Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
372/11.1TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
ANULABILIDADE
FALSAS DECLARAÇÕES
TOMADOR
Data do Acordão: 12/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA – 3º JUÍZO
Sumário: I – No quadro legal emergente do Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (LCS), a afirmação do tomador do seguro no preenchimento da proposta de ser ele, como condutor encartado há mais de 20 anos, o condutor habitual da viatura objecto do seguro, escondendo da Seguradora que o verdadeiro condutor habitual (o filho do tomador) havia obtido licença de conduzir poucos meses antes da celebração do contrato, este comportamento gera a anulabilidade desse contrato de seguro por inexactidão dolosa quanto à declaração de risco, nos termos do artigo 25º, nº 1 da LCS.

II – Essa incidência (a falsa declaração quanto ao condutor habitual) refere-se a um elemento muito significativo para a apreciação do risco assumido pela seguradora no contrato, com incidência na quantificação do prémio;

III – A referida anulabilidade actua, nos termos do artigo 25º, nº 1 da LCS, mediante declaração da seguradora ao tomador do seguro, sendo que isso, descobrindo a seguradora a fraude apenas posteriormente à ocorrência do sinistro, actuará, no quadro de um processo judicial instaurado contra essa seguradora, por via de excepção (invocação pela seguradora na contestação da extinção do contrato por anulabilidade nesse contexto declarada);

IV – O disposto no artigo 22º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) não impede a oponibilidade da referida anulabilidade do contrato pela seguradora aos lesados pelo acidente e, reflexamente, ao Fundo de Garantia Automóvel, quando esta entidade exerce a sub-rogação decorrente de ter assumido, perante esses lesados, a responsabilidade indemnizatória emergente do referido acidente.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. Em 14 de Fevereiro de 2011[1], o Fundo de Garantia Automóvel (A. e Apelado nesta instância de recurso) demandou C… e M… (1º e 2º RR. e aqui Apelados), sendo que, mais tarde, no quadro de uma intervenção principal provocada suscitada concorrentemente pelos RR. e pelo A., acedeu à acção na posição de R. (a 3º R. aqui a Apelante) a Companhia de Seguros A…, S.A..
Pretende o Fundo de Garantia Automóvel realizar através desta acção o reembolso[2] – inicialmente contra os dois primeiros RR., depois também contra a Seguradora – do valor de €5.745,81 que pagou em função de um acidente de viação que gerou a intervenção indemnizatória do Fundo por recusa de cobertura pela Seguradora 3ª R.

            Com efeito, esta (a Seguradora ora 3ª R.), confrontada com o acidente de viação aqui em causa (ocorrido em 18/08/2009, em Alcobaça) no qual foi interveniente o veículo …-IB, cuja riscos de circulação era suposto a A… cobrir, ao abrigo de um contrato de seguro do qual fora tomador/segurado o 1º R., recusou a Seguradora assumir essa responsabilidade indemnizatória por ter determinado, no respectivo processo de averiguação interno subsequente à participação do acidente, que o condutor do IB no momento do acidente, o 2º R., filho do 1º R., era, contra o que expressamente declarara o tomador 1º R. na celebração do contrato, o condutor habitual daquela viatura (e, logo, o verdadeiro segurado)[3].

            1.1. Os RR. originários (os 1º e 2º RR., os RR. indicados na p.i.) contestaram a acção conjuntamente invocando, no que interessa a este recurso, a existência e a validade do contrato de seguro e, logo, a não exclusão da responsabilidade indemnizatória da Seguradora, provocando a intervenção desta, na posição de R. (3ª R.), nos termos do artigo 325º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[4].
            1.2. Assim, intervindo como 3ª R., excepcionou a Companhia de Seguros A… a “nulidade” (a qualificação do desvalor em causa será tratada nesta decisão) do contrato de seguro celebrado com o 1º R. (no qual este se declarou condutor habitual da viatura IB) por haver este prestado, aquando dessa celebração, falsas declarações, induzindo em erro a Seguradora quanto a um elemento essencial para o cálculo do risco assumido, com reflexo no valor do prémio (o número de anos da habilitação para conduzir do condutor habitual)[5].

            1.3. Realizou-se, enfim, o julgamento documentado a fls. 204 e ss., a culminar o qual foi proferida a Sentença de fls. 214/225esta constitui a decisão objecto do presente recurso-, condenando a Seguradora a satisfazer ao A. o montante peticionado[6].
            1.4. Inconformada, reagiu a R. Seguradora com a presente apelação, rematando as alegações adrede apresentadas com as conclusões que aqui se transcrevem:
“[…]

II – Fundamentação
            2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pela Apelante operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC – ou, se se entendesse aplicável o Novo CPC, nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º deste[7]. Assim, fora das conclusões só valem, em sede de recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo, em qualquer dos casos, o artigo 660º, nº 2 do CPC, ou o artigo 608º, nº 2 do Novo CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

            2.1. Os factos a considerar por esta instância, os fixados pelo Tribunal a quo – factos não contestados no presente recurso –, são os seguintes:
“[…]
            2.2. A única questão colocada pelo recurso, rectius o fundamento deste, confronta-nos com a circunstância da decisão apelada ter desatendido – aqui no confronto entre a Seguradora e o Fundo de Garantia Automóvel, quando este último exerceu judicialmente a sub-rogação prevista no artigo 54º, nº 1 do DL nº 291/2007[8]a invocação pela Seguradora, por via de excepção, de uma “invalidade” (gera esta aqui, como veremos a anulabilidade do contrato[9]) inicial, mas por ela desconhecida até ao acidente, do contrato de seguro tomado pelo 1º R. (pai do 2º R.). Com efeito, apurou-se que na formação desse contrato, no preenchimento da proposta de seguro posteriormente aceite pela 3ª R., o 1º R. se declarou, falsamente, como condutor habitual da viatura IB, no intuito de beneficiar o 2º R., seu filho, com condições mais favoráveis nesse seguro (concretamente com um prémio de menor valor), decorrentes de uma incidência não verdadeira afirmada na proposta – ser o condutor habitual a pessoa indicado na proposta, e ser ela encartada desde 1982 e, por isso, estatisticamente sujeita a um menor risco de sinistros – a par de uma incidência verdadeira e cuja relevância para a Seguradora era conhecida (ou intuída) e que foi ocultada nessa mesma proposta – ser o verdadeiro condutor habitual outro e tratar-se de pessoa encartada no próprio mês da celebração do contrato de seguro[10]. A racionalidade económica associada a este expediente é intuitiva. Trata-se, tão-só, de pagar menos pelo seguro, induzindo a seguradora em erro quanto aos elementos relevantes para o cálculo actuarial do risco[11].
            A este respeito, tenha-se presente que o “[…] seguro é o contrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas reais ou potenciais da verificação de um determinado facto”[12]. Ora, esta lógica de transferência de um risco é integrada na economia do contrato através do conhecimento e da descrição do conteúdo exacto desse risco, ou seja, através da objectivação desse risco nos termos em que a seguradora aceitou assumi-lo. Daí que a imputação da concretização do risco passe pela aferição da presença, num determinado evento ou situação, dos concretos factores de risco descritivamente assumidos através do contrato[13]. Parecendo redundante, esta afirmação limita-se a caracterizar, na sua essência profunda, a lógica de funcionamento de um seguro[14].
            2.2.1. Importa reter neste recurso os elementos centrais do percurso argumentativo do Tribunal a quo que conduziram à decisão de responsabilizar a R. Seguradora pelo reembolso ao Fundo independentemente do desvalor que entendeu existir no contrato de seguro base desse mesmo reembolso. Ora, a este respeito, em sede de fundamentação jurídica, escreveu-se na Sentença apelada:
“[…]
Entende-se, em face do exposto, que, a tratar-se, no caso em apreço, de invalidade do seguro, tal invalidade consiste numa mera anulabilidade e não em nulidade.
Estabelece ainda o artigo 14º do DL 522/85, de 31.12 (regime jurídico do seguro automóvel obrigatório) que:
‘Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato (…), ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro’.
Quer isto dizer que, nos contratos de seguro que tenham por objecto cobertura de riscos sujeitos ao regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a seguradora não pode invocar perante os lesados quaisquer exclusões ou anulabilidades não previstas na Lei do Seguro Obrigatório (no DL 522/85, de 31.12), estando-lhe vedado opor-lhes qualquer anulabilidade prevista em qualquer outra lei ou norma jurídica geral ou especial.
Infere-se assim do referido preceito que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a seguradora não pode livrar-se da sua obrigação perante o lesado mediante a invocação de uma mera anulabilidade não prevista no DL 522/85, como é o caso da consagrada no referido artigo 429º do Código Comercial.
E compreende-se que assim seja, uma vez que a instituição do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem em vista, como medida de relevante alcance social, a protecção directa (e célere) dos legítimos interesses e direitos das pessoas lesadas em consequência de acidentes de viação, o que postula um seguro em que, sendo a responsabilidade, em regra, garantida pela seguradora, vigore com a máxima amplitude o princípio da inoponibilidade das excepções contratuais, do que resulta que só a nulidade, e não a anulabilidade do contrato de seguro (prevista no artigo 429º do Código Comercial), possa ser oposta aos lesados em acidente de viação, nos termos do citado artigo 14º do DL 522/85.
Do exposto resulta que não pode a ré Seguradora opor ao autor a excepção contratual integrante de anulabilidade do contrato de seguro, mantendo-se, por conseguinte, a vinculação decorrente desse mesmo contrato, respondendo a ré seguradora perante o autor pelos danos emergentes do acidente causado pelo veículo seguro, por força do contrato celebrado com o 1º réu.
Em consequência, haverão os 1º e 2º réus de necessariamente ser absolvidos do pedido contra si formulado.
[…]” (transcrição de fls. 223/224).


            Numa primeira aproximação à ratio decidendi expressa pela primeira instância nos termos acabados de transcrever, haverá que reconduzir a situação ao seu enquadramento legal adequado, corrigindo a incorrecta determinação do Direito aplicável realizada na Sentença, enquanto questão de aplicação da lei no tempo numa situação de sucessão de leis no tempo. Referimo-nos ao regime jurídico do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel aplicável, que a Sentença, laborando em evidente erro, a referência ao Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, quando só pode estar em causa o Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto. E referimo-nos igualmente ao Regime Jurídico do Contrato de Seguro em geral, que a mesma decisão reporta ao texto do Código Comercial, esquecendo já estar em causa, aqui, a chamada Lei do Contrato de Seguro (doravante LCS), aprovada pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril. Ambas as referências do Tribunal a quo resultam de lapsos, tendo presente, em qualquer dos enquadramentos, a data da celebração do contrato de seguro que aqui está em causa: Maio de 2009. Importa ter presente, relativamente a um seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel celebrado em Maio de 2009, que o DL nº 522/85 fora revogado pelo DL nº 291/2007, de 21 de Agosto (foi revogado em 2007), e substituído pelo regime deste constante (v. os respectivos artigos 94º e 95º), aplicando-se neste caso, pois, esse DL nº 291/2007. E, quanto ao regime do contrato de seguro, a LCS aprovada pelo DL nº 72/2008, de 16 de Abril, que substituiu (revogou) os artigos 425º a 462º do Código Comercial (artigo 6º, nº 2, alínea a) do DL nº 72/2008), aplica-se aos contratos de seguro celebrados após a sua entrada em vigor (aos contratos celebrados de 1 de Janeiro de 2009 em diante), como aqui sucede (v. os respectivos artigos 2º, nº 1 e 7º), ou seja, tem aqui aplicação a LCS e não o Código Comercial[15].
            É este, pois (concorrentemente o DL nº 291/2007, de 21 de Agosto e a LCS), o adequado enquadramento legal da situação ora ajuizada. Note-se, todavia, que esta nova referenciação normativa não destrói, por si só, a construção interpretativa empreendida na Sentença apelada, na asserção decisória de considerar inoponível ao Fundo de Garantia Automóvel o tipo de invalidade do contrato de seguro aqui invocada pela Seguradora. Com efeito, embora consideremos incorrecta, em qualquer caso, essa asserção decisória, não deixamos de observar, também no enquadramento legal sucessor do DL nº 522/85 e do artigo 429º do Código Comercial (este último entendido, conforme a Sentença o entendeu, como estabelecendo uma anulabilidade e não uma nulidade), também neste enquadramento existem, dizíamos, elementos normativos com um sentido idêntico aos invocados na Sentença, os quais, por isso, também comportam uma construção interpretativa similar àquela com a qual nos confronta a decisão da primeira instância. É o que sucede, isto relativamente ao artigo 14º do DL nº 522/85[16] (a lei erradamente aplicada na Sentença), com o artigo 22º do DL nº 291/2007[17] (a lei correctamente aplicável à situação). E é o que sucede, desta feita como sucessor do artigo 429º do Código Comercial, entendido como a Sentença apelada o entendeu (como consagrando uma anulabilidade, v. a nota 21 infra e o texto que para ela remete), com o artigo 25º da LCS[18].
            2.2.1.1. Note-se que a expressa qualificação, no artigo 25º, nº 1 da LCS, do incumprimento doloso dos deveres associados à declaração inicial de risco como indutor da anulabilidade do seguro, consagrou o entendimento que na doutrina e na jurisprudência eram largamente maioritários face ao artigo 429º do Código Comercial. Este último, embora se referisse a nulidade do seguro na epígrafe: “nulidade do seguro por inexactidões e omissões”; no texto: “[t]oda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo” – era entendido (o artigo 429º do Código Comercial) como estabelecendo, tão-somente, uma causa de anulação do contrato[19].
            A aplicação aqui – a aplicabilidade – do artigo 25º da LCS, resolve a questão da qualificação do desvalor induzido no contrato de seguro pela fraude protagonizada pelos 1º e 2º RR. quanto à identidade do condutor habitual. Viciou esta omissão dolosa, com efeito, o contrato – e viciou-o num elemento central da avaliação do risco, como acima vimos (item 2.2. supra) –, gerando a anulabilidade desse mesmo contrato.
            2.2.2. Opera tal incidência – a anulabilidade por omissão dolosa –, como resulta do trecho final do nº 1 do artigo 25º da LCS “mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro[20]. Ora, centrando-nos apenas nas incidências do caso concreto, no qual o fundamento da anulabilidade ocorreu concomitantemente à formação do contrato de seguro (está esse elemento mesmo na génese do contrato marcando-o indelevelmente), mas só foi descoberto pela seguradora com o sinistro (quando foi “confessada” pelos indutores do erro no próprio procedimento de regularização do sinistro), neste quadro de facto, dizíamos, a declaração da seguradora ao tomador visando a anulabilidade aparece-nos sob a forma de excepção peremptória[21] invocada na presente acção quando a seguradora intervém em função da atribuição a ela, pelos RR. originários, da responsabilidade que a eles era (originariamente e em exclusivo) referida pelo A. Vale esta defesa, pois – é o que aqui entendemos –, com o sentido de declaração ao destinatário em vista da produção do efeito anulatório previsto no artigo 25º, nº 1 da LCS.  
Esta forma de declaração da seguradora em vista da anulabilidade do contrato de seguro por inexactidão dolosa reportada à declaração inicial de risco pelo tomador, constitui uma forma habitual e adequada, que já era equacionada no regime do artigo 429º do Código Comercial e do DL nº 522/85, e continua a valer inteiramente no regime actual (artigo 25º, nº 1 da LCS e DL nº 291/2007). Esta asserção, referida ao regime anterior (especificamente ao artigo 14º do DL nº 522/85), é afirmada expressamente por José Alberto Vieira: “[n]a prática como a invalidade do contrato de seguro ocorre no momento da sua celebração e não em momento posterior, a seguradora nunca vê afectado o seu direito a excepcionar a nulidade (ou a anulabilidade para quem entenda ser esta a invalidade em causa) do contrato de seguro celebrado com falsas declarações por força do artigo 14º do DL nº 522/85”[22].
Assenta este entendimento numa particular caracterização do sentido do artigo 14º da anterior lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, entendimento antagónico da leitura deste preceito realizada na decisão aqui recorrida, sendo que entendemos que essa outra caracterização vale, por total paralelismo das normas e absoluta identidade de razão, para o actual artigo 22º do DL nº 291/2007 (v. os textos respectivos nas notas 18 e 19 supra). A este respeito, refere José Alberto Vieira:
“[…]
Concluímos, afirmando que o artigo 14º do DL nº 522/85 admite a oponibilidade da invalidade do contrato de seguro por falsas declarações do tomador de seguro, mesmo quando se interpreta o artigo 429º do Código Comercial no sentido de consagrar a anulabilidade do contrato de seguro.
[…]
O artigo 14º não coarcta à seguradora o direito a defender-se por invocação da invalidade do contrato de seguro ou de qualquer facto extintivo do mesmo. [O] artigo 14º veda unicamente a oponibilidade ao lesado dos fundamentos de extinção ou de invalidade do contrato de seguro que sejam posteriores ao sinistro do qual resultou o seu direito de indemnização e não estabelece que qualquer daqueles fundamentos deva ter sido judicialmente declarado como condição de oponibilidade ao lesado.
[…]”[23] (sublinhado acrescentado).

            E este mesmo entendimento é actualizadamente referenciado por Luís Poças ao artigo 22º do DL nº 291/2007, no quadro da anulabilidade estabelecida no artigo 25º, nº 1 da LCS:
“[…]
[O] artigo 22º visa apenas impedir a oponibilidade ao lesado das causas de extinção posteriores ao sinistro, não requerendo (como requisito de oponibilidade) que as causas anteriores ao sinistro tenham sido judicialmente reconhecidas.
[…]”[24].

            Mas existem argumentos adicionais que nos levam a acolher este entendimento do artigo 22º do DL nº 291/2007.
            2.2.2.1. Desde logo, no especial contexto da LCS (que é o contexto aqui aplicável), e significativamente dentro das disposições especiais respeitantes aos seguros obrigatórios, sublinhamos o artigo 147º, colocando particular ênfase no nº 2 deste preceito:
Artigo 147º
Meios de defesa
1 – O segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro.
2 – Para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador, a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato.

            Parecendo-nos clara a referenciação temporal da inexactidão dolosa respeitante ao condutor habitual – o desvalor com potencialidade anulatória aqui em causa – ao acto de formação do contrato e, por isso, como constituindo facto anterior ao sinistro, estamos em crer que o preceito, e em especial o seu nº 2, veio ultrapassar, no caso das omissões e inexactidões dolosas, questões de oponibilidade geradas anteriormente à LCS, concretamente no contexto do artigo 22º do DL nº 291/2007[25].
            2.2.2.2. A este elemento interpretativo acrescentaríamos, fornecendo igualmente um contexto sistemático ao referido artigo 22º conforme ao entendimento aqui adoptado quanto à questão da oponibilidade da anulação promovida pela seguradora, o teor do artigo 11º da chamada “Apólice uniforme do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”, aprovada pela Norma Regulamentar nº 17/2000, de 21 de Dezembro do Instituto de Seguros de Portugal (ISP)[26], em vigor ao tempo da edição do DL nº 291/2007 (entretanto substituída, como de seguida veremos, pelas “Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel” aprovadas pela Norma Regulamentar nº 14/2008-R, de 27 de Novembro do ISP). Esta disposição (a da Apólice Uniforme), que de seguida transcreveremos, veio fornecer um especial contexto interpretativo ao artigo 22º do DL nº 291/2007[27]:
Artigo 11º
Nulidade do contrato
1- Este contrato considera-se nulo e, consequentemente, não produzirá quaisquer efeitos em caso de sinistro quando da parte do tomador de seguro ou do segurado tenha havido declarações inexactas, assim como reticências de factos ou circunstâncias dele conhecidas que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato.
2 – Se as referidas declarações ou reticências tiverem sido feitas de má fé, a seguradora terá direito ao prémio, sem prejuízo da nulidade do contrato nos termos do número anterior.

            E o mesmo ocorre, reforçando o entendimento aqui adoptado sobre a actuação da anulabilidade do contrato, com o regime sucedâneo desta Apólice Uniforme, através das já mencionadas “Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel” aprovadas pela Norma Regulamentar nº 14/2008-R, de 27 de Novembro do ISP[28], interessando aqui o teor da cláusula 7ª (com particular ênfase no seu nº 3) dessas “Condições Gerais”[29], enquanto cláusula “relativamente imperativa” actuante nos contratos concretos[30]:
Cláusula 7ª
Incumprimento doloso do dever de declaração inicial do risco
1- Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 da cláusula anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.
2- Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento.
3- O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.
4- O segurador tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no n.º 2, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante.
5- Em caso de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do contrato.

            2.2.2.3. Finalmente, também afastando a relevância de um argumento normalmente convocado em favor do entendimento do artigo 14º do DL nº 522/85 (e do artigo 22º do DL nº 291/2007) que aqui subjaz à Sentença recorrida – a defesa dos lesados de demoras no recebimento das indemnizações[31], a “medida de relevante alcance social” a que alude a Sentença –, não deixaremos de sublinhar que a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel, face aos artigos 47º e ss. do DL nº 291/2007, retira sentido teleológico a este tipo de argumento, sendo que tal intervenção garante aos lesados, desde logo, a efectiva adjectivação do respectivo direito à indemnização, livrando-os do estorvo da discussão dos possíveis desvalores do contrato de seguro, enquanto incidência exterior aos lesados, sendo o direito destes acautelado, como aqui sucedeu, pela intervenção do Fundo de Garantia Automóvel, que, mais tarde – e foi também o que aqui sucedeu –, trava com os directamente envolvidos a discussão sobre as incidências do contrato de seguro, determinando a quem incumbe restituir ao Fundo o que este pagou entretanto[32].
            2.3. Valem as antecedentes considerações, no seu conjunto, como afastamento da construção interpretativa que conduziu o Tribunal a quo a considerar inoponível ao Fundo de Garantia Automóvel a anulabilidade do contrato de seguro aqui em causa por declaração dolosa inexacta (falsa), com reconhecida incidência nas condições do contrato, quanto à verdadeira identidade do condutor habitual da viatura …-IB, cuja circulação foi objecto do contrato de seguro celebrado entre o 1º R. e a Seguradora 4ª R. Entendemos que essa anulação operou relevantemente nesta acção (por declaração da Seguradora consubstanciada na dedução de uma excepção peremptória) e que afastou o dever contratual de indemnizar os lesados (e o Fundo como sub-rogado destes), face à culpa na produção do acidente por parte do 2º R. Assim, a obrigação de ressarcir o Fundo pelo que satisfez incumbe, em exclusivo, ao 2º R., como causador de um acidente não coberto por um seguro válido[33].
            Procede, pois, o recurso de apelação, devendo ser absolvida do pedido a Seguradora 3ª R., ora Apelante, tal como o 1º R., devendo recair a condenação, tributária da sub-rogação do Fundo de Garantia Automóvel, em exclusivo, sobre o 2º R.
            É a este conjunto de incidências que importa dar seguimento no pronunciamento decisório a culminar este Acórdão.
            2.4. Sumário elaborado pelo relator:
I – No quadro legal emergente do Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (LCS), a afirmação do tomador do seguro no preenchimento da proposta de ser ele, como condutor encartado há mais de 20 anos, o condutor habitual da viatura objecto do seguro, escondendo da Seguradora que o verdadeiro condutor habitual (o filho do tomador) havia obtido licença de conduzir poucos meses antes da celebração do contrato, este comportamento, gera a anulabilidade desse contrato de seguro por inexactidão dolosa quanto à declaração de risco, nos termos do artigo 25º, nº 1 da LCS:
II – Essa incidência (a falsa declaração quanto ao condutor habitual) refere-se a um elemento muito significativo para a apreciação do risco assumido pela seguradora no contrato, com incidência na quantificação do prémio;
III – A referida anulabilidade actua, nos termos do artigo 25º, nº 1 da LCS, mediante declaração da seguradora ao tomador do seguro, sendo que isso, descobrindo a seguradora a fraude apenas posteriormente à ocorrência do sinistro, actuará, no quadro de um processo judicial instaurado contra essa seguradora, por via de excepção (invocação pela seguradora na contestação da extinção do contrato por anulabilidade nesse contexto declarada);
IV – O disposto no artigo 22º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) não impede a oponibilidade da referida anulabilidade do contrato pela seguradora aos lesados pelo acidente e, reflexamente, ao Fundo de Garantia Automóvel, quando esta entidade exerce a sub-rogação decorrente de ter assumido, perante esses lesados, a responsabilidade indemnizatória emergente do referido acidente.

III – Decisão
            3. Assim, na procedência do recurso, revoga-se a Sentença apelada, absolvendo-se o 1º R., C… e a 3ª R. A...Seguros, S.A., do pedido formulado pelo A., condenando-se o 2º R. M…, a satisfazer ao A. Fundo de Garantia Automóvel a quantia de €5.745,81, acrescida dos juros de mora que, contados da data de citação do 2º R. (fls. 84), se venceram e venham a vencer até integral pagamento.
            As custas em ambas as instâncias ficam a cargo do 2º R. M… (o A., o Fundo de Garantia Automóvel, tendo ficado vencido nesta apelação, goza da isenção prevista no artigo 4º, nº 1, alínea o) do Regulamento das Custas Processuais).
            Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado, em audiência, na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 03/12/2013

(J. A. Teles Pereira - Relator)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)

[1] Trata-se da data de propositura da presente acção, marcando ela a aplicação à presente instância de recurso do regime processual originariamente decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Não se aplica aqui, desta feita por estar em causa decisão recorrida (a de fls. 214/225) anterior a 1 de Setembro de 2013, o texto do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho (v. os respectivos artigos 7º, nº 1 e 8º, cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, 2013. p. 15). Assumimos ser discutível se a regra do artigo 7º, nº 1 da Lei nº 41/2013, a única disposição do Diploma introdutório do Novo Código de Processo Civil que se refere à instância de recurso, abrange os recursos referidos a decisões anteriores a 01/09/2013 aos quais já se aplicasse o regime do DL nº 303/2007 – processos instaurados depois de 01/01/2008 –, sendo que quanto a estes, em rigor, não há qualquer regime transitório expressamente definido, pelo que há que entender que, em tais casos, se continuará a aplicar o regime antigo, aqui sinónimo do regime “originário” do DL nº 303/2007, até porque, se o legislador se preocupou em definir um regime para as acções instauradas antes de 01/01/2008, não tem sentido concluir que um regime idêntico também vale para as acções propostas depois dessa data, além de que a “tradição” dos nossos Diplomas introdutórias de reformas profundas do Processo Civil é tratar a instância de recurso individualizadamente.
[2] Nos termos do artigo 54º, nº 1 do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (regime legal do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aqui aplicável, como adiante explicitaremos neste texto).
[3] Transcrevem-se aqui os seguintes trechos da petição inicial:
“[…]
1º. No dia 12 de Agosto de 2009, pelas 12:10, ocorreu um acidente de viação na E.N. 242, ao Km 49, concelho e comarca de Alcobaça, como atestam a participação de acidente de viação e declaração amigável de acidente automóvel que se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidas. (Doc. nº. 1 e Doc. nº. 2).
2º. Nele foram intervenientes:
a) O veículo …-IB, um ligeiro de passageiros que se designará IB;
b) O veículo …-TJ, um ligeiro de passageiros, adiante designado TJ;
c) O veículo …-VQ, também ligeiro de passageiros, adiante designado VQ;
d) O veículo …-62, ligeiro de passageiros, adiante designado EF.
3º. O IB era propriedade do 1º R. e conduzido pelo seu filho, ora 2º R.
[…]
24º. Tal como resulta da descrição do acidente, o 2º R. foi o único culpado pela sua ocorrência.
25º. Conclusão, aliás, apresentada no relatório de averiguação requisitado pela A… SEGUROS, constante no Auto de Ocorrência como seguradora do IB (Doc. nº 3).
[…]
34º. Como já se referiu, a A… SEGUROS realizou averiguação relativa ao presente acidente de viação,
35º. Vindo a constatar, nomeadamente pelo depoimento do próprio condutor do IB (seu presumível segurado), que:
36º. O condutor habitual da viatura identificada na apólice, não o era efectivamente.
37º. Em consequência, declinou a A… qualquer responsabilidade na ocorrência em apreço, no entendimento de que da falsidade das declarações na contratação do seguro, decorria a sua nulidade. (vide Doc. nº 3)
38º. Violavam assim os RR. o artº 133º do Código da Estrada, bem como o preceituado no artº 4º, nº 1º do DL 291/2007, de 21 de Agosto.
39º. Os proprietários dos veículos VQ e EF reclamaram junto do Fundo de Garantia Automóvel o ressarcimento dos valores que desembolsaram em virtude do acidente,
40º. Já que obtiveram a informação de que o veículo IB não dispunha, à data do acidente, de seguro válido e eficaz.
41º. Como lhe competia, por aplicação do artº 48º e seguintes do citado DL 291/2007.
42º. O FGA pagou as indemnizações decorrentes do acidente a que o 2º R. deu causa.
[…]
46º. Assim, despendeu o FGA um total de €5.745,81, conforme certidão emitida pelo Instituto de Seguros de Portugal, em 26 de Janeiro de 2011. (Doc. nº 9).
47º. Satisfeita a indemnização, tem o FGA direito ao reembolso do que houver prestado a título de indemnizações e despesas, nos termos do nº 1 do artigo 54º do Decreto-Lei nº 291/2007 que, sob a epígrafe «Sub-rogação do Fundo», determina que «Satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro
e de reembolso.»
48º. Assim, tem o A. direito a reaver a citada quantia de €5.745,81.
[…]”.
[4] Dizem os 1º e 2º RR. na contestação:
“[…]
13º)
O Réu C…, proprietário do veículo …-IB, transferiu a sua responsabilidade civil, na qualidade de tomador para a Companhia de Seguros A…, S.A., por contrato de seguro titulado pela apólice nº. …, com início em 19/05/2009 e válido até 19/05/20120, conforme Recibo de Prémio, que se junta e dá por integralmente reproduzido – Doc. nº1;
14º)
Á data do acidente, o veículo …-IB era conduzido pelo segundo Réu, M…, filho do proprietário e tomador do seguro.
15º)
Com base nesta ‘informação’, a Companhia de Seguros A…, veio entretanto, declinar qualquer responsabilidade na ocorrência em apreço, no entendimento de que da falsidade das declarações na contratação de seguro, decorria a sua nulidade (vide Doc. nº3) – Artº 37º da P.I.
[…]
18º)
[N]ão é qualquer declaração inexacta ou reticente que pode tornar anulável o contrato de seguro.
[…]
Por conseguinte;
20º)
O facto de ter sido indicado, em contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, como proprietário e como condutor habitual pessoa diversa do segurado e tomador do seguro, não torna o contrato nulo, sendo a seguradora responsável nos termos e limites do contrato de seguro.
[…]”.
[5] Refere a Seguradora na contestação:
“[…]
1.º
A ora Contestante confirma que celebrou um Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel titulado pela apólice n.º …, com o R. C… pelo sobre o veículo automóvel com a matrícula …-IB, conforme doc. 1 que ora se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos,
2.º
Contudo, conforme supra referido, o contrato de seguro tinha como tomador o ora R. C…,
3.º
tendo o mesmo declarado aquando do preenchimento da proposta de seguro que era o proprietário e condutor habitual do veiculo …-IB, conforme cópia da proposta de seguro que ora se junta como doc. 2 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
4.º
Tal declaração, como se pode ver pela análise da mesma, foi assinada pelo próprio.
5.º
No entanto aquando da averiguação do presente sinistro o Réu M…, condutor do veículo à data do acidente e filho do tomador do seguro, declarou que ‘Mais informo que necessito do carro porque sou o condutor habitual desde início e Abril quando o meu pai comprou o carro para eu fazer as minhas deslocações diárias, no entanto o carro ficou em nome dele e o seguro porque tenho 19 anos e tinha acabado de tirar a carta e assim ficava mais barato’, conforme cópia de declaração que ora se junta como doc. 3 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
6.º
Acresce que o 1º Réu, pai do declaratário 2º Réu, e tomador do seguro, confirmou as declarações prestadas pelo seu filho, conforme cópia das declarações que supra se juntaram.
8.º
Pelo exposto, as declarações prestadas pelo tomador do seguro aquando da sua celebração foram declarações falsas ou inexactas em relação á propriedade e condução habitual da coisa segura.
9.º
Em decorrência estamos perante uma inquestionável falta de interesse no objecto seguro.
10.º
Em face do disposto no art. 428° n.º 1 do Código Comercial, o contrato de seguro é nulo se aquele por quem ou em nome de quem é outorgado não tiver interesse na coisa segurada.
[…]
16.º
Acresce a prescrição do art. 429º do Código Comercial que estabelece que ‘Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou de circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro e que poderiam ter influído nas condições da existência do contrato tomam o seguro nulo”.
17.º
Estabelece ainda o art. 11º da Apólice Uniforme de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel que o contrato de seguro se considera nulo e consequentemente não produzirá quaisquer efeitos em caso de sinistro quando da parte do tomador de seguro tenha havido declarações inexactas assim como reticências de factos ou circunstâncias dele conhecidas e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato.
18.º
Com efeito, tal nulidade justifica-se porquanto se a seguradora, no caso a ora Contestante, tivesse tido conhecimento das circunstâncias que aumentam o risco não teria concluído o contrato ou exigiriam outras condições mais onerosas para o Tomador do Seguro.
[…]
23.º
Nos termos supra expostos, desde já se requer a V. Exa. a declaração da nulidade ab initio do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n.º ...
[…]”.
[6] Aqui se transcreve todo o pronunciamento decisório da acção:
“[…]
• Absolver o réu C… do pedido formulado;
• Absolver o réu M… do pedido formulado;
• Condenar a ré Companhia de Seguros A…, SA, no pagamento ao autor Fundo de Garantia Automóvel, da quantia de €5.745,81 (cinco mil, setecentos e quarenta e cinco euros e oitenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor para as obrigações civis, contabilizados desde a data de citação da referida ré nos presentes autos até efectivo e integral pagamento.
[…]”.
[7] Em qualquer caso, v. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[8] Que estabelece que, “[s]atisfeita a indemnização, o [Fundo] fica sub-rogado nos direitos do lesado […]”.
[9] V. item 2.2.1.1., infra.
[10] Tudo em Maio de 2009, sendo que o acidente ocorreu logo – como que confirmando o sentido da extrapolação estatística quanto ao risco acrescido representado por um recém-encartado – em 12 de Agosto de 2009.
[11] “[D]a identificação do condutor habitual depende a análise do risco segurável e a aplicação de condições mais ou menos favoráveis ao contrato (sobretudo quanto ao prémio). Como a relevância da questão é consabida do público em geral, a apetência por condições mais vantajosas leva, com alguma frequência, a que seja omitida a identidade do verdadeiro condutor e indicada, para esse efeito, a de outra pessoa.” (Luís Poças, O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, Coimbra, 2013, p. 685).
[12] Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Coimbra, 2010, p. 66.
[13] “A delimitação do universo de eventos que há-de ser abrangido pela cobertura faz-se, no drafting, segundo uma técnica consagrada de regras e excepções em níveis sucessivos: afirmações e negações, seguidas de negações parciais destas, e por vezes ainda de negações parciais destas últimas.
Desta técnica resulta, no primeiro nível, uma definição básica da cobertura de certo conjunto de eventos, chamada definição ou delimitação primária da cobertura; depois um conjunto de exclusões, que especificam subconjuntos desse conjunto que não ficam abrangidos pelo contrato, e que formam a delimitação secundária; e muitas vezes é preciso ainda especificar subconjuntos destes últimos subconjuntos, que voltam a ser declarados como parte do âmbito da cobertura. Tudo isto porque a linguagem comum não fornece instrumentos para delimitar mais economicamente os eventos cobertos; só pela combinação de múltiplas descrições segundo certas relações lógicas se pode chegar a uma delimitação que satisfaça razoavelmente os fins práticos da contratação” (José António Veloso, “Riscos, Transferência de Risco, Transferência de Responsabilidade”, in Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Coimbra, 2007, pp. 317/318).
[14] Correspondendo à essência do contrato de seguro o assumir (remunerado) de um risco (de um risco que apresenta, fundamentalmente, uma expressão pecuniária), por referência à ocorrência de um evento futuro e incerto, percebe-se a natureza estratégica, no processo de construção do contrato, dos elementos dos quais depende, em larga medida, a antecipação probabilística desse risco, enquanto referencial de quantificação da remuneração devida à seguradora (do prémio).
O seguro, tanto numa acepção jurídica como económica, traduz uma forma de “gestão do risco” (risk management), através da minimização das suas consequências. Opera por transferência equitativa desse risco (mais propriamente das consequências patrimoniais desse risco) de uma entidade para outra, sendo que a assunção do risco por esta última (a seguradora) tem como contrapartida o recebimento de um “prémio”, enquanto prestação fixa a cargo do transferente do risco (segurado ou tomador).
O seguro expressa, para o segurado ou tomador, uma racionalidade económica básica: o assumir de uma pequena e previsível perda patrimonial (o pagamento do prémio) como forma de fazer face a uma hipotética grande perda (“guaranteed and known small loss to prevent a large, possibly devastating loss”, v. as entradas Insurance e Risk management na versão inglesa da “Wikipedia”, respectivamente, nos seguintes endereços:
http://en.wikipedia.org/wiki/Insurance e http://en.wikipedia.org/wiki/Risk_management).
Para a seguradora, a racionalidade económica do seguro expressa-se, por um lado, na avaliação do risco, seleccionando o assumir deste em função da probabilidade de ocorrência do evento e fixando o montante do prémio com a mesma base (é o processo que, na terminologia anglo-saxónica, se designa por underwriting, v., de novo na “Wikipedia”, http://en.wikipedia.org/wiki/Underwriting) e, por outro lado, numa política de investimento dos recursos obtidos através do percebimento dos prémios, como forma de gerar recursos acrescidos, relativamente às satisfações decorrentes da materialização da utilidade do seguro para o segurado (a concretização das chamadas claims).
A forma de avaliação do risco pela seguradora baseia-se na “Ciência Actuarial” (“[a]ctuarial science is the discipline that applies mathematical and statistical methods to assess risk in the insurance and finance industries”, v. http://en.wikipedia.org/wiki/Actuarial_science), sendo que a avaliação probabilística a que esta fornece uma base de trabalho assenta, fundamentalmente, no núcleo de informações relevantes para essa operação prestados pelo segurado ou tomador à seguradora, associado à descrição rigorosa dos contornos do evento concretizador do risco assumido.
[15] V. Luís Poças, O Dever de Declaração Inicial…, cit., pp. 326/327.
[16] “Para além das exclusões e anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do artigo anterior [refere-se à alienação do veículo], ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro”.
[17] “Para além das exclusões e anulabilidades que sejam estabelecidas no presente decreto-lei, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do artigo anterior [também se refere à alienação do veículo], ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro”.
[18] Aqui o transcrevemos antecedido do artigo 24º, nº 1 para o qual o artigo 25º remete:
Artigo 24º
Declaração inicial do risco
1 — O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.
Artigo 25º
Omissões ou inexactidões dolosas
1 – Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.
2 — Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento.
3 — O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.

[19] “Compreendia-se que as reticências do segurado, capazes de falsear totalmente o contrato, devessem ser sancionadas com uma invalidade. Mas não se entenderia porquê um desvio tão grande em relação aos regimes do erro e do dolo – artigos 252º e 254º do Código Civil – que remetem, mesmo nos casos mais graves, para a anulabilidade. Por isso, devia prevalecer a interpretação actualista que, no artigo 429º, via uma simples anulabilidade” [António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Coimbra, 2013, p. 574; v. a anotação de Arnaldo da Costa Oliveira ao artigo 25º da LCS, in Lei do Contrato de Seguro anotada, 2º ed., Coimbra, 2011, pp. 155/157; cfr. José Alberto Vieira, “O Dever de Informação do Tomador de Seguro em Contrato de Seguro Automóvel”, in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, Vol. I, Coimbra, 2005, pp. 1007/1008, note-se que este Autor, reconhecendo ser diferente o entendimento maioritário, entende que o artigo 429º do Código Comercial consagra uma verdadeira nulidade (p. 1013)].
Na jurisprudência, entre muitos exemplos possíveis, v. o Acórdão desta Relação de 21/09/2010, proferido pelo ora relator no processo nº 337/08.0TBALB.C1, consultado em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/3300e48a0bd6b9c8802577b5004d9ce.
Sumário:
“[…]
V – A consequência, relativamente ao contrato, da existência de desvalores não atribuíveis à seguradora no processo de recolha de informação conducente à celebração do contrato, enquanto elemento induzido pelo próprio beneficiário ou por quem faz o seguro através da prestação activa ou omissiva de informações não conformes à realidade, conduz a que o negócio assente, face à seguradora, numa base falseada.
VI – Este desvalor acarreta a anulabilidade do contrato, no regime do Código Comercial, por aplicação, terminologicamente actualizada, do artigo 429º deste Diploma.
[…]”.
[20] “O final do artigo 25º/1 aponta a consequência das reticências dolosas: o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do contrato. Trata-se de uma anulabilidade sui generis, uma vez que ela se distancia, em diversos aspectos, do regime comum.
- a anulação opera mediante declaração enviada ao tomador do seguro: pela nossa parte não aderimos, no direito civil, à ideia de que a anulação exige uma acção judicial, no que traduziria uma inacreditável benesse aos prevaricadores; de todo o modo, a expressa indicação de que (só) por uma declaração se provoca o efeito anulatório é uma especialidade” (António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, cit., p. 584).
[21] “Assim [como excepções peremptórias inominadas] as nulidades ou as anulabilidades dos negócios jurídicos […]” (Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, p. 137).
[22] “O Dever de Informação do Tomador de Seguro…”, cit., p. 1019.
[23] “O Dever de Informação do Tomador de Seguro…”, cit., pp. 1018/1019.
[24] O Dever de Declaração Inicial…, cit., p. 689.
[25] Aderimos aqui ao particular entendimento do artigo 147º da LCS propugnado por Luís Poças: O Dever de Declaração Inicial…, cit., pp. 696/698.
[26] Publicada no Diário da República – II Série, nº 16 de 19 de Janeiro de 2001.
[27] Como indica Luís Poças, O Dever de Declaração Inicial…, cit., p. 688, nota 2480.
[28] V. o texto da Norma Regulamentar e das “Condições Gerais” no Diário da República – II Série, nº 240, de 12 de Dezembro de 2008 e no sítio do Instituto de Seguros de Portugal no seguinte endereço: http://www.isp.pt/winlib/cgi/winlibimg.exe?key=&doc=17713&img=2642.
V., quanto à aplicação ao contrato aqui em causa, celebrado em Maio de 2009, o artigo 4º da referida Norma:
Artigo 4.º
Aplicação no tempo aos contratos celebrados a partir de 1 de Janeiro de 2009
A Parte Uniforme das Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel aplica-se aos contratos celebrados a partir de 1 de Janeiro de 2009, com as condicionantes previstas nos artigos anteriores, devendo a apólice ser entregue aquando da celebração, nos termos legais.
[29] Sobre a actuação destas cláusulas nos contratos, v. os “comentários complementares” de Arnaldo Costa Oliveira ao artigo 13º da LCS, in Lei do Contrato de Seguro anotada, cit., pp. 70/71.
[30] Vale a respeito deste tipo de imperatividade o artigo 2º da Norma Regulamentar nº 14/2008-R, sendo que não existiu nas condições deste contrato o estabelecimento de regime divergente mais favorável ao tomador:
Artigo 2º
Substituição em concreto do previsto na Parte Uniforme
1- O previsto nas cláusulas preliminar, n.º 4, 1.ª parte, e cláusulas 3.ª, n.º 4, 9.ª, nº 3, 12.ª, 14.ª, 16.ª, 17.ª, nº 3, 2.ª parte, 18.ª, nºs 2 e 8, 21.ª, 22.ª, 24.ª, nºs 1, 2.ª parte, e 2, 1ª. parte, 25.ª, 29.ª, com excepção da 2.ª parte do n.º 2, 30.ª, e 36.ª é, nos termos da lei, absolutamente imperativo, não admitindo convenção em concreto em contrário.
2- O previsto nas cláusulas preliminar, n.os 4, 2.ª parte, 5 e 6, e cláusulas 2.ª, 3ª., n.os 1 a 3, 4.ª a 8.ª, 9.ª, n.os 1 e 2, 10.ª, 13.ª, 17.ª, n.os 1, 1.ª parte, e 3, 1.ª parte, 18.ª, n.os 1, 2.ª parte, e 3, 1.ª parte, 23.ª, 24.ª, nº 2, 2.ª parte, 26.ª a 28.ª, 29.ª, n.º 2, 2.ª parte, 31.ª, 32.ª, n.º 2, 33.ª, 34.ª e 35.ª, n.º 1 é, nos termos da lei, relativamente imperativo, admitindo convenção em concreto mais favorável ao tomador do seguro, segurado ou ao beneficiário da prestação de seguro, sem prejuízo do fixado no n.º 4.
3- O previsto, de forma abstracta, nas cláusulas 9.ª, n.º 3, 16.ª, 17.ª, n.º 1, 18.ª, n.º 8, 30.ª, e 35.ª, n.º 1, é substituível por indicação concreta.
4- Nos contratos relativos a seguros de grandes riscos, o previsto nas cláusulas identificadas no n.º 2 admite, nos termos legais, convenção em concreto em qualquer sentido, mas sem prejuízo do disposto na lei geral, nomeadamente no regime das cláusulas contratuais gerais, e, bem assim, sem que da convenção possa resultar em restrição do âmbito da cobertura decorrente do previsto nas cláusulas 2.ª a 5.ª e 23.ª.
5- As disposições da Parte Uniforme não identificadas nos n.os 1 e 2 são supletivas.
6- Aquando do registo das condições gerais e especiais das apólices no Instituto de Seguros de Portugal, para efeitos de supervisão dos seguros obrigatórios, as empresas de seguros identificam as cláusulas contratuais diversas das da Parte Uniforme.
Sobre a imperatividade relativa nas normas de contratos de seguros, v. António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, cit. Pp. 462/464.
[31] Acórdão do STJ de 18/02/2002 (Moitinho de Almeida), proferido no processo nº 02B3891, consultado em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ac0ad956c57d941c80256ce10035e2a6.
[32] Neste sentido, referindo-se ainda ao DL 522/85 (mas depois da redacção neste introduzida pelo Decreto-Lei nº 130/94, de 19 de Maio), v. José Alberto Vieira, “O Dever de Informação do Tomador de Seguro…”, cit., pp. 1019/1022.
[33] Não ao 1º R., seu pai e testa-de-ferro no seguro, que não conduzia a viatura no momento do acidente nem utilizava o 2º R. como seu comissário: foi no quadro da condução habitual do IB pelo 2º R. que se deu, por culpa deste, o acidente, como resulta da matéria de facto provada.