Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B3891
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOITINHO DE ALMEIDA
Nº do Documento: SJ200212180038912
Data do Acordão: 12/18/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 6/02
Data: 05/15/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" intentou a presente acção declarativa, com processo sumário, contra "B"-Seguros de Portugal, S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a indemnização de montante nunca inferior a Esc.18.186.491$00, e juros à taxa legal de 10% desde a data do acidente e, subsidiariamente, desde a citação.

Alegou para o efeito e em substância que no dia 19 de Outubro de 1997, pelas 20h30, quando circulava transportado no velocípede com motor de matrícula 1-GMR, conduzido por C, na estrada municipal que liga São Martinho do Conde a Vizela, o referido veículo ao descrever uma curva saiu da metade direita da faixa de rodagem indo embater num muro de granito que faceia a estrada do lado direito, tendo em conta o sentido de marcha.

Do acidente, devido a culpa exclusiva do condutor do velocípede, resultaram para o autor danos patrimoniais e não patrimoniais que avalia no montante acima indicado.

A Ré assumiu a responsabilidade civil resultante da utilização do velocípede em causa.

Na sua contestação a Ré pediu a intervenção do condutor do veículo seguro, com vista a poder exercer eventual direito de regresso, o que foi admitido.

A acção foi julgada improcedente, tendo a sentença proferida em 1ª instância sido confirmada pelo acórdão da Relação de Guimarães de 15 de Maio de 2002.

Inconformado, recorreu o Autor para este Tribunal concluindo as alegações da sua revista nos seguintes termos:

1. Na douta sentença proferida em 1ªinstância, confirmada na íntegra pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de que se recorre, foi conhecida...questão prévia que se prende com a validade do contrato de seguro celebrado entre a ... e o condutor do velocípede com motor Honda NSR-50 com matrícula 1-GMR, C, em 19 de Setembro de 1997";

2. Nesta, é entendido que estão preenchidos os requisitos que conduzem à anulação do contrato e que, por outro lado, porque o autor não terá arguido o decurso do prazo estabelecido para a invocação da anulabilidade, tal invalidade tem de ser declarada, sendo oponível ao Autor/recorrente;

3. Tal facto exclui a obrigação de indemnizar por parte da Ré, que foi absolvida do pedido;

4. Considera o recorrente que, por um lado, nem todas as declarações falsas ou reticentes conduzem à invalidade do contrato;

5. Apenas são determinantes aquelas que influam na existência e nas condições do contrato de modo que, se o segurador as conhecesse, não contrataria ou teria contratado em condições diversas;

6. Não se encontram plasmados na matéria de facto dada como provada e que serve de fundamentação à douta sentença de 1ª instância (ora confirmada pela Relação), factos suficientes para que se possa considerar que estão preenchidos os pressupostos referidos no art. 429º do Cód. Comercial e que determinariam a declaração de nulidade do contrato, como preceitua tal normativo e é pedido pela Ré na sua contestação;

7. Por outro lado, a Ré seguradora, na sua contestação, começa por se defender por excepção, num capítulo a que chama "DA NULIDADE DO CONTRATO DE SEGURO " e que vai do artigo 1º a 22º daquela peça processual;

8. Verifica-se, assim, que a Ré/recorrida, ao longo da sua contestação, , vai repetindo a excepção que invoca e que pretende ver declarada a NULIDADE do contrato de seguro celebrado;

9. Em parte alguma da sua contestação, ou qualquer outro articulado por si apresentado, a Ré seguradora invocou a ANULABILIDADE de tal contrato;

10. O Autor, ora recorrente, não pode ser penalizado (como é feito na sentença de 1ª instância) pelo facto de não ter arguido a intempestividade da invocação de anulabilidade pela Ré seguradora porquanto a Ré seguradora nunca invocou a anulabilidade, mas sim a nulidade;

11. E não fazia qualquer sentido que o Autor, na sua réplica, viesse arguir a caducidade da invocação da anulabilidade quer porque tal anulabilidade nunca foi invocada como também porque a nulidade invocada o pode ser a todo o tempo e por qualquer interessado;

12. O Autor replicou, impugnandontais factos e assim obstando a que a ausência de resposta à contestação determinasse os efeitos do art. 490º e 505º do Cód.Proc. Civil;

13. Sem prescindir, entende também o recorrente que estava vedada ao Meritíssimo Juiz do Tribunal de 1ª Instância o conhecimento e declaração da anulabilidade do contrato de seguro em causa;

14. Em parte alguma dos presentes autos a Ré seguradora invocou a anulabilidade do contrato de seguro;

15. No entanto, na douta sentença recorrida tal anulabilidade é declarada;

16. Ora, "Só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e só dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento." (conf. art. 287º do Cód. Civil);

17. Ao contrário do que acontece com a nulidade, a anulabilidade não é de conhecimento nem pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal;

18. Por tal facto, entende o recorrente que estava vedado ao Tribunal de 1ª Instância a declaração de anulabilidade;

19. Vedado porque tal declaração oficiosa não é legalmente permitida e vedado porque sobre os factos e até à data de tal declaração oficiosa já tinha passado muito mais de um ano;

20. Entende ainda o recorrente que, e sem conceder em tudo quanto para trás já disse, nem a nulidade nem a anulabilidade de tal contrato de seguro serão a si oponíveis;

21. No presente caso, o condutor não tem habilitação legal que lhe permita a condução de veículos. Assim sendo, a seguradora poderá, em via de regresso, exigir do condutor (interveniente nos presentes autos) os montantes que vier a ser condenada a pagar ao Autor/recorrente;

22. No entanto, estará sempre condenada a tal pagamento ao autor/recorrente;

23. Se fosse intenção do legislador não proteger direitos de terceiros não teria concebido tal direito de regresso;

24. Ou seja, protegem-se os direitos do sinistrado (que é o único que nenhuma culpa tem) e protegem-se os interesses da seguradora (concedendo-lhe o direito de regresso para ser ressarcida do que tiver pago ao sinistrado);

25. Seja qual for o entendimento relativamente ao vício de que enferme a relação contratual entre a seguradora, segurado e condutor do veículo interveniente, é ponto assente que esse mesmo vício (e suas consequências legais) nunca podem afectar os direitos de terceiros que pretendam o ressarcimento de danos por si sofridos;

26. É aliás, a expressão evidente de um dos princípios basilares do ordenamento jurídico: A PROTECÇÃO DOS LEGÍTIMOS INTERESSES DE TERCEIROS, ALHEIOS À RELAÇÃO CONTRATUAL VICIADA, QUE ESTÃO DE BOA FÉ;

27. Assim, o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães- e que negando provimento ao recurso de apelação, confirma a decisão de 1ª Instância- violou o disposto nos art. 429º do Cód. Comercial; os art. 286º, 287º e 289º do Cód. Civil; o art. 19º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12 e os art. 264º, 661º e 664º do Cód. Proc. Civil.

2. É a seguinte a matéria de facto com relevância para a apreciação do presente recurso:

-O Autor era operário têxtil auferindo o salário mensal acrescido de subsídio de refeição, subsídio de turno e prémios de produção e assiduidade que ascendiam ao montante líquido de Esc. 71.622$00 ;

-Às remunerações mensais acresciam os subsídios de férias e de Natal no montante de Esc.60.550$00 cada um;

-Em virtude do acidente o Autor esteve impossibilitado de prestar trabalho desde a data do mesmo até 21 de Julho de 1998;

-Do acidente resultaram para o autor lesões que se consubstanciaram em ferida malar direita, hematoma fronto temporo malar direito, fractura com afundamento do temporal direito com contusão hemorrágica subjacente e laceração gástrica;

-Das referidas lesões resultaram sequelas que se consubstanciaram em hipostesia na região fronto temporal direita, cicatriz notável na região malar com seis centímetros de comprimento e síndroma pós traumático;

-em consequência o Autor ficou afectado de uma incapacidade permanente de 25%;

-O Autor sofreu dores quer quando se precipitou ao solo quer quando foi submetido a intervenção cirúrgica e tratamentos;

-O Autor sofreu e sofre de frequentes e intensas dores por todo o corpo, quando há mudança de estação, dentro da mesma estação, quando há mudança de tempo e quando faz esforços físicos, nomeadamente quando envolvam movimento com o tronco e a cinta;

-O Autor foi assistido no Hospital de Guimarães e no Hospital de São Marcos, em Braga, onde esteve internado de 19 de Outubro de 1997 a 4 de Novembro seguinte;

-Aí foi submetido a intervenção cirúrgica ao estômago;

-Posteriormente foi submetido a tratamentos;

-Como consequência do acidente o autor ficou com a camisola e as calças que envergava danificadas;

-Teve de fazer várias viagens entre a sua residência e o Hospital de Braga para ser tratado;

-Após o acidente ficou-lhe vedada a prática de desportos que envolvam esforços físicos violentos, designadamente, futebol, basquetebol ou andebol;

-O Autor não utilizava capacete;

-tal contribuiu para o agravamento das lesões craneanas;

-O autor nasceu em 20 de Setembro de 1975.

Cumpre decidir.

3. Estabelece o artigo 14º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro que "Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro".

Tudo está, pois, em saber se a "nulidade" prevista no artigo 429º do Código Comercial, resultante de falsas declarações sobre o risco, deve ser considerada "nulidade" para efeitos do disposto naquele preceito.

A este respeito importa observar que o seguro obrigatório automóvel destina-se a garantir o ressarcimento dos lesados em consequência de acidentes de trânsito. Imperativas razões de ordem social impõem que a reparação das vítimas seja rápida e segura, isto é, que não haja dúvidas quanto à pessoa do responsável, que o processo a seguir seja célere e que a efectiva indemnização não seja posta em causa pela insolvabilidade do causador do acidente.

Estas exigências impõem um seguro obrigatório em que a responsabilidade é garantida pela seguradora, salvo nos casos excepcionais em que a garantia é assumida pelo Fundo de Garantia.

Daí que nos regimes do seguro obrigatório se encontre amplamente consagrado o princípio da inoponibilidade das excepções contratuais. Assim, a Convenção de Estrasburgo de 20 de Abril de 1959 já o contemplava ao determinar que "O segurador não pode opor à pessoa lesada a nulidade ou a cessação do contrato, a sua suspensão ou a da garantia, a menos que se trate de sinistros ocorridos finda a expiração do prazo de 16 dias seguintes à notificação pelo segurador da nulidade, cessação ou suspensão" (artigo 9º, nº 2).

Preceito semelhante encontra-se, por exemplo, na lei italiana nº 990, de 24 de Dezembro de 1969: "dentro do máximo garantido na apólice o segurador não pode opor ao lesado, que o demanda directamente, excepções derivadas do contrato, nem cláusulas que prevejam eventual participação do segurado no ressarcimento do dano. O segurador beneficia contudo de direito de regresso contra o segurado na medida em que teria contratualmente direito de recusar ou de reduzir a própria prestação".

Também o artigo 76º da Lei do Contrato de Seguro espanhola, estabelece que a acção directa "está isenta das excepções que o segurador disponha contra o segurado", e o artigo 13º da lei belga de 1 de Julho de 1956 segue a mesma orientação.

É certo que estas disposições têm sido interpretadas no sentido de que a nulidade (absoluta) do contrato de seguro é sempre oponível aos lesados (Antonio La Torre, Le Assicurazioni, L´Assicurazione nei Codici, Le Assicurazioni Obligatorie, Milão 2000, p.714, J. Boquera Matarredona, J.Bataller Grau e J.Olavarría Iglesia, Comentarios a la Ley de Contrato de Seguro, Valencia, 2002 p. 849). Mas, o vício do contrato resultante de falsas declarações sobre o risco por parte do tomador do seguro gera nas legislações referidas mera anulabilidade.

Tem-se no nosso país entendido que a "nulidade" a que se refere o artigo 429º do Código Comercial não é uma nulidade mas simples anulabilidade. Com efeito, a nulidade é um vício do contrato imposto pela salvaguarda do interesse geral, o que no caso de falsas declarações quanto ao risco se não verifica: estamos aqui numa situação paralela à dos vícios na formação do contrato (dolo e erro) que determinam mera anulabilidade (veja-se, por exemplo, o acórdão deste Tribunal de 19 de Outubro de 1993, na CJ, Ano I, Tomo 3, p. 72, bem como a jurisprudência das Relações citada na sentença proferida em 1ª instância).

E é neste sentido que deve ser interpretado o artigo 14º do Decreto-Lei nº 522/85.

Tal interpretação, que faz coincidir o nosso ordenamento jurídico com os acima referidos, é ainda imposta pela finalidade do seguro obrigatório: um regime que faça depender a determinação do responsável de eventual nulidade resultante de falsas declarações sobre o risco seria fonte de incerteza para os lesados quanto à forma de jurisdicionalmente exercerem os respectivos direitos . Os atrasos que daí resultariam, e o caso dos autos é disso um exemplo, afectariam de modo intolerável a protecção jurídica das vítimas de acidentes de circulação.

Resulta do exposto que, embora por razões de direito não invocadas pelo Recorrente, a revista merece acolhimento na parte em que assenta na inoponibilidade ao lesado da excepção contratual em causa .

Pretende o Recorrente que, neste caso, o Supremo fixe a indemnização a ele devida por danos patrimoniais e não patrimoniais.

A este respeito importa observar que embora conste do acórdão recorrido matéria de facto a ter em conta para a fixação pedida, sobre ela não se debruçou a Relação, desenvolvendo-a no exercício dos poderes que lhe são conferidos.

Nestas condições, não é agora possível fazer uso do disposto no artigo 715º, nº2 do Código de Processo Civil (aplicável por força do artigo 726º).

Termos em que se concede a revista e se ordena a baixa do processo à Relação de Guimarães para apreciar o pedido de indemnização formulado pelo Recorrente.

Custas pelos Recorridos.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2002

Moitinho de Almeida

Joaquim de Matos

Ferreira de Almeida