Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
566/19.1T8VNG.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: CRÉDITO À HABITAÇÃO
SEGURO DE VIDA
INVALIDEZ TOTAL E PERMANENTE
ATESTADO DE INCAPACIDADE
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – TRANCOSO – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º E 388.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I_Em acção interposta conta a seguradora com vista a acionar a cobertura de invalidez total e permanente, num seguro de vida associado ao crédito à habitação, o ónus de prova de que a pessoa segura se encontra incapaz de desempenhar profissão remunerada, cabe à A. (artç 342, nº1 do C.C.)

II- O que determina o accionamento desta cobertura é sempre uma situação de invalidez total e permanente, entendida como tal a que, por força de acidente ou doença, impossibilite o exercício de toda e qualquer actividade remunerada pela pessoa segura.

III- O atestado de incapacidade emitido pela entidade competente para o efeito, não faz prova plena quanto aos factos correspondentes às respostas de avaliação médica e de determinação da percentagem de incapacidade da pessoa avaliada, nem quanto à sua efectiva incapacidade para desempenhar profissão remunerada, estando sujeito à livre apreciação do julgador.

IV-O meio de prova adequado a aferir a incapacidade da A. para desempenhar profissão remunerada é a pericial (artº 388 do C.C.).

V-Resultando do relatório pericial que a A. sofre de um grau de incapacidade qualificável em 35,61 pontos, está demonstrada apenas uma incapacidade parcial que a não impede de auferir uma actividade remunerada.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Recorrente: AA

Recorrida: A..., S.A.

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Luís Miguel Caldas

                                         Francisco Costeira da Rocha


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Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO

AA intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra os Réus “A..., S.A.” e “Banco 1..., S.A. (Banco 2...)”, deduzindo os seguintes pedidos:

- Declarar-se a ativação do seguro de vida identificado nos presentes autos, com efeitos a partir de 01/07/2017, condenando-se os Réus a reconhecê-lo;

- Condenar-se a Ré A... a pagar ao Réu Banco o capital seguro em 01.07.2017, no montante de 34 235,37 €, coincidente com o capital então em dívida do empréstimo hipotecário identificado nos artigos 1º e 2º;

- Condenar-se o R. Banco a restituir à Autora o valor correspondente às prestações mensais do empréstimo (amortizações de capital, juros, spread e despesas, designadamente comissão de processamento e imposto de selo inerente), vencidas após 01.07.2017, inclusive, até à presente data, no montante de 4750,00 € (ou no montante preciso que o Réu Banco indique) e todas as demais que a Autora pagar doravante até trânsito em julgado da sentença;

- Condenar-se a R. A... a restituir à Autora a quantia relativa aos prémios dos seguros de vida vencidos após a data da ativação do seguro referida em a) e todos os demais que a Autora pagar doravante, até trânsito em julgado da sentença.

Em alternativa:

- Condenar-se a Ré A... a pagar ao Réu Banco o valor em dívida do empréstimo identificado nos artigos 1º e 2º da P.I., à data do trânsito em julgado da sentença;

- Condenar-se a Ré A... a pagar à Autora o valor correspondente às prestações mensais dos empréstimos (amortizações de capital, juros, spread e despesas, designadamente comissão de processamento e imposto de selo inerente) vencidas após 01.07.2017, inclusive, até à presente data, no montante de 4750,00 € (ou no montante preciso que o Réu Banco indique) e todas as demais que a Autora pague doravante até trânsito em julgado da sentença.

Ou em alternativa:

- Condenar-se a Ré A... a pagar à Autora o capital seguro em 01.07.2017, no montante de 34 235,37 €, coincidente com o capital então em dívida do empréstimo hipotecário identificado nos artigos 1º e 2º.

-Condenar-se a Ré A... a restituir à Autora o valor correspondente às prestações mensais do empréstimo, excluindo a parcela correspondente à amortização do capital (juros, spread e despesas, designadamente comissão de processamento e imposto de selo inerente), vencidas após 01.07.2017, inclusive, até à presente data, no montante preciso que o Réu Banco indique e todas as demais prestações, excluindo capital, que a Autora pagar doravante até trânsito em julgado da sentença.

Fundamenta o seu petitório na celebração de um seguro do ramo vida com cobertura dos riscos de morte e invalidez permanente (superior a 66,6%), tendo por beneficiário o Banco mutuante para o capital em dívida do empréstimo e por beneficiários do eventual remanescente a própria Autora, em caso de invalidez. Sucede que, em 01 de Julho de 2017, a Autora ficou impossibilitada de trabalhar e de angariar rendimentos pelo seu trabalho, impossibilidade que se mantem até à presente data, a qual tem caráter permanente e definitiva, padecendo desde então de uma incapacidade de 70%, razão pela qual, no dia 10 de Janeiro de 2018, a Autora requereu junto da Ré A... a ativação do seguro de vida que havia subscrito, tendo procedido à junção de diversos relatórios/informação médica.

Contudo a Ré A... acabou por recusar accionar o seguro de vida, alegando, em síntese, que a Autora teria de dispor de um certificado multiusos comprovativo da sua incapacidade superior a 66.66% (limite fixado contratualmente para o efeito), o que a mesma reiterou sucessivamente junto da mesma não ser possível, porquanto, uma vez que nunca efectuou descontos em Portugal, mas apenas em França, se encontrava vedada essa possibilidade, apesar de ter solicitado junto das autoridades portuguesas, não existindo fundamento para a recusa da R. A... para accionar o seguro de vida.


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Válida e regularmente citadas, contestaram ambas as RR., sendo que, no que ao objecto de recurso importa, a R. A... alegou que a A. não preenche as condições necessárias ao enquadramento da cobertura de Invalidez, uma vez que o quadro clínico da doença que alegadamente a afecta foi considerado evolutivo, podendo, ou não, tornar-se definitivamente incapacitante e por outro lado, porque da documentação rececionada é portadora de apenas 12% de grau de incapacidade, inferior ao contratualmente estabelecido.

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Foi realizada a audiência prévia e proferido despacho saneador, com fixação do objecto do litígio e dos temas de prova.


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Procedeu-se à realização da audiência final, com respeito pelo formalismo legal  pertinente, tendo a acção sido julgada procedente através de prolação de sentença datada de 03.12.2022, a qual veio a ser revogada por acórdão datado de 02.05.2023, determinando “a reabertura da audiência de julgamento, concluída a prova pericial, para decisão da matéria de facto constante dos pontos 19 a 23, sem prejuízo de incidir sobre outros factos com o objetivo de evitar contradições, com a subsequente prolação de nova sentença”.

Após, concluída a prova pericial, realizou-se nova audiência de julgamento, sendo proferida sentença na qual se julgou a acção improcedente e se absolveu as RR. dos pedidos formulados.


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Não conformada com esta decisão, impetrou a A. recurso da sentença, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“I) Requer-se a correção da redação dos pontos números 19º e 21º dos “Factos Provados”, nos termos explanados supra, propondo-se a seguinte nova formulação:

19. À data de 1 de Julho de 2017, assim como na actualidade, a Autora apresenta, designadamente, as seguintes lesões: tendinopatia crónica da coifa dos rotadores dos dois ombros, patologia osteoarticular degenerativa da coluna lombar, meniscopatia dos dois joelhos e depressão.

21. Tal condição representa uma invalidez de 70% de acordo com a Tabela de Incapacidades francesa; uma incapacidade de 70%, segundo a TNI, de acordo com a primeira perícia efetuada no Instituto de Medicina Legal e uma incapacidade de 35,61%, segundo a TNI, de acordo com a segunda perícia efetuada naquele IML.

II) Deve, por tudo quanto já se expôs, considerar-se provado o facto constante da alínea a) dos Factos não Provados:

a) A condição da Autora referida no facto provado 19 é impeditiva para que a mesma exerça actividade remunerada, nomeadamente a sua profissão de porteira, tal como referido em 17.

III) Deve, por fim, quanto à alteração da matéria de facto, acrescentar-se aos Factos Provados os factos alegados nos artigos 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 44, 45, 47, 48 e 52 da petição inicial, conforme justificado no corpo das presentes alegações:

36. Os Réus, Banco e Seguradora, têm conhecimento desde a contratualização dos contratos de seguro de vida e mútuo, em 1999, que a Autora reside em França onde sempre trabalhou.

37. Os Réus têm conhecimento que a Autora reside desde data anterior à da contratualização do mútuo e do seguro de vida em ...,... ..., França, morada que consta dos registos dos Réus e para onde estes lhe enviam todas as comunicações escritas.

38. Morada que continua a ser a atual morada da Autora, onde, outrossim, reside há mais de 25 anos.

39. Morada que consta da escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca a que se reportam os autos.

40. De resto, no âmbito da aquisição titulada pela escritura pública junta aos autos, a Autora ficou isenta do pagamento do imposto de sisa precisamente por residir e trabalhar no estrangeiro e de a aquisição daquelas frações ter sido efetuada em parte com dinheiro proveniente do estrangeiro e depositado em conta poupança emigrante (artigo 11º, n.º 22, do Código da Sisa vigente à data).

41. Factualidade que era do conhecimento dos Réus.

42. Os Réus têm conhecimento que a Autora não consta com registo de remunerações junto da segurança social portuguesa.

44. Aquando da adesão por parte da Autora ao seguro de vida grupo judicado nunca lhe foi transmitido que a avaliação futura de eventual grau de incapacidade para o trabalho teria de ser efetuada pela Segurança Social Portuguesa e não pela Segurança Social Francesa, única entidade donde constam os registos de remuneração da Autora.

45. É a Segurança Social Francesa a entidade competente para atribuir pensões de invalidez à Autora, para lhe atribuir pensões de reforma e para avaliar o seu grau de incapacidade para o trabalho no país onde esta sempre trabalhou e pagou as contribuições respetivas, França.

47. A Autora expressamente declara que o referido no artigo 44º desta p.i. não lhe foi explicado nem comunicado por nenhum dos Réus e alega ainda que tal cláusula, a existir, sempre teria de se considerar abusiva, por contrária aos princípios da boa fé e, como tal nula e não escrita, violando assim o artigo 15º do DL 446/85, nulidade que expressamente se invoca.

48. Com efeito, com o seguro de vida que contratualizou, ficou a Autora convencida - diga-se, razoavelmente convencida - que em caso de morte ou de deixar de poder trabalhar por doença ou acidente e deixar de exercer a sua profissão de porteira (cujo conteúdo funcional implicava a limpeza das partes comuns do edifício, o transporte dos caixotes do lixo, recebimento e transporte de encomendas…), de forma permanente, como sucedeu, a Ré Seguradora pagaria o capital seguro.

52. Unicamente a Ré A..., por intermédio do Réu Banco, comunicou à Autora, aquando da contratualização do seguro de vida, que, em caso de morte ou de invalidez, a seguradora pagaria o capital seguro.

IV) É inequívoco que a Autora sempre residiu e trabalhou em França, ou seja, desde data anterior à da contratualização com os Réus do crédito e do seguro de vida e até à atualidade, o que é e sempre foi do conhecimento destes.

V) Como tal, a Autora não consta com qualquer registo de remunerações junto da segurança social portuguesa até à presente data (certidão junta com a p.i. e, em formato mais legível, em 26.1.2019).

VI) Foi tendo em conta o emprego da Autora em França e os respetivos rendimentos associados que o Banco efetuou a avaliação do pedido de crédito efetuado em 1999 e efetuou a análise de risco relativamente ao contrato de seguro de vida.

VII) É, portanto, compreensível que a Autora tivesse compreendido, como compreendeu, em 1999 e ao longo da vida do crédito e do seguro de vida, que, se ficasse inválida, sem poder trabalhar e com os seus rendimentos fortemente diminuídos, a Seguradora não recusaria a ativação do seguro de vida associado ao crédito.

VIII) E se ficasse inválida e sem poder trabalhar onde? Obviamente no local onde vivia, viveu, vive e sempre trabalhou até não poder mais em 01/07/2017: em França.

IX) Os Réus jamais informaram a Autora de que a avaliação da sua eventual incapacidade, situação de reforma e possibilidade de exercer ou não atividade profissional deveria ser efetuada em Portugal e não perante os organismos da Segurança Social francesa.

X) O que, de resto, não seria, hipoteticamente, sequer do interesse do Banco e do acautelamento do risco que pretendia segurar: ativação do seguro e pagamento integral do montante em dívida do empréstimo, no caso de a Autora deixar de poder trabalhar e auferir rendimentos do seu trabalho que lhe permitissem pagar atempadamente as prestações bancárias correspondentes.

XI) Ocorreu violação ou incumprimento de deveres de comunicação e informação a cargo do tomador do seguro, o Réu Banco. Ora, fazendo funcionar o ónus probatório ínsito no nº. 3, do artº. 5º do DL 446/85, de 25/10, constata-se que incumbe aos Réus provar terem efetuado aquela comunicação e prestado a devida informação, adequada e efetiva à Autora (aderente), não incumbindo a esta, ao invés, provar que não lhe foram concedidas possibilidades de conhecimento.

XII) Num contrato de seguro de grupo como o que é objeto dos autos incumbe ao tomador do seguro a obrigação de comunicar aos aderentes as cláusulas do contrato (coberturas, exclusões, obrigações e direitos em caso de sinistro e posteriores alterações).

XIII) Ora, não tendo o banco, nem, obviamente, a seguradora, com quem a Autora, de resto, nunca lidou verdadeiramente, comunicado nem explicado à Autora que se esta ficasse inválida e impossibilitada de exercer qualquer profissão no país para onde emigrou, onde sempre trabalhou e fez descontos e onde permanece, tal não bastaria para a seguradora assumir a responsabilidade pelo pagamento do valor ainda em dívida do crédito, tal cláusula não pode, obviamente, ser-lhe aplicável.

XIV) Importa dissecar o que significa a invalidez de categoria 2 atribuída à Autora (a que se reporta a matéria integrante do ponto 28º dos Factos Provados, da qual resulta que a condição da Autora, decorrente da incapacidade total de 70% e a invalidez de categoria 2 não lhe permite o exercício de atividade profissional).

XV) Reza a este respeito o artigo 341-4, do Código da Segurança Social Francesa (Code de la Sécurité Social), na versão em vigor depois de 21 de dezembro de 1985 e inalterada até à atualidade: En vue de la détermination du montant de la pension, les invalides sont classes comme suit :

1°) invalides capables d'exercer une activité rémunérée;

2°) invalides absolument incapables d'exercer une profession quelconque;

3°) invalides qui, étant absolument incapables d'exercer une profession, sont, en outre, dans l'obligation d'avoir recours à l'assistance d'une tierce personne pour effectuer les actes ordinaires de la vie.

XVI) Por conseguinte, a referida classificação é feita em três categorias principais, conforme definido pelo Code de la sécurité sociale – Article L341-4:

1ª Categoria – Invalidité de 1ère catégorie:

Incapacidade que permite ainda o exercício de uma atividade remunerada parcial. Exemplo: Pessoa que já não pode exercer a sua profissão habitual, mas pode fazer trabalho adaptado (ex.: part-time, funções administrativas). Pensão: Cobre cerca de 30% do salário de referência bruto.

2ª Categoria – Invalidité de 2ème catégorie: Incapacidade de exercer qualquer atividade profissional. Exemplo: Doenças graves ou lesões permanentes que impedem qualquer forma de trabalho.

Pensão: Cerca de 50% do salário de referência bruto.

3ª Categoria – Invalidité de 3ème catégorie

Incapacidade total para o trabalho e necessidade de assistência permanente de terceiros para as atividades da vida diária. Exemplo: Pessoa acamada, com doença neurológica grave, ou polideficiência. Pensão: 50% do salário de referência bruto + complemento por assistência de terceira pessoa (cerca de 1.200€/mês na atualidade).

XVII) A avaliação para decisão de atribuição do estado de invalidez ao beneficiário e, em caso afirmativo, a categoria de invalidez respetiva (1ª, 2ª ou 3ª) é feita por peritos médicos da “Assurance Maladie” e baseia-se, essencialmente, na perda da capacidade de ganho e não apenas na deficiência física.

XVIII) A Autora, que se mantém a residir em França, essencialmente para continuar a beneficiar gratuitamente de tratamentos médicos adequados à sua condição, acha-se numa situação de “incapacidade de exercício de qualquer atividade profissional”, situação que lhe causou forte impacto na sua sobrevivência, pois a pensão que lhe é abonada representa 50% do salário que auferia enquanto se achava no ativo, acrescendo, ainda, que, enquanto trabalhava como porteira, a Autora habitava no edifício onde trabalhava, habitação que lhe era facultada gratuitamente pelos condóminos, habitação gratuita à qual deixou de ter acesso.

XIX) Ainda que imaginássemos a Autora, num esforço sobre-humano de superação, em que fizesse “das tripas coração”, a procurar um trabalho em regime de part-time, encontra-se a mesma legalmente impedida de exercer qualquer tipo de atividade, de celebrar qualquer tipo de contrato de trabalho, de efetuar descontos, de celebrar um seguro de acidentes de trabalho…enfim, de angariar meios de subsistência.

XX) Se à Autora alguma vez tivesse sido explicado pelo Banco que lhe vendeu o seguro que o seguradora poderia declinar a sua responsabilidade em caso desta ficar inválida e impossibilitada de trabalhar onde, à semelhança de centenas de milhar de emigrantes portugueses, sempre trabalhou e fez descontos, ou seja, em França, jamais esta teria aceitado subscrever aquele seguro, o que, à data, teria por efeito que o crédito bancário também tivesse de ter sido efetuado noutro banco que não impusesse aquela seguradora.

A sentença recorrida violou, entre outras, as seguintes disposições legais:

artigos 5º e 15º do DL 446/85, 342º, n.º 2, do Código Civil e artigos 78º e 79º do DL 72/2008, de 16 de abril.

Termos em que, na procedência da apelação, requer-se a revogação da douta sentença proferida, decretando-se a total procedência da ação, assim se fazendo JUSTIÇA!”


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Pela R. seguradora foram interpostas contra-alegações, concluindo da seguinte forma:

“CONCLUSÕES:

1ª – A factualidade dada como provada e não provada pelo Tribunal “a quo” não merece qualquer reparo nem alteração;

2ª - Tal como consta da fundamentação, o Tribunal “a quo” desvalorizou as conclusões da primeira perícia, manifestamente insuficientes e não fundamentadas.

3ª - A morada, residência e situação laboral da A. em França em 28/07/1999 e à data da participação de sinistro já se encontra dada como provada no facto provado 17 e 18, com referência à proposta de seguro.

4ª - As demais alegações são conclusões, considerações, nenhuma prova tendo sido produzida que permitisse resposta afirmativa a qualquer outra factualidade alegada com interesse para a decisão.

5ª - De acordo com as Condições Especiais aplicáveis aos contratos de seguro em apreço a pessoa segura encontra-se numa situação de Invalidez Total e Permanente se, em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma atividade remunerada com fundamento em sintomas objetivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com conhecimentos médicos atuais, nomeadamente quando desta invalidez resultar paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência de paralisia, cegueira completa ou incurável, alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável da capacidade de trabalho, devendo em qualquer caso o reconhecimento da Invalidez Total e Permanente ser feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades e garantem-se as desvalorizações superiores a 66,6% que, para efeitos desta cobertura, são consideradas como sendo iguais a 100% - (facto provado nº 11).

6ª - Não tendo sido a A. submetida e Junta Médica pela entidade portuguesa competente, a incapacidade que alega sempre teria que ser avaliada pelo INML, no âmbito destes autos, o que, logo na Contestação, a R. requereu.

7ª - Após um “percurso” processual extenso, o primeiro perito acabou por responder como entendeu aos esclarecimentos solicitados e, a requerimento da R., foi realizada uma segunda perícia.

8ª - O regime da realização das perícias médico-legais encontra-se regulado pela Lei 45/2004, de 19/08, com as respetivas alterações em vigor.

9ª - O DL 352/2007, de 23/10, aprovou a nova Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, revogando o Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro, e aprovou a Tabela Indicativa para a Avaliação da Incapacidade em Direito Civil.

10ª - O sinistro em causa nos presentes autos não foi ab initio, como devia, avaliado ao abrigo da Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

11ª - O Sr. Perito Médico da primeira perícia limitou-se a transcrever a informação documental que consta dos autos e a transcrever o grau de incapacidade emanado por outra entidade, nomeadamente, os 70% de entidade francesa.

12ª - Sr. Perito Médico da primeira perícia não se socorreu da Tabela Nacional de Incapacidades nem das regras que se impõem para avaliação do Dano Corporal em Direito Civil.

13ª – As deficiências e insuficiências na fundamentação, nas conclusões e nas respostas aos quesitos da primeira perícia foram corrigidas na segunda perícia, tendo sido com base nas respetivas conclusões, e bem, que o Tribunal “a quo” formou a sua livre convicção.

14ª - A A. não põe em causa o clausulado contratual, apenas invoca que lhe tinha que ser explicado que avaliação de eventual incapacidade tinha que ser feita em Portugal.

15ª - Ora, conforme consta do facto provado 11, a definição que integra o artigo 2º das condições especiais é clara quanto ao reconhecimento da invalidez total e permanente com base na Tabela Nacional de Incapacidades, não merecendo nem carecendo de outro tipo de esclarecimento ou clarificação.

16ª - Não se verifica qualquer violação do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais.

17ª - Trata-se de contrato de seguro celebrado em Portugal, para garantir um empréstimo bancário contratado em Portugal com um Banco português,

18ª - Bem como de avaliação médica de situação de invalidez total e permanente por entidade oficial portuguesa e segundo critérios definidos na legislação portuguesa.

19ª – Não importam, neste caso, as definições de invalidez das autoridades / segurança social francesas.

20ª - Sem a prova do grau de incapacidade mínimo exigido pelo contrato de seguro (avaliada segundo a Tabela Nacional de Incapacidades) não se encontra demonstrado um facto constitutivo do direito a que a A. se arroga, pelo que a presente ação teria, como teve, que improceder.

Termos em que, julgando-se improcedente o presente recurso, mantendo-se a Sentença recorrida, se fará JUSTIÇA!!!”


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:
a) Se deve ser alterada a matéria de facto fixada na primeira instância;
b) Se foram violados os deveres de comunicação e informação a cargo do tomador do seguro, ao não informar que a incapacidade teria de ser calculada segundo a Tabela Nacional de Incapacidades.
c) Se a A. se encontra em situação de invalidez absoluta e definitiva.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

A) Factos Provados:

Após a realização da audiência final, mostram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa, excluindo desde logo a matéria alegada pelas partes de teor conclusivo, de direito e aquela que não contende com o objecto da acção (em face dos pedidos formulados):

1. Em 07 de Dezembro de 1999, perante o ... cartório notarial ..., foi celebrado um acordo, sob a epígrafe “compra e venda e mútuo com hipoteca”, no qual a Autora figurava como segunda outorgante e o Réu Banco 1..., S.A. como terceiro outorgante, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido, de onde consta, além do mais, que o mesmo se destinava à aquisição de duas frações autónomas, correspondentes a duas habitações com lugar de garagem na freguesia ..., concelho ..., declarando a segunda outorgante que se confessa “devedora ao Banco 1..., S.A. […], da importância de doze milhões e quinhentos mil escudos, que do mesmo banco recebe a título deste empréstimo e que vai ser aplicada na precedente compra”.

2. Em documento complementar ao acordo referido em 1, sob a epígrafe “Cláusulas do contrato de mútuo com hipoteca”, na sua secção II atinente às cláusulas gerais, cláusula quarta, consta, além do mais, que “os mutuário(s) obriga(m)-se a contratar um seguro de vida cujas condições, constantes da respectiva apólice, serão indicadas pelo banco, bem como se obriga(m) a manter seguro do imóvel hipotecado contra riscos e pelo valor que o banco indique”.

3. As prestações mensais de amortização daquele empréstimo identificado em 1 deveriam ser pagas por débito na conta de depósitos à ordem titulada pela Autora no então Banco 3..., S.A., agência de ....

4. Foi na agência de ... do Banco 3... que decorreu a tramitação do processo de empréstimo e de adesão ao seguro de vida associado àquele crédito hipotecário.

5. O Réu Banco exigiu à Autora que subscrevesse previamente à disponibilização do capital mutuado um seguro do ramo vida, que cobrisse os riscos de morte e invalidez permanente, tendo por beneficiário o próprio Banco para o capital em dívida do empréstimo e por beneficiários do eventual remanescente a própria Autora, em caso de invalidez, e, em caso de morte, os seus herdeiros legais.

6. O preenchimento da proposta de adesão referente ao seguro de vida decorreu simultaneamente com o preenchimento dos impressos e com a entrega da documentação referente ao empréstimo bancário, sempre perante o mesmo funcionário do Réu Banco.

7. Assim, em 07.12.1999, a Autora, na qualidade de pessoa segura, aderiu à apólice de seguro de grupo do ramo vida/crédito habitação, em que a Ré seguradora (à data Banco 3... Vida) figura como seguradora, para garantir um empréstimo bancário identificado em 1, sendo este Réu Banco o tomador do seguro.

8. A proposta de adesão ao aludido seguro foi assinada pela Autora em 28.07.1999, constando da mesma, além do mais, que a pessoa segura, a aqui Autora, residia na ..., ..., ..., França, bem como que “o presente contrato que é, para cada adesão, anual e sucessivamente renovado, tem o seu início na data da celebração do contrato de crédito à habitação (...).

9. Das condições gerais do contrato de seguro celebrado entre a Autora e a Ré seguradora consta no seu artigo 3.º, que “O presente contrato tem por objecto a cobertura de risco morte, designado cobertura principal, e dos riscos complementares nos termos das condições especiais respectivas, quando constantes das condições particulares”.

10. Da cobertura complementar, sob a epígrafe “Invalidez Total e Permanente”, consta no seu artigo 1.º que “Pelo presente contrato, a B... garante, em complemento das garantias do seguro principal, o pagamento de um capital, definido nas condições particulares da apólice, em caso de invalidez Total e Permanente da pessoa Segura em consequência de doença manifestada ou de acidente de ocorrido, durante a vigência desta cobertura”.

11. Consta igualmente no seu artigo 2.º, definindo o conceito de Invalidez total e permanente, que “a pessoa segura encontra-se em situação de invalidez total e permanente se, em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma actividade remunerada, com fundamentos em sintomas objectivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos actuais, nomeadamente quando desta invalidez resultar paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência de paralisia, cegueira completa ou incurável, alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável das faculdades e capacidades de trabalho. Em qualquer caso, o reconhecimento da invalidez total e permanente é feito com base na tabela nacional de incapacidades e garantem-se as desvalorizações superiores a 66,6% que, para efeitos desta cobertura, serão consideradas como sendo iguais a 100%”.

12. Consta igualmente da cláusula 3, além do mais, o seguinte: “3.1. Sempre que se pretenda que a pessoa segura seja considerada em situação de invalidez total, o tomador do seguro, a pessoa segura ou o beneficiário devem solicita-lo à B... Vida, por escrito e nos 60 dias imediatos à constatação da invalidez, enviando os seguintes documentos: a) atestado do médico assistente da pessoa segura, do qual consta o início, as causas, a natureza, a provável duração e evolução do estado de invalidez; b) descrição detalhada da actividade profissional da pessoa segura antes da declaração de invalidez. 3.2. para que a invalidez total da pessoa segura seja considerada de carácter permanente para efeitos desta cobertura complementar, os interessados devem solicita-lo, por escrito, à B... Vida, enviando atestado do médico assistente da pessoa segura, comprovando: - a existência de invalidez total, sem interrupção, durante, pelo menos, 6 meses a contar da data da constatação médica inicial. […] – impossibilidade de se prever qualquer melhoria no estado da pessoa segura, de acordo com os conhecimentos médicos actuais. 3.3. A B... Vida reserva-se o direito de exigir, a expensas suas, qualquer justificação complementar e de proceder às investigações que julgar convenientes para determinação exacta do estado da pessoa segura, designadamente mandando-a examinar pelos seus médicos, cessando a sua responsabilidade se o tomador do seguro, pessoa segura ou beneficiários prejudicarem ou impedirem o normal cumprimento das diligência. 3.4. A B... Vida comunicará ao Tomador do Seguro se aceita ou não a sua pretensão no decorrer dos 30 dias após a recepção dos documentos referidos em 3.1. e 3.2., bem como, quando for caso, das informações complementares em consequência das investigações referidas em 3.3.”.

13. A Ré procedeu à emissão do certificado individual de seguro n.º ...60 e respetivas atas adicionais, com o capital seguro inicial de € 62.349,74 (sessenta e dois mil trezentos e quarenta e nove euros e setenta e quatro cêntimos), conforme consta da proposta de adesão, associado ao empréstimo/crédito habitação, tendo como beneficiário o Réu Banco, com as coberturas de morte e invalidez total ou permanente.

14. A adesão foi aceite pela Ré A... tendo por base os elementos e as declarações prestadas pela pessoa segura na referida proposta de adesão, e o contrato de seguro temporário anual renovável associado ao empréstimo iniciou a produção dos seus efeitos 07.12.1999.

15. A Autora assumiu a obrigação de pagamento dos prémios do contrato de seguro em apreço através da autorização de débito em conta de depósitos da sua titularidade.

16. A Autora nasceu em ../../1962.

17. Em data anterior a 1 de Julho de 2017, a Autora exercia a sua actividade profissional em França, sendo porteira, fazendo, além do mais, a limpeza das partes comuns do edifício onde trabalhava, o transporte dos caixotes do lixo e recebimento e transporte de encomendas.

18. Em 01 de Julho de 2017, a Autora, fruto das lesões descritas em 19, deixou de trabalhar e de angariar rendimentos pelo seu trabalho, situação que se mantém até à presente data.

19. À data de 1 de Julho de 2017, assim como na actualidade, a Autora apresenta as seguintes lesões: tendinopatia crónica da coifa dos rotadores dos dois ombros, patologia osteoarticular degenerativa da coluna lombar, meniscopatia dos dois joelhos e depressão.

20. As aludidas lesões de carácter degenerativo não são reversíveis e tendem a agravar-se com o passar dos anos.

21. Tal condição representa uma incapacidade de 35,61%, segundo a TNI, a qual se encontra consolidada desde 1 de Julho de 2017.

22. Também desde o dia 1 de Julho de 2017, foi reconhecido à Autora uma incapacidade permanente global de 70% pelas autoridades francesas, local onde reside habitualmente, sempre trabalhou e fez descontos, passando-lhe a ser atribuída pensão de invalidez.

23. Em 10 de Janeiro de 2018, a Autora requereu junto da Ré A... a ativação do seguro de vida que havia subscrito, tendo procedido à junção de documentação e informação clínica, a qual consta de fls. 133 verso a 141, emitida, além do mais, pela segurança social francesa.

24. Através de comunicação escrita enviada à Autora no dia 15 de Maio de 2018, a Ré A... informou a Autora, além do mais que a sua situação à data não preenchia as condições necessárias ao enquadramento da cobertura de ITP, uma vez que o quadro clínico da doença que alegadamente a afeta foi considerado evolutivo, podendo ou não tornar-se definitivamente incapacitante, encerrando o processo sem ativação do seguro.

25. Naquela comunicação a Ré A... declarou estar disponível para reanalisar o assunto em presença de novos documentos, nomeadamente atestado médico de Incapacidade Multiusos, com indicação de um grau de invalidez superior a 66,6% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, emitido por Entidade Oficial portuguesa.

26. Em 10 de agosto de 2018, a Autora remeteu à Ré A... nova comunicação onde solicita novamente a activação do aludido seguro reiterando que a mesma padece de uma incapacidade de 70%.

27. Nessa comunicação juntou documentação subscrita pela médica BB, a qual refere, além do mais, lesões nos ombros direito e esquerdo, joelho direito e esquerdo, coluna, cervical e lombar, tal como consta do documento de fls. 20 verso e 21, cujo teor se dá por reproduzido.

28. Juntou igualmente documentação emitida pela segurança social francesa, da qual consta, além do mais, que a Autora padece de uma invalidez de categoria 2, desde 1 de Julho de 2017 e que a sua condição não lhe permite o exercício de actividade profissional, atribuindo uma incapacidade total de 70%, tal como consta de fls. 22 e 23.

29. Em 20 de Agosto de 2018, a Ré A... envia comunicação escrita à Autora onde reitera que, além do mais, para que seja possível continuar a análise do processo de activação do seguro seria necessário o envio de Atestado Médico de Incapacidades Multiusos, com indicação de um grau de invalidez superior a 66,6%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades e emitido por entidade oficial portuguesa.

30. Em 27 de Agosto de 2018, em resposta à comunicação anterior, a Autora enviou comunicação escrita à Ré A... reiterando a impossibilidade de obter o aludido certificado multiusos, uma vez que a sua emissão lhe foi recusada com fundamento em ter registo de remunerações na Segurança Social Portuguesa, solicitando uma vez mais a activação do seguro.

31. A Ré A... nunca convocou a Autora para junto dos seus serviços médicos para proceder a uma avaliação da sua condição de saúde.

32. À data de 01 de julho de 2017, o capital seguro era de 32.791,44€.

33. Desde 1 de Julho de 2017 até ao mês de janeiro de 2019, a Autora pagou ao Réu Banco a quantia de 4.386,05€, a título de capital, juros, spread, comissões e impostos, por referência ao empréstimo identificado no facto 1.

34. À data de 03 de maio de 2018, o capital seguro foi atualizado de acordo com o valor em dívida, sendo de € 30.714,54€.

35. Autora pagou os prémios do seguro de vida, vencidos após 01.07.2017, no valor global de 742,92€.


*

B) Factos não Provados

a) A condição da Autora referida no facto provado 19 é impeditiva para que a mesma exerça actividade remunerada, nomeadamente a sua profissão de porteira, tal como referido em 17.


***


DA REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Insurge-se a recorrente, contra a decisão da matéria de facto proferido pelo tribunal a quo, invocando erro de julgamento no que se reporta à matéria considerada provada nos pontos 19, 20 e não provada na alínea a) e bem assim omissão de pronúncia quanto aos factos alegados nos artigos 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 44, 45, 47, 48 e 52 da petição inicial, peticionando assim que se corrija “a redação dos pontos números 19º e 21º dos “Factos Provados”, nos termos seguintes:

19. À data de 1 de Julho de 2017, assim como na actualidade, a Autora apresenta, designadamente, as seguintes lesões: tendinopatia crónica da coifa dos rotadores dos dois ombros, patologia osteoarticular degenerativa da coluna lombar, meniscopatia dos dois joelhos e depressão.

21. Tal condição representa uma invalidez de 70% de acordo com a Tabela de Incapacidades francesa; uma incapacidade de 70%, segundo a TNI, de acordo com a primeira perícia efetuada no Instituto de Medicina Legal e uma incapacidade de 35,61%, segundo a TNI, de acordo com a segunda perícia efetuada naquele IML

Decidindo:

Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, versa o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (nº 2, al. a), do artº 640 do C.P.C.).

Em relação ao cumprimento dos ónus impostos por este preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória[1]

Resulta, assim, do disposto neste preceito legal que o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto, deve cumprir um ónus geral, de integração da impugnação nas conclusões (cfr. artº 639 do C.P.C.) e dois ónus específicos: o primeiro descrito nas diversas alíneas do nº1 do artº 640 do C.P.C., obriga à indicação precisão dos pontos de facto impugnados, dos concretos meios probatórios que imporiam decisão diversa, indicados em relação a cada facto, e da resposta alternativa que lhes haveria de ser dada; em relação a este último ónus há ainda a considerar que, de acordo com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 12/2023 (publicado no DR-230/2023, SÉRIE I de 2023-11-28), deve este ser considerado cumprido ainda que o recorrente não indique nas “conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”; o segundo, contido no seu nº2, exige que, em caso de ser invocada prova gravada, a indicação exacta das passagens em que se funda o impugnante, sem prejuízo do dever de investigação oficiosa que é imposto ao tribunal.

O incumprimento do ónus geral e do específico exigido pelo nº1 do artº 640 do C.P.C., impõe a imediata rejeição do recurso, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento.

Já o incumprimento do ónus secundário de indicação exacta das passagens das gravações em que se funda o seu recurso, só deve conduzir à rejeição deste recurso, “nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso[2].

Com efeito, o cumprimento deste ónus, deve obedecer aos critérios de proporcionalidade e de razoabilidade, entendendo-se que desde que seja feita a indicação do conteúdo do depoimento, ainda que descrito “em discurso indirecto, ainda que sem indicar o início e termo da passagem relevante de cada depoimento, permitindo o exercício do contraditório pela contraparte, bem como o exame, sem grande dificuldade, pelo tribunal da Relação, leva a dar como substancialmente cumprido o ónus do art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC.[3] 

Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:

- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;

- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;

- E a decisão alternativa que é pretendida.”[4]

Por último, da conjugação do disposto no artº 640, nº2, al. b) e 662 do C.P.C., resulta o dever do tribunal ad quem, na apreciação desta impugnação, de efectuar uma verdadeira reapreciação da prova feita, de molde a sustentar e confirmar a decisão de primeira instância, ou alterá-la se os meios de prova produzidos e considerados no seu todo, impuserem essa alteração.[5]

Volvendo à concreta impugnação do referido nos pontos 19 e 20 dos factos provados, invoca a A. que existem outras patologias de que padece referidas no primeiro relatório de perícia e bem assim na Informação Médica para Avaliação de Incapacidade efetuada pela Sra. Dra. BB, Médica com a Cédula Profissional ...87, datada de 09/07/2018, junta aos autos com a p.i. e dos documentos juntos aos autos em 15.11.2024, resulta que a A. padece ainda de lesões na mão direita, no tornozelo esquerdo, hipertensão crónica e doença cardiovascular. Estas doenças sempre imporiam a alteração do único facto não provado para provado, de acordo com o resultado da primeira perícia.

Nos presentes autos foram realizadas duas perícias médico legais. A primeira, com relatório apresentado em 04/04/2022, na qual o Sr. Perito fixou uma incapacidade de 70%, referindo que a A. padecia de acordo com os elementos documentais que lhe foram apresentados provindos das entidades clínicas francesas:

 

Por requerimento de 19/04/2022, veio a R. solicitar os seguintes esclarecimentos:

1º - Quais as patologias consideradas para a atribuição de incapacidade permanente à A.?

2º - Qual a percentagem atribuída a cada patologia segundo os critérios da Tabela Nacional de Incapacidades para a avaliação do dano corporal em direito civil?

3º - Qual a percentagem de incapacidade considerada em cada patologia, tendo em conta o critério de avaliação da capacidade restante, tendo por referência a Tabela Nacional de Incapacidades para a avaliação do dano corporal em direito civil?

4º - Qual a incapacidade total da A. tendo por referência a Tabela Nacional de Incapacidades para a avaliação do dano corporal em direito civil?”

Estes esclarecimentos foram indeferidos por despacho de 13/06/25, sendo proferida sentença que julgou a acção procedente.

Por Acórdão de 02/05/2023, foi anulada a sentença proferida em primeira instância e ordenada a conclusão da perícia e a prestação dos esclarecimentos solicitados pela R., para determinação do grau de incapacidade da A. em função da Tabela Nacional de Incapacidades. Consignou-se nesse Acórdão o seguinte: “(…) analisado o denominado Relatório Pericial, facilmente se conclui que nele não foi feita uma avaliação das patologias sofridas pela A. e da percentagem total de desvalorização destas patologias, tendo em conta a referida Tabela de Incapacidades, limitando-se o Sr. perito a remeter para a avaliação feita pelos serviços sociais franceses e para documentos que como fez consignar, se resumem, “a cópia de registos do(a) relatórios de frança sem qq documento que refira as patologias de que e portadora tac ressonâncias e outros. Diz que todos os elementos estão em frança.”

Nesta medida a perícia não se mostra sequer realizada, pois o que se pretendia não era que o Sr. Perito reproduzisse as patologias identificadas nesses relatórios e o grau de desvalorização atribuído por esses serviços sociais - para o qual não seria necessário a produção de prova pericial, cabendo perfeitamente essa análise nas competências do julgador - mas antes que, por exame e aferição de patologias apresentadas pela A., atribuísse um grau de desvalorização de acordo com as percentagens que resultam desta Tabela. E nenhuma tabela, forma de cálculo ou percentagem atribuída às patologias, que se limita a reproduzir, é indicada pelo Sr. Perito.    

Cabia, assim, ao tribunal recorrido que ordenou a perícia, oficiosamente, independentemente de qualquer reclamação das partes, ordenar ao Sr. Perito que observasse os preceitos legais que delimitam as perícias médico legais que visam a atribuição de uma percentagem de desvalorização profissional e consequente impossibilidade de auferir rendimentos profissionais por doença permanente e irreversível”.

Em cumprimento deste Acórdão, por despacho de 22/06/2023 foi ordenado que o Sr. Perito prestasse “os esclarecimentos solicitados pela Ré no requerimento sob a referência n.º 1945439 e 1971836, com vista ao apuramento do grau de incapacidade permanente que afecta a Autora, a fixar de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades constante do anexo I ao Dec. Lei n.º 352/2007, de 23-10.”

Em obediência à solicitação do tribunal, o Sr. Perito veio apresentar esclarecimentos em 31/01/2024, nos seguintes termos:

1. As patologias consideradas foram as descritas no ponto 4 das conclusões do relatório anterior

2. A percentagem atribuída foi;

8 pontos ao ombro esquerdo,

12 pontos ao ombro direito,

7 pontos à coluna cervical,

5 pontos à coluna dorsal,

5 pontos à coluna lombar,

6 pontos ao joelho esquerdo,

6 pontos ao joelho direito,

25 pontos à depressão grave,

15 pontos pela diabetes

CLÍNICA FORENSE -

3. Considerada avaliação segundo a capacidade restante

4. 69,968 pontos.”

Este Relatório mereceu a impugnação da R. seguradora, precisamente porque se mantinha a ausência de avaliação clínica da A. e o enquadramento das patologias na Tabela Nacional de Incapacidades, continuando o Sr. Perito a reproduzir aquilo que já era referido pelas entidades francesas, acrescentando apenas a cada patologia o grau de incapacidade que tinha sido atribuído na avaliação por aquelas entidades.

Assim, embora formalmente existam duas perícias efectuadas nos autos, na realidade apenas a segunda perícia responde ao objecto que dela constava. Ora este relatório pericial não suporta o alegado pela A. quanto aos pontos 19 e 20, sendo certo que o relatório da Dra. BB referido no ponto 27, não inquina o resultado desta perícia médico-legal, estando os demais documentos impugnados pela R seguradora.

Do relatório da 2ª Perícia resulta o seguinte, quanto às questões objecto de perícia:

1. Não.

2. Prejudicado.

3. Prejudicado.

4. São as seguintes as patologias que determinam uma incapacidade permanente parcial: tendinopatia crónica da coifa dos rotadores dos dois ombros, patologia osteoarticular degenerativa da coluna lombar, meniscopatia dos dois joelhos e depressão.

5. Desconhecemos, em concreto, a data de diagnóstico dessas patologias. Admitimos, que tenham sido diagnosticadas pelo menos à data da realização dos exames junto aos autos.

6. Desconhecemos. A evolução só poderá ser descrita pelos médicos assistentes. Contudo, as patologias referidas no ponto 4, à exceção da depressão, são patologias degenerativas, as quais, por definição, apresentam um agravamento progressivo.

7. Não.

Em Portugal, para que a Segurança Social atribua uma pensão de invalidez é necessário cumprir o seguinte pressuposto: as limitações decorrentes das patologias devem impedir o paciente de obter da sua profissão mais de um terço da remuneração correspondente ao seu exercício normal e não é de presumir que recupere, nos 3 anos seguintes, a capacidade de obter mais de 50% da respetiva remuneração.

Pelo exposto, a examinada deveria ser portadora de uma incapacidade superior a 66,7% para ter uma incapacidade incompatível com o exercício da sua atividade profissional.

(…)

8. Não.

9. Admite-se que sim.”

Nos esclarecimentos prestados em 05/12/2024:

“I) A examinada não apresentava limitações da mobilidade da coluna vertebral desvalorizáveis com base na TNI. O enquadramento médico-legal no artigo

1.1.1, referente a traumatismos raquidianos, foi feito por analogia, como devidamente indicado no relatório.

II) A incapacidade proposta refere-se ao conjunto dos diversos segmentos da coluna vertebral.

III) Na avaliação do ombro são sempre contempladas as articulações escápulo- umeral, escápulo-torácica, acrómio-clavicular e esterno-clavicular. A examinada demonstrou ao exame físico ter uma mobilidade conjugada que permitia levar a mão à nuca, ao ombro oposto e à região lombar, o que justificou o enquadramento no artigo 3.2.7.3 a). Foram desvalorizados os dois ombros.

IV) A examinada não apresentava uma limitação desvalorizável com base na TNI, na medida em que se objetivou uma flexão dos joelhos superior a 110º.

V) Na sequência da avaliação efetuada, mantém-se o enquadramento médico- legal indicado no relatório. As perturbações decorrentes da patologia psiquiátrica são moderadas, com ligeira a moderada diminuição do nível de eficiência pessoal e profissional. Não é a medicação em curso ou qualquer relatório que determina uma qualificação diversa da que resultou da avaliação realizada.

A diferença da pontuação atribuída relativamente à depressão, entre a primeira e segunda perícia, resulta de uma divergência na apreciação do caso, como tantas vezes acontece na avaliação pericial. No caso em apreço, o perito médico ficou convencido que as sequelas psiquiátricas não determinam uma incapacidade superior a 15%.

VI) Da avaliação documental e da informação transmitida pela examinada, a diabetes desta não é regularmente equilibrada com o emprego da insulina, pelo que não é desvalorizável com base na TNI.”

 Ou seja, foi considerado neste relatório pericial que a A. não estava impedida de desempenhar a sua actividade profissional ou qualquer outra actividade remunerada. Esta conclusão não é afastada nem pela documentação emitida pela segurança social francesa, referida no ponto 28, nem pelo primeiro relatório pericial, que apenas a reproduz.

Há que referir que por AUJ nº 8/2024 de 25 de Junho, “O atestado médico de incapacidade multiuso, emitido para pessoas com deficiência de acordo com o Decreto-Lei n.º 202/96, de 21 de Outubro, é um documento autêntico, que, de acordo com o artigo 371.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 389.º, do Código Civil, faz prova plena dos factos praticados e percepcionados pela “junta médica” (autoridade pública) competente e prova sujeita à livre apreciação do julgador quanto aos factos correspondentes às respostas de avaliação médica e de determinação da percentagem de incapacidade da pessoa avaliada.”

Quer isto dizer que, a documentação referida no ponto 28 sempre se encontraria sujeito à livre apreciação do julgador[6] quanto aos factos correspondentes às respostas de avaliação médica e a parte contrária, no caso a seguradora, tratando-se de prova pré-constituída, sempre teria o direito de a impugnar, tanto a respectiva admissão como a sua força probatória (art. 415.º do CPC), nomeadamente por meio de prova pericial.

Na verdade, conforme afirmado no AUJ acima citado “(o) meio de prova adequado para aferir da situação de incapacidade é a pericial, por estar em causa a apreciação de factos que exigem “conhecimentos especiais que os julgadores não possuem…” (art. 388.º do CCivil).

Resulta expressamente do artº 389 do C.C. que “A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal.”

Ora, tendo em conta que a primeira perícia apenas reafirmou o que já constava da documentação emitida pela Segurança Social Francesa, entendemos não ser de afastar o resultado da 2ª perícia que chegou a uma conclusão diversa e da qual resulta que as patologias sofridas pela A. não a impedem de desempenhar a sua profissão.

Improcede assim a impugnação destes pontos da matéria de facto pela A.

Mais requer a A. que sejam adicionados à matéria de facto assente os factos alegados nos artigos 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 44, 45, 47, 48 e 52 da p.i., nos quais alegava não lhe ter sido comunicado nem explicado que “a avaliação futura de eventual grau de incapacidade para o trabalho teria de ser efetuada pela Segurança Social Portuguesa e não pela Segurança Social Francesa, única entidade donde constam os registos de remuneração da Autora.” , pelo que tal clausula sempre seria nula ao abrigo do disposto no artigo 15º do DL 446/85, mais defendendo que é a Segurança Social Francesa “a entidade competente para atribuir pensões de invalidez à Autora, para lhe atribuir pensões de reforma e para avaliar o seu grau de incapacidade para o trabalho no país onde esta sempre trabalhou e pagou as contribuições respetivas, França.”

Tais factos não foram apreciados pelo Tribunal a quo, pelo que, a entenderem-se tais factos como relevantes, sempre se imporia a anulação da sentença recorrida, para ampliação da matéria de facto, nos termos do previsto no artº 662, nº2, al. c) do C.P.C., afim de assegurar a efectivação de um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto.

No entanto, a apreciação destes factos, é irrelevante para a decisão da causa, incorrendo a A. em erro. Não se trata de atribuir competência à Segurança Social Francesa ou à Segurança Social Portuguesa para efeitos de atribuição de pensões de reforma, de fixação de incapacidade em atestado multiusos ou seu equivalente. Em qualquer caso, essa avaliação da incapacidade não faz prova plena quanto à efectiva incapacidade da A. para desempenhar profissão remunerada.

Nestes termos, sendo certo que são aplicáveis a estes contratos o regime constante da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (DL n.º 446/85, de 25 de Outubro), e concretamente dos deveres de comunicação e informação impostos pelos artºs 5 e 6 deste regime, sob pena de exclusão das clausulas não comunicadas (artº 8), no caso concreto a exclusão desta clausula, na parte em que determina a avaliação da incapacidade em função da TNI, em nada alteraria a decisão.

Com efeito, o que determina o accionamento desta cobertura é sempre uma situação de invalidez total e permanente, entendida como tal a que por força de acidente ou doença, impossibilite o exercício de toda e qualquer actividade remunerada, fundamento precisamente da celebração deste seguro associado a contratos de crédito à habitação, em que o risco segurado é o de o mutuário se ver incapaz de assegurar, pelo fruto do seu trabalho, o pagamento deste crédito. Razão para ser a instituição bancária a beneficiária.

A este respeito e sobre a definição do que constitui invalidez absoluta e definitiva, pronunciaram-se os seguintes Acórdãos:

  • A Ac. do STJ, de 17-10-19, (revista nº 978/15):

“I – A previsão de invalidez absoluta e definitiva, constante de uma apólice de seguro, é suscetível de ser entendida por um declaratário normal como uma situação em que a pessoa afetada se encontra num estado que a deixa totalmente (completamente, sem restrição) incapaz, para o resto da vida, de exercer a sua atividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência.

III – A situação em que o segurado não pode continuar a desempenhar a atividade profissional anterior, mas pode desempenhar funções de natureza idêntica dentro da sua área de formação técnico profissional, desde que com menor intensidade e exigindo menor esforço físico, é conciliável com uma situação de incapacidade parcial.”

  • - Ac. do STJ, de 19-6-18, (revista nº 2300/15):

I - Uma incapacidade absoluta e definitiva – enquanto risco coberto por contrato de seguro de vida, individual, celebrado entre a A., como tomador e pessoa segura, e a R., como seguradora, em que ficou designado beneficiário irrevogável, o banco, com quem aquela e o marido haviam celebrado contrato de mútuo para aquisição de imóvel – refere-se, segundo um declaratário normal, a uma incapacidade para todo e qualquer trabalho e para o resto da vida, ao que não se equipara uma IPP de 80%.

II - O contrato de seguro celebrado visou, em primeira linha, a defesa do principal beneficiário, o banco, e para este, a morte ou a invalidez equivalem-se sempre que isso signifique a perda de rendimentos que permitam o pagamento do capital e juros.”

  • - Ac. do STJ, de 27-2-20, (revista nº 125/13):

I - O conceito relevante de invalidez permanente (ou absoluta e definitiva), enquanto integrante de cláusula de contrato de seguro do Ramo Vida, associado a contratos de mútuo bancário em que o segurado é mutuário, assenta:

na sua base, numa deficiência física e/ou intelectual que, não obstante os cuidados, os tratamentos e os acompanhamentos, clínicos e reabilitadores, realizados depois do sinistro, subsiste a título definitivo em sede anatómica-funcional e/ou psicossensorial e concretiza-se, independentemente do seu nível ou grau ou percentagem de incapacidade (desde que não seja residual ou insignificante), em consequência (enquanto impacto decisivo) na alteração ou modificação do estado de vida, pessoal e profissional, anterior ao sinistro.

II - Para esse juízo sobre o reflexo do sinistro, há que ter em conta, numa ponderação múltipla e não individualmente exclusiva, nomeadamente, a atividade anteriormente desenvolvida como fonte de rendimentos, a idade e o tempo restante de vida ativa profissional, a perda de independência psico-motora, o tipo de doença ou restrição de saúde, as habilitações e capacidades literárias e profissionais da pessoa segura e a possibilidade de reconversão para atividade compatível com essas habilitações e capacidades com igual ou aproximada medida de rendimentos, sempre com enquadramento na situação remuneratória concreta (e projeção na capacidade de ganho) do segurado após a estabilização das sequelas do sinistro”.

À A. cabe o ónus de alegar e provar que se encontra totalmente incapaz de desempenhar profissão remunerada, por se tratar de facto constitutivo do seu direito. Não resultando provado esse facto, o demais por si alegado quanto ao efectivo conhecimento desta clausula é inútil, pois que a sua eliminação em nada alteraria a decisão, nem tornaria automaticamente aplicável os preceitos referentes à concessão de pensão por invalidez em França, ou o grau de incapacidade fixado por junta médica em França.

São realidades distintas, sendo que pelas razões acima referidas esse grau de incapacidade sempre teria de ser aferido por peritos médicos que aqui o não confirmaram, como em essencial, não confirmaram que, independentemente do grau de incapacidade, a A. estivesse impedida de desempenhar a sua profissão ou outra qualquer remunerada. Ao tribunal está vedada a prática de actos inúteis (artº 130 do C.P.C.), não se conhecendo assim desta parte da impugnação por inutilidade.

 


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A improcedência da impugnação da matéria de facto determina a improcedência da acçao, por se não ter demonstrado que a A. se encontre definitiva e absolutamente impedida de desempenhar serviço remunerado, condição essencial para acionamento do seguro.

Como se referiu na sentença de primeira instância, “volvendo à matéria de facto dada como provada, não podemos deixar de considerar que a Autora não logrou corresponder com o ónus da alegação e prova da verificação de uma tal situação de invalidez, por se tratar de facto constitutivo do direito indemnizatório de que se arroga titular (art. 342.º, n.º 1 do CC). Com efeito, daí resulta que a Autora não se encontra incapacitada de exercer a sua profissão habitual e de exercer toda e qualquer actividade remunerada, isto apesar de padecer de um conjunto de lesões que a condicionam no seu dia a dia e que, inclusive, despoletaram a sua reforma por invalidez em França (como referimos em sede de motivação da matéria de facto, tal circunstância não é passível de ser transposta, per si, para o ordenamento jurídico português, muito menos para ultrapassar aquilo que foram as obrigações contratualmente assumidas pelas partes através da subscrição pela Autora daquele concreto seguro, em Portugal e segunda as regras aqui em vigor, sendo a seguradora alheia a qualquer direito que o Estado francês tenha, à luz das suas regras internas, decidido atribuir à Autora) – factos provados 17 a 20 e 22.

Dito isto, parece-nos evidente que a situação clínica da Autora e as condicionantes comprovadamente evidenciadas não preenchem o aludido conceito de Invalidez Total e Permanente, porquanto a mesma não se encontra incapacitada totalmente de exercer qualquer actividade remunerada, tanto mais que, como resulta da matéria de facto dada como provada, apenas padece de uma desvalorização de cerca de 35%, ou seja, bastante inferior ao limite de 66,6% contratualmente fixado para o acionamento da cobertura em apreço.

Concluindo: não cumprindo a autora com o ónus da prova relativamente ao direito invocado, não poderá a acção deixar de ser julgada improcedente, quanto aos pedidos principais a) e b), assim como, consequentemente, todos os restantes pedidos principais e alternativos deduzidos pela Autora contra ambos os Réus, atento o seu grau de dependência entre para com aqueles.”


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DECISÃO


Pelo exposto, acordam os juízes desta relação em julgar improcedente a apelação interposta pela A. e, nessa sequência, confirmam a decisão recorrida.
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 Custas pela apelante (artº 527 nº1 do C.P.C.)

Coimbra, 20 de Novembro de 2025


[1] Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.
[2] Ac. do STJ de 3 de Outubro de 2019, Maria Rosa Tching, proferido no proc. n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Ac. do STJ de 27/01/22, Maria Graça Trigo, proferido no proc. nº 225/16.7T8FAR.E2.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.02.2016, no Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «Para que a decisão da 1.ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.»
De igual modo, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016, no Proc.1572/12.2TBABT.E1.S1, disponível na mesma base de dados, decidindo que «O Tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.»
[6] Neste sentido entre outros Acs. do STJ de 17/06/2023, proferido no proc. nº 3325/15.7T8SNT.L1.S1 e de 10/12/2024, proferido no proc. nº 1730/21.9T8BCL.G2.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.