Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
871/19.7JACBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
EXEMPLOS PADRÃO
ARMA
SOQUEIRA
COAÇÃO
COAUTORIA
CUMPLICIDADE
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 132º, N.ºS 1 E 2, AL. H); 145º, N.º 1, AL. A), E N.º 2; 155º, N.º 1, AL. A); 26º DO CÓDIGO PENAL; 86º, N.º 3, DA LEI N.º 5/2006, DE 21.2.
Sumário: 1. A qualificação do crime de homicídio – ou de outro - não resulta de forma automática ou inexorável da verificação de uma ou várias das circunstâncias enumeradas no art. 132º, nº 2 do CP, sendo necessário que as mesmas revelem especial censurabilidade ou perversidade.
2. A especial censurabilidade ou perversidade tem de ser demonstrado na situação em concreto, através de uma análise das circunstâncias do caso, aferindo-se a agravação da culpa pela maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática do crime simples.

3. No âmbito do crime de ofensa à integridade física qualificada, a circunstância qualificativa em causa, como as demais elencadas no nº 2 do artigo 132º do CP, terá de ser apreciada em função do bem jurídico tutelado pelo tipo de crime em causa (integridade física) e não do bem jurídico tutelado pelos artigos 131º e 132º.

4. Assim, a utilização de um meio particularmente perigoso terá de ser apreciada e correlacionada com o acto ofensivo ou lesivo da integridade física e não com o acto ofensivo ou lesivo da vida.

5. O nº 2 do artigo 132º desempenha uma função de correcção do nº 1, fornecendo ao juiz o critério de interpretação e determinação da concreta culpa especialmente agravada do agente.

6. Assim, deve rejeitar-se em absoluto o homicídio qualificado ou a ofensa à integridade física atípicos, isto é, com recurso directo à cláusula geral de agravação do nº 1 sem passar pelo crivo do nº 2.

7. Já não haverá qualquer desconformidade com o princípio da legalidade se se fizer uma interpretação da expressão “entre outras” que imponha ao juiz-aplicador uma vinculação à lei e que mantenha o caráter de exemplos-padrão das várias alíneas do nº 2 do artigo 132º do CP – por isso, uma correcta interpretação da expressão “entre outras” será aquela segundo a qual o juiz poderá integrar no nº 2 as situações que, sem estarem expressamente previstas na letra da lei, correspondem à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de um exemplo-padrão nela já previsto.

8. O uso de uma soqueira, na entrada de uma Discoteca, onde acorrem um sem número indeterminado de pessoas, tratando-se de um objecto que não é de uso corrente, sendo potencialmente contundente e letal, se dirigido à cabeça ou a órgãos vitais, revela uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para ofender a integridade física – normalmente as mãos ou os pés, a luta corporal ou o uso de objecto de uso corrente e não letais, que se encontrassem no local da acção.

9. A doutrina e a jurisprudência consideram como elementos da comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria os seguintes:

a. a intervenção directa na fase de execução do crime (execução conjunta do facto);

b. o acordo para a realização conjunta do facto, acordo que não pressupõe a participação de todos na elaboração do plano comum de execução do facto, que não tem de ser expresso, podendo manifestar-se através de qualquer comportamento concludente, e que não tem de ser prévio ao início da prestação do contributo do respectivo co-autor;

c. o domínio funcional do facto, no sentido de “deter e exercer o domínio positivo do facto típico”, ou seja, o domínio da sua função, do seu contributo, na realização do tipo, de tal forma que, numa perspectiva ex ante, a omissão do seu contributo impediria a realização do facto típico na forma planeada.

10. A co-autoria baseia-se no princípio do actuar em divisão de trabalho e na distribuição funcional dos papéis - todo o colaborador é aqui, como parceiro dos mesmos direitos, co-titular da resolução comum para o facto e da realização comunitária do tipo, de forma que as contribuições individuais completam-se em um todo unitário e o resultado total deve ser imputado a todos os participantes».

11. A cumplicidade pressupõe um mero auxílio material ou moral à prática por outrem do facto doloso, de tal forma que ao cúmplice falta o domínio do facto típico como elemento indispensável da co-autoria.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: ****


Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
1. A CONDENAÇÃO RECORRIDA

No processo comum singular nº 871/19.... do Juízo Local Criminal ... (Juiz ...), na sentença datada de 22 de Agosto de 2023, consta o seguinte DISPOSITIVO (transcrição):
1. «Condena arguido AA, em (co)autoria material e concurso real pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º 1, 145º 1 al. a) e 2 e 132º 2 al. h) todos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
2. Condenar arguido AA, em autoria material e concurso real pela prática de um crime de coação agravada, previsto nos artigos 154º 1, 155º 1, al. a) e 131º todos do Código Penal e artigo 86º 3 da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses;
3. Condena arguido AA, em (co)autoria material e concurso real pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86º 1, als. c) e d) da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro, por referência ao artigo nº 1, als. ap) e aad) e artigo 3º, nº 2 al. e) e nº 3 al. a) do mesmo diploma legal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
4. Em cúmulo jurídico, condena o arguido AA na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por 4 (quatro) anos, sujeita a regime de prova: artigo 50º do Código Penal;
5. Condenar arguido BB pela pratica, em coautoria material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º 1, 145º 1 al. a) e 2 do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão suspensa na sua execução por 1 (um) ano: artigo 50º do Código Penal;
6. Condena arguido AA a pagar ao Centro Hospitalar ..., o montante de 222,41, em virtude da assistência médica prestada ao ofendido».

(…)
 
            3. OS RECURSOS

3.1. RECURSO Nº 1
Inconformado, o arguido AA recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. «AA, condenado pela prática, em (co)autoria material, e concurso real pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º nº 1, 145º nº 1 al. a) e nº2 e 132º nº2 al. h) todos do CódigoPenal,na pena de 10 (dez)mesesdeprisão, bem como em autoria material e concurso real pela prática de um crime de coação agravada, previsto nos artigos 154ºnº1,155º nº 1,al.a)e131º todosdoCódigoPenaleartigo86º nº 3daLei5/2006de23defevereiro 2 (dois) anose4(quatro) meses e ainda, também em autoria material e concurso real pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto noartigo86º nº 1, als. c) ed)daLei5/2006 de 23 de fevereiro, por referência ao artigo 2º nº 2, als. ap) e aad) e artigo3º , nº 2 al.e)enº 3al.a)do mesmo diploma legal,2(dois)anosdeprisão.
2. Do concurso real considerado pelo Tribunal a quo foi o ora recorrente condenado em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por 4 (quatro) anos, sujeita a regime de prova, nos termos do artigo 50º do Código Penal. Foi ainda condenado a pagar ao Centro Hospitalar ..., o montante de € 222,41, em virtude da assistência médica prestada ao ofendido;
3. O recorrente considera, salvo melhor opinião, que não existem quaisquer razões de facto, nem de direito que fundamentem a sua condenação nos moldes supracitados, por mor de circunstâncias ligadas não só à política criminal, mas também a circunstâncias intrínsecas ao caso concreto, a que ora nos propomos a explanar;
4. Cumpre-nos ainda enaltecer o princípio da presunção da inocência – previsto no artº 32º, nº 2 da CRP – um dos vectores cardiais do processo penal português, do qual se extrai que todo o arguido É considerado inocente até prova em contrário, cabendo, precisamente, à prova carreada para os autos infirmar tal presunção, o que não sucedeu;
5. Consideramos, assim, que uma vez que inexistam elementos probatórios nos autos que rumem de forma cabal e inequívoca no sentido de condenar um determinado indivíduo pela prática de um facto ilícito típico, este deve ser absolvido, sob pena de a interpretação da norma onde se encontra subsumido o crime dever ser considerada inconstitucional, por violar o princípio da presunção da inocência, nos termos do nº 2 do artº 32º da CRP;
6. No mesmo sentido deverá rumar o juízo probatório e final quando existam elementos bastante, que permitam concluir pela participação da alegada vítima na prática de um facto ilícito;
7. O ofendido não se sentiu inibido a demonstrar a sua animosidade relativamente ao recorrente, apesar de saber que estava a ser gravado e observado por diversas pessoas, alegando que sabia onde AA vivia, e a respectiva família, para além de gesticular com a mão junto do pescoço, dirigido ao recorrente, como se pretendesse, figuradamente – ou não, pois já foi demonstrado que CC não é um Homem de grandes receios e inibições - , cortar-lhe a cabeça, ou, como se diz na gíria, se nos permitem a ousadia, “limpar-lhe o sebo”;
8. Dado que o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artº 127º do  CPPenal não se sobrepõe ao princípio da legalidade (artº 125º do CPPenal), nem tampouco pode assumir um entono de arbitrariedade ou subjectividade, o recorrente não entende a extensão do juízo silogístico exarado na sentença;
9. Quem trabalha em estabelecimentos de diversão nocturna, vigilantes, seguranças e porteiros são objecto de um escrutínio apertado para poder desempenhar as respectivas funções, frequentando cursos, superando provas escritas e físicas (avaliação médica e psicológica), para além de se munirem de uma autorização do Ministério da Administração Interna para poderem desempenhar determinadas funções (cartão profissional), ao abrigo da Lei nº 34/2013, e 16 de Maio, republicada pela Lei nº 46/2019, de 8 de julho, tendo de manter uma conduta recta, providenciando segurança aos que se encontram em situações de perigo, como a que foi potenciada pelo ofendido, com a sua conduta excessiva, provocadora e destruidora;
10. As al. b) a d) do nº 2 do artº 18º da Lei nº 34/2013, e 16 de Maio, republicada pela Lei nº 46/2019, de 8 de julho, legitimam os vigilantes a controlar entradas em estabelecimentos que reservam a admissão nos mesmos, a prevenir a prática de crimes – neste caso, ofensa à integridade física, dano, ameaça, coacção, numa primeira bordagem – e executar respostas adequadas a perigos potenciados por coisas ou pessoas que atentem cotra a integridade do objectoque se propuseram a acautelar;
11. Os factos dados como provados relativamente à actuação dos arguidos em nada é consentânea com a realidade, entrando, inclusivamente em contradição com a mesma, pelo que estamos perante um erro notório de valoração da prova, nos termos preditos na al. c), do nº 2 do artº 410º do CPPenal;
12. Os arguidos agiram de acordo com o comportamento que lhes é exigível, no exercício das suas funções, tendo sido bastante pacientes com alguém que apenas tinha o propósito de destabilizar e agredir, especialmente, o recorrente AA;
13. Apenas se concede, no que tange à ofensa à integridade física, que AA terá agido de forma excessiva, não estando assimverificado um dos elementos da legítima defesa (Artº 32º do CP), configurando antes um excesso de legítima defesa por desnecessidade do meio, sob a égide de um estado de afecto asténico, nos termos do nº 1 do artº 33º o CPenal;
14. O ofendido entrou três vezes no estabelecimento com único propósito de atacar e agredir terceiros, recaindo sobre os arguidos a obrigação de defenderem os interesses de todos os envolvidos, nos termos do artº 34º do CPenal – estado de necessidade justificante;
15. As lesões apresentadas por CC não poderiam ser produzidas pelos arguidos, nem tampouco existe um nexo de causalidade, atendendo ao circunstancialismo dos factos;
16. O arguido AA nunca empunhou uma soqueira, inexistindo elementos nos autos que corroborem tal conclusão, sendo as lesões apresentadas por CC totalmente dissonantes de um cenário dantesco como o que o Tribunal transpareceu – vinte e dois socos, de onde não resultaram quaisquer danos que permitam estabelecer um nexo de causalidade com os autos, sobretudo quanto o relatório pericial tem data de oito de novembro e o arguido pratica modalidades desportivas de combate, como o MMA;
17. O arguido AA nunca coagiu o ofendido a sair do estabelecimento, pelo que deverá ser absolvido do crime pelo qual foi condenado, no que concerne ao crime de coacção;
18. Não foi apreendida qualquer arma de fogo, nem tampouco ficou provado que o recorrente fosse detentor de uma arma ilícita, pois, da perícia efectuada ao alegado projectil que foi encontrado, a conclusão rumou no sentido de o mesmo não ter qualquer valor identificativo, e a análise das imagens, e não da arma – porque inexiste – não foi possível ser emitido um juízo inabalável (o sr. Inspector da polícia judiciária referiu, não raras vezes que existem diversos instrumentos que podem emitir projecteis, designadamente elásticos), no que concerne á alegada arma empunhada pelo recorrente;
19. O Tribunal a quo, considerou provados os factos constantes dos incisos 3, 4, 5, 6,7, 8,10,11,12,13,14,15,16 e 17 da matéria de facto,quando não tinhaprova nesse sentido, revelando-se inequívoco que estamos perante um erro notório na apreciação da prova, nos termos da al. c), do nº 2, do artº 410º do CPPenal; para efeitos da al. c) do nº 2 do artº 410º do Código de Processo Penal que a prova, logo AA foi incorrectamente julgado, não sendo correcto utilizar apreciações subjectivas da prova, sem âncora fáctica, para corroborar o princípio da livre apreciação da prova constante no artº 127º do CPPenal, tendo como limite as regras da experiência comum;
20. Não se concedendo quanto ao crime de ofensa à integridade física, sempre se dirá que, uma vez afastada a tese da legítima defesa na sua formulação clássica, deveria ter sido cogitada a possibilidade de estarmos perante uma situação subsumível ao conceito de excesso de legítima defesa, por intermédio de um estado de afecto asténico, atendendo ao medo, perturbação e susto provocados pelo ofendido no arguido, pelo comportamento pouco urbano por aquele representado e confirmado pelo seu comportamento post-facto, uma vez que, confessadamente, ameaçou e perseguiu o recorrente em mais do que uma ocasião;
21. No limite o arguido poderia ter sido indiciado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples - por ausência de verificação do elemento qualificador, logo, por ausência da especial censurabilidade e/ou perversidade exigidas pelo tipo incriminador - nos termos do artigo 143º do CPenal, contudo, uma vez que não foi formalizado o direito de queixa, nos termos do artº 115º, nº1 do CPenal, sempre caducaria a acção penal a este respeito, por ilegitimidade do MP em a promover, devendo o recorrente ser absolvido do mesmo;
22. Quanto ao crime de coacção agravada, em momento algum o recorrente constrangeu o ofendido a sair do estabelecimento, por intermédio da utilização de uma arma de fogo;
23. AA nunca deveria ter sido condenado a uma pena de prisão superior a um ano, atendendo ao circunstancialismo envolvente e ao facto de apenas ter disparado a arma para colocar termo a uma situação de perigo para todas as pessoas que se encontravam naquele estabelecimento – perigo esse motivado pelo comportamento ilícito de CC;
24. Atendendo aos critérios legalmente previstos para efeitos de cúmulo jurídico e de determinação da medida concreta da pena, à luz dos artigos 30º e 71º do CPenal, bem como à personalidade do agente e a todos os elementos probatórios trazidos para os autos, apena única do recorrente nunca deverá ultrapassarosvinte meses de prisão, suspensos na sua execução, nos termos do artº 50º do Código Penal, por se compreender que cumpre as exigências de prevenção (geral e especial), que no caso concreto se fazem sentir;
25. Sem prescindir, considera-se que a JUSTIÇA apenas será feita se AA for absolvido de tudo quanto foi pronunciado e ora condenado, pois, não obstante estarmos perante um cenário reprovável, certo é que não foi provocado por AA, tendo este sido colocado numa situação por CC que poderia ter sido evitada, caso o ofendido nos autos se tivesse comportado como um cidadão que se pauta pelos valores e princípios inerentes a um Estado de Direito e a uma sociedade condigna para a convivência em pluralidade;
26. É de referir que todas as testemunhas – quer da acusação, que da defesa, desde o Sr, DD, ao Sr. EE, aos Srs. FF, GG, HH e II - referiram que AA é uma pessoa tranquila, inteligente e um bom Pai de família, que nunca se viu a braços com uma situação como esta, pelo que tal deverá ser tido em consideração por este Tribunal Superior, pugnando, finalmente, pela sua absolvição!
27. Nestes termos, bem como nos demais de direito que V.as Ex.as doutamente proverão, será feita a vossa acostumada, Justiça!!»


3.2. RECURSO Nº 2
Inconformado, o arguido BB recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«(…)
DD. Ad cautelam, tecendo considerações sobre a qualificação do crime ao abrigo do nº 2 do art. 132º CP (embora não se saiba ao abrigo de qual alínea do art. 132º nº 2 CP é que o foi pois do dispositivo não consta a alusão a nenhuma!), entende-se que a conduta do arguido não é subsumível no tipo legal de crime pelo qual se mostra condenado, sendo indevido o teor de douta sentença condenatória a fls. 29 segundo parágrafo pois no tocante ao momento em que a arma é usada nenhuma acção ilícita há do recorrente, tendo mesmo depois sido ele a colocar a mão à frente e a cessar tal ilicitude, conforme facto dado por provado sob o nº 10 e mostrando-se-lhe apenas imputada a prática do crime de ofensa à integridade física não pode valer contra si o uso da arma de fogo, pois que a mesma apenas foi usada para cometer os crimes de coacção agravada e detenção de arma proibida, face aos quais o recorrente não estava pronunciado nem acusado, tendo-se tal excerto decisório por erróneo, não podendo o recorrente comungar da culpa derivada do uso e porte por terceiro!
EE. Para apurar da especial censurabilidade ou perversidade da actuação do recorrente o Tribunal não pode valorar toda a actuação do outro arguido nem o uso da arma, pois tal está para além do que se mostrava imputado ao recorrente, tendo apenas de valorar unicamente a imagem global da actuação do recorrente e nada mais, havendo muitas variáveis a seu favor como seja a culpa do ofendido, que forçou a entrada, por duas vezes, em tronco nu, exaltado e embriagado (facto provado 23) bem como a posterior actuação do recorrente no sentido de colocar cobro a qualquer ilicitude, colocando a mão em frente à arma usada por terceiro (facto provado 10), infirmando cristalinamente tal facto provado 10 qualquer decisão e execução conjuntas, (as quais se não vislumbram!), não podendo haver especial censurabilidade e perversidade por arrasto quando o recorrente nenhuma ofensa à integridade física provocou nem as provocadas no ofendido foram significativas e graves;
FF. Ademais tão-pouco tais agressões foram gratuitas e ou imotivadas, havendo manifesta culpa do ofendido que não só forçou a entrada (da segunda vez em tronco nu, a barafustar alto, exaltado e embriagado – conforme facto provado 23 - e a deixar antever que iria arranjar problemas!), como o fez na sequência de conflitos anteriores com o agressor, que não o recorrente, nunca tendo sido o agressor a ir ter com o ofendido, tendo sido sempre ele a vir ao estabelecimento de forma descontrolada e para arranjar problemas, não havendo sequer intensidade e reiteração tal que indicie especial censurabilidade ou perversidade quando foi o ofendido quem conscientemente se auto-colocou em perigo e risco;
GG. Vejamos a imagem global dos factos: temos um arguido, I) inequivocamente no exercício das funções de segurança privada, num estabelecimento de diversão nocturna, II) que se vê confrontado com um cliente que força a entrada por duas vezes, entrando em sentido contrário aos demais clientes e pela porta de saída (factos provados 2 e 5), III) entrando este da segunda vez sem t´shirt, exaltado e embriagado (facto provado 23), IV) que perante isto, tendo a percepção que tem de fazer alguma coisa rapidamente para a segurança do espaço e demais clientes, podendo mesmo exigir-se uma acção mais musculada, apenas se limita a agarrá-lo, V) sendo depois surpreendido pela aproximação de outro elemento de segurança, por detrás de si e sem que o veja ou dele se aperceba, que vem a agredir a soco o dito cliente, VI) posteriormente leva a cabo acção de cessação de qualquer ilicitude, colocando a mão à frente de uma arma exibida (facto provado 10), VII) num quadro de violência não muito excessiva pois que o ofendido sai pelo próprio pé e ainda volta a entrar uma terceira vez, julgando-se não verificada a especial perversidade ou censurabilidade, VIII) que aguardou e permaneceu no local até à chegada da Polícia e IX) que abandonou o exercício da profissão;
HH. No tocante à alínea h), salvo o devido respeito, dir-se-á primeiramente que se não viu soqueira alguma e apenas ela poderá ser alegada para preencher tal exemplo padrão, pois que a arma de fogo não foi usada nas agressões, não tendo o recorrente praticado o facto juntamente com mais duas pessoas (afinal, apenas são dois os arguidos!) e, ademais, não cometeu nenhum facto tipificado pela lei penal como crime, sendo que não utilizou o arguido nenhum meio particularmente perigoso, uma vez que colhendo os ensinamentos vertidos no Comentário Conimbricense, tomo I, fls. 37, em anotação à anterior alínea g) [actual h)] do nº 2 do art. 132º CP, não se poderão considerar como tal as facas ou vulgares instrumentos contundentes, pelo que igualmente a soqueira (que nunca foi sequer usada pelo recorrente!) não preenche tal previsão legal;
II. A lei exige que sejam particularmente perigosos, ou seja, terão de revelar uma perigosidade muito superior à normal, como seja o uso de gasolina incendiada ou talvez de uma granada e da natureza do meio utilizado não se pode depreender, com particular exigência e severidade, a especial perversidade ou censurabilidade do arguido dado que, sob pena de “tomarmos a árvore pela floresta”, não se pode pretender ter por forma-regra da ofensa à integridade física a sua qualificação, tendo-se deixado transcritos os sumários de doutos acórdãos (Ac. STJ de 23-02-2012 e 198/17.9PFCBR.C1, TRC de 10-VII-2018) a isso atestar, comprovado ainda pelo teor decisório do própria jurisprudência convocada na decisão recorrida (ACSTJ de 13.12.2017, proc. 205/13.4PGPDL.L1-3 consult in dgsi.com), que não considerou como meio particularmente perigos um bastão com 54 cm de comprimento!
JJ. Ora, se uma machada ou um bastão com 54 cm de comprimento não é meio particularmente perigoso também o não poderá ser uma alegada soqueira, cujas características tão-pouco são conhecidas pois nem foi apreendida (veja-se que a douta acusação arrola como prova documental os autos de apreensão de fls. 178 ss, 181 ss e 184 ss e nada foi apreendido em qualquer deles!) nem examinada, havendo ausência de relatório pericial a impedir a sua classificação sequer como arma, pois que em boa verdade não se sabe se algo foi usado e o quê, a afastar tal qualificação que apenas em violação do princípio in dubio pro reo poderia operar!
KK. Igualmente não foi cometido crime de perigo comum pois tais crimes mostram-se especificamente elencados nos arts. 272º a 286º CP, não se afigurando que se mostre igualmente preenchida tal factualidade e não se pode esquecer que as circunstâncias descritas nas diversas alíneas do nº 2 do art. 132º CP não são elementos do tipo, mas unicamente atinentes ao tipo de culpa, pelo que não são de funcionamento automático, tendo de se concluir pela ausência de especial perversidade ou censurabilidade da actuação do agente, caindo a qualificação do crime e no limite estar em causa um crime de ofensa à integridade física simples, não tendo o recorrente praticado qualquer crime qualificado e atenta a ausência de apresentação de queixa contra si deverá ser absolvido!
LL. Mostra-se inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, tipicidade, legalidade, (des)igualdade, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso, a interpretação e dimensão normativa do art. 145º nº 1 a) CP segundo a qual “Para efeitos de apreciação da especial perversidade e censurabilidade pode ser valorada contra arguido acusado em co-autoria pela prática de um único crime a imagem global dos factos imputados a título de autoria singular ao outro seu co-arguido e que pela sua dimensão bem como majoração ao nível da imputação de crimes acabam por distorcer a realidade e majorar a ilicitude”;
MM.Mostra-se inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, tipicidade, legalidade, (des)igualdade, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso, a interpretação e dimensão normativa do art. 145º nº 1 a) CP segundo a qual “A apreciação da especial perversidade e censurabilidade não é individual e casuística a impor unicamente a valoração da imagem global dos factos imputados a tal arguido, podendo tal apreciação ser grupal com consideração de demais factualidade ilícita unicamente imputada a outro arguido”;
NN. Mostra-se inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade, culpa, tipicidade, (des)igualdade, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso, a interpretação e dimensão normativa do art. 132º nº 2 h) CP segundo a qual “Constitui agressão qualificada, em virtude de utilização de meio particularmente perigoso, a ofensa levada a cabo mediante o uso de soqueira sem que a mesma tenha sido apreendida e examinada pericialmente para determinar objectivamente as suas características, como seja, dimensão, peso e material de que é feita”;
OO. A pena aplicada de sete meses de prisão mostra-se exagerada e não conforme aos princípios da culpa, proporcionalidade, adequação e proibição do excesso, pugnando-se pela sua atenuação para três meses em razão da imagem global dos factos: temos um arguido, I) inequivocamente no exercício das funções de segurança privada, num estabelecimento de diversão nocturna, II) que se vê confrontado com um cliente que força a entrada por duas vezes, entrando em sentido contrário aos demais clientes e pela porta de saída (factos provados 2 e 5), III) entrando este da segunda vez sem t´shirt, exaltado e embriagado (facto provado 23), IV) que perante isto, tendo a percepção que tem de fazer alguma coisa rapidamente para a segurança do espaço e demais clientes, podendo mesmo exigir-se uma acção mais musculada, apenas se limita a agarrá-lo, V) sendo depois surpreendido pela aproximação de outro elemento de segurança, por detrás de si e sem que o veja ou dele se aperceba, que vem a agredir a soco o dito cliente, VI) posteriormente leva a cabo acção de cessação de qualquer ilicitude, colocando a mão à frente de uma arma exibida (facto provado 10), VII) num quadro de violência não muito excessiva pois que o ofendido sai pelo próprio pé e ainda volta a entrar uma terceira vez, VIII) que aguardou e permaneceu no local até à chegada da Polícia, IX) que abandonou o exercício da profissão e X) que não ostenta antecedentes criminais por crimes da mesma natureza;
PP. Normas jurídicas violadas: maxime arts. 29º, 132º nº 2 h), 143º nº 1, 145º nº 1 a) e 2 CP; arts. 127º, 379º nº 1 c) e 409º nº 1 CPP; arts. 13º nº 1, 18º n.os 1 e 2, 20º, 27º n.os 1 e 4, 32º n.os 1, 2 e 5, 110º nº 1, 202º n.os 1, 2 e 3, 204º e 205º CRP; art. 412º nº 1 CPC; Princípios violados e erroneamente aplicados: maxime da livre apreciação da prova, da presunção de inocência (in dubio pro reo), do inquisitório, da culpa, da legalidade, da tipicidade, da igualdade, da proporcionalidade, da adequação, proibição do excesso e finalidades das penas/exigências de prevenção.
(…)
atento o supra exposto, entende o recorrente que em obediência aos mais elementares princípios constitucionais e comandos interpretativos que presidem a um Direito penal que se queira materialmente justo e processualmente conforme, não poderá deixar de ser dado provimento ao presente recurso, maxime em razão dos vícios de que padece a douta sentença recorrida e dos quais deverá ser expurgada: I) vícios na apreciação da prova, demissão ajuizativa e erróneo julgamento da matéria de facto, com preterição das garantias de defesa e nulidade; II) erro na subsunção jurídica, justificando-se a não subsunção no crime qualificado e consequente absolvição em razão de ausência de queixa apresentada contra o recorrente; e III) ad cautelam, majoração da dosimetria penal com pedido de atenuação da pena».


            4. O Ministério Público em 1ª instância respondeu aos DOIS recursos, opinando que os mesmos não merecem provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância.

5. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se, corroborando as contra-alegações da Colega de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento aos recursos.

6. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por deverem ser os recursos aí julgados, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação.
Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões.
Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso (note-se que as conclusões do recurso nº 1 estão muito perto da imperfeição, à luz das exigências no preceituado nos artigos 412º, nºs 3 e 4 do CPP, optando-se, contudo, por as validar), são estas as questões que o tribunal teria para decidir:
RECURSO Nº 1 – ARGUIDO AA
1. Impugnação da matéria de facto
· Há sinais do vício do artigo 410º/2 c)[1] do CPP (erro notório na apreciação da prova)?
· Há erro de julgamento (artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP) quanto aos factos provados nºs 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16 e 17?
· Há eventuais causas de exclusão da ilicitude ou da culpa no comportamento do arguido?
2. Violação do princípio constitucional do «in dubio por reo»
3. Errada qualificação jurídica dos factos
4. Medida da pena aplicada (pena do crime de detenção de arma proibida e pena de cúmulo jurídico)
*
RECURSO Nº 2 – ARGUIDO BB
1. Impugnação da matéria de facto
a. Há sinais do vício do artigo 410º/2 b) do CPP (contradição entre a fundamentação e a decisão)?
b. Há erro de julgamento (artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP) quanto aos factos provados nºs 3, 7, 19 e 22 e o facto não provado que intitula de A?
2. Violação do princípio constitucional do «in dubio por reo»
3. Errada qualificação jurídica dos factos – não há razões para a qualificativa do artigo 132º, nº 2, alínea h) do Código Penal, doravante CP?
4. Medida da pena aplicada.

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição, com sublinhados nossos):

1. «Na madrugada do dia 13 de outubro de 2019, os arguidos AA e BB encontravam-se a exercer funções de Vigilante(s), por conta da empresa de segurança “A...”, no estabelecimento de diversão noturna “B...”, sito na Rua ..., em ....
2. Cerca das 05H30 do referido dia, quando muitos clientes se encontravam a sair do estabelecimento pela única porta que ainda se encontrava aberta, ali surgiu o CC que, em movimentação contrária, forçou a entrada na discoteca.
3. Abordado por EE, seu conhecido (que já havia exercido as funções de vigilante naquele espaço) e que lhe pediu para abandonar o estabelecimento, o ofendido não acedeu e foi rodeado pelos arguidos, agarrado e empurrado por estes, tendo sido manietado e (em comunhão de esforços) agredido com pontapés e com murros no rosto, cabeça e nas costas pelos arguidos AA (que o agride, utilizando para o efeito uma soqueira metálica, na mão direita, que retirou do bolso das calças) e BB (que o segura).
4. A determinado momento, EE e outro individuo, tentaram ajudar o CC e pôr fim às agressões, conduzindo o ofendido CC - também contra vontade deste -, para o exterior do estabelecimento.
5. Pouco depois, cerca das 05H35, CC, visivelmente embriagado, voltou a forçar a entrada no estabelecimento, desta vez em tronco nu, e foi agarrado pelo arguido BB no hall de entrada.
6. Entretanto o arguido AA saiu do compartimento dos funcionários, para onde entretanto se tinha deslocado, e circundou CC, colocando-se do lado da porta (de tal compartimento).
7. Nisto, enquanto CC continuava agarrado e manietado pelo arguido BB, o arguido AA, empunhando a soqueira metálica na mão direita, desferiu dois socos, com o referido objeto, no rosto do CC, o qual, após o segundo soco, caiu no solo.
8. Com CC prostrado no chão, o arguido AA guardou a soqueira no bolso, levou a mão direita até à zona da cintura, muniu-se de uma arma de fogo, estendendo o braço direito para cima e apontando a arma para o teto.
9. Com a arma de fogo empunhada e apontada para o teto, AA efetuou um disparo, dentro do estabelecimento, com dezenas de clientes jovens à sua volta.
10. Após disparar, apontou a arma de fogo ao ofendido CC, que se estava a levantar do chão, tendo o BB colocado a sua mão à frente da arma.
11. Nisto, EE começou a puxar o CC para o exterior, momento em que o arguido AA, com o intuito de constranger o ofendido a abandonar definitivamente aquele espaço, fazendo-o temer pela vida, voltou a empunhar a arma de fogo na direcção de CC.
12. Na altura estavam diversos clientes naquela zona do hall de entrada, ao alcance da referida arma (e seus disparos).
13. Após empurrar o CC para o exterior, a testemunha JJ voltou a entrar e empurrou AA, que continuava a empunhar a arma de fogo, agora novamente apontada para o teto, para o interior do compartimento reservado à equipa de elementos de segurança ali existente.
14. Na sequência do disparo efetuado pelo arguido AA, gerou-se algum pânico entre os clientes que estavam a sair do estabelecimento e que começaram a empurrar-se para o exterior.
15. Após ter sido agredido, o CC regressou a casa e deitou-se.
16. Todavia, horas mais tarde, teve necessidade de recorrer ao serviço urgência dos Hospitais ... por apresentar vómitos e múltiplos traumatismos na região temporal esquerda, com perda de consciência, cervical direita, ombro direito, cotovelo esquerdo e joelho esquerdo, tendo sido submetido a alguns exames, que não revelaram sinais de fratura ou de lesões crânio-encefálicas.
17. Como consequência direta e necessária das agressões levadas a cabo pelos arguidos, o ofendido CC sofreu diversas escoriações na face, tórax, membros superiores e membro inferior esquerdo, que terão resultado de traumatismo de natureza contundente e que lhe determinaram um período de doença de 5 dias, todos com afetação da capacidade de trabalho geral; do evento resultaram ainda vestígios cicatriciais e a fratura parcial do bordo incisal do dente 11, que, todavia, não lhe afetam de forma grave a capacidade de trabalho nem de utilização do corpo, nem constituem desfiguração grave.
18. O arguido AA não era detentor de licença de uso e porte de arma de fogo e não tinha armas registadas e manifestadas em seu nome.
19. Os arguidos AA e BB, atuaram em conjugação de esforços, na sequência de um acordo tácito de vontades, com o propósito alcançado de atentar contra o corpo e a saúde do CC, usando para o efeito uma soqueira metálica que ambos sabiam ter maior potencial lesivo.
20. O arguido AA quis ainda, e conseguiu, deter e utilizar a soqueira e a arma de fogo, bem sabendo que não estava autorizado a fazê-lo.
21. Atuou ainda o arguido AA com o propósito concretizado de constranger o ofendido CC a abandonar a discoteca, mediante o uso da arma de fogo.
22. Ao praticarem os factos acima descritos, os arguidos atuaram de forma livre, voluntária e consciente, cientes da proibição e da punição criminal das respetivas condutas.
23. O ofendido CC encontrava-se, à data dos factos, muito exaltado e embriagado.
24. O arguido BB desconhecia a existência da arma de fogo na mão do AA.
*
Mais se provou que:
25. Dos relatórios sociais junto solicitados pelo Tribunal (artigo 370º do Código de Processo Penal) ressuma que:
BB de 37 anos, solteiro, cresceu e vive na freguesia .../.... É o primeiro de dois filhos, criado num meio rural, numa família afetuosa e protetora.
Iniciou a formação escolar em idade normal, concluiu o 9º ano de escolaridade e deixou os estudos por opção.
Em idade escolar, beneficiou de seguimento clinico para hiperatividade, com alta pelos 13 anos de idade. Estabeleceu contacto com o mundo laboral em idade jovem, na construção civil, nos períodos das férias escolares, por vontade própria e para obter, assim, mais meios económicos para satisfazer interesses comuns à sua idade (bens pessoais e de lazer).
Desde jovem que conhecia outros ligados à profissão de segurança e em 2003 trabalhou, nessa área, em Centros Comerciais da cidade ..., no Euro 2004 de Futebol e em vários eventos, musicais e desportivos.
Adquiriu ao longo do tempo competências formativas e autorização para exercício de segurança.
Na atividade de segurança, que exerceu durante cerca de 18 anos, teve vários trabalhos e trabalhou em pelo menos duas empresas do ramo a (C... e a A...).
De 2005 a 2011 trabalhou com outras funções, nos serviços de higiene da autarquia de ..., mantendo serviços eventuais de segurança. Deixou em definitivo o trabalho na autarquia, regressando à atividade de segurança em estabelecimentos de diversão noturna e outros eventos para os quais tivesse disponibilidade.
O arguido refere ter tido um trajeto ocupacional com bom nível económico e sem perturbação no exercício das atividades.
Socialmente é tido como pessoa que estabelece relações cordiais, com conterrâneos e pessoas das suas relações de amizade e crescimento.
No seu percurso não sinaliza contactos com o sistema de Justiça.
Arguido mantém a residência na habitação da família detentora de boas condições de habitabilidade e de privacidade.
Do agregado familiar fazem parte o arguido, o pai, (61 anos, assistente operacional na Câmara Municipal ... e a mãe (56 anos, funcionária do Serviço do Centro Hospitalar ...).
Actualmente, o arguido passa parte significativa do seu tempo livre com a namorada, residente em ... e com qual mantém um relacionamento descrito de gratificante, desde há cerca de 3 anos, sendo a relação bem acolhido pelos respetivos familiares.
Trabalha há 3 anos no Serviço do Centro Hospitalar ... (...), no setor de recolha de resíduos; tem bom relacionamento com pares no ambiente laboral e um vencimento situado em 800 euros mensais.
As principais despesas enunciadas pelo arguido são variáveis e relacionadas com alimentação, vestuário e apoio a despesas do agregado, descrevendo deter na atualidade um nível de vida satisfatório e organizado.
Nos tempos livres pratica ginásio e manutenção e mantem relações de convívio espontâneo com os do seu meio de origem, com a família e com a namorada.
O atual contacto com a justiça é referido como tendo suscitado forte desconforto.
Com o surgimento deste processo o arguido viria a deixar definitivamente em 2019 o trabalho de Segurança e também a não renovar as autorizações para o exercício profissional.
A existência do presente processo não teve impacto na sua integração social.
Face aos factos que deram origem ao presente processo, o arguido revela ter capacidade crítica sobre comportamentos de idêntica natureza aos que está indiciado.
O arguido tem 37 anos, beneficiou de um ambiente familiar organizado, com um enquadramento protetor e normativo dos pais ao longo da sua vida.
Tem tido um trajeto ocupacional, ajustado às suas expetativas, revelando capacidade de adaptação a novas situações de trabalho, mudanças de funções e ambiente laboral.
Socialmente descrito como trabalhador e inserida socialmente no seu meio de origem.
A situação jurídica, de que está indiciada o arguido é descrita como tendo criado constrangimentos pessoais, mudanças na sua vida, independentemente do desenlace que vier a ter.
No caso de ser condenado nos presentes autos, parece-nos que o arguido BB tem condições pessoais para atingir as finalidades da punição, num enquadramento de medida alternativa de execução da comunidade.
**
(…)

27[2]. O arguido BB, foi condenado, em 2017, na pena de 80 dias de multa pelo cometimento de um crime de desobediência p.p. pelo artº 348º, nº 1, al. b) do c. penal cometido em 2016/11/13.
28[3]. O arguido AA é primário, foi descrito como pessoa tranquila, calmo e dedicado à família.
29[4]. O Centro Hospitalar ... despendeu o montante de € 222,41 em virtude da assistência médica prestada ao ofendido CC, como consequência das supra descritas agressões».

(…)
            3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS
(…)
3.3. SOBRE O DIREITO

3.3.1. DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
Entende o arguido BB, no recurso nº 2, que não pode ele comungar da culpa derivada do uso e porte de armas apenas assacado ao AA.
Acontece que a especial censurabilidade que liga o artigo 132º/2 h) ao artigo 145º/1 a) e 2, ambos do CP, deriva do uso da soqueira pelo AA, do conhecimento do BB, e não da arma de foto disparada pelo primeiro.
No que tange à matéria da qualificação, tem sido entendido de modo pacífico pela Jurisprudência e Doutrina, que a nossa legislação penal, em matéria de qualificação ou agravação do crime de homicídio (ou de outro qualquer que remeta para o artigo 132º, como é o caso do nosso artigo 145º), acolheu a teoria dos exemplos padrão, ou seja, enuncia uma série de circunstâncias que normalmente são indiciadoras da existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do homicida, que não funcionam automaticamente (cfr. Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, 1990).
Tem-se, de facto, entendido que a norma do artigo 132º consagra a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a chamada técnica dos “exemplos-padrão”, contidos no nº 2 do seu corpo.    
            Por conseguinte, a qualificação do crime de homicídio – ou de outro - não resulta de forma automática ou inexorável da verificação de uma ou várias das circunstâncias enumeradas no art. 132º/ 2 CP, sendo necessário que as mesmas revelem especial censurabilidade ou perversidade.
            O crime de homicídio qualificado mais não é, portanto, do que uma forma agravada do homicídio simples, encontrando-se o plus dessa mesma agravação na “especial censurabilidade ou perversidade” do agente.
            Como explica Figueiredo Dias, a «(…) a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrita com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no nº 1, verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no nº 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integram o tipo de culpa qualificador. Deste modo, devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º/nº 2» (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, página. 26).    
            E continuemos com o insigne Professor de Coimbra:
«Muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º/nº 2, em si mesmos tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado. Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada» (mesma obra, p. 27), sendo mister da lei «(…) a de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (mesma obra, p. 29).
Citando Teresa Serra, existe especial censurabilidade quando «as circunstâncias em que a morte é causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinada atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indícios de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade» (ob. citada, pág. 63).
As circunstâncias descritas no artigo 132º do CP95 não são de funcionamento automático, pelo que só podem ser compreendidas como elementos da culpa exigindo-se, por isso, que, no caso concreto, elas exprimam uma especial perversidade ou censurabilidade do agente[5].
A especial censurabilidade ou perversidade tem de ser demonstrado na situação em concreto, através de uma análise das circunstâncias do caso (cfr. «Actas, Parte Especial», 1979, págs. 21 e 22; Acórdão do STJ datado de 12/07/89, BMJ nº 389, pág. 310) - a agravação da culpa tem a ver com «a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples» (cfr. Figueiredo Dias, Col. Jur., Ano XII, tomo 4º, pág. 52).
Como tal, o desvalor ético-jurídico traduzido na culpa é capaz, por isso, de fundamentar, exclusivamente por si, uma censura.
É aqui chamado à colação (por emissão expressa do artigo 145º/2 do CP) o nº 2 do artigo 132º do CP que dita:
«2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente:
(...)
h)- Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum[6];
(…)».
Já sabemos que não vamos mexer na matéria de facto dada como provada pois inexistem os vícios do artigo 410º/2 do CPP e não houve, quanto a nós, qualquer erro de julgamento.
Apenas perguntaremos:
· Houve uma utilização de um meio particularmente perigoso?
A defesa entende que não.
O tribunal entendeu que sim.
Foi usada uma soqueira[7].
Isso resulta com evidência dos factos provados nºs 3 e 7 (aliados aos factos nºs 19 e 22, relativamente ao dolo de ofensa).
As defesas querem a desqualificação do crime e a absolvição por não haver queixa pelo crime simples.
Quanto a esta última parte, convém dizer que o CC, ao contrário do que se aduz em recurso, faz, de facto, queixa contra o AA no seu auto de inquirição na PJ, a 8/11/2019 (veja-se o penúltimo parágrafo desse auto de declarações).
E também sabemos que, embora a queixa não tenha sido feita expressamente contra o co-arguido BB, a verdade é que teremos de aplicar a norma do artigo 114º do CP já que estamos perante uma situação de co-autoria («a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes»).
No âmbito do crime de ofensa à integridade física qualificada, a circunstância qualificativa em causa, como as demais elencadas no nº 2 do artigo 132º do CP, terá de ser apreciada em função do bem jurídico tutelado pelo tipo de crime em causa (integridade física) e não do bem jurídico tutelado pelos artigos 131º e 132º.
Assim, a utilização de um meio particularmente perigoso terá de ser apreciada e correlacionada com o acto ofensivo ou lesivo da integridade física e não com o acto ofensivo ou lesivo da vida.
De facto, um meio particularmente perigoso para a vida também não pode deixar de o ser para a integridade física. Todavia, um meio dessa natureza para a integridade física, apto a provocar lesões no corpo ou na saúde de alguém, pode não o ser para a vida.
No caso de uma soqueira, a natureza do crime de ofensas à integridade física (simples ou qualificado) dependerá das concretas circunstâncias em que a ofensa ocorreu.
Além disso, é fundamental o recurso ao nº 2 do artigo 132º (aqui invocado por força do artigo 145º/2) para determinar a punição por homicídio qualificado, sendo nessa norma que se encontram as linhas orientadoras para o preenchimento da cláusula geral de qualificação.
Por outras palavras, o nº 2 desempenha uma função de correcção do nº 1, fornecendo ao juiz o critério de interpretação e determinação da concreta culpa especialmente agravada do agente.
Assim, deve rejeitar-se em absoluto o homicídio qualificado atípico, isto é, o homicídio qualificado com recurso directo à cláusula geral de agravação do nº 1 sem passar pelo crivo do nº 2.
No entanto, já não haverá qualquer desconformidade com o princípio da legalidade se se fizer uma interpretação da expressão “entre outras” que imponha ao juiz-aplicador uma vinculação à lei e que mantenha o caráter de exemplos-padrão das várias alíneas do nº 2 do artigo 132º do CP.
Parece-nos, assim, que uma correcta interpretação da expressão “entre outras” será aquela proposta por AUGUSTO SILVA DIAS, segundo a qual o juiz poderá integrar no nº 2 as situações que, sem estarem expressamente previstas na letra da lei, correspondem à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de um exemplo-padrão nela já previsto.
No fundo, o que se diz é que, para que um caso concreto, não expressamente previsto na letra da lei, possa originar fundamentadamente um homicídio qualificado, tem de corresponder à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de um exemplo-padrão típico do nº 2 do artigo 132º do CP (cfr. José Neves da Costa, tese de Mestrado 2013/2014 – FDUL –“DIREITO PENAL E CULTURA: DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL NOS HOMICÍDIOS POR MOTIVO DE HONRA”, consultado na internet).
Ou seja:
Inexistindo uma recondução directa da conduta delinquente a qualquer dos exemplos-padrão aludidos no nº 2 do artº 132º do CP, mas estando presente a identificação de uma ideia condutora agravante que conduz ao reconhecimento judicial de uma situação reconduzível a uma estrutura valorativa comparável àquele que subjaz ao exemplo padrão constante da alínea b) do n.º 2 do art.º 132º do CP, este juízo interpretativo conforma-se com a jurisprudência constitucional.
Igual interpretação se deve fazer nos casos de ofensas agravadas.
Quanto à utilização de meio particularmente perigoso [o único segmento da alínea h) passível aqui de ser aplicada], ela manifesta-se na circunstância de o agente “servir-se para matar[8] de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de uma crime de perigo comum), criem ou sejam suscetíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes”.
Esse instrumento, processo ou método terá contudo de ser particularmente perigoso, ou seja, revelar “uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar ou para ferir”.
Meio particularmente perigoso seria aquele que, tendo uma aptidão particular para causar a morte ou uma lesão para a saúde, dificulte consideravelmente a defesa da vítima.
Mas, tal característica não pode ver-se em abstracto, mas em concreto, nomeadamente, qual o formato e características do objecto e como o mesmo é usado pelo agente.
Para se afirmar a existência de especial censurabilidade ou perversidade no comportamento do agente, impõe-se a análise das circunstâncias concretas que rodearam a prática do facto e a conclusão de que elas são tais que exprimem inequívoca e concretamente uma especial perversidade do agente ou que são merecedoras de um severo juízo de censura.
Poder-se-á dizer que uma soqueira em si, abstractamente falando, não representa um plus quanto a perigosidade para o lesado.
Mas temos para nós que a utilização sorrateira de uma soqueira para produzir uma ofensa à integridade física significa o uso de um instrumento que, pelas suas específicas características, dificulta de forma muito relevante a capacidade de defesa da vítima e é susceptível de criar perigo para a sua saúde, ou seja, significa a utilização de meio particularmente perigoso na prática da ofensa.
É pois da natureza deste utensílio que resulta a especial censurabilidade do agente e daí que esteja, a nosso ver, verificada a circunstância prevista na alínea h) do nº 2 do artigo 132º do CP (o aresto recorrido alude ao acórdão da RL de 13/12/2017, exarado no Pº 205/13.4PGPDL.L1-3 que, no caso, considera que um taco de basebol não é um meio particularmente perigoso – foi infeliz de facto a alusão jurisprudencial, podendo defender-se, contudo, que essa alusão apenas foi feita para acentuar a referência naquele acórdão à classificação de meio particularmente como aquele que é apto a causar ferimentos graves ou a morte).
Veja-se em exemplos paralelos, o Acórdão da Relação de Coimbra, datado de 9/3/2016 (Pº 31/13.0GBLMG.C1) e o Acórdão da mesma Relação, datado de 11/2/2015 (Pº 711/11.5JACBR.C1).
Portanto, o uso de uma soqueira, nas circunstâncias do nosso caso (na entrada de uma Discoteca, onde acorrem um sem número indeterminado de pessoas, tratando-se de um objecto que não é de uso corrente, sendo potencialmente contundente e letal, se dirigido à cabeça ou a órgãos vitais), revela, efectivamente, uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para ofender a integridade física – normalmente as mãos ou os pés, a luta corporal ou o uso de objecto de uso corrente e não letais, que se encontrassem no local da acção (cfr. neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.02.2007, proc. 0641773, in www.dgsi.pt.).
É aqui relevante o modo como foi utilizada a soqueira e a zona corporal da vítima sobre a qual incidiu a agressão, pois não será a mesma coisa atingir com a soqueira o abdómen ou visar directamente a cabeça do agredido, com capacidade potencial para provocar traumatismo ou ferimentos graves.
Mesmo não tendo havido lesões graves deste uso desenfreado da soqueira por duas vezes e em dois momentos, não retira a possibilidade da qualificativa da alínea h).
Fala-se em meio e não em dano efectivo.
A cabeça do CC foi atingida[9] (não terão sido provocados danos mais graves face à própria defesa dele) – cfr. relatório de exame médico que refere que o CC sofreu danos na face, com fractura parcial do bordo incisal do dente 11 (incisivo central superior direito), dois vestígios cicatriciais rosados na hemiface direita, um submalar, com 1cmx0,3cm e outro na face pilosa do hemilábio superior com 1cmx0,5cm.
E também o tórax, o membro superior direito e o membro superior esquerdo.
Tudo num contexto nocturno em que a vítima é surpreendida por dois vigilantes que decidem agredi-lo à força, não se tendo eles limitado a agarrá-lo a fim de controlar a sua exaltação.
E aí reside, a nosso ver, a especial censurabilidade e perversidade deste dois homens que, perante um homem indefeso e até embriagado, à vista de tanta gente, decidem agredi-lo desta forma bárbara (dois agressores, nitidamente em número superior à figura isolada do ofendido, até embriagado), usando um meio que, não sendo insidioso para os termos da alínea i) do nº 2 do artigo 132º do CP (o STJ tem entendido que a utilização de «meio insidioso» refere-se a meio cuja forma de actuação sobre a vítima torne difícil a sua defesa por assumir características análogas à do veneno, na perspectiva de possuir um carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto, permitindo ao agressor tirar vantagem dessa situação de vulnerabilidade), se torna particularmente perigoso para os termos da alínea h).
E convém ainda dizer que a forma como a soqueira surge inopinadamente nas mãos do AA é subtil, rápida e traiçoeira, aí residindo também a especial censurabilidade desta sua conduta, tornando a defesa da vítima muito mais difícil.
Censurabilidade esse que também pelo facto sintomático de as primeiras agressões se terem desenrolado num canto da entrada da discoteca, bem sabendo os arguidos, não o ignoramos, que qualquer imagem de vigilância não captaria da melhor forma esse momento (e quem vê essas imagens testemunha a veemência da violência usada contra um ser humano).
E não se deixará de dizer que estamos tão próximos do motivo fútil ou torpe.[10]
Que dizer da actuação de dois vigilantes de um estabelecimento de diversão nocturna que decidem agredir um «cliente» só pelo facto de ele forçar a entrada na mesma?
Não será fútil esta motivo da agressão? (o motivo notavelmente desproporcionado ou inadequado, do ponto de vista do homem médio, em relação ao crime de que se trata – caracteriza-se por uma enorme desproporção entre a causa moral da conduta e o resultado morte ou lesão da saúde).
Mas basta-nos a qualificativa da alínea h) do nº 2 do artigo 132º do CP (ex vi do artigo 145º, nº 2 do mesmo diploma).
Por isso, bem andou o tribunal ao qualificar esta ofensa, validando-se, assim, a qualificação jurídico-criminal dos factos nºs 3, 7, 19 e 22.

3.3.2. E há co-autoria nesse delito entre o AA e o BB?
Claro que sim, pelas razões exaradas na sentença recorrida que comungamos.
O tribunal não considerou temerária esta conclusão da co-autoria pois os arguidos, em conjunto, nunca perderam o domínio do facto, embora cada tivesse desempenhado missões diversas nesta agressão a CC.
Abordemos a figura da CO-AUTORIA.
A co-autoria (artigo 26º do CP) pressupõe um elemento subjectivo – o acordo, com o sentido de decisão, expressa ou tácita, para a realização de determinada acção típica, e um elemento objectivo, que constitui a realização conjunta do facto, ou seja, um tomar parte directa na execução.
A execução conjunta, neste sentido, não exige, todavia, que todos os agentes intervenham em todos os actos, mais ou menos complexos, organizados ou planeados, que se destinem a produzir o resultado típico pretendido, bastando que a actuação de cada um dos agentes seja elemento componente do conjunto da acção, mas indispensável à produção da finalidade e do resultado a que o acordo se destina.
O autor deve ter o domínio funcional do facto, tendo o co-autor também, do mesmo modo, que deter o domínio funcional da actividade que realiza, integrante do conjunto da acção para a qual deu o seu acordo, e na execução de tal acordo se dispôs a levar a cabo.
O domínio funcional do facto próprio da autoria significa que a actividade, mesmo parcelar, do co-autor na realização do objectivo acordado se tem de revelar indispensável à realização da finalidade pretendida.
A teoria do domínio funcional do facto, fundada por Lobe e desenvolvida por Roxin, permite melhor fundamentar a essência da autoria e delimitar a autoria de outras formas de comparticipação.
A actuação que constitui autoria deve compreender-se em unidade de sentido objectivo-subjectivo, como obra de uma vontade directora do facto; para a autoria é decisiva não apenas a vontade directiva, mas também a importância material da intervenção no facto que um co-agente assume.
Por isso só pode ser autor quem, de acordo com o significado da sua contribuição objectiva, governa e dirige o curso do facto (cfr., Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, “Tratado de Derecho Penal – Parte General”, trad. da 5ª edição de 1996, p. 701-702).
O domínio do facto remete para princípios distintos, em paralelo com as possibilidades de divisão do trabalho – domínio do facto mediante a realização da acção executiva (domínio do facto formal, vinculado ao tipo); decisão sobre a realização do facto (domínio do facto material como domínio da decisão) e domínio do facto através da configuração do facto (domínio do facto material como domínio de configuração).
Quando intervêm vários agentes podem distribuir-se os vários elementos por partes: cada um deve tomar parte em algum dos três âmbitos de domínio, mesmo quando um configura e outros executam; na medida em que o titular do domínio do facto formal não está dominado por um autor mediato, também nele reside o domínio do facto.
A autoria tem de definir-se, ao menos, como domínio de um dos âmbitos de configuração, decisão ou execução do facto, não sendo relevante o domínio per se, mas apenas enquanto fundamenta uma plena responsabilidade pelo facto.
A distribuição em âmbitos de domínio diferentes no seu conteúdo não significa a reunião de elementos heterogéneos, mas antes homogéneos pelos actos de organização (cfr., Günter Jakobs,”Derecho Penal, Parte General. Fundamentos y Teoria de la Imputación”, 2ª ed., 1997, p. 741-742).
A co-autoria fundamenta-se, assim, também no domínio do facto; o domínio do facto deve ser, então, conjunto, devendo cada co-autor dominar o facto global em colaboração com outro ou outros. A co-autoria supõe sempre uma “divisão de trabalho” que torne possível o crime, o facilite ou diminua essencialmente o risco da acção.
Exige uma vinculação recíproca por meio de uma resolução conjunta, devendo cada co-autor assumir uma função parcial de carácter essencial que o faça aparecer como co-portador da responsabilidade para a execução em conjunto do facto. Por outro lado, a contribuição de cada co-autor deve revelar uma determinada medida e significado funcional, de modo que a realização por cada um do papel que lhe corresponde se apresente como uma peça essencial da realização do facto (cfr. Hans-Heinrich Jescheck, op, cit., p. 726).
De todo o modo, a colaboração e a importância que reveste deve poder determinar suficientemente o “se” e o “como” da execução do facto» (Acórdão do STJ de 7/11/2007, in www.dgsi.pt).
A outra forma de comparticipação – a cumplicidade – está definida no artigo 27º do CP: «é punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso».
Pressupõe, pois, um apoio doloso a outra pessoa no facto antijurídico doloso cometido por esta, não havendo na cumplicidade domínio material do facto, pois o cúmplice limita-se a favorecer a prática do facto.
A cumplicidade diferencia-se da co-autoria pela ausência do domínio do facto; o cúmplice limita-se a facilitar o facto principal, através de auxílio físico (material) ou psíquico (moral), situando-se esta prestação de auxílio em toda a contribuição que tenha possibilitado ou facilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor.
A linha divisória entre autores e cúmplices está em que a lei considera como autores os que realizam a acção típica, directa ou indirectamente, isto é, pessoalmente ou através de terceiros (dão-lhe causa), e como cúmplices aqueles que não realizando a acção típica nem lhe dando causa, ajudam os autores a praticá-la - cfr., Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, Parte Geral, Vol. II; ed. Verbo, p. l79.
A cumplicidade é uma forma de participação secundária na comparticipação criminosa, destinada a favorecer um facto alheio, portanto, de menor gravidade objectiva, mas embora sem ser determinante na vontade do autor e sem participação na execução do crime, traduz-se em auxílio à prática do crime e, nessa medida, contribui para a sua prática, configurando-se como uma concausa do crime – cfr. Germano Marques da Silva, ob. cit. págs. 283 a 291.
«O cúmplice pode participar no acordo e na fase da execução (embora não tenha necessariamente de assim suceder, ao contrário do que acontece com o co-autor) mas, contrariamente ao que se verifica com este – e nisso consiste a característica fundamental de diferenciação entre as duas formas de comparticipação – o cúmplice não tem o domínio funcional do facto ilícito típico; tem apenas o domínio positivo e negativo do seu próprio contributo, de forma que, se o omitir, nem por isso aquele facto deixa de poder ser executado. A sua intervenção, sendo, embora, concausa do concreto crime praticado, não é causal da existência da acção» (acórdão deste Supremo Tribunal de 21 de Novembro de 2001, proc. n.º 2758/01; cfr. também o acórdão de 31 de Março de 2004, proc. 136/04 e jurisprudência aí citada).
Em suma,
· a doutrina e a jurisprudência consideram como elementos da comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria os seguintes:
o a intervenção directa na fase de execução do crime (execução conjunta do facto);
o o acordo para a realização conjunta do facto, acordo que não pressupõe a participação de todos na elaboração do plano comum de execução do facto, que não tem de ser expresso, podendo manifestar-se através de qualquer comportamento concludente, e que não tem de ser prévio ao início da prestação do contributo do respectivo co-autor;
o o domínio funcional do facto, no sentido de “deter e exercer o domínio positivo do facto típico”, ou seja, o domínio da sua função, do seu contributo, na realização do tipo, de tal forma que, numa perspectiva ex ante, a omissão do seu contributo impediria a realização do facto típico na forma planeada.
· A co-autoria baseia-se no princípio do actuar em divisão de trabalho e na distribuição funcional dos papéis. Todo o colaborador é aqui, como parceiro dos mesmos direitos, co-titular da resolução comum para o facto e da realização comunitária do tipo, de forma que as contribuições individuais completam-se em um todo unitário e o resultado total deve ser imputado a todos os participantes».
· A cumplicidade[11] pressupõe um mero auxílio material ou moral à prática por outrem do facto doloso, por forma que ao cúmplice falta o domínio do facto típico como elemento indispensável da co-autoria.
· A cumplicidade pressupõe a existência de um facto praticado dolosamente por outro, estando subordinada ao princípio da acessoriedade, pois o cúmplice não toma parte no domínio funcional dos actos constitutivos do crime, isto é, tem conhecimento de que favorece a prática de um crime mas não toma parte nela, limita-se a facilitar o facto principal.
Ou seja (e recorrendo às doutas considerações escritas no texto do Acórdão desta Relação datado de 10 de Maio de 2023 – em que o relator foi aí adjunto - e proferido no Pº 472/21.0JALRA.C1):
«Na comparticipação criminosa, o crime resulta de uma ação coletiva (colaboração na execução de um crime).
A coautoria baseia-se no princípio da divisão de trabalho e distribuição funcional de papéis por acordo.
Na medida em que cada elemento do grupo participe na resolução comum para a realização do facto e na execução deste, de forma igual ou diferente, resulta que cada contribuição se funde num todo unitário e por isso o resultado alcançado é de todos e é, portanto, imputado a todos.
O elemento subjetivo é o acordo, expresso ou tácito, para a realização de determinada ação típica, e o elemento objetivo é a realização conjunta do facto, no sentido de tomar parte direta na sua execução, independentemente dos termos de cada participação individual.
Para se concluir pela realização conjunta do facto temos que encontrar a vontade comum na realização do ilícito - a autoria plural do crime resulta de haver uma pluralidade de pessoas que se uniram com vista àquele fim, concertando vontades em torno daquele objetivo.
Está adquirido que o acordo para a realização do facto ilícito não tem que ser prévio ao cometimento do crime e também não tem que ser expresso.
Esta concertação pode acontecer antes da execução do crime, bastante antes da execução do crime, até, de tal modo que poderá configurar um caso de premeditação, mas pode acontecer muito mais tarde e, em última análise, pode surgir aquando da execução do facto, quando um agente adira ao que o outro está a fazer, com consciência e vontade de colaboração.
Ou seja, pode ser contemporâneo com a execução do facto e pode ser tácito.
Daí que haverá acordo, que determinará a condenação conjunta, se, do desenrolar dos factos, resultar que todos os arguidos se uniram na produção do facto, praticado por um ou por alguns dos elementos do grupo.
Quanto à execução conjunta, também é pacífico que não é necessária a intervenção de todos os agentes em todos os atos tendentes à produção do resultado típico pretendido, bastando que a atuação de cada um seja elemento componente do conjunto da ação, mas indispensável à finalidade a que o acordo se destinava.
Nesta situação deixa, portanto, de ser indispensável apurar quem praticou o ato lesivo porque o crime será imputado a todos a título consumado e doloso.
A autoria criminosa assenta no domínio do facto.
É coautor quem tem o domínio funcional do facto.
O coautor tem o domínio do facto se tiver o domínio funcional da atividade que realiza, integrante do conjunto da ação para a qual deu o seu acordo e que, na execução de tal acordo, se dispôs a levar a cabo.
Resta dizer que, nas situações em que os arguidos não confessam ter agido em co-autoria, necessariamente que esta só se alcança através da apreciação da concreta dinâmica dos factos».
No caso em apreço, face à prova existente nos autos, a co-autoria foi ajuizada e correcta, assente que os dois arguidos contribuíram para a eclosão deste crime, nunca nenhum deles tendo perdido o real domínio do facto (assente ainda que para a imputação da qualificativa ao arguido BB não é necessário que tenha sido ele a empunhar a soqueira – ambos praticaram o crime, tendo ambos levado a cabo actos de execução sobre o CC de um mesmo crime que decidiram ambos – em acordo tácito - cometer em conjunto, incluindo com a utilização de uma soqueira que apenas um deles empunhava).
Posto que apenas um dos arguidos tenha usado a soqueira que potenciou os danos no corpo do CC, desde que o outro arguido – o BB - tenha praticado outros actos executórios no desenvolvimento de um processo criminoso resultante de acordo tácito entre todos, passa este a assumir igualmente a responsabilidade do evento e de todas as circunstâncias objectivas em que aquele teve lugar.

3.3.3. E há cometimento, pelo arguido AA, do crime de coacção agravada?
Neste caso, face à prova dos factos nºs 11, 21 e 22, não podemos dar razão ao tribunal, neste particular.
É verdade que o CC foi violentamente constrangido pelo AA a sair da Discoteca, apontando-lhe uma arma de fogo (facto nº 11).
Note-se, contudo, que também é dado como não provado que:
· Não se provou que o arguido AA (nas circunstancias de tempo e de lugar apuradas, e com o intuito de constranger o ofendido CC a abandonar definitivamente aquele espaço (o “B...”), fazendo-o temer pela vida) ao empunhar a arma de fogo na direção de CC, lhe tenha dito (a CC) que o matava.

Ou seja, para se lançar mão da agravação do artigo 155º/1 a) do CP – pela qual vinha pronunciado o arguido AA -, ter-se-ia de provar que existe um mal ameaçado punível com pena de prisão superior a 3 anos.
No nosso caso, não se deu como provado que o arguido tenha constrangido o CC a abandonar a discoteca pela expressa e audível ameaça de morte mas apenas usando uma arma na sua direcção (o acto de se empunhar uma arma de fogo na direcção do coagido não permite concluir que esta coacção foi realizada por meio de ameaça com prática de crime[12] punível com pena de prisão superior a 3 anos), o que apenas permite a agravação do crime de coacção pelo artigo 86º/3 da Lei nº 5/2006.
Note-se que para cairmos na agravação do artigo 155º, nº 1, teria de se dar como provado o elemento subjectivo do delito – que o arguido actuou com o propósito concretizado de constranger o CC a abandonar a discoteca, através de ameaças contra a sua vida, mediante uso de arma de fogo (era isso que constava do despacho de acusação e do despacho de pronúncia).
E não se deu.
Portanto, foi cometido pelo arguido AA o crime de coacção do artigo 154º, nº 1, somente agravado nos termos do artigo 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006 de 23/2[13].
Cai a 1ª agravação do artigo 155º/1 a), por conseguinte.

3.3.4. Resta o crime de detenção de arma proibida praticado pelo arguido AA (quer pela posse da soqueira que, embora não apreendida, funcionou na prática nesta agressão, disso não temos quaisquer dúvidas, quer pela posse da arma de fogo disparada).
O facto de não ter sido apreendida a arma de fogo e a própria soqueira em causa não invalida esta condenação.
É notória a intervenção desta soqueira e desta arma de fogo na mão do AA (e o tribunal explica suficientemente a razão de ciência para ter chegado a essa conclusão).
No local, foi efectuada uma recolha de eventuais vestígios de disparo de arma de fogo em torno do orifício.
E, no âmbito do presente inquérito, nos termos do artº 178º do CPP, com referência aos artigos 11º e 12º, nº 1, al. c), ambos da LOPJ (Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto), foram apreendidos os seguintes objectos:
1. «Um 'STUB', resultante da recolha, no teto falso do estabelecimento "B...", sito na Rua ..., em ..., de eventuais resíduos de disparo de arma de fogo, a ser investigados no âmbito do inquérito supramencionado, devidamente recolhido e acondicionado em envelope de papel devidamente identificado.
2. Um projectil de arma de fogo, recuperado após abertura do teto falso do estabelecimento de diversão noturna supramencionado, tratando-se de massa deformada em material tipo chumbo, que poderá constituir um elemento municial de calibre .22».
Portanto, na análise e exame ao local de crime, foram detectados eventuais resíduos de disparo de arma de fogo, em redor do orifício produzido no tecto falso, tendo sido enviados tais vestígios para análise laboratorial.
O relatório desse exame surge com data de 31.10.2019 dizendo:
«Na amostra recolhida junto da "... perfuração do teto falso" foram detectadas partículas características/consistentes com resíduos de disparo(s) de arma(s) de fogo”.
 Nos fotogramas das imagens gravadas é visível a existência de uma arma de fogo na mão do AA, assistindo-se ao seu inequívoco disparo.
E o tribunal valeu-se ainda do seguinte:
«Finalmente, ouvido e convocado ao abrigo do disposto no artigo 340º do Código de Processo Penal, o Perito em Balística e Inspetor da PJ, Mário Goulart, após visualização das imagens, fotogramas, informações e relatórios dos autos, de forma credível e segura – que nos mereceu especial credibilidade, em face da sua razão de ciência, experiencia e segurança no depoimento - referiu que a arma utilizada tinha um formato de um revolver (o que é uma arma de repetição); referiu que se tratou de um disparo de chumbo com uma arma de fogo, original ou transformada, provavelmente de 0, 22 polegadas – ou seja, 5,6 mm».
Assim sendo, e face à prova dos factos nºs 3, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 18 e 20, só podia ter sido condenado o arguido pelo crime em causa [previsto no artigo 86º nº 1, als. c) e d) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, por referência ao artigo 2º nº 1, als. ap) e aad) e artigo 3º, nº 2 al. e) e nº 3 al. a) do mesmo diploma legal].

3.3.5. Restam as penas.
Praticou, assim, cada um dos arguidos recorrentes os seguintes CRIMES:
1. O arguido AA,
· CRIME 1 - em (co)autoria material e concurso real, um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º 1, 145º 1 al. a) e 2 e 132º 2 al. h) todos do CP.
· CRIME 2 - em autoria material e concurso real, um crime de coacção agravada, previsto e punido nos artigos 154º, nº 1 do Código Penal e 86º, 3 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro;
· CRIME 3 - em autoria material e concurso real, um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no artigo 86º 1, als. c) e d) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, por referência ao artigo nº 1, als. ap) e aad) e artigo 3º, nº 2 al. e) e nº 3 al. a) do mesmo diploma legal.
2. O arguido BB
· CRIME 4 - em (co)autoria material, um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º 1, 145º 1 al. a) e 2 e 132º 2 al. h) todos do CP.
As penas foram estas:
· CRIME 1 - 10 (dez) meses de prisão;
· CRIME 2 - 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses [aqui o crime foi agravado também pelo artigo 155º/1 a) do CP];
· CRIME 3 - 2 (dois) anos de prisão;
· CÚMULO JURÍDICO DAS PENAS DOS CRIMES 1, 2 e 3 - 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução – com regime de prova - por 4 (quatro) anos;
· CRIME 4 - 7 (sete) meses de prisão suspensa na sua execução por 1 (um) ano
Entende o arguido AA no recurso nº 1 que a pena do crime de detenção de arma proibida nunca deveria ter ultrapassado 1 (um) ano de prisão e que a pena única aplicada foi excessiva, nunca devendo ultrapassar os 20 meses de prisão, sempre suspensa na sua execução.
Já o arguido BB entende que a pena nunca poderia ultrapassar os 3 meses de prisão, sempre suspensa.
Assim se justificou o tribunal recorrido neste particular:
«Afirmada que se encontra a imputação subjectiva dos ilícitos e a imputação objectiva dos mesmos, importa, neste momento, proceder à escolha e a determinação da pena.
O crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º nº 1, 145º nº 1 al. a) e nº 2 e 132º nº 2 al. h) todos do Código Penal, é punido com pena de prisão de 1 mês até 4 anos.
O crime de coação agravada, previsto nos artigos 154º nº 1, 155º nº 1, al. a) e 131º todos do Código Penal e artigo 86º nº 3 da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro é punido é punido com pena de prisão de 1 ano e 4 meses até 6 anos e 8 meses.
O crime de detenção de arma proibida, um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86º nº 1, als. c) e d) da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro, por referência ao artigo 2º, nº 1, als. ap) e aad) e artigo 3º , nº 2 al. e) e nº 3 al. a) do mesmo diploma legal é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.
No que diz respeito ao crime de ofensa à integridade física qualificada, não é aplicável, em alternativa, pena não privativa da liberdade, razão pela qual, não há lugar à escolha prevista no artº 70º do Código Penal, e se deve, logo de seguida, determinar a medida concreta da pena, recorrendo, para tanto, ao disposto nos artºs 40º, nºs 1 e 2, 71º, nºs 1 e 2 do Código Penal.
Dispõe o artigo 40º, do Código Penal que a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração social do agente (nº 1) e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2).
A função primordial da pena consiste na proteção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos. Por sua vez, a culpa – salvaguarda da dignidade humana do agente – não sendo fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir.
Se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro lado, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, parece evidente que – dentro da moldura legal – a moldura da pena aplicável ao caso concreto – “moldura de prevenção” – há-de ser definida entre o mínimo indispensável à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente. Entre estes limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.
Dito de outro modo, o fim do direito penal é o da proteção dos bens jurídico/penais e a pena é o meio de realização dessa tutela, havendo de estabelecer-se uma correlação entre a medida da pena, condicionada e limitada pela culpa do infrator, e a necessidade de prevenir a prática de futuros crimes, nela entrando as considerações de prevenção geral e especial.
Com este objetivo, estabelece o artº 71º, nº1 do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção balizadas pelas finalidades das penas.
Com a finalidade da prevenção geral positiva ou prevenção de integração do que se trata é de alcançar a tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto, no sentido da tutela da confiança das expectativas de todos os cidadãos na validade das normas jurídicas e no restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.
A pena tem, pois, de corresponder às expectativas da comunidade.
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração, devem ainda atuar as exigências de prevenção especial, sendo assim estas que vão determinar, em última instância, a medida da pena.
A medida da necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo do ponto de vista da prevenção especial, “isto significa que releva neste contexto qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza: seja a função positiva de socialização, seja qualquer uma das funções negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização” cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral – Tomo I, Coimbra Editora, 2007, pp. 81-82.
Em suma, pela prevenção geral positiva faz-se apelo à consciencialização geral da importância social do bem jurídico tutelado e pelo outro no restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efetiva tutela penal dos bens tutelados; pela prevenção especial pretende-se a ressocialização do delinquente (dimensão positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (dimensão negativa).
Tendo em conta estas considerações, o disposto no artº 40º, nº 2 do Código Penal, dispõe ainda que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
É consagrado neste artigo o princípio da culpa (cujas finalidades de prevenção especial atuam), no sentido que não há pena sem culpa e a medida da culpa é limite da medida da pena; assim, a pena funda-se na culpa do agente pela sua ação ou omissão, isto é, em um juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo.
No processo de determinação da medida concreta da pena, o nº 2 do artº 71º do Código Penal elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias agravantes e atenuantes a atender nessa determinação concreta, ou seja, todas as circunstâncias que depuseram a favor do agente ou contra ele.
Os critérios previstos no nº 2 do artº 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz os elementos necessários para a escolha concreta da medida da pena; tais elementos devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente [cfr. Ac. do STJ de 17 de Abril de 2008, proc. 08P571, relator Henriques Gaspar, disponível em www.dgsi.pt].
Na medida concreta das penas atender-se-ão a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.
Ora, neste âmbito, dever-se-á considerar-se no caso em análise:
a) Grau de ilicitude do facto: que é muito intenso, particularmente em relação aos crimes de coação, de detenção de arma proibida atento o local onde o arguido AA praticou os factos sendo que fez uso de uma arma de fogo dentro de um estabelecimento noturno que se encontrava em funcionamento;
b) Modo de execução e gravidade das consequências: reveste-se de gravidade elevada o modo de execução do crime de coação face ao meio utilizado – uso de arma de fogo e de reduzida gravidade e extensão das lesões físicas no ofendido;
c) Intensidade do dolo: os arguidos agiram com dolo direto, com uma intensidade que se afigura elevada;
d) Conduta anterior aos factos: o arguido AA não antecedentes criminais; era e é bem quisto pelos seus amigos e colegas de profissão; estava profissionalmente inserido; possuía familiar estável era e é descrito como sendo uma pessoa habitualmente tranquila, pacífica; o arguido BB tem apenas uma condenação por um crime de desobediência, deixou definitivamente em 2019 o trabalho de Segurança e não pretende renovar as autorizações para o exercício profissional; revela ter capacidade critica sobre comportamentos de idêntica natureza aos que está indiciado; tem 37 anos, beneficiou de um ambiente familiar organizado, com um enquadramento protetor e normativo dos pais ao longo da sua vida; é socialmente descrito como trabalhador e inserido socialmente no seu meio de origem.
e) Conduta posterior aos factos: sem registo de quaisquer incidentes; abandonaram ambos os arguidos as funções que exerciam e estão profissionalmente inseridos; sendo descritos como pessoas sociais e o arguido AA habitualmente tranquilo, pacífico.
No que tange às necessidades de prevenção geral as mesmas são elevadas em relação a todos os crimes, sendo de realçar o alarme social e insegurança que episódios desta natureza suscitam na comunidade, principalmente numa cidade de estudantes, sendo esse alarme mais intenso no contexto e ambiente noturno e de diversão de jovens, suscetível de gerar por isso um maior impacto e intranquilidade na comunidade, sendo, pois, premente que as penas aplicadas sejam suficientemente dissuasoras da prática, pelos demais indivíduos, de condutas similares.
De salientar que no que se refere à detenção da arma, este tipo de ilícito exige cada vez mais uma maior relevância e está, geralmente, associado a criminalidade violenta, pelo que, as necessidades de prevenção respeitantes a este crime são, a nosso ver, bastante acentuadas.
Já as necessidades de prevenção especial não são elevadas, quer face à ausência de antecedentes criminais dos arguidos (neste particular), quer perante os seus contextos e percursos de vida (normativos e estruturados), quer ainda à luz dos respetivos enquadramentos familiares, sociais e pessoais.
Assim, sopesando as descritas circunstâncias, reputa-se como justa, adequada e proporcional, a condenação do arguido AA, nos seguintes termos:
· co-autoria de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º nº 1, 145º nº 1 al. a) e nº 2 e 132º nº 2 al. h) todos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
· autoria de um crime de coação agravada, previsto nos artigos 154º nº 1, 155º nº 1, al. a) e 131º todos do Código Penal e artigo 86º nº 3 da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro; na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses anos de prisão;
· autoria de um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86º nº 1, als. c) e d) da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro, por referência ao artigo 2º, nº 1, als. ap) e aad) e artigo 3º , nº 2 al. e) e nº 3 al. a) do mesmo diploma legal. na pena de 2 (dois) anos de prisão;
Sopesando as descritas circunstâncias, reputa-se como justa, adequada e proporcional, a condenação do arguido BB nos seguintes termos:
· pela co-autoria do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º nº 1, 145º nº 1 al. a) e nº 2 e 132º nº 2, al. h) todos do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão.
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Cúmulo Jurídico
Segundo as disposições conjugadas dos nº1 e 2 do referido artigo 77º do Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única, que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Como assim, em cúmulo jurídico de penas, ponderados todos os factos apurados e a personalidade do arguido dentro da elasticidade da moldura abstrata do cúmulo, considera-se justo e adequado punir a conduta do arguido AA com a pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
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Das Penas de Substituição
Sempre que o tribunal opte pela aplicação de uma pena de prisão inferior a cinco anos terá que aferir da possibilidade de substituição ou de suspensão da execução da pena (artigo 50º do Código Penal).
A ideia de politica criminal que fundamenta as penas de substituição e bem assim, a suspensão da execução da pena de prisão, é a de que no domínio da pequena criminalidade, a que correspondem penas curtas de prisão, o cumprimento de penas não privativas da liberdade (v.g. trabalho comunitário) ou semi detentivas (v.g. prisão por dias livres) ou ainda a simples ameaça de prisão poderá, em muitos casos, bastar para cumprimento cabal das finalidades de punição.
Aqui chegados, dúvidas não temos que as penas de prisão aplicadas podem e devem ser suspensas na sua execução, nos termos dos artigos 50º, do Código Penal, posto que atenta a personalidade dos arguidos descrita nos relatórios e a ausência de antecedentes criminais do arguido AA e do arguido BB (neste tipo de crime), a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da prevenção.
Ponderados todos estes elementos e tendo presente a elasticidade da moldura penal aplicável ao caso concreto, o tribunal julga adequado suspender a pena ao arguido BB pelo mínimo legal (1) ano e suspender a pena aplicado ao arguido AA, a pena única de três (3) anos e seis (6) meses de prisão, pelo período de 4 anos, sujeita a um regime de prova: artigo 50º, nº4 do Código Penal».
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Vejamos.
O artigo 71º, nº 1 do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra ele.
            Na determinação da medida concreta da pena, dispõe o artigo 71º, nº 1 do CP que ela é feita, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente de entre as que constam do elenco do nº 2, da mesma norma legal.
A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.
Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.
A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, mas antes de uma discricionariedade juridicamente vinculada.
O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do DIREITO e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, “mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, actos cognitivos e puras valorações” (SIMAS SANTOS).
Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena.
            Sublinhe-se que estes constituem os princípios regulativos que deverão estar subjacentes à determinação de qualquer pena, funcionando a culpa como fundamento da punição em obediência ao princípio “nulla poena sine culpa” e limite máximo inultrapassável da pena, atendendo à dignidade da pessoa humana.
A prevenção, na sua vertente positiva ou de integração, mostra-se ligada às necessidades comunitárias da punição do caso concreto, e irá fixar os limites dentro dos quais a prevenção especial de socialização irá determinar, em última instância, a medida concreta da pena.
Na verdade, só se justificará a aplicação de uma pena se ela for necessária e na exacta medida da sua necessidade, ainda que sempre subordinada a uma incondicionável proibição de excesso, conquanto, ainda que necessária, a pena que ultrapasse o juízo de censura que o agente mereça é injusta e dessa forma inadmissível.
            Ora, aqui chegados, e com este pano de fundo, há que considerar que as penas aplicadas aos arguidos não foram excessivas.
            São, na realidade, prementes as exigências de prevenção geral.
Assim, em concreto, atender-se-á:
· à culpa, sendo certo que os arguidos actuaram com dolo directo, dando um especial envolvimento à sua actuação, desculpabilizante e nunca arrependida, preferindo arranjar desculpas infundamentadas e inverosímeis;
· às exigências de prevenção geral, as quais se nos afiguram particularmente acentuadas dada a frequência deste tipo de crime e alarme que provoca na comunidade, uma vez que abala o princípio geral de confiança na tranquilidade nocturna dos estabelecimentos de diversão, por onde passam centenas e milhares de jovens, impondo assim fortes necessidades de prevenção geral intimidatória;
· às exigências de prevenção especial, as quais revertem a seu favor, na medida em que à data dos factos aqui narrados, apenas o arguido BB tinha um antecedente criminal – de notar ainda a circunstância de ambos terem abandonado esta profissão de vigilantes, sendo considerado pela comunidade em geral como cidadãos cordatos (factos 25 e 28).
Assim sendo, devemos partir das seguintes molduras penais abstractas:
· 1º CRIME (do arguido AA) – 1 mês a 4 anos de prisão
· 2º CRIME (do arguido AA) – 40 dias a 4 anos de prisão OU multa (atenta a nova incriminação desagravada)
· 3º CRIME (do arguido AA) – 1 a 5 anos de prisão OU multa até 600 dias
· 4º CRIME (do arguido BB) - 1 mês a 4 anos de prisão.
Uma palavra sobre a moldura penal abstracta do crime nº 3 [note-se que o tribunal recorrido parte da moldura penal abstracta do artigo 86º, nº 1, alínea d) e não da moldura da alínea c)].
Entendemos, na linha dos acórdãos da Relação de Coimbra de 22/1/2014 (Pº 82/13.5GCFVN.C1) e da Relação de Évora de 8/11/2011 (Pº 92/10.4GAENT.E1) que:
- «o detentor de duas armas, na mesma ocasião, se bem que de categorias diferentes e previstas em distintas alíneas do nº1 do art. 86º do R.G.A.M., deverá ser punido apenas por um crime - o mais grave - não se descortinando do conjunto dos factos dois sentidos materiais ou sociais de ilicitude autónomos entre si»;
- «Tendo em conta que o bem jurídico protegido é, de facto, o mesmo, em ambas as alíneas, divergindo apenas a categoria ou natureza da arma em causa, que não se descortina uma pluralidade de resoluções criminosas e que os factos incriminadores ocorrem no mesmo contexto espácio-temporal, podemos deixar de concordar com a pretensão do recorrente de que existe apenas um crime, punível, no caso, segundo a moldura penal mais grave, da alínea c) – cfr. Figueiredo Dias, obra atrás citada, pag. 1037».
Assim sendo, e embora partamos de moldura penal abstracta diversa quanto ao crime nº 3, cremos que as penas aplicadas pelos crimes nºs 1, 3 e 4 são adequadas e nada exageradas, sendo correcta a implícita opção pela prisão em detrimento da multa, no que tange ao crime de detenção de arma proibida (o tribunal acentua que as necessidades, neste particular, a nível da prevenção geral, são bastante acentuadas).
Já quanto à pena do 2º crime, afastamos a pena de multa ao abrigo do artigo 70º do CP, por considerarmos que a mera pena pecuniária não satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidade da punição, aplicando-se uma pena de 1 (um) ano e 6 (meses) de prisão, aludindo aos mesmos critérios do artigo 71º do CP expostos na decisão recorrida.
Aqui chegados, haverá apenas que determinar a concreta medida da pena de cúmulo, considerando-se, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77º/1 do CP).
O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com «a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente».
A decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado.
Tal decisão não pode, designadamente, deixar de se pronunciar sobre se a natureza e a gravidade dos factos reflecte a personalidade do respectivo autor ou a influenciou, «para que se possa obter uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, ou revela pluriocasionalidade (…), bem como ainda a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».
Artur Rodrigues da Costa dissertou brilhantemente sobre esta operação nos seguintes termos (artigo «O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ», que serviu de base a uma exposição oral no âmbito de uma acção de formação do CEJ que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto em 4 de Março de 2011):
«A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, constante do art. 77º, nº 1 do CP: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido.
À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.
Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da actuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO em anotação ao acórdão do STJ de 12/07/058. Ou, como diz FIGUEIREDO DIAS: «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique».
Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização».
Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita.
E tem de ter uma fundamentação específica na qual se espelhem as razões por que, em atenção aos referidos factores (em particular a propensão ou não do agente para a prática de crimes ou de determinado tipo de crimes), se aplicou uma determinada pena conjunta.
Normalmente, como veremos infra, as decisões das instâncias, principalmente da 1.ª instância, são deficientemente fundamentadas quando se trata da pena única, sobretudo porque se limitam a reproduzir o texto legal, sem fazerem uma avaliação concreta dos específicos factores a que a lei manda atender, o que tem dado origem a numerosas anulações dessas decisões por parte do STJ.
(…)
Na determinação da medida concreta da pena conjunta dentro da moldura penal abstracta, os critérios gerais de fixação da pena, segundo os parâmetros indicados – culpa e prevenção – contidos no art. 71º do CP, servem apenas de guia para essa operação de fixação da pena conjunta, pois os mesmos não podem ser valorados novamente sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais factores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes.
(…)
Como se vê de todo o exposto, o nosso sistema caracteriza-se por ser um sistema de pena única ou conjunta, e não de pena unitária.
Por duas razões fundamentais:
· É um sistema que não prescinde da determinação da medida concreta das penas parcelares, sendo a partir delas que se constrói a moldura penal do concurso;
· A medida da pena do concurso no caso concreto é determinada dentro da moldura penal abstracta, entre um mínimo e um máximo, com a mesma liberdade com que se determina a unicidade de pena – culpa e prevenção, relacionadas com a gravidade do ilícito global em conjugação com a personalidade unitária revelada pelo agente, e não por adição das penas parcelares (ou de uma dada porção ou fracção delas), só sendo de agravar a pena no caso de se concluir pela radicação da multiplicidade delituosa na personalidade daquele, em termos de constituir uma tendência ou carreira criminosa.
Nisto se distingue do modelo de pena unitária, caracterizado por:
· Não relevância da autonomia dos crimes concorrentes
· A moldura do concurso não passa pela determinação das penas singulares.
· Tudo se passa como se fosse um crime único, referido a um determinado agente, pois o que interessa é a personalidade deste (direito penal do agente).
Sendo um sistema de pena conjunta ou pena única, não se confunde, todavia, com um princípio de absorção, em que a pena do concurso corresponde à pena concretamente determinada do crime mais grave; nem com o princípio da exasperação ou agravação em que a pena do concurso é determinada em função da moldura penal prevista para o crime mais grave, mas agravada em função da pluralidade de crimes, sem poder ultrapassar o somatório das penas concretamente aplicadas
Apenas há a notar que a moldura penal abstracta apoia o limite mínimo na pena parcelar mais alta, o que apresenta alguma analogia, só neste aspecto, com o princípio da absorção e que o limite máximo é constituído pelo somatório de toda as penas (com o limite absoluto de 25 anos de prisão), o que também se relaciona de alguma forma com o princípio da exasperação ou agravação e até com o da cumulação material, mas também só para o efeito de determinar o limite máximo da moldura penal abstracta.
De resto, nada impede que, num dado caso concreto, a pena aplicada seja correspondente ao mínimo da moldura penal abstracta, ou seja, o equivalente à pena parcelar mais alta, tal como sucede com a determinação da medida da pena no caso de unicidade de crime».
Por isso, e atenta a nova moldura penal abstracta do cúmulo da pena de prisão (LIMITE MÍNIMO: 2 anos; LIMITE MÁXIMO: 4 anos e 4 meses – cfr. artigo 77º/2 do CP, atenta a não agravação do crime de coacção pelo artigo 155º do CP), aplicamos ao arguido AA a pena de prisão em cúmulo de 3 (três) anos, mantendo-se a suspensão da execução de ambas as penas de prisão, aliás, não directamente contestadas em recurso (uma com regime de prova, outra sem regime de prova, e com a duração fixada na 1ª instância).
Assim aproveitem eles este momento na sua vida para, enfim, se redimirem e expiarem dignamente o seu supremo erro.

3.4. Quanto às inconstitucionalidades deduzidas nos dois recursos diremos apenas:
Como é consabido, não há decisões inconstitucionais (cfr., v.g, Acórdãos do Tribunal Constitucional de 24 de Abril de 1994 - Rec. 164/91 - de 5 de Fevereiro de 1991 - BMJ 404-486 - Recursos 128/84 - BMJ 358-236 e 90/85 BMJ 360-376 e ainda Drs. Pereira Coutinho, J. Meirim, M. Torres e L. Antunes "Constituição da República Portuguesa" 425).
Na realidade, apenas as normas podem ser objecto de controlo constitucional e não as decisões judiciais enquanto tais.
A este respeito, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Fundamentos da Constituição, 1991, p. 258): “pode-se atacar uma decisão judicial – recorrendo dela para o TC – se ela aplicou uma norma arguida de inconstitucionalidade ou se deixou de aplicar uma norma por motivo de inconstitucionalidade. Mas não se pode impugnar junto do TC uma decisão judicial, por ela mesma ofender por qualquer motivo a Constituição.” (Cfr. também os Acórdãos n.ºs 595/97, 338/98, 520/99 e 232/2002, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, entendemos nós que os recorrentes, em vez de indicar, de modo claro e perceptível, a exacta dimensão normativa dos preceitos que entendem não dever ser aplicada por ser incompatível com a Constituição, mais não fazem do que colocar em causa a apreciação da prova levada a cabo, ou seja, ao invés de se referir a uma desconformidade constitucional face a uma interpretação de determinado artigo, devidamente enunciada, situam-se, antes, ao nível de suscitar a inconstitucionalidade da decisão em si.
Assim sendo, não se encontram preenchidos os requisitos para considerar existente qualquer vício de inconstitucionalidade.
Nem sequer se mostram fundamentadas e, assim, inteligíveis as violações da Lei Fundamental genericamente invocadas, que seguramente inexistem.

3.5. Procede, assim, parcialmente o recurso nº 1, improcedendo o nº 2, sem prejuízo da correcção da sentença recorrida que se irá fazer, ao abrigo do artigo 380º, nº 1, alínea b) e nº 2 do CPP.

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: 
(…)
 
· III.2 - julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, condenamos o mesmo arguido pelos seguintes crimes e nas seguintes penas:
o CRIME 1 - em (co)autoria material e concurso real, um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º 1, 145º 1 al. a) e 2 e 132º 2 al. h) todos do CP, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
o CRIME 2 - em autoria material e concurso real, um crime de coacção agravada, previsto e punido nos artigos 154º, nº 1 do Código Penal e 86º, 3 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
o CRIME 3 - em autoria material e concurso real, um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no artigo 86º 1, als. c) e d) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, por referência ao artigo nº 1, als. ap) e aad) e artigo 3º, nº 2 al. e) e nº 3 al. a) do mesmo diploma legal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
o Em cúmulo jurídico, condena-se o arguido AA na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por 4 (quatro) anos, sujeita a regime de prova: artigo 50º do Código Penal.

· III.3 - julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido BB, mantendo na íntegra a CONDENAÇÃO da 1ª instância quanto a ele.

Custas do 2º recurso pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].
Sem tributação o 1º recurso, atento o seu parcial provimento.


Coimbra, _____________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

Relator: Paulo Guerra
Adjunto: Alcina da Costa Ribeiro
Adjunto: Cristina Pêgo Branco


[1] Note-se que a alusão ao vício do nº 2, alínea a) do artigo 410º, arguido na motivação, não é transportado, como deveria, para as Conclusões.
[2] Leia-se «26».
[3] Leia-se «27».
[4] Leia-se «28».

[5] Em suma, e recorrendo às palavras de AUGUSTO SILVA DIAS, esta é uma técnica de “não só, nem sempre”. Não só os exemplos previstos no nº 2 qualificam o homicídio e nem sempre a verificação de algum dos exemplos qualifica o homicídio…
[6] O meio que constitua um crime de perigo comum, a que se refere a alínea h) do artigo 132°, está relacionado com a definição dos crimes típicos de perigo comum como tal enunciados, previstos e classificados na sistemática do Código Penal: os crimes previstos nos artigos 272° a 286° especialmente, o incêndio, a explosão, e outras condutas especialmente perigosas, ou danos em instalações.
Contudo, para efeitos deste segmento, integram-se em tal conceito não apenas os crimes de perigo comum constantes dos artigos 272º a 286º do CP, mas também outros previstos fora do Código Penal, como por exemplo, o do artigo 86º, nº 1 da Lei n.º 5/2006 (RJAM), que substituiu o anterior artigo 275.º do CP (cfr. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Penal: À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 3.ª edição atualizada. Universidade Católica Editora. P. 515. ISBN 978-972-54-0489-8).
Aqui chegados, olhando para a soqueira (a arma chamada à colação no crime de ofensa), embora o seu porte configure um crime de perigo comum também, não terá o seu uso qualquer virtualidade de atingir terceiros indeterminados, sabendo nós a razão da agravação de crimes pelo facto de serem crimes de perigo comum – o facto de que a acção do agente cria perigo para um número indeterminado de pessoas.
[7] Embora não apreendida, não há dúvidas para este tribunal que foi usada esta soqueira – consta da Internet (Wikipédia) uma definição desta arma branca:
«O soco-inglês ou soqueira é uma arma branca utilizada em combates corpo-a-corpo, com quatro orifícios para se encaixar aos dedos como anéis. Ela permite causar danos e ferimentos mais graves à vítima atingida por um soco.
Foi criado na Inglaterra e costuma ser feito de latão, alumínio, aço, ferro ou bronze, mas também pode ser encontrado em chumbo, principalmente quando feita artesanalmente, devido ao fato de que este é um metal fácil de se modelar. Existem muitos modelos diferentes, estilizados com marcas famosas, símbolos, nomes de gangues, com pontas pontiagudas ou até amolados, causando cortes à vítima. Por isto, muitas pessoas os colecionam, e há uma grande variedade de preços que vão de acordo com o material utilizado, formato, tamanho, etc.
Sempre foi uma arma muito utilizada por criminosos e com o passar do tempo, se popularizou entre gangues, devido ao fato de poder causar graves ferimentos, e ainda assim ser compacto, versátil e relativamente simples de ocultar, só sendo localizado com uma revista mais detalhada. Esta popularização entre os gangues se deu no decorrer dos anos 70 e 80, e se tornou especialmente popular entre grupos como punks e skinheads a ponto de se tornar até símbolo relacionado a eles».

[8] Ou agredir, no nosso caso.
[9] Na TC-CE apenas não se identificaram lesões crânio-encefálicas traumáticas agudas (cfr. relatório forense existente nos autos)
[10] A jurisprudência tem sido uniforme este respeito.
"Por qualquer motivo torpe ou fútil" significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 32).
«A generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos» (Comentário, p. 37).
Daí que, para que se verifique um específico acréscimo do ilícito, se afigure «necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar», ou para agredir (como no nosso caso).
E que, em segundo lugar, «seja indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado - e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente».
De outro modo, incorrer-se-ia «no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso» (ibidem).
O STJ, impressivamente, decidiu em 10/12/2008 (Processo nº 08P3703) que «motivo fútil é o móbil da actuação despropositada do agente sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente», adiantando ainda que «a inexistência de motivo não equivale a motivo fútil, uma vez que só há motivo (ainda que fútil) se existir, pois, de outra forma, todo o homicídio envolveria sempre motivo fútil, desde que inexistisse motivo».
Dito de outro modo, e procurando distinguir os dois termos (fútil e torpe):
Motivo TORPE será o motivo aviltante, imoral, repugnante, que causa comoção social e repulsa social.
Motivo FÚTIL já será aquele que é incompatível com as circunstâncias que privilegiam o homicídio, ocorrendo sempre que se verificar manifesta desproporção entre o motivo e o resultado morte/lesão na saúde (há um abismo entre o comportamento do agente e o resultado: morte ou lesão na saúde).

[11] Como diz Faria Costa (Formas do Crime, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, pág. 174), «A primeira ideia que ressalta… é a de que a cumplicidade experimenta uma subalternização, relativamente à autoria. Há, pois, uma linha que se projecta não na assunção de todas as consequências… mas que se fica pelo auxílio. Isto é, fazendo apelo a um velho critério…, deparamo-nos aqui com uma causalidade não essencial».

[12] O crime de detenção de arma não pode aqui valer para este efeito agravativo da coacção à luz do artigo 155º/1 a) do CP.
[13] A agravação do artigo 86º, nº 3 do RJAM:
- Deve-se à menor capacidade da vítima se defender;
- Pretende funcionar como meio dissuasor do uso e porte de arma (reprimir a utilização de armas na prática de crimes);
- Prender-se ao desejo de dar resposta adequada e proporcional à criminalidade violenta e mais grave;
- Configura uma medida de política criminal com declarada intenção de restringir pela punição do uso de posse de armas;
- Pretende induzir a uma posse responsável e conscienciosa.
A agravação do nº 3 do artigo 86º do RJAM aplica-se a todo e qualquer crime em que o agente use uma arma, não ocorrendo qualquer violação do princípio da dupla valoração se ocorrer uma condenação em concurso efectivo do crime de homicídio [artigo 131º ou 132º do CP, desde que neste último caso não seja de aplicar a alínea h) do n.º 2] com o crime de detenção de arma proibida (86º, nº 1 do RJAM).
Também no Acórdão da RC de 22.11.2017 se concluiu no mesmo sentido afirmando-se não se verificar qualquer violação do non bis in idem e como tal inconstitucionalidade decorrente da aplicação do artigo 86º, nº 3 do RJAM, pois no caso não ocorre a qualificação da alínea h), do nº 2 do artigo 132º nem de qualquer outra. Sendo, ainda, salientado neste aresto que “a proibição da dupla agravação só seria de afirmar se as agravações em questão correspondessem a uma mesma dimensão da ilicitude e da culpa, o que não sucede quando uma delas entronca numa culpa acrescida (artigo 132.º do C. Penal) e a outra radica em razões de prevenção geral que se prendem com a necessidade de limitar o recurso às armas, pela perigosidade que representam para bens jurídicos essenciais (penalmente tutelados) na prática de qualquer tipo de crime (artigo 86.º, n.º 3 da Lei das Armas)”.