustrou – que reconhecemos na decisão apelada um enorme deficit argumentativo. De facto, na perspectiva do Tribunal a quo, para além do (não provado) mútuo, nada é referido que pudesse alicerçar, na perspectiva do A., a existência de uma causa em vista da qual teria sido realizada a atribuição patrimonial e em função da qual – em função da sua não verificação – possamos afirmar ter-se frustrado o sentido finalístico que presidiu a essa deslocação patrimonial, sendo certo que frustrar-se o fim da atribuição patrimonial é, como veremos adiante, coisa distinta de um fracasso argumentativo ou probatório relativamente à existência de um fim expressamente invocado. Note-se que para a transferência para os RR. do valor pecuniário que o A. afirma ter resultado de um empréstimo, adiantaram aqueles (os RR.) uma outra causa (uma outra explicação totalmente incompatível com a do A.): a cessão das quotas da sociedade. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “[a] obrigação de restituir pressupõe […] que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido”[23]. E, acrescentamos nós, não se diga que o suposto empobrecido fica, assim, onerado com a prova de um facto negativo, porque do que se trata é de provar a causa (que é um facto positivo) e, subsequentemente, que esta – e retornamos ao sentido da passagem citada de Pires de Lima e Antunes Varela – realmente não existia ou deixou de existir entretanto. Daí que não colha trazer à liça o enriquecimento sem causa quando o autor nada consegue provar quanto à causa que invoca, ultrapassado que está o chamado “entendimento clássico do enriquecimento sem causa”[24], para atribuir ao autor o mesmo que lhe seria devido provasse ele a causa invocada. Este entendimento – o entendimento do Senhor Juiz a quo – esquece que o aprofundamento cientifico do instituto do enriquecimento sem causa já consolidou de há muito – e com recepção, entre nós, no artigo 473º, nº 2 do CC[25] – a ideia de que a restituição da prestação efectuada depende da incidência dos acontecimentos concretos na causa que presidiu a essa prestação: porque essa causa – e vamos enumerar aqui o que, constituindo verdadeiros “casos típicos” dessa ausência de causa, não deixam de ser reflexo da essência profunda do instituto nos termos em que o Código Civil o regula –, essa causa, dizíamos, não existia realmente, embora aquando da prestação se supusesse existir (condictio indebiti[26]); porque a visada ocorrência futura dessa causa se frustrou (conditio ob rem[27]); porque essa causa desapareceu posteriormente (condictio ob causam finitam[28]). 2.2.2. Referimos já no texto deste Acórdão constituírem realidades distintas a não verificação ou frustração da causa atribuída a uma prestação e a não prova, na dialéctica do processo, dessa mesma causa, importando agora justificar tal afirmação, que aqui se reitera e que entendemos não ter sido devidamente ponderada pelo Senhor Juiz apelado. De facto, considerando-se que a antecipação argumentativa de que existiu uma causa para a realização da prestação, mas que esta se não verificou – rectius, que já não se verificava ou que se frustrou –, desencadeará, se provada, a obrigação de restituir o enriquecimento, por verificação da facti species interpretativa do artigo 473º do CC, já o mesmo não sucede quando a ausência dessa causa, e é o que aqui se passa, decorre de um non liquet da parte sobre a qual recai o ónus da alegação e da demonstração da existência dessa mesma causa. Neste último caso, a consequência de não se provar (ou de não se ter alegado) a causa de uma prestação não é a restituição desta por falta de causa, será, em princípio, no quadro da já mencionada “teoria das normas” (v. nota 7 supra), o accionar das chamadas “regras de decisão” – no caso, os artigos 342º, nº 1 e 516º, respectivamente do CC e CPC – próprias desse non liquet[29]. Contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, do que aqui se trata não é de trazer à liça o enriquecimento sem causa investido do estatuto – que não lhe cabe – de regra de decisão, em situações de incerteza quanto à verificação da tese do autor e da tese do réu, mas sim de convocar as verdadeiras regras de decisão e, em função destas – e aqui vale como tal o nº 1 do artigo 342º do CC – proferir a decisão contrária à versão veiculada por quem deva suportar no caso o risco do non liquet, enfim, o risco da indemonstração da sua tese. Trata-se, pois, de encarar a já mencionada teoria das normas, que subjaz ao mencionado artigos 342º, numa “perspectiva objectiva”, ou seja a que respeita às “versões discutidas” e não às partes, determinando qual dessas versões é subjectivamente onerada com o encargo da sua demonstração e, em função disso, sobre quem recaem as consequências da indemonstração dessa versão, por ser a quem essa mesma versão aproveita[30]. Ora, aqui chegados, verificando nós – e isso é consensual na análise do caso concreto – que foi o A. quem afirmou ter existido um mútuo, não logrando demonstrá-lo, outra solução não podemos encarar como adequada que não fosse – que não seja agora neste recurso – a consideração da acção como improcedente, por indemonstração da tese do A., sendo indiferente que os RR. – também eles – não tenham demonstrado a sua tese, porque a regra de decisão aplicável, o artigo 342º, nº 1 do CC, postula, face à incerteza, a decisão contrária àquele que invocou um determinado direito (aqui o direito a reaver, por via da nulidade do mútuo, o que entregou aos demandados) e não alcançou a prova dos factos constitutivos desse direito invocado. 2.3. É essa improcedência da acção que nos cumpre afirmar, com a consequente absolvição dos RR. do pedido, deixando aqui como sumário algo muito próximo do já anteriormente resumido relativamente ao Acórdão desta Relação de 04/12/2007, sumário esse aqui praticamente repetido por total identidade de razão: III – Decisão 3. Assim, procedente que é a apelação, revoga-se a Sentença recorrida, determinando-se a absolvição dos RR. do pedido. Custas em ambas as instâncias a cargo do A.
Teles Pereira (Relator) Manuel Capelo Jacinto Meca
Não se provou a tese dos autores, ou seja, o empréstimo. Mas também se não provou a tese dos réus. Uma das fontes de obrigações que a nossa lei civil consagra é constituída pelas situações de enriquecimento sem causa, de enriquecimento injusto ou de locupletamento à custa alheia. Diz o artº 473 do Código Civil que ‘aquele que sem causa justificativa enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustificadamente se locupletou’. A obrigação de restituir e a correspondente pretensão à restituição constituem uma forma de compensação instituída pela lei para certas situações que, embora formalmente conformes aos seus preceitos, conduzem a resultados de injusto enriquecimento substancialmente reprovados pelo direito. A obrigação de restituir fundada no injusto locupletamento à custa alheia que o Código Civil actual consagra como princípio de carácter geral, quando no direito anterior e em muitas legislações estrangeiras vigentes, apenas aflora em alguns casos isolados e dispersos, pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: a) que haja um enriquecimento de alguém; b) que o enriquecimento careça de causa justificativa; c) que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição. O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Umas vezes a vantagem traduzir-se-á num aumento do activo patrimonial (v g recepção de prestação não devida, porque a obrigação nunca existiu ou já havia sido cumprida), outras numa diminuição do passivo (v g cumprimento efectuado por terceiro, na errónea convicção de estar obrigado a efectuá-lo), outras no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes actos sejam susceptíveis de avaliação pecuniária (v g instalação em casa alheia) - Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol I, 9ª edição pág 496. Dado, porém, que a lei não define tal conceito e dada a natureza diversa da fonte de que pode emergir, tal significa que o enriquecimento injusto terá sempre que ser apreciado e aferido casuisticamente, interpretando e integrando a lei à luz dos factos apurados. - Ac RC 2.11.2010 procº 1867/08.0TBVIS.C1. Para que haja obrigação de restituir é necessário que o enriquecimento contra o qual se reage careça de causa justificativa, ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido. A quem exige a restituição da quantia voluntariamente entregue a outrem, cabe o ónus da prova da falta de causa justificativa da atribuição monetária. Por último para alguém se arrogar fundadamente o direito à restituição, é necessário que o enriquecimento tenha sido obtido à sua custa, a expensas dessa pessoa. A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos, traduzir-se-á em regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro. A vantagem de um, deve resultar do prejuízo do outro, ou este provir daquela. Cabendo ao autor que pede a restituição com base no enriquecimento da ré à sua custa sem causa justificativa, por força do preceituado no art. 342º, nº 1 do Cód Civil, o ónus de alegação e prova dos referidos pressupostos. Designadamente, o ónus da prova da ausência de causa da sua prestação pecuniária, sendo a carência de causa justificativa da deslocação patrimonial facto constitutivo de quem requer a restituição. - Ac STJ de 2.7.2009 Pº 123/07.5TJVNF.S1 I – O enriquecimento sem causa, enquanto fonte obrigacional específica, pressupõe a existência de uma “causa justificativa” da deslocação patrimonial, sendo que só por referência a esta se pode constatar a sua falta. II – No caso do chamado “enriquecimento por prestação” do empobrecido, a obrigação de restituir assenta na efectiva inexistência, não verificação ou posterior desaparecimento da “causa justificativa” que presidiu a essa prestação. III – A “causa justificativa”, sendo um dos elementos integradores da obrigação de restituir decorrente do artº 473º do C. Civ., carece de alegação e prova dos respectivos factos constitutivos, especificamente dirigidas à produção desse efeito (restituição). IV – A falta de alegação ou prova da “causa justificativa” implica, relativamente ao enriquecimento sem causa, o accionar, por ausência dos pertinentes factos constitutivos, das “regras de decisão” previstas nos artºs 342º do C. Civ. e 516º do CPC. V – Assim, o enriquecimento sem causa não traduz uma regra “residual” de decisão (não traduz sequer uma regra de decisão), que seja desencadeada, no que à obrigação de restituir respeita, pela indemonstração da causa de uma deslocação patrimonial, cuja invocação se dirigia a outro efeito (como seja a restituição de uma quantia mutuada). […] I – O pagamento efectuado ao Fisco por um contabilista (não um Técnico Oficial de Contas) do montante do IRS liquidado a um seu cliente, visando impedir o prosseguimento de uma execução fiscal instaurada contra o mesmo cliente, traduz (tal pagamento do imposto por um terceiro) uma atribuição patrimonial indirecta efectuada ao devedor do imposto, dado que esse pagamento extingue a dívida fiscal objecto da execução. II – Sendo tal pagamento determinado pela circunstância do contabilista estar convicto de poder ter sido uma omissão funcional sua (como contabilista do devedor) que originou a liquidação do imposto correspondente a essa dívida fiscal, funciona tal circunstância como causa da atribuição patrimonial realizada. III – Se, posteriormente, vem a saber-se que essa mesma dívida resultou, em exclusivo, de uma causa totalmente distinta da intuída por quem realizou a atribuição patrimonial que extinguiu a dívida fiscal, essa atribuição fica sem a causa que a determinou, traduzindo o cumprimento de uma obrigação alheia na errada convicção de se estar obrigado a cumpri-la (artigo 478º do CC). IV – Desencadeia esta situação uma obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa por prestação, na forma particular de repetição do indevido (artigo 476º, nº 1 do CC), configurando o chamado indevido subjectivo (artigo 478º do CC), gerando-se assim, para o devedor indevidamente exonerado, a obrigação de restituir o montante prestado pelo terceiro ao credor. |