Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
482/11.5TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: SERVIDÃO PREDIAL
CONSTITUIÇÃO
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1547º, Nº 1 E 1548º, Nº 2 DO C. CIVIL.
Sumário: I – A constituição de uma servidão legal de passagem por usucapião, feita actuar no quadro do nº 2 do artigo 1547º do CC (constituição por sentença judicial), não corresponde aos pressupostos elencados no artigo 1550º do CC, não pressupondo qualquer situação de encravamento predial ou de excessivo incómodo ou dispêndio na comunicação com a via pública do prédio afirmado como dominante.

II – As servidões prediais legais, no sentido do nº 2 do artigo 1547º do CC – não no sentido do artigo 1550º do CC –, correspondem a quaisquer utilidades susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, como paradigmaticamente sucede com o direito de passagem sobre o prédio serviente.

III – A constituição destas servidões por usucapião pressupõe serem elas aparentes, nos termos definidos no artigo 1548º, nº 2 do CC, e a ocorrência de um uso reiterado da correspondente utilidade por certo lapso de tempo (artigo 1287º do CC), em termos aptos a desencadear a respectiva prescrição aquisitiva (usucapião).

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. Em 14/02/2011[1] M… e marido, A… (1ºs AA. e Apelados) e D… e marido, J… (2ºs AA. e Apelados), demandaram R… e mulher, F… (1ºs RR. e Apelantes no contexto da presente instância de recurso), e Q… e mulher, H… (2ºs RR.).

            Com esta acção pretendem os AA. o reconhecimento judicial de uma servidão de passagem com determinadas características – constituída de antanho por usucapião – em beneficio de dois prédios, respectivamente dos 1ºs e 2ºs AA., onerando prédios dos 1ºs RR. e um prédio dos 2ºs RR.

A este respeito formulam os AA. os seguintes pedidos:
“[…]
Deve a presente acção ser julgada procedente por provada, e em consequência:
a) Declarar-se a propriedade dos Primeiros Autores sobre o prédio referido em 1º[[2]].
b) Declarar-se a propriedade dos Segundos Autores sobre o prédio referido em [24º[3]].
c) Declarar-se a existência de uma servidão de passagem, com as características referidas em 21º[[4]], em favor do prédio dos Primeiros Autores identificado em 1º e a onerar os prédios dos Primeiros Réus referidos em 7º[[5]].
d) Declarar-se a existência de uma servidão de passagem, com as características referidas em 34º[[6]], em favor do prédio dos Segundos Autores identificado em [24º] e a onerar os prédios dos
Primeiros Réus referidos em 7º e o prédio dos Segundos Réus referidos em 12º[[7]].
e) Condenarem-se os Réus a reconhecerem as aludidas servidões de passagem e a absterem-se de actos que as violem, a desobstrui-las, bem como os Primeiros Réus a repor a situação prévia ao escavamento alegado em 42º[[8]].
[…]”.

            1.1. Contestaram os 2ºs RR. aceitando a existência de uma servidão onerando o respectivo prédio bem como o dos 1ºs RR., com mais de 30 anos de uso, apenas contestando a largura desta no que exceda 2,50 m.

            1.1.1. Os 1ºs RR., por sua vez, contestaram longamente (131º artigos para responder a 43º artigos dos AA.), negando terminantemente a existência de qualquer servidão em favor dos prédios de qualquer dos demandantes, invocando antes uma – notoriamente inexistente – excepção de ilegitimidade dos 1ºs AA., derivada de “só” reterem estes a nua propriedade do prédio dominante (com atribuição a terceiros do usufruto)[9]. E também invocaram os 1ºs RR., desta feita em abono da improcedência, a inexistência de encravamento do prédio dos 2ºs AA. (ou de encravamento superveniente só por divisão de um prédio matriz original)[10].

            1.2. Saneado e condensado o processo, evoluiu ele para o julgamento. A culminar este, depois de fixados os factos provados por referência à matéria questionada na base instrutória (isto através do despacho de fls. 576/587), foi a acção decidida em primeira instância pela Sentença de fls. 589/611esta constitui, integrada pelo aludido despacho de fls. 576/587, a decisão objecto do presente recurso – no sentido da procedência parcial, através do seguinte pronunciamento:
“[…]
a)- reconheço o direito de propriedade dos primeiros autores sobre o prédio referido no ponto 1) da factualidade assente [prédio dos 1ºs AA.],
b) - reconheço o direito de propriedade dos segundos autores sobre o prédio referido no ponto 9) da factualidade assente [prédio dos 2ºs AA.],
c) reconheço que em benefício do prédio referido em a) se encontra constituída uma servidão de passagem com as características e finalidades descritas nos pontos 22) a 39) da factualidade assente, a onerar os prédios referidos no ponto 6) da factualidade assente [prédio dos 1ºs RR.], condenando os primeiros réus a reconhecerem tal direito de servidão,
d) reconheço que em benefício do prédio referido em b) se encontra constituída uma servidão de passagem com as características e finalidades descritas nos pontos 49) a 63) da factualidade assente, a onerar os prédios referidos em 6) e 8) da factualidade assente, condenando todos os réus a reconhecerem tal direito de servidão,
e) condeno os primeiros réus a absterem-se de praticar quaisquer actos que violem os direitos de servidão reconhecidos em c) e d), a desobstruí-las bem como a reporem a situação anterior ao referido no ponto 68) da factualidade assente,
f) absolvo os segundos réus do demais peticionado pelos segundos autores.
[…]”.

            1.3. Inconformados, apelaram os 1ºs RR. – a motivação e conclusões do recurso ocupam todo o 4º volume do processo, fls. 612/842 –, formulando as seguintes oitenta conclusões:
“[…]


II – Fundamentação

            2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pelos Apelantes – transcrevemo-las no antecedente item 1.3.[11] – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC) – ou, se se entendesse aplicável o Novo CPC, nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º deste[12]. Assim, fora das conclusões só valem, em sede de recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo, em qualquer dos casos, o artigo 660º, nº 2 do CPC, ou o artigo 608º, nº 2 do Novo CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

            Tentando delimitar os fundamentos do recurso – isto, com correspondência nas conclusões, dentro do confuso argumentário dos Apelantes[13] –, temos, numa primeira aproximação, duas referências decisórias, correspondendo estas, genericamente, aos dois fundamentos que detectamos no presente recurso:
(1) – a primeira referência – o primeiro fundamento da apelação (a) – é constituída pelo trecho do despacho de fls. 270 (o ponto 10 deste despacho) que desatendeu a reclamação dos 1ºs RR. quanto à base instrutória, reclamação constante de fls. 232/235. Pretendem os Apelantes a este respeito a quesitação adicional (logo a repetição do julgamento com esse objecto) dos elementos por eles indicados nesse requerimento de fls. 232/235[14];
(2) – a segunda referência decisória – o segundo fundamento do recurso (b) – respeita à Sentença final de fls.589/611, integrada pelo despacho de fls. 576/587, no sentido em que os Apelantes pretendem introduzir no recurso uma nova discussão total da matéria de facto em termos conducentes – em termos que eles pretendem venha a conduzir – à supressão dos elementos dos factos dos quais o Tribunal a quo deduziu o reconhecimento de uma servidão de passagem (o caminho da Eira), de antanho constituída por prescrição aquisitiva sobre o prédio dos 1ºs RR. (parcialmente sobre o prédio dos 2ºs RR. como estes reconheceram nesta acção logo à partida), em benefício dos prédios (os prédios dominantes) dos AA. Claro que este segundo fundamento do recurso visa, pela desejada mudança radical de todos os factos relevantes para a procedência parcial da acção, a obtenção de um julgamento-outro excluindo a existência da servidão afirmada na Sentença de primeira instância.

            São estes, pois, os fundamentos do recurso que, não obstante os moldes confusos em que a impugnação foi construída, conseguimos detectar no conjunto das oitenta conclusões apresentadas pelos Apelantes.

2.1. Os factos fixados na primeira instância são os seguintes:
“[…]

            2.2. (a) Conforme acima caracterizámos este primeiro fundamento do recurso, nele está em causa o trecho com o nº 10 do despacho de fls. 269/271, trecho especificamente situado a fls. 270, que se pronunciou, desatendendo-a, sobre a reclamação dirigida pelos 1º RR. (a de fls. 232/235) quanto à selecção de factos constante da base instrutória. Pretendiam estes RR. nessa reclamação que fosse quesitado adicionalmente o teor dos artigos 27º a 30º, 73º a 78º e 127º da respectiva contestação.

            Estes elementos – e estamos a repetir aqui o sentido do que os 1ºs RR. afirmaram a fls. 232 e retomam, sem originalidade alguma, no presente recurso – permitiriam determinar, por um lado, que o prédio dos 2ºs AA. resultou de uma divisão que lhe retirou um acesso à via pública, originariamente existente, e que só em resultado de permutas envolvendo outros imóveis o prédio dos 1ºs AA. teria ficado encravado. Tratar-se-ia, portanto, defendem os 1ºs RR, de algo aparentado a um encravamento voluntário. Note-se que, em qualquer dos casos, esta questão aparece associada ao entendimento, sempre presente no argumentário destes RR./Apelantes, de que um hipotético não encravamento dos prédios dos AA. (ou um encravamento só superveniente ocorrido por mudanças dominiais diversas) excluiria a afirmação da existência da servidão de passagem aqui em causa.

Trata-se este ponto de vista, como já de seguida veremos, de um solecismo. É que pressupõe esta construção – e tal pressuposição assenta num erro – a existência de uma ligação necessária entre o encravamento de um prédio, enquanto incidência apta a desencadear a constituição de uma servidão legal de passagem, nos termos do artigo 1550º do Código Civil (CC)[15], e a constituição de qualquer (outra) servidão de passagem mesmo que baseada, como aqui sucede, num uso reiterado determinante de uma prescrição aquisitiva (a designação pretérita da usucapião) relativamente a prédio dominante não encravado ou cuja comunicação com a via pública não possa ser considerada insuficiente. Ora, esta ligação necessária ou condicionante – que teria de conduzir, aliás, à afirmação de só se poderem constituir por usucapião servidões legais de passagem por encravamento –, tal ligação do encravamento à constituição por usucapião, dizíamos, não existe, sendo constituíveis por usucapião, e concretamente por sentença judicial que declare essa incidência, no sentido do nº 2 do artigo 1547º do CC (que, basta lê-lo, não prevê o encravamento predial, v. a nota 19, infra), servidões de passagem – e usamos aqui a terminologia do Código de Seabra (v. o respectivo artigo 2271º)[16] – “constituídas por facto do homem”, como são as servidões que, mesmo sem encravamento algum, se tenham constituído por via de um uso reiterado, durante certo lapso de tempo (v. o artigo 1287º do CC) do direito real de gozo correspondente à servidão predial (rectius, correspondente à realidade com o conteúdo indicado no artigo 1543º do CC[17]), em que o efeito constitutivo desse uso (que é a prescrição aquisitiva/usucapião) é feito actuar ope iudicis[18]. Ou seja, e isto encerra o cerne da presente acção, pretendem aqui os AA. ver declarada a constituição de uma servidão legal (no sentido dos pressupostos legais definidos nos artigos 1543º a 1546º do CC) porque a recusa dos 1ºs RR. em aceitar essa realidade – muito sintomaticamente não a recusa dos 2ºs RR. – impossibilita a constituição voluntária dessa servidão e requer, pois, o recurso à via judicial[19]. Vale isto, enfim, por dizer que ser uma servidão de passagem o que aqui se visa não significa que se pretenda declarar a constituição de uma servidão assente na facti species do artigo 1550º do CC. Significa antes, e tão-somente, que se pretende obter a declaração de uma servidão, da realidade definida no artigo 1543º do CC, cuja utilidade (o conteúdo desta no sentido do artigo 1544º do CC) corresponde a um direito de passagem com determinadas características espaciais sobre os prédios dos RR. em benefício dos prédios dos AA. Pretendem estes, enfim, a declaração da passagem comummente designada (desde logo por todas as pessoas ouvidas em julgamento) por “caminho da Eira” – este abrangendo a bifurcação final[20] que consubstancia o acesso aos prédios dos AA. – ou, coincidentemente com a toponímia aposta no local, por prolongamento da “Rua da Eira”[21], correspondendo esta ao trecho inicial (comum) do caminho, retratado a fls. 531 a 533[22].

            Interessa sublinhar esta incidência, maxime interessa-nos aqui no quadro da caracterização da servidão pretendida constituir – no sentido de ver declarada judicialmente a constituição desta – pelos AA., tornando claro ser a realidade aqui visada estranha à ideia de encravamento predial e, nesse sentido, ser irrelevante, na pesquisa dos seus elementos de facto constitutivos (que são o uso daquele caminho, com aquelas características, por determinado lapso de tempo), um possível encravamento dos prédios dos AA. ou, mesmo até, tal encravamento ter ocorrido nas circunstâncias alegadas pelos 1ºs RR. Note-se que isto mesmo foi explicitado aos 1ºs RR. de forma resumida mas absolutamente clara no despacho de fls. 270 no seu ponto 10, que aqui transcrevemos:
“[…]
10 – Não estando em causa a constituição de uma servidão legal de passagem, mas sim o reconhecimento de uma servidão de passagem constituída por usucapião, o alegado pelos 1ºs RR. nos artigos 27º a 30º, 73º a 78º e 127º da contestação não assume relevo autónomo para a boa decisão da causa, pois que não configura acto constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo.
Assim, julgo improcedente a reclamação apresentada pelos primeiros RR. contra a base instrutória.
[…]”.

            É esta a base – continua a ser esta a base – para não se proceder às alterações pretendidas pelos Apelantes na base instrutória: estamos perante elementos inócuos para a acção construída pelos AA. (para causa de pedir por eles estruturada), no sentido em que esses elementos visados aditar à base (o não encravamento predial ou o encravamento só ulteriormente ocorrido) não dispõem de aptidão destrutiva ou bloqueadora da consequência pretendida extrair pelos AA. dessa causa de pedir. Com efeito, a servidão de passagem constituída por usucapião visada pelos AA. não deixaria de ser declarada, mesmo face à realidade invocada pelos 1ºs RR. nos artigos 27º a 30º, 73º a 78º e 127º da respectiva contestação.

            2.2.1. (a) Não obstante, não deixaremos aqui de frisar que a questão do encravamento, foi efectivamente apurada na instrução e julgamento do processo, em termos que tiram sentido ao afirmado pelos Apelantes. Interessam a este respeito os itens 20 e 48 do rol dos factos, sendo que esta realidade, que é excludente da ideia de um não encravamento com o sentido que os Apelantes pretenderam dar-lhe, foi aqui objectivamente apurada por via de inspecção ao local, nos termos caracterizados em sede de fundamentação das respostas à base no segundo parágrafo de fls. 582[23]. Trata-se, pois, a questão do acesso dos dois prédios dominantes à via pública, de uma questão perfeitamente esclarecida – fundamentalmente sem relevância para o objecto da acção, como acima o caracterizámos –, e esclarecida através de fonte de prova imune às elaborações que a tal respeito resultassem da prova testemunhal. De qualquer forma, relativamente a esta prova, mesmo quanto às testemunhas dos 1ºs RR. (remete-se, entre outros, para os depoimentos das testemunhas …[24]), assumiu-se ela como perfeitamente corroborativa das asserções presentes nos itens 20 e 48 dos factos acima transcritos.

            Improcede, pois, este fundamento do recurso (aquele que, referindo-se essencialmente ao despacho de fls. 270, se projecta na questão mais geral da articulação entre os pressupostos da servidão de passagem aqui pretendida ver reconhecida, e o posicionamento dos prédios dominantes no acesso à via pública)[25].

2.3. (b) Adicionalmente, pretendem os Apelantes obter uma alteração absolutamente radical dos factos, com base na respectiva interpretação da prova gravada, imputando ao Tribunal a quo um incorrecto julgamento desses factos. Incidiria essa alteração em tudo o que o Tribunal a quo fixou quanto a factos dos quais deduziu os pressupostos da servidão – em rigor estão em causa duas servidões com um tronco inicial comum e uma bifurcação para os dois prédios dominantes –, pugnando os Apelantes por um julgamento absolutamente antagónico da acção. A Senhora Juíza de primeira instância, na óptica dos Apelantes, teria julgado a acção diametralmente ao contrário da prova, tendo falhado basicamente em todos os factos. Teria dito, enfim, que existe um caminho em uso há bem mais de 20 anos, quando toda a prova – é isto o que os Apelantes dizem neste recurso – apontaria em sentido contrário.

Note-se que também improcede este fundamento de recurso, sendo que isso sucede em várias dimensões.

Desde logo por uma espécie de redução ao absurdo quantitativo induzido pelos Apelantes. Referimo-nos a não ser lógico nem consistente que uma Magistrada atenta à prova (percebe-se que foi o caso ouvindo a gravação, observando a condução do processo e, enfim, lendo a fundamentação e a Sentença) responda massivamente ao contrário do sentido da prova – voltamos a sublinhar ser isso o que os Apelantes dizem no recurso. É que visa o recurso, basicamente, alterar todas as respostas relevantes para a caracterização da servidão, as respostas aos quesitos 9º, 18º, 19º, 21º, 23º, 24º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 38º, 39º, 4º, 42º, 43º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º, 49º, 50º, 51º, 52º, 53º, 54º, 55º, 56º, 57º, 58º, 59º, 61º, 62º, 63º, 65º, 67º, 71, 74º, 76º, 81º e 82º (v. as conclusões 34ª, 35º e 36ª do recurso).

Não obstante isto, claudica esta dimensão do recurso por notório incumprimento pelos Apelantes dos ónus impostos a quem pretende impugnar factos nos termos do artigo 712º, nº1 do CPC, referindo-nos nós aos ónus decorrentes dos 685º-B, nºs 1, alíneas a) e b), e 2 do CPC. Com efeito, não basta, para que se considerem relevantemente impugnados os factos, transcrever os depoimentos por atacado, como que “mandando” o Tribunal de recurso ir lê-los, omitindo assim as especificações decorrentes do nº 2 do indicado artigo 685º-B, por referência ao suporte do registo áudio decorrente do sistema citius acessível às partes (que permite, como aqui efectivamente sucede, a localização praticamente exacta de cada passagem dos depoimentos), omissão esta que só pode gerar a rejeição desse elemento do recurso. Remete-se aqui, brevitatis causa, para a argumentação expendida no Acórdão desta Relação de 15/01/2013 (Sílvia Pires), reflectida no respectivo sumário[26]:
“[…]
I – Nos termos do art.º 685º-B, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, o recorrente que impugne a decisão da matéria de facto em processos onde foi efectuado o seu registo, tem o ónus de nas alegações especificar os pontos de facto concretos que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios constantes dos autos ou do registo da prova que considera determinantes da alteração pretendida, sob pena de rejeição do mesmo.
II – A especificação dos concretos meios probatórios constantes da gravação deve ser acompanhada da indicação do local onde na gravação constam aqueles, com referência ao assinalado na acta, nos termos do art. 522º-C, n.º 2 do C. P. Civil,
III – Deste modo, não basta ao recorrente atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou sobre a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, mostrando-se necessário que cumpra os ónus de especificação impostos pelos n.º 1 e 2 do art.º 685º-B do C. P. Civil, devendo ainda proceder a uma análise critica da prova de molde a demonstrar que a decisão proferida sobre cada um dos concretos pontos de facto, que pretende ver alterados, não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.
[…]”[27].

Todavia, independentemente desta circunstância, tendo esta Relação efectivamente ouvido o registo áudio de toda a prova pessoal (depoimentos de parte e das testemunhas) produzida em audiência de julgamento – e também por aqui a pretensão de modificar radicalmente os factos claudica –, chegou ao exacto resultado reflectido nas respostas impugnadas, revendo-se este Tribunal, inteiramente, na fundamentação exarada a fls. 576/587.

2.3.1. (b) A questão de fundo – os factos sobre os quais incide a crítica dos Apelantes – corresponde ao reconhecimento da servidão (o “Caminho da Eira”) com base numa utilização, muito expressiva e muito prolongada no tempo, da continuação da dita “Rua da Eira” como forma de acesso aos prédios dos dois grupos de AA.

A este respeito, é significativa – cremos mesmo ser muito significativa – a posição assumida, logo à partida, pelos 2ºs RR., reconhecendo a existência do caminho, desde sempre – há mais de 30 anos, conforme disseram na contestação –, e com a especifica utilidade de propiciar o acesso aos prédios de qualquer um dos AA. Note-se que isto mesmo, prescindindo da consideração dos depoimentos das testemunhas, se nos apresenta como quase intuitivo observando a localização dos dois prédios dos AA., no trajecto que destes vem a confluir na continuação comum que, coincidindo na parte final com a “Rua da Eira”, permite o acesso normal dos dois prédios dominantes à Rua Principal. Ora, ponderando a localização dos prédios envolvidos, tendo presente a posição dos 2ºs RR., parece-nos existir uma base lógica muito expressiva no sentido de conferir uma grande relevância aos depoimentos das testemunhas dos AA. que caracterizaram isso mesmo: aquilo que esses RR. reconheceram.

A este respeito, a título de exemplo, indicamos o depoimento da testemunha …, considerando-o particularmente significativo, que indicou que há 40 anos ou mais (tem 57 anos de idade e começou a trabalhar aos 14 “para o Padre … naquele sítio”[28]) trabalhou e passou naquele exacto local e que sempre considerou e viu utilizar o trajecto do caminho que apontou na planta de fls. 491 como o meio comummente empregue para aceder aos prédios dos AA., testemunhando igualmente que essa passagem era consentida pelos proprietários afectados[29]. A testemunha em concreto referiu que há bem mais de 20 anos aquele caminho permitia a passagem de um tractor relativamente pujante, um “Massey Fergusson”. Isso mesmo foi confirmado pela testemunha … (71 anos de idade) que lá trabalhou e percorreu o caminho, desde sempre, no acesso aos prédios dos AA. (ele, e antes o pai, trabalharam nos terrenos do Padre …, o pai foi rendeiro deste) e indicou inequivocamente o acesso aos prédios através daquele caminho (o único que permitia o uso de um tractor e um uso apto à actividade agrícola)[30].

E foi este o sentido da generalidade da prova testemunhal dos AA. Podíamos igualmente indicar – e continuamos no domínio da exemplificação já que de concreto os Apelantes nada indicam – o depoimento do filho dos 2ºs RR, … (foi ouvido em último lugar), que foi muito expressivo e objectivo e historiou o seu conhecimento, que foi directo e intenso (nos termos em que a fundamentação o caracteriza a fls. 584), desde que se conhece, da forma de acesso ao prédio do pai (dele e do filho do R. Ramiro) através do caminho que a Sentença veio a considerar como correspondente à servidão declarada existir e que tal passagem envolvia as dimensões de um tractor, como envolveu – e disso guarda a testemunha uma viva memória – uma camioneta Ebro de dimensões consideráveis que depois foi ali abandonada durante bastante tempo[31].

Neste contexto é igualmente significativo sublinhar a circunstância dos depoimentos das testemunhas dos 1ºs RR., quando encarados objectivamente, não desmentirem a expressividade dos depoimentos das testemunhas dos AA., sublinhando-se a evidente contradição em que caiu a testemunha … (irmão do 1º R.), que “distraidamente”, a propósito do tratamento das suas abelhas no prédio dos 2ºs AA. (aí mantinha cortiços), acabou por indicar o uso (à vista de todos e por todos tolerado) do “Caminho da Eira”[32]. Aliás, se bem entendemos o depoimento da prima (“quarta prima”, disse ela) do 1º R., …, esta reconheceu, significativamente que o Padre … – anteriormente o Padre … – sempre acedeu ao seu prédio (actualmente o prédio dos 1ºs AA.) através daquele caminho (com ou sem portões de permeio)[33].

Vale esta apreciação genérica como confirmação das respostas – de todas as respostas – no sentido em que destas decorre o resultado decisório da acção nos termos julgados na primeira instância.

2.4. Esgotados os fundamentos do recurso, resta-nos confirmar inteiramente a Sentença recorrida (bem como o despacho de fls. 270). Antes, porém, proceder-se-á à sumariação dos elementos centrais do antecedente percurso interpretativo:
I – A constituição de uma servidão legal de passagem por usucapião, feita actuar no quadro do nº 2 do artigo 1547º do CC (constituição por sentença judicial), não corresponde aos pressupostos elencados no artigo 1550º do CC, não pressupondo qualquer situação de encravamento predial ou de excessivo incómodo ou dispêndio na comunicação com a via pública do prédio afirmado como dominante;
II – As servidões prediais legais, no sentido do nº 2 do artigo 1547º do CC – não no sentido do artigo 1550º do CC –, correspondem a quaisquer utilidades susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, como paradigmaticamente sucede com o direito de passagem sobre o prédio serviente;
III – A constituição destas servidões por usucapião pressupõe serem elas aparentes, nos termos definidos no artigo 1548º, nº 2 do CC, e a ocorrência de um uso reiterado da correspondente utilidade por certo lapso de tempo (artigo 1287º do CC), em termos aptos a desencadear a respectiva prescrição aquisitiva (usucapião). 


III – Decisão

            3. Pelo exposto, na improcedência do recurso, confirma-se aqui o julgamento apelado.

            Custas nesta instância a cargo dos Apelantes.
Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 25/03/2013. 

(J. A. Teles Pereira -Relator)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] Trata-se da data da propositura da presente acção, marcando ela a aplicação à presente instância de recurso do regime processual originariamente decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Não se aplica aqui, desta feita por estar em causa decisão recorrida (a de fls. 589/611) anterior a 1 de Setembro de 2013 (decisão datada de 03/06/2013), o texto do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho (v. os respectivos artigos 7º, nº 1 e 8º, cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, 2013. p. 15). Assumimos ser discutível se a regra do artigo 7º, nº 1 da Lei nº 41/2013, a única disposição do Diploma introdutório do Novo Código de Processo Civil que se refere à instância de recurso, abrange os recursos referidos a decisões anteriores a 01/09/2013 aos quais já se aplicasse, como aqui sucede, o regime do DL nº 303/2007 – processos instaurados depois de 01/01/2008 –, sendo que quanto a estes, em rigor, não há qualquer regime transitório expressamente definido, pelo que há que entender que, em tais casos, se continuará a aplicar o regime antigo, aqui sinónimo do regime “originário” do DL nº 303/2007, até porque, se o legislador se preocupou em definir um regime para as acções instauradas antes de 01/01/2008, não tem sentido concluir que um regime idêntico também vale para as acções propostas depois dessa data, além de que a “tradição” dos nossos Diplomas introdutórias de reformas profundas do Processo Civil é tratar a instância de recurso individualizadamente.

[2] “[…]


Os Primeiros Autores são donos e legítimos detentores da nua-propriedade de um prédio rústico sito ao …, constituído por terra culta com videiras e outras árvores, com a área de 4333 m2, ... (Doc. 1)
[…]”.
[3] “[…]

24º

Por seu turno, os Segundos Autores são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico sito ao …, constituído por terra inculta com mato e culta com videira e outras árvores, com a área de 420 m2, ... (Doc. 9).
[…]”.
[4] “[…]

21º

Assim, os Primeiros Autores bem como os seus antecessores há mais de 20, 40 e 60 anos que passam continuadamente no referido caminho com a convicção de estar constituída uma servidão de passagem, a pé e de carro, por usucapião em favor do seu prédio.

22º

Pelo que, e em face do exposto, sempre foi constituída uma servidão de passagem por usucapião sobre os prédios dos Réus referidos em 7º desta peça, em favor do prédio dos Primeiros Autores referido em 1º, a pé e de carro, nas referidas dimensões de cerca de 80 metros de extensão por cerca de 4 metros de largura – correspondente esta à denominada “Rua da Eira” - e subsequentes 25 metros de extensão por 3 metros de largura.
[…]”.
[5] “[…]


Os Primeiros Réus são donos e legítimos possuidores de um conjunto de vários prédios confinantes entre si e composto pelos que de seguida se descriminam:

a) ... (Doc. 3)

b) … (Doc. 4)

c) ... (Doc. 5)

d) ... (Doc. 6)
[…]”.
[6] “[…]


34º

Assim, os Segundos Autores, bem como os seus antecessores, há mais de 20, 40 e 60 anos que efectuam o trajecto referido em 29 e 30º, com a convicção de nos prédios dos Primeiros e Segundos Réus referidos em 7º e 12º estar constituída uma servidão de passagem, a pé e de carro, por usucapião em favor do seu prédio.

35º

Pelo que, e em face do exposto, sempre foi constituída uma servidão de passagem por usucapião sobre os prédios dos Primeiros Réus referidos em 7º e sobre o prédio dos Segundos Réus referido em 12º, em favor do prédio dos Segundos Autores referido em 23º, a pé e de carro, nas referidas dimensões de cerca de 80 metros de extensão por 4 metros de largura – correspondente esta à denominada “Rua da Eira” – e subsequentes 13 metros de extensão por 3 metros de largura, isto no prédio dos Primeiros Réus e de cerca de 7 metros de extensão por 3 metros de largura no prédio dos Segundos Réus.
[…]”.
[7] “[…]

12º

Por seu turno, os Segundos Réus são proprietários de um prédio rústico com palheiro, sito a …. (Doc. 7)
[…]”.
[8] “[…]

42º

Ademais, os Primeiros Réus escavaram – nos últimos 6 metros do mesmo – o bordo do caminho que procede da “Rua da Eira” para o prédio dos Primeiros Autores, tendo diminuído assim o leito do mesmo a uma largura de cerca de 2 metros, o que torna virtualmente impossível a passagem por tractor.
[…]”.
[9] Quanto à asserção de ser notoriamente inexistente a referida ilegitimidade – precisamente como se decidiu no saneador a fls. 192/194 –, v. o Acórdão desta Relação de 19/01/2010 (Gregório de Jesus), proferido no processo nº 980/09.0TBPPL.C1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/4924d44d82722167802576ba00585df.
Sumário:
“[…]

I– O artº 1460º, nº 1, do C. Civ. trata de saber se, e em que termos, podem ser constituídas pelo proprietário e pelo usufrutuário servidões relativas ao prédio em regime de usufruto – tal normativo tem o alcance de equiparar, quanto às servidões activas, os poderes do usufrutuário aos do proprietário a quem não são retirados os poderes inerentes ao seu direito de propriedade.

II – Da análise de tal normativo resulta que se o proprietário pode constituir servidões activas no prédio usufruído por terceiro, também as pode defender.

[…]”.
[10]  Esta questão foi resolvida – bem, como veremos adiante – pelo despacho de fls. 270 (ponto 10), constituindo este também objecto do presente recurso.
[11] Claro que dessa transcrição resulta patente que os Apelantes não fizeram o mais pequeno esforço de condensação argumentativa – é esse o sentido das conclusões – tornando o remate da motivação (as conclusões) um elemento confuso, prolixo até à exaustão, repetitivo, pejado de elementos inúteis (por exemplo, identificando todas as testemunhas ouvidas…) e que, enfim, torna o trabalho desta Relação, quanto à delimitação dos fundamentos do recurso, numa tarefa substancialmente difícil. Se esse foi o objectivo dos Apelantes – dificultar o trabalho desta Relação – teremos de considerar que o conseguiram amplamente.
[12] Em qualquer caso, v. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[13] E descartando logo questões que se prefiguram como ostensivamente destituídas de qualquer sentido, como sucede com alegadas nulidades do despacho saneador de fls. 270 e da Sentença, por referência ao disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC (suposta omissão de pronúncia). Vale a este respeito, por notório acerto, o que consta do despacho de fls. 933/934, acrescentando-se que a crítica às opções decisórias – é sempre disso que se trata na apelação dos 1ºs RR. –, mesmo quando fundada, não induz nulidades nas correspondentes decisões, funda, isso sim, recursos dessas decisões.
[14] Repetem a este propósito os Apelantes (v. a conclusão 16 do recurso) a sugestão de serem (agora) acrescentados à base, constituindo objecto de uma repetição ampliativa do julgamento, 13 novos quesitos, numerados de 83 a 95 cujo objecto temático se reconduz à determinação da inexistência pretérita de encravamento dos prédios dos AA. (ou de que o encravamento teria resultado de ulteriores divisões prediais), deduzindo os Apelantes daí – e deduzem mal, como adiante veremos – a exclusão do reconhecimento da servidão de passagem constituída por usucapião nos termos aqui pretendidos pelos AA.
[15] Que aqui se transcreve na sua inserção sistemática directa dentro do Livro III, Título IV:

CAPÍTULO III
Servidões legais
SECÇÃO I
Servidões legais de passagem

Artigo 1550º
Servidão em benefício de prédio encravado
1. Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.
2. De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio.
[16] Note-se que as servidões legais nominadas no Código de Seabra, aí qualificadas como servidões constituídas pela natureza da coisa ou pela lei (artigos 2282º a 2286º), estavam ligadas à problemática do escoamento de águas (v. o respectivo artigo 2282º), sendo que, em função da abertura a outras modalidades indicada no artigo 2286º – “[t]odas as mais servidões, denominadas de interesse público ou particular, são verdadeiras restrições do direito de propriedade, e, como tais, reguladas no lugar competente” –, o Código de 1867 regulava a propósito do direito de fruição do proprietário (artigo 2287º e segs.) o que hoje se designa servidão legal de passagem por encravamento, no respectivo (do Código de Seabra) artigo 2309º.
[17] “Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente […]”.
[18] “Ficam, por conseguinte, como objecto do nº 1 deste artigo 1547º [do CC] as servidões que o Código de 1867 dizia constituídas por facto do homem […].
[…]
A aquisição por usucapião (válida para todas as servidões, com excepção das não aparentes: arts. 1293º, alínea a) e 1548º, 1) dá-se nos termos dos artigos 1287º e seguintes […]” (Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., Coimbra, 1984, pp. 627/628, sublinhado acrescentado).
Esta mesma asserção é caracterizada por Luís Carvalho Fernandes, nos seguintes termos:
“[…]
 A distinção entre servidões legais e servidões voluntárias estabelece-se em função da modalidade do título constitutivo, mas não nos termos singelos que os correspondentes qualificativos sugerem. Assim, se as servidões voluntárias são as constituídas por negócio jurídico ou acto voluntário, já não é correcto ver as servidões legais como as constituídas por lei.
De resto, o legislador esclarece o verdadeiro âmbito das servidões legais, ao defini-las, no nº 2 do artigo 1547º, como as que, não sendo constituídas voluntariamente, podem sê-lo por sentença judicial ou por decisão administrativa, consoante os casos. Servidão legal, hoc sensu, é, pois, a que pode ser constituída coercivamente. Servidões legais, no Código Civil, são as de passagem e as de águas, reguladas, respectivamente nos artigos 1550º, 1556º e 1557º e seguintes.
[…]” (Lições de Direitos Reais, 4ª ed., Lisboa, 2006, p. 440, sublinhado acrescentado). 
[19] E é com este sentido, enfim, que José de Oliveira Ascensão usa neste contexto, preferentemente à expressão “servidão legal”, a expressão “servidão coactiva”:
“[…]
Diz-se que as servidões são legais porque, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos (artigo 1547º/2).
No domínio do Código anterior, falava-se em servidão legal para designar aquelas servidões que o artigo 2271º declarava constituídas por lei. O novo Código evitou cuidadosamente essa terminologia, e fez bem: havia então meras restrições legais de direitos reais, que não constituem servidão […]. Mas não é impecável a utilização da expressão «servidão legal» para designar esta servidão, pois que, em abstracto, toda e qualquer servidão tem de se fundar na lei; em concreto, toda tem na origem um facto constitutivo, e não a lei. O próprio artigo 1547º/2 nos mostra que há na origem destas uma sentença ou uma decisão administrativa. Preferível seria pois a designação doutrinária servidão coactiva.
[…]” (Direito Civil Reais, 5ª ed., Coimbra, 2000, pp. 258/259).
[20] Este Tribunal, não obstante o que vai referido no subsequente item 2.3. (b), procedeu à demorada audição da prova pessoal (depoimentos de parte e testemunhais) produzida em julgamento.
[21] Fora a questão da aparência (v. artigo 1548º do CC, a contrario sensu) – e a aparência do caminho é aqui um dado de facto irrecusável – é irrelevante determinar, no contexto da presente acção, as circunstâncias em que a Câmara Municipal ou a Junta de Freguesia colocaram essa toponímica, sendo certo que se trata aqui de declarar a existência de uma servidão de passagem e não de um caminho público. A este respeito – sublinhando-se que aqui não está em causa um problema de dominialidade pública – remete-se para o Acórdão desta Relação de 11/09/2012, do ora relator, proferido no processo nº 113/09.3TBSBG.C2, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/5b523007de0d598780257aa0004f1df.
Destacando-se do respectivo sumário o seguinte trecho:
“[…]
V – Tendo em conta que o artigo 1383º do CC de 1967 extinguiu os atravessadouros em geral, exceptuando apenas aqueles “[…] com posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade […]” (artigo 1384º do CC), a afirmação da dominialidade de um caminho – a sua natureza de “caminho público” – implicará, para que exista uma identidade de razão com a teleologia presente nesse artigo 1384º, a demonstração de uma afectação por um uso das populações desde tempos imemoriais, uso que tem de ser referido a uma concreta utilidade pública e não à mera utilidade decorrente do encurtamento de distâncias entre prédios pelos utentes dos terrenos vizinhos do afectado.
VI – O Assento do STJ de 19/04/1989 foi, na prática, exautorado pelo Acórdão do STJ de 10/11/1993, passando a valer (como fixação de jurisprudência), tão-só, como precedente persuasivo, a seguinte asserção estabelecida no Acórdão de 1993: “I - O Assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à utilidade pública ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. II - Quando assim não aconteça, e se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, os caminhos devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele Assento e que está prevista no artigo 1383º do Código Civil”.

[…]”.    
[22] Compreende-se a realidade predial global aqui relevante comparando as plantas juntas a fls. 36, 491 e 537 (a de fls. 491 foi mostrada em julgamento a diversas testemunhas, funcionando como elemento de referenciação), sendo visível o traçado comum, correspondente à “Rua da Eira” (para usarmos a terminologia das diversas testemunhas), e a bifurcação que, em direcção a Nascente, dá acesso ao prédio dos 2ºs AA. e, em direcção a Sul, dá acesso ao prédio dos 1ºs AA.
[23] Disse-se em sede de fundamentação:
“[…]
No local foi possível verificar que nenhum dos prédios dos AA. aqui em causa nos autos confronta directamente com a via pública, embora confinem com outros prédios que têm, estes sim, acesso directo à via pública.
[…]” (transcrição de fls. 582).
E isso mesmo é perceptível, mesmo para quem não foi ao local, observando a localização dos prédios dos dois conjuntos de AA. nas plantas de fls. 36, 491 e 537 e lendo as confrontações desses prédios. E, enfim, bastará reflectir objectivamente sobre a disposição da “Rua da Eira” – independentemente da natureza que atribuirmos a esta – relativamente aos prédios dos AA. para perceber, intuitivamente, que a bifurcação do caminho para o prédio de cada um dos AA. (veja-se a planta de fls. 36) significa precisamente a ligação destes prédios, através dessa “Rua” (através desse “Caminho da Eira”), à via pública aqui representada pela designada “Rua Principal”.
[24] Que, não obstante a sua posição genericamente favorável à tese dos 1ºs RR., caracterizaram a questão do acesso, reportada embora ao que sucederia ao tempo do Padre …, como excluindo o acesso directo dos prédios dos AA. à via pública.
[25] Note-se que corresponde este fundamento do recurso às conclusões 1ª a 29ª acima transcritas.
[26] Foi este proferido no processo nº 1796/10.7T2AVR.C1 e está disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/e84e0dbad203b59f80257afb004caa7d.
[27]Nos termos do art.º 685º-B, n.º 1 e 2, do C. P. Civil, o recorrente que impugne a decisão da matéria de facto em processos onde foi efectuado o seu registo, tem o ónus de nas alegações especificar os pontos de facto concretos que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios constantes dos autos ou do registo da prova que considera determinantes da alteração pretendida, sob pena de rejeição do mesmo.
A especificação dos concretos meios probatórios constantes da gravação deve ser acompanhada da indicação do local onde na gravação constam aqueles, com referência ao assinalado na acta, nos termos do art. 522º-C, n.º 2 do C. P. Civil, menção que o recorrente não fez nos autos.
As alegações apresentadas não fazem uma análise crítica das provas que em seu entender provocariam a alteração das respostas aos quesitos, limitando-se a discordar, no que se refere ao quesito 5º, da valoração de um depoimento e invocando documentos que não identifica.
Deste modo, não basta ao recorrente atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou sobre a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, mostrando-se necessário que cumpra os ónus de especificação impostos pelos n.º 1 e 2 do art.º 685º-B do C. P. Civil, devendo ainda proceder a uma análise critica da prova de molde a demonstrar que a decisão proferida sobre cada um dos concretos pontos de facto, que pretende ver alterados, não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.
Assim, considerando que as alegações do recorrente não dão satisfação às mencionadas exigências legais, nos termos expostos, rejeita-se o recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto.
[…]”.
[28] Trata-se do anterior proprietário do prédio dos 1ºs AA., sendo que a referência aos prédios é frequentemente feita como “terras do Padre …”.
[29] Testemunhou, aliás, que há cerca de 7 anos e mais recentemente a passagem dele com um tractor foi presenciada por um filho do Apelante.
[30] Percebeu-se que os problemas de passagem são uma questão recente, decorrente de uma tentativa do 1º R. de modificar uma realidade – o uso da servidão – de há muito consolidado.
[31] Basta ouvir o contra-interrogatório pela Mandatária dos 1ºs RR. para perceber o completo fracasso desta na tentativa de pôr em causa a afirmação categórica da existência do caminho. Não tem sentido perguntar, projectado num período de 20/30 anos, se se viu uma pessoa em concreto passar no terreno, quando todos percebemos que todas as pessoas que pretendiam aceder aos prédios dos AA. passavam ali no dia a dia, uns mais que outros, seguramente, mas todos passavam.
[32] E isto acabou por ser confirmado pela testemunha ...
[33] Aliás esta testemunha, absurdamente, pretende sujeitar os proprietários sucessores do Padre … a um regime diferente do que o R. R… sempre reconheceu tanto ao Padre … como ao Padre ...