Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2070/11.7TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
DECISÃO
QUESTÃO
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 577.º, AL. I) (ANTERIOR 494º, ALÍNEA I)) E 581.º (ANTERIOR 498º) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: I – Não pode subtrair-se à projecção do efeito do caso julgado material, formado pela expressa apreciação por um Tribunal de determinada incidência que se apresente como assimilável a uma causa de pedir, a parte que induziu e obteve nessa acção a apreciação pelo Tribunal dessa concreta incidência, através da introdução desse fundamento num recurso.

II – Assim, para essa mesma parte (para quem deu origem ao pronunciamento expresso do Tribunal de recurso) vale o efeito de caso julgado – a excepção de caso julgado – formado através dessa decisão do recurso, quando vem propor uma nova acção referida à mesma questão suscitada nesse mesmo recurso na acção anterior.

III – Nesta posterior acção não é admissível que essa parte, confrontada com a excepção de caso julgado, venha invocar que esse anterior pronunciamento por ela induzido extravasava da causa de pedir original dessa anterior acção, não se verificando o condicionalismo previsto no artigo 581º, nºs 1 e 4 do CPC.

Decisão Texto Integral: I – A Causa

            1. Em 23/12/2011 A… e mulher, M… (AA. e Apelantes neste recurso), demandaram o R. Banco B… (1º R. e aqui Apelado), S… e É… (2ºs RR.), formulando os seguintes pedidos:
a) Seja declarada extinta a hipoteca a hipoteca que onera o prédio […] descrito na Conservatória do registo predial da Marinha Grande sob o nº […[1]], por ter ocorrido o pagamento da obrigação que lhe serve de fundamento.
Se assim não se entender,
b) Sempre deverá ser considerada nula a oneração sobre [esse mesmo prédio], por ter incidido sobre um bem que em Setembro de 2002 já não pertencia aos mutuários [os aqui 2ºs RR.].

            A história relatada pelos AA. suportando estes pedidos – tratam-se de pedidos que são apresentados numa relação de subsidiariedade [então prevista no artigo  469º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC); corresponde actualmente ao artigo 554º, nº 1 do CPC (v. nota 2 supra)] –, a história que suporta estes pedidos, dizíamos, assenta na alegação, como facto básico referido aos AA., de terem eles adquirido aos 2ºs RR., em 11/10/2000 e através da escritura de compra e venda junta a fls. 12/14, o prédio urbano correspondente ao tal nº …, constando dessa escritura que a venda do prédio era realizada “livre de [quaisquer] ónus ou encargos”. Em 21/01/2008 tiveram os AA. conhecimento que incidiria sobre esse prédio uma penhora ocorrida em processo executivo no qual foram executados os aqui 2ºs RR. sendo aí exequente a instituição bancária 1ª R., referindo-se a execução a uma dívida contraída por aqueles em 23/09/2002, para liquidação de uma anterior dívida, de Agosto de 1998, dos mesmos 2ºs RR. à 1ª R., tendo a hipoteca sobre o prédio aqui em causa sido constituída como garantia desse (primeiro) empréstimo entretanto “liquidado” (liquidado, dizem-no os AA., em Setembro de 2002 com o segundo empréstimo).

Assim, entendem os AA. – e corresponde essa incidência aqui ao seu pedido principal – que esse empréstimo de 2002, liquidando o 1º empréstimo (o de 1998 garantido pela hipoteca, como afirmam os AA. ter sucedido), teria operado a extinção dessa garantia hipotecária, nos termos da alínea a) do artigo 730º do Código Civil (CC)[2].

Paralelamente – e corresponde este segundo argumento ao pedido subsidiário acima indicado como alínea b) –, entendem os AA. que, extinta que estaria a hipoteca em 2002 pelo referido pagamento, os 2ºs RR. careceriam então de legitimidade para onerar (logo para hipotecar) o prédio, nos termos do artigo 715º do CC[3].

1.1. O 1º R. (o Banco B…) contestou, excepcionando – e centramos este relato no que apresenta interesse para a decisão aqui recorrida – a existência de caso julgado formado pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça (junta a fls. 65/75), proferida a culminar o processo – uns embargos de terceiro – nº … no qual foram embargantes os aqui AA. e embargados todos os aqui RR. (era aí exequente o 1º R. e executados os 2ºs RR)[4].

1.1.1. Responderam (replicaram) os AA. à dedução da excepção invocando a falta de identidade da causa de pedir entre os anteriores embargos de terceiro e a presente acção[5], sendo que naqueles – e deduzem os AA. esta incidência do texto do Acórdão do STJ – não teriam sido consideradas as circunstância aqui (na presente acção) apresentadas como causa de pedir: o pagamento da obrigação garantida, como afirmada causa de extinção da hipoteca; a oneração de coisa alheia como afirmada ilegitimação dos 2ºs RR. para dar de hipoteca.

1.2. Realizou-se, nos termos documentados a fls. 278/284, audiência prévia. Nesta, após discussão nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b) do CPC da excepção dilatória de caso julgado suscitada pela 1ª R., pela Exma. Juíza foi proferido o saneador-sentença documentado a fls. 279/284este constitui a decisão final objecto do presente recurso – julgando verificada a referida excepção, absolvendo os RR. da instância[6]

            1.3. Inconformados, apelaram os AA. concluindo o seguinte:
“[…]
Considerando que a presente acção se funda num documento ‘Proposta de Crédito’ que serve de base à causa de pedir na presente acção, e que pretende sustentar que:
a) a hipoteca se encontra extinta pelo pagamento
b) que existiu uma oneração de bens alheios, consequentemente nula, com o devido respeito pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo se entende não estarmos perante o caso julgado, pois não havendo identidade de pedido e causa de pedir, não se encontrarão reunidos os pressupostos de que depende e que constam do artigo 581º do CPC.
Assim, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, nos termos e com os fundamentos supra alegados, revogando-se a Douta Sentença, prosseguindo os autos para apreciação das pretensões formuladas pelos recorrentes,
[…]”.

II – Fundamentação

            2. Relatado o iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que a conclusão formulada pela Apelante (tomamos como tal o trecho transcrito no anterior item que culminou a motivação do recurso), tal conclusão, dizíamos, operou a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil (CPC)[7]. Assim, fora das conclusões só valem, em sede de recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo o artigo 608º, nº 2 do CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

            Trata-se aqui de sindicar a decisão da primeira instância – a ratio decidendi desta – quanto à afirmação de estar verificada a excepção dilatória de caso julgado reportada ao pronunciamento constante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/03/2011 (junto a fls. 65/75). Esta discussão coloca em confronto esse pronunciamento judicial, que culminou os embargos de terceiro propostos pelos aqui Apelantes, com a estrutura da presente acção, tomando como referência a alegada – alegada aqui pelos Apelantes – exclusão da força projectiva desse caso julgado – obviamente que o Acórdão do STJ algum caso julgado material formou – por falta de identidade de causa de pedir entre as duas acções.

            2.1. As incidências com base nas quais o Tribunal a quo julgou verificado esse caso julgado foram as seguintes (todas elas colhem demonstração documental ao longo deste processo[8]):
“[…]
1. Nos presentes autos de processo declarativo sob a forma ordinária, movidos por A… e mulher M… contra o Banco B…, S… e É…, peticionam aqueles que a) seja declarada extinta a hipoteca que onera o prédio inscrito na matriz predial da freguesia da Marinha Grande sob o artigo … e descrito na Conservatória de Registo Predial da Marinha Grande sob o n.º … (tratando-se de lapso já que é …) por ter ocorrido pagamento da obrigação que lhe serviu de fundamento e, se assim se não entender b) ser declarada nula a oneração que incidiu sobre o supra identificado prédio por ter incidido sobre um bem que em Setembro de 2002 já não pertencia aos mutuários S… e É...
2. No âmbito do Proc. n.º … que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, A… e M… deduziram embargos de terceiro contra o Banco B…, S… e mulher É…, peticionando a admissão dos embargos e o levantamento da penhora sobre o prédio urbano inscrito na matriz sob o art. … e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º …;
3. Na primeira instância vieram os referidos embargos a ser julgados improcedentes, determinando-se o prosseguimento da execução hipotecária em apreço (saneador-sentença datado de 27.09.2009), vindo tal decisão a ser confirmada pela 2ª instância (em douto Acórdão e 29.06.2010) e, oportunamente, pelo Supremo Tribunal de Justiça (em 10.03.2011), que, a tal propósito, expendeu e decidiu o seguinte: ‘… Daí que os factos novos mencionados pelos embargantes/recorrentes nas respectivas alegações de recurso, como sejam, terem os executados celebrado um contrato de mútuo no dia 23.09.2002 e que, nessa data, se tenha prestado garantia através de hipoteca constituída em 1998 (…) se não possam ter em conta, uma vez que se não mostram alegados por qualquer das partes, no âmbito dos presentes embargos de terceiro, nem poderiam ser tidos como factos supervenientes – artigo 663.º do CPCivil levando em conta a data da sua declarada verificação. (…) Acresce que os embargantes/recorrentes, nas alegações por si apresentadas (…) pretendem, à guisa de pedido, que se proceda à extinção da hipoteca, libertando-se a fracção desse ónus, considerando-se como nula a oneração que, pretensamente, teria ocorrido em 2002, data em que s executados já não seriam proprietários, e cancelando-se a penhora registada em 2007, ficando os recorrentes como titulares únicos da fracção, sem ónus ou encargos. Tais ‘pedidos’ (pretensões) que têm por base a factualidade só agora trazida à lide processual pelos embargantes, representam alteração da causa de pedir e pedido formulado, o que para além de não ter o consentimento da recorrido, concita questões novas que não podem ser objecto de apreciação no âmbito do presente recurso. É certo que (…) é possível ao tribunal de recurso conhecer de questões novas, desde que ‘… de conhecimento oficioso e ainda não decididas com trânsito em julgado. E essas questões podem referir-se quer à relação processual… quer à relação controvertida (v.g. a nulidade do negócio, ante o estatuído no artigo 286.º do C.C.). (…) Poderá entender-se que subsiste a questão da prevalência (ou não) do registo de aquisição a favor dos embargantes/recorrentes, ainda que posterior, sobre a penhora, questão esta mencionada na conclusão 6ª, pelo que não deixará de se apreciar a mesma, ainda que esta só alcance sentido em função da pretensa nulidade da oneração através da concessão de hipoteca já anteriormente constituída, questão que, inelutavelmente irá, ainda que por via indirecta, ser objecto de apreciação. (…) Não há dúvida que, de acordo com o disposto no artigo 939.º do C.C. ‘As normas de compra e venda são aplicáveis aos outros contratos onerosos pelos quais se alienaram bens ou estabeleçam encargos sobre eles…’ e, consequentemente, o regime de nulidade prevista no art. 892º do C.C. é aplicável à hipoteca, sendo que só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respectivos bens – cfr. artigos 712.º e 715.º do C.C., donde se conclui que a hipoteca de bem alheios e nula. Porém, contrariamente ao que pretendem os embargantes recorrentes, a hipoteca não é nula, pois foi constituída em 27.08.1998 e registada definitivamente em 28.08.1998, por quem tinha legitimidade para tal, isto é, pelos seus então proprietários – os executados S… e É... Diga-se, por mero efeito colateral (como se deixou já supra explicitado) que, embora o crédito exequendo, como se pode ver do requerimento executivo, e dos documentos com o mesmo juntos, resulte do não reembolso de parte de um crédito concedido aos executados, em 23.09.2002, este foi usado no âmbito do ‘contrato de abertura de crédito com hipoteca’ celebrado em 27 de Agosto de 1998, como o consentia a cláusula segunda do documento complementar que acompanhou a referida escritura de abertura do crédito, pois aí se deixou expresso que ‘O crédito aberto será utilizado por meio de letras, livranças ou quaisquer outros escritos particulares e garante a liquidação de saldos descobertos, prestação de fianças, avales, ou garantias bancárias, representativas de créditos utilizados, bastando para tanto, a assinatura de qualquer do(s) segundo(s) (…) pelo que se encontra no âmbito da hipoteca constituída em 27.08.1998, que não da transmissão desta ou da constituição de nova, o que é admissível legalmente em face do disposto no n.º 2 do artigo 686.º do CCivil, na medida em que aí se dispõe que ‘A obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou condicional’, suposto é que a hipoteca não se tenha extinguido, como não tinha no caso concreto, por qualquer dos meios legalmente admissíveis. Temos assim que improcedem as conclusões formuladas e, consequentemente o recurso, impondo-se a manutenção do decidido pelo douto Acórdão recorrido. Concluindo e resumindo: A hipoteca voluntária, enquanto não extinta por qualquer dos meios legalmente admissíveis, goza de carácter absoluto e do direito de sequela, de forma a que o terceiro proprietário da coisa hipotecada, por aquisição posterior à constituição da hipoteca fica sujeito às consequências da acção executiva instaurada pelo credor hipotecário, podendo ter que abrir mão do direito adquirido, caso este venha a ser vendido judicialmente’.
4. A decisão proferida nos autos n.º … transitou em julgado em 24.03.2011;
[…]”.

            2.2. A argumentação dos Apelantes, na negação do efeito de caso julgado induzido pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça, assenta na afirmação da existência de uma diferenciação de causas de pedir – dos factos individualizadores das pretensões materiais alegadas pelos AA. – entre os embargos de terceiro opostos à penhora (processo no qual se formou o caso julgado aqui feito projectar pela decisão recorrida) e a presente acção[9]. Ali, nos embargos, tratar-se-ia à partida – quer-nos parecer ter sido o que os AA. invocaram originariamente nesses embargos – da projecção da eficácia, por atestação notarial, da declaração exarada na escritura de compra e venda, celebrada entre os 2ºs RR. e os AA., de ser o prédio vendido “livre de ónus ou encargos”, o que afastaria a hipoteca. Aqui, na presente acção declarativa, trata-se de considerar extinta a hipoteca por invocada extinção da obrigação por ela garantida ou, subsidiariamente, por se considerar ilegítima a oneração hipotecária por quem já não era dono.

            Correspondem efectivamente estas três questões a elementos recondutíveis a previsões normativas diferenciadas – e nesse sentido individualizarão causas de pedir não coincidentes –, embora comunguem do mesmo efeito pretendido: afastar a hipoteca em favor do 1º R. O que têm de comum é considerarem insubsistente a hipoteca, mas o afastamento desta operaria em cada caso por razões jurídicas diferentes: pela projecção da força probatória de um documento autêntico (artigo 371º, nº 1 do CC), no caso originário da primeira acção; pela extinção da hipoteca pela extinção da obrigação a que serviu de garantia (artigo 730º, alínea a) do CC) ou pela ilegitimidade dos 2ºs RR. para hipotecar, no caso desta acção.     

            Não obstante, importará ter presente que a petição dos embargos (consta ela destes autos a fls. 189/194) se refere à – rectius se funda na – aquisição do prédio objecto da penhora pelos AA. aí embargantes aos legítimos proprietários (os aqui 2ºs RR.), apresentando-se essa circunstância em termos substancialmente idênticos aos indicados nos artigos 1º a 7º da p.i. desta acção. É relevante indicar que nesses embargos os AA. já patenteavam conhecimento da hipoteca incidente sobre o prédio[10], referindo no respectivo artigo 22º serem estranhos a essa incidência (“[…] não figuram [os aqui AA. aí embargantes] como devedores no crédito hipotecário que fundamentou a execução […]” – fls. 193). Tenha-se presente que a decisão de primeira instância relativa a esses embargos – decisão que os julgou improcedentes – se fundou, como resulta de fls. 43/50, na existência e validade do direito real de garantia consubstanciado nessa mesma hipoteca[11], sendo que o mesmo – a não extinção da hipoteca incidente sobre o prédio, não obstante o teor da escritura de compra e venda – viria a ser afirmado pelo Tribunal da Relação de Coimbra (Acórdão junto a fls. 53/62, v. em especial fls. 61).

            Interessa-nos agora – e continuamos no quadro do desenvolvimento dos embargos de terceiro, que percorreram as três instâncias da jurisdição comum – o recurso de revista interposto pelos aqui Apelantes do Acórdão da Relação (requerimento certificado a fls. 209), recurso cuja apreciação, que se veio a materializar no Acórdão do STJ de fls. 65/75, terá gerado, no entender da decisão em causa no presente recurso, o caso julgado material aqui feito actuar. Nessa impugnação dirigida ao STJ os ora Apelantes incluíram (e remetemos para as conclusões no texto das alegações respectivas certificadas a fls. 210/213) os dois argumentos/fundamentos aqui feitos actuar como causa de pedir: a dita extinção da hipoteca registada em 1998 por via da extinção da obrigação por ela garantida; a apregoada nulidade da oneração do prédio por (suposta) hipoteca de 2002 por ilegitimidade do prestador dessa (suposta) garantia[12]. E, enfim, observando as contra-alegações aí produzidas pelo recorrido (o aqui Apelado), notamos ter este respondido expressamente a esses argumentos – só a eles respondeu, aliás, intuindo fundadamente ser só esse o objecto do recurso de revista[13]. É a discussão em “segunda volta” destes argumentos, já tratados no final dos embargos pelo STJ – que os Apelantes aí introduziram como nova causa de pedir –, que os Apelantes pretendem introduzir através desta acção, almejando obter aqui uma decisão que diga exactamente o contrário do que disse o STJ no Acórdão proferido a culminar a anterior acção, sobre o mesmíssimo assunto e referindo-se aos mesmos argumentos aqui apresentados. Só o enunciado do problema que aqui se coloca evidencia, para lá do carácter exclusivamente formalista do argumento dos Apelantes, a natureza substancialmente desvaliosa do “truque” procedimental do qual se pretendem prevalecer. As coisas – e nisto se traduz o “truque” procedimental – são aqui tão simples como passamos a descrevê-las. Foram os aqui AA. quem introduziu no recurso (na anterior acção), como únicos fundamentos deste(a), os argumentos jurídicos – se preferirmos, as causas de pedir – pretendidos(das) fazer valer na presente (subsequente) acção declarativa. Ora, tendo desencadeado os AA. o pronunciamento do STJ sobre essa matéria, e tendo esse pronunciamento sido desfavorável aos respectivos interesses, pretendem agora subtrair ao efeito de caso julgado o pronunciamento que originaram.

É que, efectivamente, acabaram por ser estas duas incidências, inovatoriamente introduzidas pelos aí embargantes (aqui AA.) como únicos fundamentos desse recurso de revista – a extinção da hipoteca e a falta de legitimidade para hipotecar –, que determinaram, embora no contexto particular que adiante abordaremos, pronunciamentos expressos do STJ que se apresentaram como determinantes da decisão de improcedência desse recurso (significativamente, uma decisão de improcedência, não uma decisão de não conhecimento do recurso). Tais pronunciamentos, na economia argumentativa do Acórdão proferido na revista, acabaram por assumir um carácter absolutamente preponderante – em rigor referiram-se aos únicos fundamentos do recurso – gerando eles a realidade, a afirmação, ex pronuntiatione judicis, do Direito no caso concreto, que aqui foi assumida como produtora do efeito preclusivo associado ao caso julgado material e à excepção de caso julgado[14].

2.2.1. O particular contexto no qual o STJ decidiu essa revista – referimo-nos ao contexto processual do recurso aí apreciado a culminar aquela acção – foi expresso por aquele Tribunal logo no início da fundamentação do Acórdão:
“[…]
A leitura das alegações apresentadas pelos embargantes/recorrentes [tratam-se dos aqui AA./Apelantes], fundamentos deduzidos e conclusões formuladas, se concretizada através de um rigorismo processual levar-nos-ia inelutavelmente à inadmissibilidade legal do presente recurso, com a sua consequente rejeição liminar, quer porque faz uso de factos novos, já que não considerados assentes pelas instâncias nem, consequentemente, tidos em conta nas respectivas decisões, quer porque suscitam questões novas, não colocadas anteriormente.
[…]”.

            Observando isto o STJ – observando, pois, quer-nos parecer, que poderia rejeitar sem mais o recurso, julgando-o extinto pelo não conhecimento, cfr. artigo 652º, nº 1, alínea h) do CPC –, acrescentou de seguida a tal respeito:
“[…]
Apesar do expendido, poderá entender-se que subsiste a questão da prevalência (ou não) do registo de aquisição a favor dos embargantes/recorrentes, ainda que posterior, sobre a penhora, questão esta mencionada na conclusão 6ª, pelo que não deixará de se apreciar a mesma, ainda que esta só alcance sentido em função da pretensa nulidade da oneração através da concessão de hipoteca já anteriormente constituída, questão que, inelutavelmente irá, ainda que por via indirecta, ser objecto de apreciação.
[…]”.

            Justificado nestes termos o respectivo pronunciamento subsequente – a consideração da (nova) vertente argumentativa introduzida pelos aí recorrentes – referiu então o STJ, incidindo sobre os fundamentos da revista inovatoriamente apresentados pelos recorrentes:
“[…]
[C]omo já se deixou afirmado, sobre o referido prédio, à data da aquisição pelos embargantes/recorrentes, encontrava-se registada hipoteca a favor do embargado/recorrido Banco B… para garantia do crédito exequendo, pelo que, nos termos do disposto nos artigos 686º e 687º do CC, ao exequente (credor hipotecário) assiste o direito de ser paga pelo valor do prédio hipotecado e, consequentemente, a nomeá-lo à penhora (cfr. artigo 835º do CPC), a ela se não podendo opor validamente o terceiro adquirente, no caso, os embargantes/recorrentes, porquanto a hipoteca goza do ‘direito de sequela’, de que resulta que a garantia conferida ao credor é inerente ao bem, seguindo-o em todas as suas alienações ou onerações posteriores à constituição da hipoteca.
[…]
Não há dúvida que, de acordo com o disposto no artigo 939.º do CC, ‘[a]s normas da compra e venda são aplicáveis aos outros contratos onerosos pelos quais se alienaram bens ou estabeleçam encargos sobre eles…’ e, consequentemente, o regime de nulidade prevista no art. 892º do CC é aplicável à hipoteca, sendo que só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respectivos bens – cfr. artigos 712.º e 715.º do CC, donde se conclui que a hipoteca de bens alheios é nula. Porém, contrariamente ao que pretendem os embargantes recorrentes, a hipoteca não é nula, pois foi constituída em 27.08.1998 e registada definitivamente em 28.08.1998, por quem tinha legitimidade para tal, isto é, pelos seus então proprietários – os executados S… e É... Diga-se, por mero efeito colateral (como se deixou já supra explicitado) que, embora o crédito exequendo, como se pode ver do requerimento executivo, e dos documentos com o mesmo juntos, resulte do não reembolso de parte de um crédito concedido aos executados, em 23.09.2002, este foi usado no âmbito do ‘contrato de abertura de crédito com hipoteca’ celebrado em 27 de Agosto de 1998, como o consentia a cláusula segunda do documento complementar que acompanhou a referida escritura de abertura do crédito, pois aí se deixou expresso que ‘O crédito aberto será utilizado por meio de letras, livranças ou quaisquer outros escritos particulares e garante a liquidação de saldos descobertos, prestação de fianças, avales, ou garantias bancárias, representativas de créditos utilizados, bastando para tanto, a assinatura de qualquer do(s) segundo(s) (…) pelo que se encontra no âmbito da hipoteca constituída em 27.08.1998, que não da transmissão desta ou da constituição de nova, o que é admissível legalmente em face do disposto no n.º 2 do artigo 686.º do CC, na medida em que aí se dispõe que ‘A obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou condicional’, suposto é que a hipoteca não se tenha extinguido, como não tinha no caso concreto, por qualquer dos meios legalmente admissíveis. Temos assim que improcedem as conclusões formuladas e, consequentemente o recurso, impondo-se a manutenção do decidido pelo douto Acórdão recorrido.
[…]”[15].

            2.2.2. Ilustram à saciedade estas transcrições que o STJ, no âmbito dos embargos de terceiro, tomou posição expressa sobre o que viria a configurar-se, mais tarde, como concretos fundamentos da presente acção rejeitando-os. Tomou posição, pois, sobre as causas de pedir agora apresentadas, assumindo-as aí – é certo que algo relutantemente[16] – como fundamentos operantes desse recurso de revista, decidindo-o, aliás, em função da rejeição substancial (não processual) desses fundamentos.

Para sermos claros: decidiu o STJ, a culminar os embargos de terceiro, que a hipoteca feita valer na execução nesse contexto embargada, onde ocorreu a penhora do prédio dos ora Apelantes, era a mesma hipoteca constituída (rectius, registada – artigo 687º do CC) em 1998; decidiu também o STJ que esta hipoteca propiciou garantia, como expressamente estava previsto, a obrigações futuras (cfr. artigo 686º, nº 2 do CC), garantindo, pois, o posterior empréstimo de 2002 (mesmo destinando-se este a liquidar o primeiro “empréstimo”[17] de 1998), não obstante os AA. já haverem, então, adquirido o prédio, não se operando a extinção dessa hipoteca – que o mesmo é dizer, permanecendo o direito real de garantia correspondente; e decidiu o STJ, enfim – e tratou-se neste particular de retirar uma consequência lógica da asserção anterior –, que estando em causa uma hipoteca constituída em 1998, quando os aqui 2ºs RR. eram donos do prédio, não se colocava a questão da legitimidade destes para constituir essa garantia.

E, repete-se, esta apreciação pelo STJ foi induzida pelos próprios Apelantes, aí embargantes, por via dos fundamentos do recurso de revista por eles interposto, correspondendo o pronunciamento do Tribunal a esse respeito à consideração dos fundamentos desse recurso como improcedentes. Esta circunstância fornece-nos, como já o dissemos e agora enfatizamos, o verdadeiro significado desvalioso da pretensão dos aqui Apelantes, ao proporem uma acção com o mesmo objecto do recurso definitivamente julgado pelo STJ, como forma de obter a alteração de uma decisão irrecorrível que lhes foi desfavorável, mas que foram eles quem suscitou. Aliás, neste quadro específico, a situação dos ora Apelantes, de um ponto de vista substantivo e processual – e, principalmente, de um ponto de vista de justiça material –, em nada se distingue de todos aqueles que, propondo qualquer acção, são confrontados com um julgamento de improcedência desta e, por via do efeito de caso julgado material, não podem propor nova acção (fora do quadro dos fundamentos e prazos da revisão – artigos 696º e 697º do CPC) destinada a afastar o pronunciamento que nessa acção adquiriu a força de caso julgado material.

Ora, vale esta constatação em apoio da formulação aqui, com óbvio interesse na abordagem e resolução do presente recurso e com alguma vocação de regra geral, do seguinte entendimento: não pode subtrair-se à projecção do efeito do caso julgado material, formado pela expressa apreciação por um Tribunal de determinada incidência, a parte que induziu e obteve numa anterior acção a apreciação por esse Tribunal dessa concreta incidência, sendo que daqui decorre – e trata-se de uma outra forma de expressar a mesma regra com vocação geral – não poder essa mesma parte (quem suscitou o pronunciamento expresso do Tribunal na anterior acção) subtrair-se ao efeito de caso julgado formado por essa decisão, invocando numa nova acção que esse anterior pronunciamento por ela induzido, extravasava da causa de pedir dessa anterior acção.

Trata-se aqui de fazer actuar elementares princípios de boa fé comportamental, em sede de actuação processual (ou de actuação através da instauração de um processo), trazendo para este âmbito os valores fundamentais do sistema que se expressam na apreciação negativa, no bloqueamento através do não atendimento, de um comportamento que se traduza num venire contra factum proprio: o venire corresponde aqui à nova acção que pretende fazer descaso do resultado da anterior acção; o factum proprio corresponde à circunstância de o pronunciamento anterior pretendido desconsiderar através da nova acção ter sido induzido, precisamente, por quem propôs a nova acção.

2.2.3. Descreve este argumento tão-somente – e é importante sublinhá-lo –, o comportamento dos ora Apelantes ao proporem a presente acção e ao pretenderem desvincular-se do resultado da anterior acção quando este não lhes foi favorável. No que diz respeito ao pronunciamento do STJ na decisão final atinente ao recurso de revista, constatamos – e valem as transcrições do Acórdão de fls. 65/75 acima efectuadas no item 2.2.1. deste Acórdão – que foi entendido tratar-se de uma situação limite, mas em que os novos fundamentos aduzidos no recurso de revista ainda eram recondutíveis ao objecto daquele processo e, por isso, constituíam (ainda constituíam) objecto temático legítimo desse recurso. Daí que o STJ tenha dito, nessa ocasião – e transcrevemo-lo aqui de novo –, que “[a]pesar do expendido, poderá entender-se que subsiste a questão da prevalência (ou não) do registo de aquisição a favor dos embargantes/recorrentes, ainda que posterior, sobre a penhora, questão esta mencionada na conclusão 6ª, pelo que não deixará de se apreciar a mesma, ainda que esta só alcance sentido em função da pretensa nulidade da oneração através da concessão de hipoteca já anteriormente constituída, questão que, inelutavelmente irá, ainda que por via indirecta, ser objecto de apreciação […]”.

Note-se que se tratou, por banda do STJ, de formular um pronunciamento incidindo sobre o objecto daquela acção (dos embargos de terceiro), por ainda se ter reconduzido esse objecto aos argumentos inovadores introduzidos pelos recorrentes no recurso de revista. Não se tratou, pois, de o STJ formular um qualquer obiter dictum[18] absolutamente desfasado dos elementos centrais da acção.

Foi em função de tudo isto que se considerou, na decisão aqui recorrida, relevante a excepção dilatória de caso julgado, formado por via desse pronunciamento expresso do STJ na anterior acção. E sublinhamos que esse pronunciamento – o proferido na anterior acção – se traduziu na consideração da subsistência e validade da hipoteca celebrada em 1998, após a venda do prédio objecto dessa garantia aos aqui AA. em 2000, em função da projecção garantística desse específico direito real (desse direito real de garantia), tendo valido essa decisão, aí na anterior acção – tendo passado a valer depois do julgamento da revista –, em função desses fundamentos, sendo que o que os AA. pretendem aqui, através da propositura de uma nova acção, é afastar esses mesmos fundamentos para assim lograrem afastar o sentido desse anterior pronunciamento judicial (obterem a decisão contrária à deste), rediscutindo os mesmíssimos fundamentos aí já discutidos sem êxito[19]. Poder-se-ia obter desta forma, atendendo a pretensão dos Apelantes, um efeito muito semelhante ao chamado contrário contraditório – em rigor, trata-se aqui da pretensão de obter um efeito directamente contraditório com o coberto pelo caso julgado –, quando se entende que a acção visando obter esse contrário contraditório traduz uma forma enviesada de violação do efeito de caso julgado[20].

Valem estas considerações, convergentemente com a decisão apelada, no sentido da relevância neste processo do caso julgado formado no processo respeitante aos embargos de terceiro, através do Acórdão do STJ de fls. 65/75.

2.3. Sumário elaborado pelo relator:
I – Não pode subtrair-se à projecção do efeito do caso julgado material, formado pela expressa apreciação por um Tribunal de determinada incidência que se apresente como assimilável a uma causa de pedir, a parte que induziu e obteve nessa acção a apreciação pelo Tribunal dessa concreta incidência, através da introdução desse fundamento num recurso;
II – Assim, para essa mesma parte (para quem deu origem ao pronunciamento expresso do Tribunal de recurso) vale o efeito de caso julgado – a excepção de caso julgado – formado através dessa decisão do recurso, quando vem propor uma nova acção referida à mesma questão suscitada nesse mesmo recurso na acção anterior;
III – Nesta posterior acção, não é admissível que essa parte, confrontada com a excepção de caso julgado, venha invocar que esse anterior pronunciamento por ela induzido extravasava da causa de pedir original dessa anterior acção, não se verificando o condicionalismo previsto no artigo 581º, nºs 1 e 4 do CPC.

III – Decisão

            3. Face ao exposto, na improcedência do recurso, confirma-se a decisão apelada.

            Custas pelos Apelantes.

(J. A. Teles Pereira - Relator)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] Corrige-se aqui, indicando a referência correcta, o lapso de escrita consistente na indicação do nº …
[2] A hipoteca extingue-se pela extinção da obrigação que lhe serve de garantia.
[3] Que apenas confere legitimidade para hipotecar a quem disponha de legitimidade para alienar.
No artigo 26º da p.i. formulam os AA. a seguinte síntese conclusiva dos seus argumentos:
“[…]

1- O crédito concedido em Setembro de 2002, destinou-se ao pagamento do empréstimo nº …

2- Desta proposta de crédito consta ainda que o empréstimo apenas poderá ser aplicado à finalidade prevista em 3 dessa mesma proposta, ou seja como aí vem expresso, liquidação do empréstimo nº ...

3- Este empréstimo nº …, dera origem à hipoteca que onera o prédio dos A.A.

4- Com o crédito concedido em 2002, foi liquidado o empréstimo nº ...

5- Com este pagamento extinguiu-se a dívida.

6- Ao extinguir-se a dívida extinguiu-se a hipoteca que lhe estava associada.

7- Quando em 2002, a R. concedeu um novo empréstimo, fê-lo a quem já não era dono da coisa hipotecada, desde 2000, data em que havia procedido à venda da fracção.

8- Assim sendo, a oneração surge por efeito do negócio realizado em 2002, quando os bens já eram alheios

9- A oneração de bens alheios, rege-se pelas disposições aplicáveis à venda de bens alheios.

10- Pelo que a oneração, ocorrida em Setembro de 2002, tem que se ter como nula e de nenhum efeito, nos termos do disposto no artigo 712º e 715 º C.C.
[…]”.
[4] Interessa a este argumento da 1ª R. a seguinte passagem da respectiva contestação:
“[…]

Correram termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal Embargos de Terceiro a que coube o nº …, deduzidos pelos aqui Autores (A… e mulher, M…) contra p Réu ora contestante, ali Exequente/Embargado. Em tais autos são Executados os Réus S… e mulher, É...

Em síntese, ali alegaram os Autores que no dia 21 de Janeiro de 2008 tomaram conhecimento que a fracção autónoma por eles adquirida aos Executados S… e É…, mediante celebração de escritura pública de compra e venda de 11 de Outubro de 2000, havia sido penhorada na Acção Executiva nº ...

Outrossim alegaram que desde a aquisição passaram a receber amigos e visitas no imóvel, a aí tomar refeições, ininterruptamente, na convicção de serem proprietários, tendo inclusive registado a sua aquisição em momento anterior ao registo da penhora efectuada na Execução. Pugnaram pela admissão e procedência dos Embargos, peticionando o levantamento da penhora que recaiu sobre a fracção da sua propriedade.

10º

Logo ali referiu o Réu Banco B… - como refere aqui - que o imóvel penhorado se encontrava onerado com uma hipoteca constitutivamente registada em momento anterior ao registo da aquisição a favor dos Embargantes e que a mesma não foi objecto de cancelamento ou distrate seu.

11º

Com fundamento que, na sua essência, é recondutível à natureza jurídica dos direitos reais e, em particular, à sequela e preferência típicos da hipoteca, a que nem a transmissão da propriedade obsta, a 1ª Instância proferiu sentença pela qual decidiu que “a transmissão da propriedade da fracção autónoma para os embargantes foi inelutavelmente acompanhada pelo referido ónus” com isso significando que o Banco “pode fazer executar a coisa hipotecada no património do adquirente” e que “o mais que a lei reconhece aos embargantes, enquanto adquirentes do bem hipotecado, não sendo eles pessoalmente responsáveis pelo pagamento da dívida garantida, é o direito de expurgação da hipoteca, para desonerar o imóvel adquirido”.
[…]

13º

Inconformados recorreram os Autores para o Tribunal da Relação de Coimbra […]
[…]

16º

Concluindo que a hipoteca do Embargado Banco B… era insusceptível de se ter por extinta, não havendo lugar a cancelamento da respectiva inscrição registal, a 2ª Instância confirmou a decisão da Comarca em 29/06/2010, improcedendo a Apelação […].

17º

Ainda inconformados os Autores, ali Embargantes, interpuseram recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando nulidade por oneração de coisa alheia, insistindo na extinção da hipoteca e prevalência do seu registo de aquisição, sem estorvo de quaisquer ónus ou encargos.
[…]

20º

Uma vez mais, na improcedência das conclusões formuladas pelos Embargantes, foi proferido Acórdão, datado de 10 de Março de 2011, pelo qual, negando a Revista, foi decidido manter o Acórdão da Relação de Coimbra […].

21º

Este último Acórdão, insindicável, transitou em julgado volvido o prazo de reclamação do mesmo.

22º

Com o que se verifica que, partindo da mesmíssima factualidade, a coincidente questão essencial de direito - subsistência da garantia hipotecária constituída a favor do Réu Banco B… e respectiva inscrição registal – foi já decidida, pretérita e convergentemente, em três instâncias judiciais,

23º

nas quais litigaram os sujeitos processuais que protagonizam a presente acção, os Autores como Embargantes, o Réu Banco B… e os Réus S… e mulher como partes primitivas, respectivamente Exequente e Executados.

24º

Com o que constitui a presente acção clamorosa ofensa de caso julgado, excepção dilatória aqui expressamente invocada para todos os feitos legais, designadamente absolvição da instância do Réu Banco B...
[…]”.
[5] Também falam de falta de identidade das partes. Referem-se, porém – e trata-se de um argumento manipulatório e sem qualquer consistência –, à execução e não aos embargos de terceiro, esquecendo que é a estes que se reporta o caso julgado, sendo óbvio que nestes (nos embargos) foram partes os mesmos sujeitos da presente acção.
[6] Aqui se transcreve o correspondente pronunciamento decisório:
“[…]

[O] S.T.J. acabou por conhecer das referidas questões novas suscitadas e, nos fundamentos, entendeu que a hipoteca no caso concreto não se tinha extinguido pelo pagamento da obrigação originária e que não era igualmente nula, ou seja, ainda que em sede de processo de embargos de executados, acabou por se conhecer, com trânsito em julgado dos dois pedidos com as mesmas causas de pedir ora suscitados nos presentes autos.

Assim, julgo ocorrer excepção dilatória do caso julgado, por verificação dos pressupostos insertos nos artigos 577.º al. i) (anterior 494º, alínea i)) e 581.º (anterior 498º) do Código de Processo Civil, pelo que se absolvem os Réus da instância nos termos do artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 (anterior 493º, nºs.1 e 2) do mesmo diploma legal.
[…]”.
[7] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[8] Na subsequente exposição utilizaremos outras incidências documentais que o processo também documenta, independentemente do seu enunciado expresso no rol dos “factos” (as aspas sublinham a natureza processual dos factos constantes desse rol).
[9] Assumimos aqui, nos termos já indicados na nota 7 supra, a evidente existência de identidade de partes entre os embargos de terceiro e a presente acção. Basta ler a petição inicial desses embargos (cfr. fls. 189) e a petição inicial desta acção, verificando estarem aqueles e esta dirigidos contra as mesmas pessoas.
[10] Claro que estamos a elaborar pressupondo a relevância da linha argumentativa desencantada, nos embargos e nesta acção, pelos AA., esquecendo os indisfarçáveis “pés de barro” em que tudo isto assenta. É que bastava aos AA. terem actuado à partida com base no registo predial, terem registado a aquisição da sua casa em 2000, para perceberem que esta era objecto de uma hipoteca.
[11] “Sucede, porém, que resulta da matéria de facto dada como provada que sobre a fracção descrita na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande sob o nº …, adquirida pelos embargantes e penhorada na acção executiva, incide uma hipoteca voluntária a favor do embargado Banco B…, hipoteca essa registada em momento anterior ao do registo da penhora e da aquisição (alíneas a), d), e), f) e g) dos factos apurados” (transcrição de fls. 48).
[12] É relevante transcrever aqui, extraídas do texto da motivação desse recurso, as conclusões:
“[…]
1ª Na data em que foi concedido o novo empréstimo, 23 de Setembro de 2002, os executados já não eram proprietários da fracção.
2ª No dia 23 de Setembro de 2002, foi liquidado o empréstimo a que a hipoteca servia de garantia.
3ª Ao ser liquidado o empréstimo extinguiu-se a hipoteca, uma vez que se extinguiu a obrigação que ela garantia – artigo 730º, a) CC.
4ª No dia 23 de Setembro de 2002, ao ser dada como garantia do empréstimo nessa data concedido a hipoteca já anteriormente constituída, mais não é do que onerar o prédio.
5ª Esta oneração tem que ser tida como nula, por efeito do disposto nos artigos 939º, 892º do CC.
6ª O registo de aquisição a favor dos embargantes/recorrentes, ainda que posterior sempre prevalecerá sobre a penhora.
7ª Apenas os bens dos executados poderiam servir de garantia e pagamento da dívida contraída, nos termos do disposto no artigo 821º, nº 1 do CPC
[…]” (transcrição de fls. 212).
E, mais expressivamente, a rematar estas conclusões, formularam os recorrentes os seguintes “pedidos”:
“[…]
1 – procedendo-se à extinção da hipoteca, libertando-se a fracção desse ónus,
2 – considerando-se como nula a oneração ocorrida em 2002, logo em data em que os executados já não eram proprietários, e cancelando-se a penhora registada em 2007,
3 ficando os recorrentes como titulares únicos da fracção objecto do presente recurso e sem ónus ou encargos,
4 – sempre deverá considerar-se a execução ineficaz em relação aos recorrentes.
[…]” (transcrição de fls. 213).
[13] Remetemos aqui para a contra-motivação do Banco B… certificada a fls. 214/215, da qual transcrevemos as conclusões:
“[…]
I à escritura outorgada em 11/10/2000, pela qual os recorrentes supostamente adquiriram a propriedade dela objecto livre de ónus ou encargos…
II … pré-existe hipoteca e subsiste penhora lavradas em sede registral a favor do recorrido.
III Ao titular do direito real de garantia assiste a faculdade de invocá-lo e desencadear a execução do bem objecto do seu direito, quer este ainda pertença ao proprietário que constituiu a hipoteca, quer já tenha transitado para posterior adquirente.
IV à luz do artigo 730º do CC nenhuma das causas de extinção do direito de hipoteca é aplicável in casu. Por conseguinte,
V a hipoteca a que nos vimos referindo, garante o crédito exequendo do recorrido, inexistindo causa da sua extinção e cancelamento registral tanto nos termos do artigo 13º como nos do artigo 56º do CRP.
[…]”.
[14] Como refere Miguel Teixeira de Sousa, “[…] o caso julgado produz […] dois efeitos: um efeito impeditivo, traduzido na excepção de caso julgado, e um efeito vinculativo, com expressão na autoridade do caso julgado. Aquela excepção visa obstar à repetição de decisões sobre as mesmas questões (ne bis in idem) e impede que os tribunais possam ser chamados não só a contrariarem uma decisão anterior, como a repetirem essa decisão. Em contrapartida, a autoridade de caso julgado garante a vinculação dos tribunais e dos particulares a uma decisão anterior, pelo que impõe que aqueles tribunais e estes particulares acatem (e, neste sentido, repitam) o que foi decidido anteriormente (quanto, por exemplo, a uma questão que é prejudicial para o conhecimento de uma outra questão)” (“Preclusão e ‘contrário contraditório’”, Cadernos de Direito Privado, nº 41, Janeiro/Março, 2013, pp. 24/25, anota este Estudo o Acórdão indicado na nota 21 infra).
[15] E é relevante indicar aqui o resumo deste pronunciamento incluído no texto do Acórdão:
“[…]
A hipoteca voluntária, enquanto não extinta por qualquer dos meios legalmente admissíveis, goza de carácter absoluto e do direito de sequela, de forma a que o terceiro proprietário da coisa hipotecada, por aquisição posterior à constituição da hipoteca fica sujeito às consequências da acção executiva instaurada pelo credor hipotecário, podendo ter que abrir mão do direito adquirido, caso este venha a ser vendido judicialmente
[…]”.
[16] Dizendo que, sendo muito rigoroso, poderia não o fazer, mas acabando por fazê-lo por entender que esses fundamentos inovatórios ainda eram passíveis de recondução à causa de pedir em função da qual se estruturara aquela acção.
[17] Foi uma abertura de crédito o que os 2ºs RR. celebraram em 1998 com a instituição bancária 1º R., sendo o dito “empréstimo” de 2002 uma utilização referida a essa pretérita abertura de crédito, cujas garantias se mantiveram activas.
[18] Que se entende não formar caso julgado (v. João de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa, 1968, pp.203/205), sendo que aqui a apreciação pelo STJ, nos termos induzidos pelos ora Apelantes nesse recurso de revista, se referiu ao âmago dos factos pertinentes ao pedido em causa nessa acção, logo à sua ratio decidendi: “[a] ratio decidendi is a ruling expressly or impliedly given by a judge which is sufficient to settle a point of law put in issue by the parties arguments in a case, being a point on which a ruling was necessary to His justification(or one of his alternative justifications) of the decisions in the case” (Neil MacCormick, “Why Cases Have Rationes and What These Are”, in Precedent in Law, ed. Laurence Goldstein, Oxford, New York, 1991, p. 170).
[19] Vale aqui a caracterização dos limites objectivos do caso julgado, referidos aos fundamentos da decisão, como a definem J. Castro Mendes, M. Teixeira de Sousa:
“[…]

O conteúdo do caso julgado é só a decisão final referente ao pedido, e não mais: o caso julgado restringe-se à conclusão do silogismo judiciário, não se estendendo às suas premissas de facto ou de direito. Assim, não constituem caso julgado os fundamentos da decisão (embora tais fundamentos constituam conclusões, de certo modo decisões, do juiz). Portanto, não é possível desligar esses fundamentos da respectiva decisão e atribuir-lhes a indiscutibilidade própria do caso julgado material.

[…]

A circunstância de o fundamento não valer autonomizado da decisão implica que a decisão também não pode valer autonomizada do seu fundamento: a vinculação à decisão é sempre uma vinculação à decisão no contexto do seu fundamento. Isto significa que, sempre que se invoque uma decisão em juízo, o tribunal perante o qual essa decisão é invocada está vinculado não só à decisão, mas também aos fundamentos que constituam antecedentes lógicos e indispensáveis à sua emissão.
[…]” [Direito Processual Civil (obra em preparação), §39º, III, 1., 1.1.].
[20] Veja-se a este respeito o Acórdão do STJ de 10/10/2012 (Abrantes Geraldes), proferido no processo nº 1999/11.7TBGMR.G1.S1, disponível no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0f103d70045293f480257a9300506ddf.
Sumário:
1. A autoridade de caso julgado inerente a uma decisão que reconheceu ao autor o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno e condenou o réu na sua restituição e na demolição da construção que na mesma foi erigida impede que este, em nova acção, peça o reconhecimento do direito de propriedade sobre a mesma parcela, ainda que com fundamento na acessão industrial imobiliária.
2. Apesar de em tal situação não se verificar a excepção de caso julgado, atenta a diversidade da causa de pedir, a segurança e a certeza jurídica decorrentes do trânsito em julgado da decisão obstam a que em posterior acção se questione o direito de propriedade e as obrigações de restituição e de demolição reconhecidas na primeira acção com base numa realidade que naquela ocasião já se verificava e que aí poderia ter sido invocada quer para impedir a procedência da acção, quer para sustentar, em sede de reconvenção, o direito potestativo de acessão imobiliária.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa anotando este Acórdão:
 “Quando a decisão define um efeito jurídico, este efeito fica coberto pelo caso julgado; mas há que entender que o ‘contrário contraditório’ […] desse efeito também fica abrangido pelo caso julgado. É a solução que decorre do disposto no artigo 481º, alínea c) do CPC (que, ao determinar que a citação inibe o réu de propor contra o autor acção destinada à apreciação da mesma questão jurídica, significa que o réu fica impedido de discutir, fora da acção proposta, algo de contraditório com o que o autor pretende nela obter) e no artigo 497º, nº 2 do CPC (que atribui ao caso julgado o efeito de proibir qualquer contradição com a decisão transitada).” (“Preclusão e ‘contrário contraditório’, cit., p. 25).