Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
373/20.9T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
QUESTÕES DE FACTO E DE DIREITO
SEPARAÇÃO DE FACTO
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J. FAMÍLIA E MENORES DE ALCOBAÇA.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1781.º, ALÍNEA A) E 1782.º, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL E 611º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I - Numa acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge as expressões “vida de casal” ou “vida comum de casal”, “não fazer vida de casal” e “organizar a sua vida de forma separada” não constituem conceitos de direito.

II – Na separação de facto por um ano consecutivo releva o tempo decorrido entre a propositura da acção e a prolação da decisão.

III - A proposição de acção de divórcio constitui manifestação inequívoca do propósito do autor de não restabelecer a vida em comum com o seu cônjuge.

Decisão Texto Integral:



Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO

A. , instaurou a presente acção especial de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, contra o seu cônjuge, B. , pedindo que fosse decretado o divórcio sem consentimento do outro cônjuge.

Para tanto, alegou a autora encontrar-se o casal separado de facto há mais de um ano, de forma consecutiva, bem como o seu propósito de não restabelecer a vida em comum.


*

Citado, o R. apresentou contestação, impugnando o alegado pela A. e concluindo pela improcedência do pedido de divórcio.

*

Procedeu-se a audiência de julgamento, tendo afinal o tribunal proferido sentença com o seguinte teor:

Pelo exposto e decidindo, julga-se a acção totalmente procedente, pelo que:

1.º Decreta-se a dissolução do casamento celebrado entre a autora A. e o réu B. , com fundamento na ruptura do casamento por separação de facto por um ano consecutivo, casamento este que consta do assento nº 22855 de 22 de Novembro de 2013 da Conservatória do Registo Civil da 7ª Conservatória do Registo Civil de x... , originalmente correspondente ao assento nº 90/1991, lavrado em 23Mar1991;


*

Não conformado com esta decisão, impetrou o R. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

“3. Conclusões

1. Devem ser eliminados os factos elencados sobre os números 3 e 4 dos factos provados e passar a não provados;

2. Na realidade o aí constante não são factos, mas antes conceitos jurídicos, que carecem de ser integrados por factos;

3. Não obstante os ter alegado, a A. não logrou provar os factos integradores desses conceitos, 4. Nem os factos que foram provados são suficientes para integrar esses conceitos.

5. Ainda que assim se não entenda, a Sentença recorrida viola o disposto na al.a) do art.1781º do Código Civil;

6. Ao estabelecer como fundamento de divórcio “a separação de facto por um ano consecutivo” a Lei substantiva estabelece um requisito objectivo para que os cônjuges possam requerer o divórcio sem o consentimento do outro.

7. Esse requisito deve verificar-se à data em que a acção de divórcio é intentada.

8. Estando à data da interposição do divórcio os cônjuges separados de facto há apenas seis meses deve improceder a acção de divórcio.

9. Não colhe a interpretação de que o divórcio deve ser decretado se o ano de separação de facto sobrevier na pendência da acção de divórcio.

10. Se a A. tivesse alegado factos verdadeiros – que a situação fáctica descrita (ainda que se pudesse subsumir no conceito de separação de facto) ocorria há seis meses quando a acção de divórcio foi intentada, a acção teria de soçobrar logo no Saneador, dado faltar-lhe um requisito essencial.

11. A interpretação do Tribunal a quo viola, pois, o disposto na al.a) do art.1781º do Código Civil,

12. Como viola o princípio da estabilidade da instância, plasmado no art.260º do Código Civil,

13. Violando, também o princípio da igualdade das partes.

14. Se o legislador não quisesse que transcorresse um ano de separação de facto antes que os cônjuges pudessem requerer em juízo o divórcio sem o consentimento do outro, a redacção do preceito legal teria sido outra, por exemplo, que “é fundamento de divórcio a separação de facto”.

15. A interpretação que deve vingar da al.a) art.1781º do Código Civil é que, ao estabelecer um período de um ano de separação de facto entre os cônjuges, o legislador exige que esse requisito se verifique aquando da propositura da acção, não sendo possível o decretamento do divórcio ainda que esse ano se complete apenas na pendência da acção.

16. Se o ano de separação de facto se completar na pendência da acção, tal superveniência não pode ser aproveitada, nos termos do disposto no art.611º do Código Civil, uma vez que esse preceito legal exclui a sua própria aplicabilidade quando outras normas legais o impeçam,

17. E no caso concreto, impede-o a al.a) do art.1781º do Código Civil.

18. Os factos julgados provados também não podem subsumir-se na al.d) do art.1781º do Código Civil.

Nestes termos, nos melhores de Direito e nos do sempre mui Douto suprimento de V.Exa., deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogada a Sentença de primeira instância, sendo a mesma substituída por outra que não decrete o divórcio entre A. e R. Com o que se fará JUSTIÇA!”


*

           

Pela A. e ora recorrida foram interpostas contra alegações, pugnando pela manutenção do decidido e concluindo da seguinte forma:

“CONCLUSÕES:

1. O Recorrente alega que o Tribunal a quo terá feito uma incorreta interpretação da matéria de facto, mormente ao ter julgado verificada a separação de facto por um ano consecutivo, bem como, a rutura definitiva da vida conjugal comum dos cônjuges.

2. Alega que o Tribunal recorrido terá feito uma incorreta subsunção dos factos ao Direito, que considerou conceitos como factos, sem os ter densificado, e por isso fez uma incorreta apreciação da matéria de facto.

3. Ora, o Recorrente impugna matéria de facto sem, no entanto, cumprir o ónus que lhe incumbia nos termos do art. 640º nº 1 e 2 do CPC, não demonstrando que, concretos pontos da matéria de facto considera terem sido incorretamente julgados pelo Tribunal, bem como, face a estes em que sentido deveria o Tribunal ter decidido.

4. Estando, por isso, o recurso ferido de nulidade, a qual se argui e requer seja declarada com as consequências legais, mormente as previstas no referido artigo, devendo por isso, o mesmo ser rejeitado. Caso assim se não entenda,

5. O Recorrente alega ainda que a separação da habitação não implica a separação de facto e bem assim a rutura da vida conjugal, a Recorrida não se conforma com tal argumentação, ficou amplamente demonstrada a cessação da habitação e a rutura da vida conjugal, não só pela colocação de uma placa de esferovite material isolante e um armário a obstruir a porta de ligação das casas, como desde logo, da separação de casa, tudo afirma a pretensão de separação.

6. Resultou demonstrado o preenchimento do elemento subjetivo da alínea a) do art. 1781º - ou seja, o propósito de não mais restabelecer a vida em comum por parte da Recorrida, e o elemento Objetivo - a falta de vida em comum dos cônjuges.

7. Alega, porém, o Recorrente que resultando provada a separação de facto em agosto de 2019, à data de propositura da ação ainda não se verificava um ano de separação de facto, não podendo por essa via, proceder a ação.

8. A versão do Recorrente é desatualizada, pois, o Direito da família tem evoluído com os tempos e é hoje voltado para a individualidade dos membros do casal, conforme entendeu o Acórdão Supremo Tribunal de Justiça, datado de 23-02-2021, no âmbito dos autos 3069/19.0T8VNG.P1.S1, veio consagrar que «O artigo 611º, nº1, do CPC, permite, com algumas restrições, que na sentença sejam tomados em consideração factos que se produzam depois da propositura da ação. Na verdade, de acordo com este preceito, o Tribunal deve “(…) tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da ação de modo a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.”, assim o facto de se admitir a separação de facto na data de agosto 2019, não colide com a causa de pedir, não a altera nem a modifica, sendo por isso admissível nos termos do art. 588º do CPC.

9. Sobre a referência temporal da falta de decurso de um ano consecutivo de separação de facto ao tempo da propositura da ação prevalece o princípio da atualidade da decisão consagrado no art. 611.º do CPC. Está em causa como que uma espécie de “utilidade superveniente da lide”.»

10. Neste conspecto e volvendo-nos aos presentes autos, os cônjuges, encontram-se separados de facto, pelo menos, segundo resultou dos factos provados em audiência de julgamento, desde agosto de 2019, a audiência de discussão e julgamento aconteceu dois anos depois, e também aí a Autora/ Recorrida afirmou a sua vontade de cessar a união conjugal com o Recorrente, donde se infere a seriedade da vontade de cessar a relação conjugal.

11. Pelo que, a decisão proferida se reveste de atualidade, a qual deve prevalecer sobre formalismos exagerados.

12. Deste modo, e seguindo os ensinamentos do Douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, deverá a sentença proferida pelo Tribunal recorrido ser confirmada por não padecer de qualquer vicio, já que a mesma foi proferida em obediência aos factos verificados no momento do encerramento da discussão, servindo o Direito.

13. Acresce que a mesma serve em pleno os princípios plasmados na lei civil, mormente a economia processual e a utilidade das ações, já que mantendo a Autora/recorrida o propósito de se divorciar, como mantém, e atentos os circunstancialismos do presente, poderia já intentar nova ação, para obter o mesmo resultado que apresente ação já poderá contemplar, situação adversa à celeridade e eficácia processual.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V/Exas. doutamente suprirá, deve:

a) O recurso apresentado pelo Réu/Reconvinte ser rejeitado por não cumprir a formalidade prevista no art. 640º nº 1 e 2; Caso assim se não entenda,

b) Ser a Sentença proferida pelo Juízo de família e menores do Tribunal Judicial de Alcobaça ser confirmada por a mesma não padecer de qualquer vício e servir na plenitude os interesses do Direito.”


*

QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. rtigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:

a) Se estão verificados os requisitos para a admissibilidade da impugnação da matéria de facto;
b) se se verificam os pressupostos para decretar a dissolução do matrimónio contraído entre A. e R., com fundamento na separação de facto pelo período de um ano;


*


Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes adjuntos, cumpre decidir.


*

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

“1. A autora e o réu contraíram entre si casamento civil sem convenção antenupcial no dia 23 de Março de 1991 na 7ª conservatória do registo civil de x... .

2. Após discussões entre ambos de teor não concretamente apurado mas relacionadas pelo menos com questões financeiras e de educação das filhas, e que aumentaram na sua frequência desde 2016, autora e réu passaram, por mútuo acordo, a ocupar cada um deles apartamentos separados do mesmo edifício/prédio - anteriormente integrados, mas desde Agosto de 2019 isolados através da colocação de uma placa de esferovite, material isolante e um armário, por forma a obstruir a anterior porta de ligação.

3. A autora e o réu não fazem vida comum de casal pelo menos desde data não concretamente apurada do mês de Agosto de 2019 e têm acesso cada um à sua parte habitacional por portas diferentes a partir da parte comum do prédio.

4. A autora e o réu deixaram pelo menos desde essa data de fazer vida de casal e passaram a estruturar e a organizar a respectiva vida de forma separada.

5. A autora não pretende voltar a fazer vida em comum com o réu.

B) FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provou com relevância para a decisão da presente causa o seguinte:

a) Que desde o casamento do casal que se verificaram desentendimentos entre autora e réu e que tal se devesse – ou não se devesse – ao comportamento intransigente e inflexível do réu.

b) Que o réu nunca deixou a autora trabalhar, dizendo-lhe que o lugar dela era em casa a cuidar das filhas e dele.

c) Que a autora sempre acatou as ordens do réu.

d) Que a autora abdicou da sua realização profissional em prol das imposições matrimoniais do réu.

e) Que o réu tem o propósito de não restabelecer a vida em comum com a autora.

Mais nenhum facto – alegado quer pela autora quer pelo réu - foi considerado provado com relevância para a decisão da presente causa.”


*

DA REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO


            Vem o recorrente requerer a eliminação dos factos dados como provados sob os pontos 3 e 4, devendo passar a não provados, alegando para tanto que não se tratam estes de factos mas de conceitos jurídicos que não devem constar da matéria de facto e, por outro lado, que a A. alegou efectivamente factos, mas não os logrou provar.

Por sua vez a recorrida, considera não ter sido cumprido o ónus que decorre para o recorrente do disposto no artº 640 do C.P.C.

Ora, relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, versa o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

Lidas as alegações e conclusões do apelante não são indicados os meios de prova em que o apelante funda a sua discordância quanto à matéria de facto, muito menos as passagens da gravação que, no entender do apelante, impunham decisão diversa.

Assim sendo, no que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.»[1]

Nesta medida, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:

- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;

- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;

- E a decisão alternativa que é pretendida. (Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S).

O recorrente quer na indicação do objecto do recurso, quer nas suas conclusões, tem de definir em concreto aquilo que pretende ver reapreciado, expondo as razões da sua discordância, enunciando os concretos depoimentos (com identificação das passagens deste depoimento) e documentos que justificariam a alteração dos factos, indicando ainda os concretos factos que pretende ver modificados ou aditados, uma vez que o tribunal da relação se encontra delimitado quer pelo objecto indicado ao recurso, quer pelo âmbito das conclusões (que delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem).

Nas conclusões deve ser incluída a questão atinente à impugnação da matéria de facto, ou seja, aí deve introduzir-se, sinteticamente “os fundamentos por que pede a alteração (ou anulação) da decisão” (art. 639º nº 1), o que servirá para o recorrente afirmar que matéria de facto pretende ver reapreciada, indicando os pontos concretos que considera como incorrectamente julgados, face aos meios probatórios que indica nas alegações.

Não cumprindo as alegações e conclusões do recorrente este ónus, não é esta omissão passível de despacho de aperfeiçoamento.

Conforme refere Abrantes Geraldes[2] “A comparação que necessariamente tem que ser feita com o disposto no artº 639º e, além disso, a observação dos antecedentes legislativos levam-me a concluir que não existe, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento. Resultado que é comprovado pelo teor do art. 652º, nº1, al. a), na medida em que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do nº3 do artº 639.”  

Efectivamente, pretendeu-se com este regime legal, ao possibilitar a ampliação dos poderes da relação relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a imposição de regras muito precisas, sem a observância das quais o recurso deve ser liminarmente rejeitado.

Impõe-se assim a rejeição do recurso nesta parte.

O que não significa, no entanto, que não o tribunal não esteja obrigado a fazer uso, mesmo oficiosamente, dos poderes que lhe são cometidos pelo artº 662 do C.P.C., quando da prova já produzida, dos factos assentes ou do teor de documento superveniente resulte a alteração da matéria fáctica, ou quando a repute deficiente, obscura ou contraditória sem que no entanto essa obscuridade ou contrariedade determine a anulação da decisão, por poder ser suprida por intermédio da prova já produzida (alínea c) do seu nº2).

Ora, nas causas de deficiência ou obscuridade da matéria de facto terão de se incluir a inclusão de conceitos vagos, de direito ou de termos meramente genéricos e desprovidos de conteúdo fáctico.

Com efeito, na matéria de facto, conforme resulta do disposto no artº 607 do C.P.C. devem constar apenas os factos, mas não conclusões e conceitos de direito. Se tal acontecer, e apesar de do novo C.P.C. não resultar norma idêntica à que constava do artº 646 nº4 do C.P.C. (D.L. 329-A/95), mantém-se o entendimento de que “em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjectivação” [3], cabendo assim ao Tribunal de recurso, mesmo oficiosamente,, considerar como não escrita a decisão do tribunal sobre questões de direito “posto que a prova continua a incidir sobre factos, como se infere do citado artigo 410º do NCPC. E, conforme tem sido entendimento doutrinário e jurisprudencial esta solução aplicar-se-á, por analogia, às respostas que constituam conclusões de facto, designadamente quando as mesmas têm a virtualidade de, por si só, resolverem questões de direito a que se dirigem”[4].

Como já referia ALBERTO DOS REIS[5], “(…) tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória.”[6]

Volvendo aos pontos em questão, nestes fez o Sr Juíz de primeira instância constar que: “A autora e o réu não fazem vida comum de casal pelo menos desde data não concretamente apurada do mês de Agosto de 2019 e têm acesso cada um à sua parte habitacional por portas diferentes a partir da parte comum do prédio.

“A autora e o réu deixaram pelo menos desde essa data de fazer vida de casal e passaram a estruturar e a organizar a respectiva vida de forma separada.”

A expressão “vida de casal” ou “vida comum de casal”, não constitui um conceito de direito. Por outro lado, embora pudesse ser integrada por factos respeitantes à concreta vida do casal, ou seja a comunhão de leito, mesa ou habitação (integrada nos deveres impostos por via do disposto no artº 1672 do C.C.), a verdade é que esta expressão “não fazer vida de casal” e organizar “a sua vida de forma separada”, pertence ao léxico comum e dela decorre para o homem médio exactamente o que dela consta: que este casal vive vidas separadas e em casas fisicamente separadas, desde pelo menos Agosto de 2019, não partilhando nem leito, nem mesa, nem habitação.

Mantém-se assim a matéria de facto tal como adquirida pelo tribunal de primeira instância, por não se enquadrar em nenhum dos casos previstos no artº 662 do C.P.C. que impusesse a sua alteração oficiosa ou a eliminação das respostas dadas à matéria de facto.

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este tribunal, em não conhecer do recurso quanto á matéria de facto e em mantê-la inalterada.


*

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


Relativamente ao enquadramento jurídico da causa, vem o recorrente invocar que não está demonstrado o requisito constante da alínea a) do artº 1781 do C.C., pelo não decurso do prazo nele previsto à data da interposição da acção de divórcio e por não existir intenção de ruptura definitiva do matrimónio celebrado entre A. e R., devendo assim ser considerado improcedente o pedido de divórcio formulado pela A.

Decidindo


b)se se verificam os pressupostos para decretar a dissolução do matrimónio contraído entre A. e R., com fundamento na separação de facto pelo período de um ano;

Considerou a sentença recorrida que decorria dos factos provados a separação efectiva do casal bem como a intenção de não reatar a vida em comum, demonstrado pela propositura da acção de divórcio. Quanto ao cômputo do prazo previsto no artº 1781 a) do C.C., tendo em conta a data em que julgou verificada a separação do casal e a data de interposição desta acção, considerou que “a decisão material deverá sempre assentar em requisitos materiais (prazo material), não devendo aquela submeter-se a questões processuais, uma vez que a separação de facto por um ano é fundamento do divórcio e não mero fundamento de procedibilidade adjectiva. Aplicando agora o direito ao caso dos autos, atendendo à factualidade dada como provada, verifica-se que a autora e o réu se encontram separados de facto desde data não concretamente apurada de Agosto de 2019, o que significa há mais de um ano a esta parte, havendo ainda da parte da autora o propósito de não restabelecer a comunhão conjugal, estando assim preenchido na íntegra o circunstancialismo previsto na alínea a) do artigo 1781.º e no n.º 1 do artigo 1782.º do Código Civil.”

A este entendimento, opõe o apelante que o prazo não tinha decorrido à data da propositura da acção, sendo este um requisito prévio e condição de procedência do divórcio.

Alega ainda que a posição do tribunal de primeira instância choca frontalmente com o princípio da estabilidade da instância, tal como plasmado no art.260º do Código do Processo Civil e com o princípio da igualdade das partes, pois que o R. defendeu-se da concreta causa de pedir alegada pela A., ou seja, a separação de facto existente há mais de três anos.

Ora, é facto assente que a separação de facto entre os cônjuges ocorreu apenas no mês de Agosto de 2019 e não em 2017 como alegava a A. e que, por essa via, não decorrera ainda, à data da propositura da acção em 12/02/20, um ano de separação de facto consecutiva dos cônjuges. Se a inexistência deste requisito temporal à data da interposição da acção, obsta de per si ao decretamento do divórcio, depende, no entanto, da solução jurídica a dar à causa que passará sempre pela interpretação do disposto nos artºs 1781 alínea a) e 1782 do C.C.

Efectivamente, entre os fundamentos de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, permitidos pelo artigo 1781º do C.C., encontra-se “A separação de facto” inicialmente por três anos consecutivos e que, a partir da entrada em vigor da Lei 61/2008 de 31/10, passou a “um ano consecutivo”, conforme decorre da alínea a) deste preceito legal. O artº 1782 do C.C. veio densificar o conceito de separação de facto como causa de divórcio, esclarecendo que se entende existir separação de facto entre os cônjuges para efeitos daquela alínea, quando “quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.”, eliminando-se deste preceito ao anterior número 2 que determinava a apreciação da culpa dos cônjuges na separação, quando a haja, para efeitos do disposto no então artº 1787 do C.C.

Nesta medida, na redacção introduzida pela Lei 61/2008, para que a separação de facto entre os cônjuges constitua fundamento de divórcio, exige-se a verificação de dois elementos: um de natureza objectiva que consiste na cessação dos deveres conjugais impostos pelo artº 1676 do C.C., de partilha de leito, mesa e habitação, pelo prazo (mínimo) consecutivo de um ano; outro de natureza subjectiva, consistente na intenção de pelo menos um dos cônjuges, de não retomar a vida matrimonial em comum (cfr. decorre do disposto no artº 1782 do C.C.), independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges.

Em, relação ao elemento objectivo - separação de facto consecutiva pelo período de um ano - alega o recorrente que este não se verificava à data da propositura da acção, uma vez que resultou provado apenas que desde Agosto de 2019 os cônjuges não fazem vida em comum, estando a acção condenada ao insucesso ab initio, indicando a seu favor jurisprudência do TRL de 21 de Fevereiro de 2019, proferido no processo nº3/18.9T8SXL.L1-2, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Pedro Martins.[7]

Considerou, no entanto, a decisão recorrida que, tendo em conta o tempo decorrido desde a entrada em juízo da p.i. e a data da decisão, sem que A. e R. tenham retomado a sua vivência, tendo cessado toda a vida em comum entre os cônjuges e não pretendendo a A. retomá-la, se verifica o requisito constante da alínea a) deste preceito. Cita em abono da sua posição, jurisprudência do nosso Supremo Tribunal[8], a que aderimos, tendo em conta a ratio da alteração introduzida pela Lei 61/2008 de 31/10.

Com efeito, para interpretação da ratio do artº 1781 e 1782 do C.C., na sua actual versão, há que ter em conta, conforme resulta do artº 9 do C.C.,  não só a letra da lei, mas “reconstituir a partir dos textos, o pensamento legislativo (…), as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas em que é aplicada.” (negrito nosso)

Para reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo é necessário examinar o projecto que deu origem a esta Lei e a respectiva exposição de motivos. Na elaboração da Lei, mormente no que se reporta aos requisitos do divórcio, o legislador assumiu como princípio o de que ninguém deveria permanecer casado contra a sua vontade se tiver existido quebra do laço afectivo, independentemente do requisito da culpa (violação culposa dos deveres conjugais cfr. se previa na anterior redacção do artº 1779 do C.C.).

É o que decorre do disposto neste diploma legal e da exposição de motivos que o antecedeu e que constam do Projecto Lei n.º 509/X, apresentado pelo Partido Socialista, no qual se discorre que: “Em primeiro lugar, elimina-se a culpa como fundamento do divórcio sem o consentimento do outro, tal como ocorre na maioria das legislações da União Europeia e alargam-se os fundamentos objectivos da ruptura conjugal. O abandono do fundamento da culpa é, aliás, ponto de convergência na legislação europeia como se pode ler na obra atrás citada: “A eliminação a qualquer referência à culpa é consistente com a evolução da lei e da prática nos sistemas legais europeus analisa­dos. Em muitos desses sistemas a culpa foi abandonada. Mesmo os poucos que, de forma parcial, a mantém muitas vezes na prática evoluíram na direcção do divórcio sem culpa. De qualquer dos modos é difícil atribuir culpa apenas a um dos cônju­ges” (in Boele-Woelki et al. (2004), Principles of European Family Law Regarding Divorce and Maintenance Between Former Spouses, Commission on European Family Law, Antwerp-Oxford, Intersentia, p.55).

Assim, “qualquer cônjuge que considere que o seu casamento já não reúne condições de afetividade, de equilíbrio emocional ou que atente contra a sua dignidade deve poder pôr termo à relação conjugal, mesmo contra a vontade do outro cônjuge. A invocação da rutura definitiva da vida em comum deve ser fundamento suficiente para que o divórcio possa ser decretado, sem necessidade de mais condições e sem estar na dependência da aceitação do outro cônjuge.”[9], ou seja sem necessidade de aferição de culpa de qualquer dos cônjuges e sem dependência sequer de prazo, conforme decorre da adopção pelo legislador de uma clausula geral, constante da alínea d) do artº 1781 do C.C.

Pretendeu afinal o legislador adoptar um modelo de divórcio fundado em causas objectivas e já não subjectivas, fundado na ruptura definitiva da vida afectiva e familiar daqueles cônjuges, por contraponto ao modelo de divórcio-sanção até então adoptado, considerando que o matrimónio constitui um projecto contratual e voluntário de vida em comum, que só existe e tem sentido enquanto se configurar como tal, mas não existe quando um dos membros já não pretende permanecer neste projecto de vida, equaciona eventualmente outros projectos de que já não fará parte o então cônjuge e assume uma intenção de ruptura definitiva do modelo existente. Neste caso “Colocar obstáculos ao divórcio quando ele constitui decisão de acordo mútuo, ou pelo menos vontade expressa de um dos envolvidos, é levantar obstáculos e impedir a concretização legal de outros projectos de vida.” e ficcionar e manter uma aparência de matrimónio, sem qualquer correspondência com a realidade.

Como bem se refere no Ac. STJ de 09.02.2012[10], “era já o «divórcio-sanção» como uma entidade em vias de ser ultrapassada e a adesão ao conceito-modelo do «divórcio-constatação da ruptura conjugal» como uma nova realidade destinada a ser o instrumento para a obtenção da felicidade de ambos os cônjuges, razão pela qual sempre que um deles entenda, mesmo numa perspectiva egoísta, que, pelo menos, para si, essa felicidade já não pode ser alcançada com o casamento, goza de legitimidade para requerer o divórcio, ainda que a responsabilidade pela falência do casamento lhe possa ser imputada, em exclusivo.

É agora a concepção do divórcio unilateral e potestativo, em que um dos cônjuges pode por termo ao casamento, por simples declaração de vontade singular, sem que haja lugar à apreciação da culpa ou à aplicação de sanções, o que acaba por significar que o fundamento da ruptura se traduz na inexistência de uma plena comunhão de vida entre os cônjuges, a que alude o artigo 1577º, do CC, isto é, numa expressão mais redutora, quando a «affectio conjugalis» e a cumplicidade entre os cônjuges baixou ao grau zero de satisfação para um deles, e em que a lei não pode sobrepor-se ou substituir-se à vontade do cônjuge que pretende a dissolução do seu casamento.

Trata-se, afinal, do direito ao casamento e do direito ao divórcio como duas faces inseparáveis da mesma moeda, expressão do princípio da autonomia da vontade, que, na hipótese do divórcio, pode ainda ser decretado, em consequência da vontade unilateral de um dos cônjuges, nos casos e termos previstos na lei, atento o estipulado pelos artigos 406º, nº 1 e 1781º, do CC, na sequência do entendimento que reconduz o casamento a um contrato dissolúvel pela vontade das partes, porque celebrado com vista à sua felicidade.

Com efeito, a relação a dois existente dentro do casal, movida pelo propósito da realização pessoal, independentemente de qualquer quadro de valores e de respostas externas, apenas baseada no compromisso permanente e na gratificação renovada, contém, em si mesma, o acordo prévio sobre a sua própria dissolução. A ideia do casamento como relação pura, baseada no compromisso privado, que contém em si a possibilidade antecipada da sua dissolução, torna injustificada a definição de deveres conjugais imperativos, conduzindo os sistemas jurídicos para uma regulamentação minimalista do sistema de divórcio.

Tratou-se do prenúncio do aparecimento do modelo do «divórcio sem culpa», assente na constatação da ruptura do matrimónio, indiciada por causas objectivas, ou no acordo dos cônjuges, através do mútuo consentimento activo ou do consentimento passivo do cônjuge que se não opõe ao pedido de divórcio formulado pelo outro”.

No âmbito deste entendimento de que o divórcio sanção, dependente de culpa de um dos cônjuges, se tratava de um modelo já ultrapassado pela vivência da sociedade dita moderna, veio o legislador, por meio da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, consagrar um outro modelo “moderno” de casamento, por contraposição ao seu modelo “tradicional”, modelo esse que conforme resulta do projecto de lei, “desvaloriza o lado institucional e faz do sentimento dos cônjuges, ou seja, da sua real ligação afectiva, o verdadeiro fundamento do casamento”, que passa a ser “tendencialmente”, ou, no limite, antes que uma “instituição”, “uma simples associação de duas pessoas, que buscam, através dela, uma e outra, a sua felicidade e a sua realização pessoal”, ideia que justifica e propugna a dissolução jurídica do vínculo matrimonial quando, independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges, ele se haja já dissolvido de facto, por se haver perdido, definitivamente, e, sem esperança de retorno, a possibilidade de vida em comum.

Com efeito, o chamado divórcio-ruptura, em contraposição ao divórcio-sanção, funda-se em causas objectivas, designadamente a separação de facto, reconhecendo-se que o vínculo matrimonial se pode perder independentemente da causa do fracasso da vida conjugal. E, se para a separação de facto o legislador estipulou um prazo mínimo de um ano para a obtenção do desiderato de dissolução do vínculo matrimonial, consagrou ao mesmo tempo uma clausula geral de dissolução do matrimónio, independente de culpa e sem qualquer dependência de prazo, constante da alínea d), ou seja, consagrou como fundamento do divórcio “quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.” Refira-se que a própria cessação da vida em comum e a prática de outros factos, como a constituição de novos núcleos familiares ou outros de onde resulte a ruptura definitiva, pode constituir fundamento de divórcio ao abrigo desta clausula geral, independentemente e sem necessidade de alegação de qualquer prazo.[11]

Da exposição de motivos desta lei e das alterações efectuadas ao regime de divórcio vigente, se tem de concluir que, conforme enunciado, o legislador procurou activamente evitar que qualquer cônjuge permanecesse casado contra a sua vontade.

É neste enquadramento que se terá de entender a questão do prazo previsto na alínea a) do artº 1781 do C.C.

Reconhecendo-se o mérito do raciocínio explanado no Ac. do TRL citado pelo recorrente, não podemos, no entanto, com ele concordar, pelas razões que acima enunciámos e que se prendem com a motivação do legislador. Acresce que, conforme refere a bem fundamentada decisão recorrida, o prazo previsto neste preceito, é um prazo de direito material e não processual, justificando-se assim a aplicação do disposto no artº 611 nº1 do C.P.C., o qual dispõe que “Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições gerais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser aletrada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos (…) que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à decisão existente no momento do encerramento da decisão.”

Não se conhece restrição a que seja considerado como facto constitutivo do direito da A. o prazo decorrido na pendência desta acção, tendo em conta que tendo esta dado entrada em juízo em 12/02/20, a sentença foi proferida em 12/09/21, mais de dois anos decorridos desde a data da separação de facto dos cônjuges, sem que estes tenham retomado, ou haja sequer intenção de retomar, a vivência em comum e decorrendo dos autos, pelo contrário, a ruptura definitiva deste matrimónio. Pois que outra coisa significaria, se não ruptura definitiva do matrimónio, a colocação de uma placa de esferovite, material isolante e um armário, por forma a obstruir a anterior porta de ligação entre dois apartamentos, habitando num a A. e noutro o R., e utilizando, inclusive, portas separadas para acesso aos imóveis, de forma a assegurar que não existe qualquer contacto?

Será então viável e inserido nos objectivos pretendidos pelo legislador com a alteração legislativa levada a cabo em 2008, considerar a manutenção de um vínculo meramente formal entre os cônjuges, apesar de desde pelo menos Agosto de 2019 e há mais de dois anos, existir uma separação de facto entre estes mesmos cônjuges?

Viola a consideração deste prazo no decurso da acção, o princípio da estabilidade da instância plasmado no artº 260 do C.P.C., conforme pretende o recorrente? Não o julgamos igualmente, tendo em conta que não existe efectiva alteração da causa de pedir, mas apenas integração no âmbito desta causa de pedir de factos decorridos também no decurso da acção. No inverso, refira-se que ainda que se verificasse o requisito temporal previsto neste preceito, poderia ainda assim a acção improceder se, no decurso desta fossem trazidos aos autos factos que demonstrassem não se verificar a intenção de não restabelecer a relação matrimonial.

Assim sendo, entendemos ser de considerar para o cômputo do prazo previsto nesta alínea a), o tempo decorrido entre a interposição da acção e a data da decisão que aprecia os fundamentos de divórcio. É esta aliás a posição jurisprudencial mais recente[12], inclusivé do nosso Supremo Tribunal. Como se refere em recente Ac. do STJ de 23/02/2021[13]sobre a referência temporal da falta do decurso do prazo de um ano consecutivo de separação de facto ao tempo da propositura da ação prevalece o princípio da atualidade da decisão consagrado no art. 611.º do CPC.”, actualidade da decisão que não implica qualquer alteração à causa de pedir “à revelia das normas que regem a modificação objetiva da instância (arts. 264.º e 265.º, n.º 1, do CPC) - mas permitida pelo art. 588.º, do CPC -, porquanto se trata de facto alegado pela Autora desde a petição inicial, como elemento da causa de pedir da presente acção”.

Por último, não se vê em que medida este princípio da actualidade da decisão contende com o princípio da igualdade das partes. É que sobre esta separação e o respectivo prazo, pode o R. deduzir oposição invocando a sua inexistência e inclusive produzir prova destinada a convencer do contrário. A consideração do momento temporal verificado no decurso da acção não significa privilegiar uma parte em detrimento da outra, mas apenas considerar todos os factos e circunstâncias relevantes para a decisão até ao momento em que esta é proferida, por forma a que a decisão corresponda à realidade verificada na data da decisão. É que, conforme decorre do preâmbulo deste diploma legal que alterou o regime do divórcio, privilegia-se o divórcio-ruptura, pelo que “O princípio da liberdade de escolha dos cônjuges postula que ninguém deve permanecer casado contra sua vontade.”( Ac. do STJ de 23/02/21, cit.)     

Por outro lado, resulta ainda dos factos que se deram como assentes a verificação do elemento subjectivo, ou seja, a intenção de um dos cônjuges de não restabelecer a vida matrimonial comum.

A este respeito tem sido entendido por parte significativa da nossa jurisprudência que a simples propositura da acção de divórcio, revela de forma inequívoca a intenção de não restabelecer a vida matrimonial comum e constitui igualmente um índice seguro de que a relação entre os cônjuges se degradou irremediavelmente.[14]

É certo que jurisprudência existe que considera não ser este um requisito bastante para se considerar verificado o elemento subjectivo imanente ao direito que a A. pretende fazer valer, como resulta da posição expressa no Ac. da R.L. 15/05/2012[15] que citando FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA[16], refere ser este “um ponto de vista que merece muitíssimas reservas; e, por isso, não aceitável, já que desconsidera a exigência normativa de que o propósito do cônjuge seja contemporâneo do início da separação e que a acompanhe; que constitua real motivação sua.
Escrevem, por isso, aqueles autores:“Só esse animus dá sentido ao corpus da separação. Só quando não exista comunhão de vida entre os cônjuges e haja da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não restabelecer a comunhão de vida, e quando aquela situação e este propósito se mantenham durante determinado prazo, é que a esperança de reconciliação se torna remota e o legislador deixa de acreditar nela, permitindo a qualquer dos cônjuges pedir o divórcio …”

A este respeito há que referir que não oferece dúvida que o animus de não restabelecimento da vivência matrimonial é elemento essencial para se julgar verificado este fundamento de divórcio. No entanto, que outro facto mais inequívoco deste animus de não restabelecimento da vida matrimonial existe, que a própria interposição de pedido de divórcio? Cremos que é este pedido que revela que a ruptura conjugal é definitiva e irreversível, consubstanciado na intenção de um dos cônjuges de dissolver o aludido vínculo.

Ainda assim, no caso em apreço ter-se-á de conciliar este facto - a A. intentou pedido para dissolução do seu matrimónio – com o facto de ambos os cônjuges por mútuo acordo, terem passado a ocupar cada um deles apartamentos separados do mesmo edifício/prédio - anteriormente integrados, mas desde Agosto de 2019 isolados através da colocação de uma placa de esferovite, material isolante e um armário, por forma a obstruir a anterior porta de ligação., utilizando portas separadas para aceder ao edifício. É da conjugação destes dois elementos, que resultam o corpus e o animus da separação de facto, que se verifica há mais de dois anos.

Conclui-se, assim, preenchida a causa de divórcio prevista na alínea a) do artº 1781 do C.P.C., tendo em consideração que não é licíto a qualquer dos cônjuges forçar o outro á manutenção da sociedade conjugal.[17]

   Assim sendo, improcede a apelação, mantendo-se o decidido na decisão recorrida que decretou o divórcio entre A. e R.


***

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente a apelação interposta pelo R.
***

Custas pelo apelante (artº 527 nº1 do C.P.C.)

Coimbra 18/01/22


[1] A. STJ de 01.10.2015, P. nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; A. STJ de 14.01.2016, P. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; A. STJ de 11.02.2016, P. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; A. STJ, datado de 19/2/2015, P. nº 299/05, Tomé Gomes; A. STJ de 22.09.2015, P. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; A. STJ, datado de 29/09/2015, P. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão do S.T.J de 31.5.2016, Garcia Calejo, P. nº 1572/12; Acórdão do S.T.J. de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, P. nº 449/410; Acórdão do S.T.J. de 27.1.2015, Clara Sottomayor, P. nº 1060/07.
[2] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª ed., pág. 157. No memso sentido vide ainda AMÂNCIO FERREIRA, Manual de Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 170; LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, pág. 466 e LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 62.
[3] Acs. do STJ de 12-07-2018, Revista n.º 88/14.7TJPRT.P3.S2 e de 12-01-2021, Revista n.º 2999/08.0TBLLE.E2.S1, disponíveis em www.dgsi.pt
[4] Neste sentido veja-se ainda LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 605-07, ABEL SIMÕES FREIRE, Matéria de Facto – Matéria de Direito, C.J./STJ, ano XI, tomo III, 5-9
[5] Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora, 212.
[6] A. do TRL de 14/04/16, relatora Ondina Carmo Alves, proferido no proc. nº 273/14.1TBSCR.L1-2, disponível para consulta in www.dgsi.pt
 
[7] Existindo diversa outra jurisprudência e doutrina em abono desta posição, entre as quais se indicam a constante do Ac. do TRE de 07/12/17, proferido no proc. nº 1042/17.2T8FAR.E1, disponível in www.dgsi.pt; no sentido de que os requisitos de duração temporal da separação têm de estar reunidos à data da instauração da acção, sendo irrelevante que se verifiquem posteriormente, vide ainda Ac. do TRL de 15/05/12, relator Luís Lameiras, proc. nº 9139/09.6TCLRS.L1-7, igualmente disponível in www.dgsi.pt; na doutrina ABEL PEREIRA DELGADO, O Divórcio, 1980, 69, FERNANDO BRANDÃO FERREIRA PINTO, Causas do Divórcio, 1980, 122 e TOMÉ D’ALMEIDA RAMIÃO, O Divórcio e Questões Conexas (Regime Jurídico Actual), 2ª ed. 67 a 68, embora em Acs. recentes este Autor tenha vindo a reverter esta posição, conforme decorre do Ac. do TRE de 27/06/2019, proferido no proc. nº 420/18.4T8FTR.E1.

[8]Nomeadamente os Acórdãos vide Acórdão da Relação de Évora de 27Fev2020, proc. 1055/19.0T8STR.E1 ou Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3Nov2005 proc. 05B2266, ambos disponíveis na Internet no sítio www.dgsi.pt.
 
[9]Divórcio e Responsabilidades Parentais”, 2ª edição, CEJ, Dezembro de 2013
[10] Relator Hélder Roque, proferido no proc. 819/09.7MPRT.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt
[11] Em Acórdão relatado pela ora Relatora, no TRL em 07/02/19, (proc. nº 3133/15.5T8CSC.L1) foi considerada preenchida esta clausula geral num caso em que o requerente de divórcio abandonara o domicílio conjugal e posteriormente fora residir e trabalhar noutro país, tendo cessado toda e qualquer vivência matrimonial e contactos com a requerida e manifestando não pretender reatá-la, situação que se verificava há menos de um ano, estando inclusive reguladas as responsabilidades parentais em relação a filho menor do casal. 
[12] Neste sentido, vide ainda Ac. do TRL de 23/02/21, em que foi relator Diogo Ravara, proferido no proc. nº 1942/19.5T8CSC-D.L1-7, disponível para consulta in www.dgsi.pt
[13] Proferido no Ac. nº 3069/19.0T8VNG.P1.S1, relatora Maria João Vaz Tomé, disponível in www.dgsi.pt.
[14] Neste sentido veja-se os Ac.s do TRE de 23/02/06, relatora Maria Alexandra Santos, proc. nº 1924/05-3 e de 27/06/2019, relator Tomé Ramião, proc. nº 420/18.4T8FTR.E1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[15] Relatado por Luís Lameiras, no proc. nº 9139/09.6TCLRS.L1-7, disponível in www.dgsi.pt.
[16] Curso de Direito da Família, volume I (Introdução, Direito Matrimonial), 4ª edição, páginas 638 a 639, nota (75).
[17] Neste sentido Ac. do STJ de 03.10.2013 (Pº 2610/10.9TMPRT.P1.S1) e Ac. do TR.L. de 22.10.2013 (Pº 16/11.1TBHRT.L1-7), acessíveis in www.dgsi.pt