Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
862/05.5TBAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 12/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ANADIA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 473º, Nº 1, DO C. CIV.
Sumário: I – O enriquecimento sem causa, enquanto fonte obrigacional específica, pressupõe a existência de uma “causa justificatica” da deslocação patrimonial, sendo que só por referência a esta se pode constatar a sua falta.

II – No caso do chamado “enriquecimento por prestação” do empobrecido, a obrigação de restituir assenta na efectiva inexistência, não verificação ou posterior desaparecimento da “causa justificativa” que presidiu a essa prestação.

III – A “causa justificativa”, sendo um dos elementos integradores da obrigação de restituir decorrente do artº 473º do C. Civ., carece de alegação e prova dos respectivos factos constitutivos, especificamente dirigidas à produção desse efeito (restituição).

IV – A falta de alegação ou prova da “causa justificativa” implica, relativamente ao enriquecimento sem causa, o accionar, por ausência dos pertinentes factos constitutivos, das “regras de decisão” previstas nos artºs 342º do C. Civ. e 516º do CPC.

V – Assim, o enriquecimento sem causa não traduz uma regra “residual” de decisão (não traduz sequer uma regra de decisão), que seja desencadeada, no que à obrigação de restituir respeita, pela indemonstração da causa de uma deslocação patrimonial, cuja invocação se dirigia a outro efeito (como seja a restituição de uma quantia mutuada).

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. A... (A. e neste recurso Apelante) intentou, na Comarca de Anadia, a acção declarativa de condenação com processo ordinário da qual emergiu a presente apelação, nela demandando B... (R. e aqui Apelada), alegando ter “mutuado” a esta, com a obrigação de restituição até Setembro de 2001, a quantia de €13.218,13 (em duas entregas respectivamente de €8.230,16 e €4.987,97), sendo que pede a restituição da soma das quantias mutuadas acrescida de juros (€15.749,64) ou, em alternativa, com base na declaração de nulidade por falta de forma de tais mútuos, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 1143º e 220º do Código Civil (CC), a condenação da R. a restituir-lhe com juros o que dele recebeu.

            Subsidiarimente, formula o A., por referência ao instituto do enriquecimento sem causa (artigos 473º e seguintes do CC), um pedido de restituição da mencionada quantia, caracterizando-o nos seguintes termos:


“[…]

14º
Assim não se logre prova da existência de qualquer mútuo entre A. e R., o que só por mero exercício intelectual de patrocínio se concebe; e em alternativa, certo é que a R. recebeu do A. a dita importância, que a integrou no seu património e que ainda não a devolveu ou procedeu à sua restituição;
15º
Devendo por isso proceder à devolução ao A. da quantia de €13.218,14 com que injustamente se locupletou à custa deste.
16º
Estando a R. na presente data enriquecida, sem qualquer causa que o justifique, à custa do A. – cfr. artigo 473º e seguintes do Código Civil;
17º
Devendo, por isso, restituir-lhe essa mesma e exacta importância, agora acrescida de juros legais desde a sua entrega para os termos da presente acção.
[…]”
            [transcrição de fls. 3 vº/4]

 A R. contestou, pugnando pela improcedência da acção, reconhecendo ter recebido as quantias em causa, mas indicando terem ocorrido tais entregas a título de doação, efectuadas pelo A. no quadro de uma relação extraconjugal com ela mantida entre 2000 e 2003.

            1.1. Saneado o processo, fixados os factos assentes na fase de condensação e elaborada a base instrutória (fls. 59/61), avançou-se para o julgamento documentado a fls. 139/141, findo o qual, apurados os factos provados nessa fase (fls. 142), foi proferida a Sentença de fls. 144/145 vº (constitui esta a decisão aqui recorrida), a qual, julgando a acção improcedente no seu todo, absolveu a R. dos pedidos.

            1.2. Inconformado, interpôs o A. a fls. 149 o presente recurso de apelação, admitido a fls. 153 e alegado a fls. 158/178, rematando-o com as seguintes conclusões, aqui transcritas nos seus elementos essenciais:


“[…]
1. O presente recurso versa apenas sobre matéria de direito e restringid[o] à aplicação do instituto do enriquecimento sem causa (artigo 473º e seguintes do CC).
Não se discute, ainda, a bondade da solução jurisprudencial e doutrinal referida na sentença recorrida mas, sim, apenas, a sua aplicação (e a forma como foi aplicada ao caso dos autos).
[…]
4. Após julgamento da matéria de facto, nem o A. logrou provar o mútuo, nem a R. logrou provar a doação, ficando no entanto provado que o A. lhe tinha entregue as ditas quantias e que a R. as tinha recebido do A..
5. Perante os factos concretos a considerar nesta lide […] e a jurisprudência e doutrinas apontadas na sentença recorrida, não seria necessário o A. alegar razões, matéria, sobre a inexistência de causa justificativa para o enriquecimento da R. Isto é, perante o quadro factual concreto do processo, tal como foi alegado e definido pelas partes, mesmo aplicando essa doutrina e jurisprudência, não existe falta de alegação da matéria de facto […].
6. De acordo com o disposto nos artigos 654º (com a excepção aí prevista do artigo 264º) e 664º do Código de Processo Civil, o Juiz conhece apenas os factos alegados pelas partes e só estes – fixando-se assim o objecto do processo […].
7. Cada uma das partes trouxe a juízo a sua posição sobre aquelas entregas e recebimentos (mútuo e doação). Ora, a ser assim, poder-se-á ainda afirmar que o A, deveria ter alegado factos sobre a inexistência de causa justificativa?
Quando apenas aquelas duas figuras estão em causa – com a preclusão de todas e quaisquer outras e quando apenas e só aqueles factos estão em discussão – poder-se-á ainda retirar a conclusão mencionada na sentença recorrida sobre a imposição de alegação sobre a inexistência de outras possíveis causas? Salvo o devido respeito parece-nos que não. Existem aquelas duas causas e apenas aquelas duas, com a preclusão de quaisquer outras que, em abstracto, se pudessem configurar para os factos «mãe»: entrega e recebimento daqueles «dinheiros».
[…]
11. […] foi a contestação da R. que fechou o «círculo» das hipóteses que interessava considerar e alegar (de forma negativa, isto é, pela sua inexistência) para a aplicação do instituto e que tornou desnecessária a alegação que a sentença recorrida conclui faltar para aplicação dos artigos 473º e segts. do CC.
[…]”
            [transcrição de excertos de fls. 172/178]

            A R. respondeu ao recurso a fls. 186/193, pugnando pela manutenção da decisão apelada.


III – Fundamentação


            2. Importa consignar, com interesse para toda a subsequente exposição, que as conclusões que o Apelante formulou, cuja transcrição consta do item antecedente, operaram a delimitação temática do objecto do presente recurso [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)].

            Assim, restringe-se a apelação, conforme o Apelante indica nas alegações e tem inteira correspondência nas conclusões que entendeu formular, à questão (de direito) de saber se se mostram preenchidos os pressupostos do enriquecimento sem causa relativamente ao recebimento pela R. das quantias apuradas, significando isto, importa consigná-lo desde já, que o Apelante “deixou cair” nesta fase de recurso os dois pedidos que eram preponderantes na estruturação da acção decorrente da petição inicial, a saber, aqueles que se construíam em função da existência de um mútuo. Assente isto, verificando-se que a matéria de facto não foi impugnada e que não há lugar à sua alteração, resta-nos acrescentar, em sede de observações preambulares, que se considera a mesma fixada, remetendo-se aqui, nos termos do artigo 713º, nº 6 do CPC, para a enunciação dos factos constante da Sentença a fls. 144 vº.

            2.1. Tudo se resume, assim, à determinação da incidência nos factos provados do instituto do enriquecimento sem causa, ou seja, da fonte obrigacional genérica que emerge da definição constante do nº 1 do artigo 473º do CC, nos seguintes termos: “[a]quele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.

            Os factos pertinentes, expostos por referência à dinâmica argumentativa desenvolvida ao longo da acção (no balanço entre o que cada uma das partes alegou e logrou provar), são os seguintes: (a) invocou o A. ter mutuado à R. determinadas quantias pedindo a sua restituição[1], formulando, subsidiariamente (artigo 469º, nº 1 do CPC), um pedido de restituição dessas mesmas quantias a título de enriquecimento sem causa da R.; (b) A R. contrapôs terem sido tais quantias doadas, negando a obrigação de as restituir; (c) não se provou qualquer uma das teses (mútuo ou doação); (d) provou-se, tão-só, que a R. recebeu do A. essas quantias e que jamais as restituiu a este, provando-se também que ambos mantiveram uma relação (nos termos em que esta é qualificada pelos factos) extraconjugal.

            2.1.1. Expressa-se a essência do recurso, em função da dinâmica factual acabada de expor, na obtenção de resposta à seguinte interrogação: deve a R., com base nestes singelos factos, ser condenada a restituir ao A. o dinheiro que dele recebeu por preenchimento da facti species do enriquecimento sem causa?

            A Sentença, assente não ter o A. logrado provar que as entregas de dinheiro à R. – essas sim, provadas – tenham ocorrido a título de empréstimo, respondeu negativamente, expressando a sua ratio decidendi no trecho que aqui se transcreve:


“[…]
Fica a questão do enriquecimento sem causa, mas aqui também vale, como não podia deixar de ser, a norma do artigo 342º/1 do CC, pelo que era ao A. que incumbia provar que não existia qualquer causa para o enriquecimento da R. (tal como, por exemplo, também é ao embargante de uma execução cambiária que cabe a prova da inexistência de qualquer relação fundamental).
[…]
Ora, o A. não alegava a falta de qualquer causa justificativa das entregas feitas à R.. Concluía, apenas, que, não existindo o mútuo que alegava, então não existia causa. Ou seja, partia do princípio de que, não se provando a causa de atribuição que tinha invocado, então faltava causa […]”
            [transcrição de excertos de fls. 145, com sublinhado acrescentado]

            Interessa aqui remeter, para integral compreensão deste trecho final da decisão apelada, para os termos (objecto de transcrição no item 1 deste Acórdão) através dos quais o A. expressou no seu articulado inicial a pretensão subsidiária de condenação da R. ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa. Destes resulta, com efeito – e estamos a apreciá-los criticamente –, uma construção de natureza “residual”, chamemos-lhe assim, dos pressupostos da obrigação de restituição do enriquecimento, assente tão-só numa hipotética – que na Sentença se tornou efectiva – não demonstração da existência do mútuo, sendo que a ausência de causa, na tese do Apelante, se traduziria nisso mesmo: a exclusão, por fracasso probatório, da ou das causas concretamente invocadas para a entrega daquelas quantias[2]. O enriquecimento sem causa seria, pois, seguindo a lógica argumentativa do Apelante, aquilo que fica quando, em certo sentido, não se logrou demonstrar que exista uma causa antes afirmada, não directamente dirigida à existência desse suposto enriquecimento, seria, enfim, aquilo que fica quando, numa situação como esta, nada se provou – maxime nada se alegou –, para além da própria deslocação patrimonial em si mesma considerada.

            É o que importará determinar na subsequente exposição. Sublinha-se, porém, preambularmente, que a simplicidade que a enunciação da questão parece sugerir é ilusória. É que, de aparência simples, encerra ela um problema verdadeiramente complexo, para o qual, como veremos, não existe uma resposta clara na doutrina, configurando-se, pois, como um verdadeiro “caso difícil”. Com efeito, o cruzamento da invocação de um mútuo e de uma doação geram, nas hipóteses de indemonstração recíproca e dada a natureza de mútua exclusão que logicamente apresentam as duas alegações (se emprestei não dei, e vice-versa), uma situação complexa para a qual a solução normalmente aceite para as situações de incerteza, as “regras de decisão” decorrentes da chamada “teoria das normas”[3], não constituiria na realidade uma resposta verdadeiramente satisfatória[4]. De qualquer forma, sendo certo que o Apelante reduziu o seu argumentário recursório à questão do enriquecimento sem causa, é na perspectiva deste que cumprirá apreciar e resolver a questão.

2.1.1.1. Confronta-nos assim o Apelante, com o sentido teleológico profundo de um instituto, o enriquecimento sem causa, de grande relevância na prática dos tribunais, dotado de um largo lastro histórico, que remonta ao direito romano[5], sendo indicado por Claus-Wilhelm Canaris como “princípio geral de direito”[6], sendo que o nosso Código Civil o enuncia, na sugestiva formulação de Menezes Leitão, “[…] como um princípio em forma de norma […]” no artigo 473º, nº 1[7]. Na doutrina portuguesa constitui obra de referência no tratamento do enriquecimento sem causa o trabalho deste último autor, “O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil[8], que seguiremos de perto nas subsequentes considerações.

            Contém o mencionado artigo 473º, nº 1 uma cláusula geral cuja amplitude conduziria, na base da sua utilização indiscriminada, ao efeito perverso de colocar “[…] em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo”, facultando a interposição de uma acção exigindo a restituição do enriquecimento sempre que se reunissem os pressupostos directamente previstos na norma em causa: “a) existência de um enriquecimento; b) obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) ausência de causa justificativa para o enriquecimento”[9]. Como primeiro elemento de “contenção” da amplitude da cláusula geral, encontramos a chamada regra da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, constante do artigo 474º do CC, que afasta a “[…] restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

            Paralelamente a esta ideia de subsidiariedade, a própria evolução doutrinária da figura do enriquecimento sem causa, tem contribuído para uma maior precisão na definição do domínio de aplicação do instituto, quebrando, em certo sentido, o seu enquadramento unitário, através de um aprofundamento da caracterização das situações concretas que determinam uma obrigação de restituir, à luz de um princípio geral de afastamento do enriquecimento sem causa. Retratámos assim, grosso modo, a evolução dogmática do instituto, entre uma concepção dita tradicional ou clássica, denominada “teoria unitária da deslocação patrimonial”, e a concepção, decorrente dos trabalhos dos juristas alemães Walter Wilburg e Ernst Von Caemmerer, denominada “doutrina da divisão do instituto”[10]. Esta última, à qual adere expressamente Menezes Leitão[11], reconduz o enriquecimento sem causa a “[…] duas categorias principais, sendo uma delas relativa às situações de enriquecimento geradas com base numa prestação do empobrecido e outra abrangendo as situações de enriquecimento não baseadas numa prestação, atribuindo-se nesta última papel preponderante ao enriquecimento por intervenção”[12]. É no sentido das antecedentes considerações que Menezes Leitão sintetiza nas seguintes teses a construção dogmática do instituto do enriquecimento sem causa:


“[…]
            1. A formulação unitária da cláusula geral do artigo 473º, nº 1 [do CC] esconde uma profunda diversidade estrutural entre as diversas categorias de enriquecimento, tendo os pressupostos do instituto cambiantes de sentido e relevo dogmático distinto em cada uma dessas categorias. Para além disso, são claramente diferenciadas as funções desempenhadas por cada uma das categorias de enriquecimento sem causa no âmbito do sistema jurídico.
2. Não é possível vislumbrar um fundamento específico comum às diversas categorias de enriquecimento sem causa, a não ser como referência a uma ordenação geral de compensação e equilíbrio, o que implica identificar a proibição do enriquecimento com o princípio suum cuique tribuere.
3. Esse princípio corresponde, no entanto, a uma simples ideia jurídica geral, com base na qual não é possível atribuir directamente uma pretensão de enriquecimento, o que leva à conclusão de que a norma do artigo 473º, nº 1, não é de aplicação imediata, tendo o caso concreto que ser integrado previamente numa das categorias de enriquecimento sem causa. […]
4. A cláusula geral do artigo 473º, nº 1 do [CC] apresenta-se como aberta, balizando um dos princípios do sistema jurídico, sendo aplicável no quadro de um sistema móvel, em complemento dos regimes de restituição, reembolso e indemnização previstos noutros institutos jurídicos.
[…]”[13]

            2.1.1.2. Encarada na perspectiva do enriquecimento sem causa, a situação configurada pelo Apelante neste recurso, só poderá corresponder a uma situação de “enriquecimento por prestação”. Com efeito, referindo-se esta categoria específica “[…] a situações em que alguém efectua uma prestação a outrem, mas se verifica uma ausência de causa jurídica para que possa ocorrer por parte deste a recepção dessa prestação”[14], constatamos ser basicamente deste tipo a situação aqui invocada pelo Apelante. Assim, sendo evidente ter ela na sua génese uma prestação do Apelante à Apelada, importará acrescentar que, nestas situações de enriquecimento por prestação, “[…] o requisito fundamental do enriquecimento sem causa é a realização de uma prestação, que se deve entender como uma atribuição finalisticamente orientada, sendo por isso, referida a uma determinada causa jurídica, ou na definição corrente na doutrina alemã dominante como «o incremento consciente e finalisticamente orientado de um património alheio»”, sendo que “[…] a ausência de causa jurídica deve ser definida em sentido subjectivo, como a não obtenção do fim visado com a prestação”[15].

Ora, é relativamente a este último elemento – a existência de um determinado fim para a realização da prestação que se frustrou – que o apontado deficit argumentativo do Apelante se manifesta. De facto, na perspectiva argumentativa deste, para além do (não provado) mútuo, nada é referido que pudesse alicerçar a existência de uma causa em vista da qual teria sido realizada a atribuição patrimonial e em função da qual – em função da sua não verificação – possamos afirmar ter-se frustrado o sentido finalístico que presidiu a essa deslocação patrimonial, sendo certo que frustrar-se o fim da atribuição patrimonial é, como veremos adiante, coisa distinta de um fracasso argumentativo ou probatório relativamente à existência de um fim.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “[a] obrigação de restituir pressupõe […] que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido”[16]. E, acrescentamos nós, não se diga que o empobrecido fica, assim, onerado com a prova de um facto negativo, porque do que se trata é de provar a causa (que é um facto positivo) e, subsequentemente, que esta – e retornamos ao sentido da passagem citada de Pires de Lima e Antunes Varela – realmente não existia ou deixou de existir entretanto.

Daí que não colha, agora, tardiamente (em sede de recurso), buscar uma espécie de “refúgio de oportunidade” no já ultrapassado entendimento clássico do enriquecimento sem causa[17], esquecendo que o aprofundamento cientifico do instituto já consolidou de há muito – e com recepção, entre nós, no artigo 473º, nº 2 do CC[18] – a ideia de que a restituição da prestação efectuada depende da incidência dos acontecimentos concretos na causa que presidiu a essa prestação: porque essa causa – e vamos enumerar aqui o que, constituindo “casos típicos” dessa ausência de causa, não deixam de ser reflexo da essência profunda do instituto –, essa causa, dizíamos, não existia realmente, embora, aquando da prestação, se supusesse existir (condictio indebiti[19]); porque a visada ocorrência futura dessa causa se frustrou (conditio ob rem[20]); porque essa causa desapareceu posteriormente (condictio ob causam finitam[21]).

2.1.1.3. Referimos anteriormente que constituem realidades distintas a não verificação ou frustração da causa atribuída a uma prestação e a não prova, na dialéctica do processo, dessa mesma causa, importando agora justificar tal afirmação, que aqui se reitera e que entendemos ter sido central no processo argumentativo da decisão recorrida – que, aliás, é da mais elementar justiça sublinhá-lo, expressa uma compreensão inteligente da essência do instituto do enriquecimento sem causa.

De facto, considerando-se que a antecipação argumentativa de que existiu uma causa para a realização da prestação, mas que esta se não verificou – rectius, que já não se verificava ou que se frustrou –, desencadeará, se provada, a obrigação de restituir o enriquecimento, por verificação da facti species interpretativa do artigo 473º do CC, já o mesmo não sucede quando a ausência dessa causa, e é o que aqui se passa, decorre de um non liquet da parte sobre a qual recai o ónus da alegação e da demonstração da existência dessa mesma causa. Neste último caso, a consequência de não se provar (ou de não se ter alegado) a causa de uma prestação não é a restituição desta por falta de causa, será, em princípio, no quadro da já mencionada “teoria das normas” (v. nota 3 supra), o accionar das chamadas “regras de decisão” – no caso, os artigos 342º, nº 1 e 516º, respectivamente do CC e CPC – próprias desse non liquet[22].  

Contrariamente ao pretendido pelo Apelante, do que aqui se trata, não é de convocar o enriquecimento sem causa, “travestindo-o” de “regra de decisão” na situação de incerteza quanto à causa do enriquecimento, mas sim de convocar as “verdadeiras” “regras de decisão”[23] e, em função destas, proferir a decisão contrária à versão veiculada por quem deva suportar no caso o risco do non liquet. Trata-se, enfim, de encarar a já mencionada “teoria das normas”, que subjaz aos mencionados artigos 342º e 516º, numa “perspectiva objectiva”, ou seja a que respeita às “versões discutidas” e não às partes, determinando qual dessas versões é subjectivamente onerada com o encargo da sua demonstração e, em função disso, sobre quem recaem as consequências da indemonstração dessa versão, por ser a quem essa mesma versão aproveita[24].

2.1.1.4. Esta é a solução do problema propiciada pela actuação das “regras de decisão” – rectius da “teoria das normas” – por referência ao enriquecimento sem causa, ou seja, por referência ao fundamento em função do qual o Apelante estruturou o presente recurso. A questão poderia ser, no entanto, equacionada numa distinta perspectiva, reportada à questão do ónus da prova quanto à existência do mútuo, embora, como veremos já de seguida, continuasse a conduzir ao fracasso da pretensão restituitória do Apelante.

Com efeito, a tal respeito, ocorre-nos citar aqui a ponderação que Pedro Ferreira Múrias faz desta complexa situação de não prova de um mútuo a que se contrapôs uma doação igualmente não provada:


“[…]
Sem dúvida, será concebível em muitos casos de confronto de «normas incompatíveis» uma solução rosenberguiana[25], mas a sua falta de fundamento, no sentido de que depende de um dado que lhe é estranho e pode ou não ocorrer – a admissibilidade substantiva do status quo –, aconselha um repensar de problemas antigos. Perante a exigência da restituição da quantia mutuada, a que se contraponha uma suposta doação, a falta de prova sobre se ocorreu uma doação ou um mútuo, porque institutos independentes nas suas previsões, levaria à absolvição do R. e, em caso de reconvenção, também à absolvição do autor. A reconvenção é supérflua, porque, de toda a maneira, o tribunal sempre ordenaria que se conservasse o estado actual. Note-se, todavia, que a decisão é, realmente, farisaica, pois o único apoio substantivo da não entrega seria a existência de uma doação, e essa, segundo a «teoria das normas», não pode igualmente ser tida em conta. O enriquecimento sem causa não ajuda o alegado mutuante, pois, na maioria dos casos, caberá ao credor provar «a ausência de causa», além de que, manifestamente, o pensamento dos artigos 473º e ss. é, nestas circunstâncias, um terceiro excluído, por ter ocorrido uma doação ou mútuo. A prisão às construções de Rosenberg impede, contudo, solução diferente da exposta.
[…]
A nosso ver, a solução do problema tem de passar por uma avaliação substantiva do status quo e da aceitabilidade da sua manutenção.
[…]”[26]

 

2.2. Ora, constatando-se, a culminar o percurso argumentativo deste Acórdão, que a Sentença apelada, estribada num adequado entendimento do instituto do enriquecimento sem causa, proferiu a decisão que impunha o (notório) fracasso do Apelante em demonstrar os pressupostos do artigo 473º do CC, constatando-se isto, dizíamos, resta-nos confirmar inteiramente esse correctíssimo entendimento, não sem que antes formulemos a seguinte síntese conclusiva dos argumentos acima expendidos, na parte directamente respeitante à ratio decidendi do presente recurso:


I- O enriquecimento sem causa, enquanto fonte obrigacional específica, pressupõe a existência de uma “causa justificativa” da deslocação patrimonial, sendo que só por referência a esta se pode constatar a sua falta;
II- No caso do chamado “enriquecimento por prestação” do empobrecido, a obrigação de restituir assenta na efectiva inexistência, não verificação ou posterior desaparecimento da “causa justificativa” que presidiu a essa prestação;
III- A “causa justificativa”, sendo um dos elementos integradores da obrigação de restituir decorrente do artigo 473º do CC, carece de alegação e prova dos respectivos factos constitutivos, especificamente dirigidas à produção desse efeito (restituição);
IV- A falta de alegação ou prova da “causa justificativa” implica, relativamente ao enriquecimento sem causa, o accionar, por ausência dos pertinentes factos constitutivos, das “regras de decisão” previstas nos artigos 342º do CC e 516º do CPC;
V- Assim, o enriquecimento sem causa não traduz uma regra “residual” de decisão (não traduz sequer uma regra de decisão), que seja desencadeada, no que à obrigação de restituir respeita, pela indemonstração da causa de uma deslocação patrimonial, cuja invocação se dirigia a outro efeito (como seja a restituição de uma quantia mutuada).   


III – Decisão


3. Assim, na improcedência da apelação, decide-se confirmar integralmente a acertadíssima Sentença recorrida.

            Custas pelo Apelante.

            Coimbra,


(J. A. Teles Pereira)

(Jacinto Meca)

(Falcão de Magalhães)



[1] Da formulação do pedido resulta expressamente que o A. configura como alternativa (como pedidos alternativos) a restituição por cumprimento do mútuo ou por nulidade deste. Não estamos, todavia, perante “[…] direitos que por sua natureza ou origem sejam alternativos, ou que possam resolver-se em alternativa” (artigo 468º, nº 1 do CPC). A invocada alternativa entre cumprimento e nulidade é aparente e só seria “[…] possível sob a forma de subsidiariedade (artigo 469º [CPC]): o autor ter[ia] de escolher aquele, de entre os pedidos, que quer deduzir a título principal, passando o restante ou restantes a pedidos subsidiários” (José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, Coimbra, 2001, p. 231).
[2] O Apelante deduz, na passagem transcrita no item 1 da sua petição inicial, que o enriquecimento se funda – e no seu argumentário só se funda – na circunstância da sua tese do mútuo não lograr demonstração, acrescentando, nas alegações, que a “soma” da indemonstração das teses do mútuo (a tese dele Apelante) e da doação (a tese da Apelada) fecharia as hipóteses de causa para a transferência patrimonial, deixando-a, nessa exacta medida, sem causa. Este argumento, como veremos adiante, não colhe, já que, para as situações de non liquet, dispõe a ordem jurídica de uma resposta distinta do enriquecimento sem causa. E a consideração deste sempre pressuporia, como a ulterior exposição deixará claro, a alegação dos factos constitutivos deste.
[3] A construção teórica que subjaz aos artigos 342º do CC e 516º do CPC. Tal teorização tem origem nos trabalhos do processualista alemão Leo Rosenberg (1879-1963), no início do Século XX, e já foi qualificada como “direito consuetudinário mundial”, assentando na consideração “[…] de que nenhuma norma pode ser aplicada sem que o juiz se convença da verificação de todos os seus pressupostos [, extraindo-se] daí que a recusa de aplicação sucederá tanto quando o juiz se convença da não verificação de um ou mais dos elementos da facti species (Tatbestand) da norma a aplicar, quanto quando o juiz não se convença quanto à sua não verificação. Quer isso dizer, então, que «a parte cuja pretensão processual não pode ter sucesso sem a aplicação de determinada norma jurídica suporta o ónus da alegação e da prova de que os elementos da facti species dessa norma se verificaram de facto na situação» […]” (Pedro Ferreira Múrias, Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 18 e 43/44; importa sublinhar que este Autor expõe a chamada “teoria das normas” numa perspectiva crítica, caracterizando-a como inadequada a uma série de situações).
[4] Fala-se a este respeito de “normas autónomas incompatíveis”, “[…] de que [seria] principal exemplo o caso de o autor alegar ter mutuado, pretendendo a restituição, e o R. opor ter ocorrido doação” (Pedro Ferreira Múrias, Por Uma Distribuição Fundamentada…, cit., p. 46). Nestes casos, a doação não preencheria a ideia de contranorma, por não ser verdadeiramente um facto impeditivo, modificativo ou extintivo do mútuo, prefigurando-se, tão-só, como elemento incompatível com ele, assente em factos constitutivos distintos (ibidem). A contranorma, no sentido em que este conceito seria operante para a teoria das normas, pressuporia a verificação nela (na contranorma) “[…] de todos os elementos da norma de base, acrescentando alguns outros, correspondendo a um «sim, mas»” (ibidem).
[5] V. Paul Jörs, Wolfgang Kunkel, Derecho Privado Romano, tradução espanhola da 2ª ed. alemã, Barcelona, 1937, pp. 354/357.
[6] Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, Lisboa, 1989, p. 80.
[7] “O Enriquecimento Sem Causa no Código Civil de 1966”, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. III (Direito das Obrigações), Coimbra, 2007, p. 15.
[8] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil. Estudo Dogmático Sobre a Viabilidade da Configuração Unitária do Instituto, Face à Contraposição Entre as Diferentes Categorias de Enriquecimento Sem Causa, Coimbra, 2005 (a tese foi originalmente publicada pelo Centro de Estudos Fiscais em 1996). Constituem exposições condensadas desta obra o Direito das Obrigações deste mesmo Autor (Vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2005, pp. 383/456) e o Estudo citado na nota anterior.  
[9] “O Enriquecimento Sem Causa no Código Civil de 1966”, cit., pp. 15/16.
[10] Ob. cit. na nota anterior, pp. 17/19 e 22/27.
[11] Ob. cit. na nota anterior, p. 27.
[12] Ob. cit. na nota anterior, p. 22.
[13] O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, cit., p. 963.
[14] “O Enriquecimento Sem Causa no Código Civil de 1966”, cit., p. 28; cfr., do mesmo autor, Direito das Obrigações, cit., p. 395.
[15] “O Enriquecimento Sem Causa no Código Civil de 1966”, cit., p. 28.
[16] Código Civil anotado, vol. I, 3ª ed. revista e actualizada, com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita, Coimbra, 1982, p. 427.
[17] “De acordo com a tradicional doutrina unitária da deslocação patrimonial, surgida aquando da elaboração do Código Civil alemão, a cláusula geral de enriquecimento sem causa institui uma pretensão geral de aplicação directa, bastando para tal única e simplesmente que se verificasse a detenção injustificada de um enriquecimento à custa de outrem” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, cit., p. 385).
[18] “O Enriquecimento Sem Causa no Código Civil de 1966”, cit., p. 29 (cfr., no mesmo sentido, Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil…, cit., p. 428).
[19] “[C]aso em que alguém realizava uma prestação na intenção de extinguir uma obrigação, mas se verificava a inexistência da dívida que o prestante visava solver, o que permitia ao solvens exigir a sua restituição” (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, cit., p. 397).
[20] “[A]lguém realizava uma prestação em vista de determinado efeito futuro, pelo que a sua não verificação lhe permitia exigir a sua restituição posterior” (ibidem).
[21] “[A] hipótese em que a causa jurídica da prestação realizada desaparece posteriormente à sua realização” (ibidem).
[22] “ No caso de um non liquet – portanto: de não se ter podido apurar, afinal, o que aconteceu, com referência aos factos em litígio – o juiz ficaria, na falta de outra regra, impedido de proceder quer à aplicação positiva, quer à negativa. Mas a decisão não pode ser omitida. O ónus da prova torna-se, nessa altura, numa norma de decisão do caso. E a decisão cairá contra quem, invocando os factos decisivos, não logre demonstrá-los “ (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Coimbra, 2005, p. 466).
[23] Não obstante a perspectiva crítica que tem da “teoria das normas”, é adequado citar aqui a caracterização que faz Pedro Ferreira Múrias do conceito de “normas de decisão”: “[…] as normas do ónus da prova, em cuja facti species se encontra a incerteza processual sobre um elemento que preenchesse a previsão da norma material […, são] normas de decisão […], são «quanto à questão da [sua] eficácia», apenas um meio auxiliar da decisão de mérito que autoriza o juiz a decidir como se tivesse obtido um resultado positivo ou negativo quanto à verificação de certo facto, i. e., através da ficção […]” ( Por Uma Distribuição Fundamentada…, cit., pp. 62/63).
[24] Pedro Ferreira Múrias, Por Uma Distribuição Fundamentada…, cit., pp. 19/20.
[25] Refere-se aqui Pedro Ferreira Múrias, pelo nome do seu “pai” (Leo Rosemberg), à “teoria das normas” (v. nota 3).
[26] Por Uma Distribuição Fundamentada…, cit., pp. 102/103.