Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/14.8T8MBR-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: EXECUÇÃO
MEIOS DE OPOSIÇÃO
COMPENSAÇÃO
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MOIMENTA DA BEIRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 729.º DO CPC E ARTIGO 847.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: A mera eventualidade de o devedor/executado vir a ser titular de um crédito sobre o seu credor/exequente não constitui fundamento de oposição à execução.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra1:


I - A) - 1) – No âmbito dos autos de inventário, iniciados por requerimento  de 25/10/2001, em que são inventariados  AA, BB e CC, filho daqueles, sendo interessados, DD, também ele filho dos referidos AA e BB, e EE e  FF, estes filhos do referido CC, não tendo sido pagas as tornas que se mostravam devidas pelo interessado e cabeça  de  casal  DD, ao herdeiro FF, foi determinada, a requerimento deste último, a venda dos bens adjudicados ao aludido devedor de tornas, na medida do necessário ao pagamento das mesmas.
2) - Por requerimento de 2/11/2021, veio o interessado DD, por apenso aos autos de inventário, apresentar “requerimento de oposição à venda”, terminando o mesmo requerendo,   que:
«[…] seja admitida a presente oposição à venda nos termos do disposto no artigo 1378.º n.º 3 do CPC e, em consequência, seja declarada extinta a obrigação exequenda;
(….)
-  seja declarada suspensa a presente execução / venda até apreciação final  da presente oposição.».


Sustentou, em síntese, que, tendo a venda como escopo o pagamento das tornas ao herdeiro FF, sucede, contudo, que a este, Agosto de 2000, foram doados prédios urbanos pelos inventariados, no valor global de € 71.150,00 €, pelo que, se bem que, face    ao decidido no processo nº 103/18.5T8MBR, os prédios 1, 2, 3 e 4  da Relação de Bens Adicional, de 03.04.2017, fiquem excluídos do inventário  por não fazerem parte do acervo hereditário dos inventariados, por força      da aludida doação, não podem, contudo, tais prédios, no entendimento do Requerente, deixar de ser considerados no inventário, não para serem partilhados, mas para efeitos de colação e para serem levados à conferência pela imputação do seu valor – o que nunca sucedeu – sendo que, para tais efeitos, já requereu incidente de emenda da partilha –, na sequência do que, face ao valor dos bens em consideração, será o interessado FF que lhe ficará a dever tornas,  depois de  compensado o  valor que ora  se pretende fazer pagar com a venda em  causa;
3)- No âmbito do referido inventário, em despacho de 12.11.2021, que transitou em julgado, proferido para decidir o requerido, em 05/10/2021, pela autora de protesto de reivindicação e cônjuge do aludido cabeça de  casal, GG, consignou-se, entre o   mais:
«[…] Requereu, também, a suspensão da instância relativamente à venda sobre o prédio em causa até que seja decidia a ação  de  separação  de meações, a correr termos no Cartório Notarial ..., sob o n.º 5064/18, alegando que os presentes autos estão  dependentes da  decisão  a  proferir  em tal ação.
Por fim, invoca a protestante, o direito de  compensação  de  DD e de EE sobre o interessado FF, afirmando, em suma:


- que no âmbito do processo para separação de meações encontram-se relacionadas outras verbas, entre as quais dinheiro em poder daquele, no montante de € 3.125,00 e  4  prédios urbanos (artigos 403, 479, 480 e  48)  que foram objeto de reivindicação no processo n.º 103/18.5T8MBR por  parte do interessado FF – sendo que tendo a aqui protestante figurado como ré naquele processo , produzindo a sentença efeitos quanto ao seu património, lhe dá o direito de expor no presentes autos a sua posição –, tendo sido decidido que tais   bens não deveriam ser objeto de partilha adicional, sendo propriedade exclusiva  do interessado FF por lhe terem sido doados pelos seus avós, AA e BB;
- os bens em causa totalizam um valor de € 72.185,20, valor que devia ser levado à colação nos presentes autos, cabendo ao cabe-de-casal DD o valor de € 36.092,60 e metade do valor do dinheiro acima referido, ou seja,
€ 1.564,05;
- o cabeça-de-casal não é devedor de quaisquer tornas ao interessado FF, sendo este quem tem de doar tornas ao cabeça-de-casal e à interessada EE, reclamando, assim, o direito de  compensação.
(…)
Relativamente à compensação invocada, aderimos ao  entendimento  subscrito pelo interessado FF. Com efeito, do teor da  decisão  judicial proferida no âmbito dos autos 103/18.5T8MBR, conforme certidão junta aos autos, decorre inequivocamente que os prédios identificados no artigo 37.º do requerimento da protestante foram adquiridos pelo interessado FF por usucapião, tendo sido excluídos da partilha adicional por não fazerem parte o acervo hereditário dos inventariados AA e mulher BB.
A ré foi parte na ação, logo, não desconhece tal   factualidade.


Assim, soçobra à evidência que o presente instituto invocado não passa de um artifício dilatório, de modo a obstar ao pagamento das tornas que o marido e cabeça-de-casal é devedor aos interessados FF e EE. […]». Em resposta a esse requerimento, o interessado FF sustentou, entre o mais, que os prédios em causa  não  deveriam  ser chamados à colação, negando o alegado quanto à aventada   compensação.
Nesse despacho de 12.11.2021, indeferiu-se a totalidade do requerido pela aludida HH.
4) - Na referida acção nº 103/18.5T8MBR, movida por FF contra DD, e mulher HH e EE, por sentença de 9/9/2021, transitada em julgado em 13/10/2021, decidiu-se julgar a ação totalmente procedente por provada  e,  em  consequência, condenaram-se os aí RR:
A) a reconhecer que o A. é dono e legítimo possuidor do prédio misto atrás identificado no artigo 1º da petição  inicial.
B) a reconhecer que os ‘alegados prédios urbanos’ descritos sob  as verbas  n°s 1., 2., 3. e 4. da referida relação de bens adicional devem ser excluídos    do mencionado inventário e  não podem ser objecto de  partilha adicional,  por não fazerem parte do acervo hereditário dos Inventariados AA e mulher BB, sendo propriedade exclusiva do A.
C) a  abrirem mão dos aludidos anexos (barracos destinados a  arrumações)  e a entregá-los livres e desocupados, com as respectivas chaves, ao    A..
5) - No referido requerimento de emenda à partilha, que se fundou, entre o mais, na necessidade de chamar à colação e levar à conferência os prédios doados, bem como no erro dos interessados, v.g.,  por  se  terem  determinado,  no  inventário,  com  alegado  desconhecimento  das    doações


feitas ao interessado FF, terminou-se do seguinte modo:
«[…] deve ser admitido o presente incidente e conferidos os bens doados    ao interessado, pelo valor que os mesmos tinham à data da abertura da sucessão, emendando-se em consequência a partilha, nos termos supra expostos […]».
O interessado FF, defendendo-se por impugnação e por excepção, deduziu oposição à emenda da partilha, pugnando pela respectiva improcedência.

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B) – A Mma. Juiz do Juízo de Competência  Genérica ..., pronunciando-se quanto ao requerimento de oposição à venda, do interessado DD, por decisão de 26/4/2022, entendendo que o respectivo fundamento não se ajustava ao disposto no artigo 729.º, do novo (CPC) e que os mesmos eram manifestamente improcedentes, indeferiu liminarmente os  embargos.
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II - Inconformado, o Requerente recorreu dessa decisão, tendo terminado as alegações desse recurso  - que veio a ser admitido, a subir de imediato,   nos próprios autos (do incidente) e com efeito suspensivo -, oferecendo as seguintes conclusões:
«a) A venda, no próprio processo de inventário é uma  execução especial  (mais célere e mais fácil), a qual apenas pode incidir sobre os bens que, no âmbito do processo de inventário, foram adjudicados “a mais” ao herdeiro devedor e visando garantir ao herdeiro credor a  satisfação do seu crédito  sem ter que recorrer ao processo executivo comum,  não  devendo  ser vedado o acesso à defesa e à oposição a  venda em causa, à  semelhança do que acontece no âmbito da ação executiva e, bem assim, em termos gerais,    ao abrigo do princípio do contraditório e da defesa /   oposição.


b) É neste conspecto da acção executiva “especial”, com trâmites simples e sem as exigências do processo executivo comum ou sumário, cujas formalidades o Exequente também não teve que preencher, que deverão ser aferidos os fundamentos da oposição do executado mediante embargos de executado.
c) A referida Doação integrou o processo de inventário, fez parte dela onde foi relacionada e onde foi sujeita à  colação.
d) No entanto, tal doação teve por objeto apenas o prédio rústico composto de vinha e mato,  no lugar de  ..., freguesia ..., que confina  do Norte com II, de nascente com JJ,    de sul com caminho, de poente com KK, inscrito na matriz sob   o art.º ...49.º, com a área de 3600 m2, nada constando  relativamente  às demais construções em causa naqueles  autos.
e) O que sucede é que, conforme justifica a  douta sentença, “... tal omissão  de referência deverá ser interpretada como uma imperfeição  ou insuficiência na descrição do objeto mediato doado consubstanciado numa coisa imóvel (artigo 204.º/1/a do Código civil) – sendo irrelevante, como é consabido, a descrição do prédio (como rústico ou urbano) que as partes hajam levado a cabo.”
f) Porém, tal imperfeição ou insuficiência apenas foi  determinado  pela douta sentença proferida, não tendo sido levada em conta em sede de inventário, nomeadamente na avaliação dos referidos prédios urbanos que, conforme refere a douta sentença, afinal faziam parte da doação, sendo que    a avaliação efetuada foi tão-somente ao prédio rústico constante da Relação de Bens por ser isso que resultava da escritura de   doação.
g) Tendo o referido prédio rústico sido levado à colação no processo principal, com decisão já transitada em julgado, importará agora rectificar  no  processo  tal  lapso,  tendo  para  o  efeito  o   Recorrente  instaurado     o respetivo incidente de Emenda à Partilha, que corre por apenso aos autos principais sob o Apenso E.
h) Sobre o donatário, descendente dos doadores, recai a obrigação de conferir tais bens, nos termos dos artigos 2104.º e seguintes do Código  Civil, já que, sobre os referidos imóveis, não foi dispensada a   colação.
i) O entendimento de que tais bens não estão sujeitos a colação por ter sido reconhecida a sua propriedade por usucapião, nos termos em que o foi na sentença proferida, abriria aqui um precedente para os beneficiários ultrapassarem a sujeição à colação dos bens  doados.
j) Resulta da sentença que foi reconhecida a propriedade por usucapião mas com base numa posse titulada pela escritura de doação, o que conferiu ao beneficiário que ao caso fosse aplicável o prazo de somente 10  anos para o  seu reconhecimento.
k) Ora, seguindo este entendimento, qualquer beneficiário dos bens doados através da escritura de doação, sendo herdeiro legítimo da herança, poderia ver dispensada a  colação daqueles bens mediante o  mero reconhecimento  da propriedade através do instituto da usucapião, pese embora a  vontade   dos doadores não fosse essa uma vez que sem a escritura de doação a favor  do FF não teria este beneficiado do instituto da usucapião por não ter decorrido o prazo legal para o   efeito.
l) O direito de os restantes interessados exigirem a colação mantêm-se disponível e exequível, uma vez que sobre o  exercício de tal  direito não recai nenhum prazo de caducidade, já que o prazo previsto no artigo 2178.º do Código Civil se não aplica aos herdeiros do  donatário,  como  ensina Lopes Cardoso in Partilhas Judiciais.
m) A  colação efectua-se pela imputação do valor dos bens doados à  quota  do herdeiro, sendo que o valor destes é o que tiverem à data da abertura da sucessão (art.º 2108.º e 2019.º, ambos do Código Civil) e que somam € 71.150,00 € ( setenta e um mil cento e cinquenta   euros).
n) In Casu dúvidas não subsistem de que os bens relacionados na relação    de bens adicional, tendo sido doados pelos inventariados ao herdeiro legitimário FF, ora Recorrido, num valor patrimonial de 71.150,00€, não foram levados à colação como o foi o  bem  igualmente doado  na  mesma data, por escritura pública, artigo ...49.º rústico, relacionado na Relação de bens inicial, Imóveis Doados, sob a verba n.º 1, entrada no tribunal aos 26/02/2002, quando o deveriam ter  sido.
o) Assim, a falta de conferência destes bens no inventário,  prejudica  de forma inaceitável e é fundamento de erro quanto às decisões tomadas no mesmo inventário por todos os demais herdeiros o que resulta de imediato  do simples cotejo dos valores dos imóveis urbanos doados ao interessado / Recorrido FF que totalizam mais de € 71.150,00  €.
p) Estes bens doados, e devidamente identificados nas verbas 1, 2, 3 e 4 da relação de bens adicional, por força da doação fixada na sentença proferida  no processo 103/18.5T8MBR a que se vem fazendo referência, não deverão agora ser partilhados, mas tal não significa que não deverão ser levados,    nos termos legais, à colação e  à  conferência pela imputação do seu valor,  por se estar em tempo útil e com todas as consequências   legais.
q) O ora Recorrente jamais teria decidido da forma como o fez no  inventário se tivesse conhecimento da doação dos 4 imóveis urbanos ao herdeiro legitimário e donatário FF, o que a sentença proferida no processo 103/18.5T8MBR veio agora  decidir.
r) A  conferência destes bens doados ao ora exequente virá alterar o  mapa   de partilha e composição dos quinhões de todos os interessados, ou seja, irá ALTERAR O TÍTULO EXECUTIVO que serviu de base  à  execução,  título  esse  que  foi  baseado  em  ERRO  que  agora  foi  reconhecido      por sentença e que inelutavelmente levará à rectificação do título executivo que fundou a presente execução, deixando este  exequente  e  interessado  FF de ser, por força do valor a imputar ao quinhão  do  mesmo  interessado FF, credor de tonas, antes passando a ser delas devedor aos restantes interessados e nomeadamente ao ora  Recorrente.
s) Pelo que, consequentemente, a obrigação exequenda  se  extinguirá,  já que o ora Recorrente deixará de ser credor de tornas, para  passar a  ser delas devedor aos restantes interessados,  nomeadamente  ao  ora Recorrente.
t) A emenda à partilha já requerida, no Apenso E, tem a  virtualidade de, logo que conferidos os bens doados no quinhão do interessado FF, extinguir, deixando de ser exigível, o crédito  exequendo.
u) O título executivo dado à execução é um título incerto da obrigação exequenda, configura um facto extintivo/modificativo da mesma, tendo o Recorrente um contracrédito sobre o exequente decorrente  da  colação  supra mencionada, tudo nos termos e para os efeitos do artigo 729.º      al. e), g) e h) do CPC.
v) Além do mais, sendo a sentença dada à execução uma sentença homologatória de transacção, verifica-se que é patente a ocorrência de erro sobre o objeto do negócio, sendo assim a transacação homologada por sentença anulável, anulabilidade que se requer, pelo que também os  embargos de executado deveriam ter sido recebidos à luz do preceituado no art.º artigo 729.º  al. i) do CPC.  […]».
Terminou pugnando pela procedência do recurso e, em consequência, pela admissão dos embargos de executado  deduzidos.

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III - As questões:

Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil - doravante NCPC2 -, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente  se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo  merecer  tal  classificação  o que meramente são invocações,  “considerações,  argumentos,  motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”3 e que o  Tribunal,  embora possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar.
Assim, o que importa saber – sendo despiciendas as questões novas, que é  defeso a esta Relação conhecer (v.g., a anulabilidade da “transacção homologada por sentença”, “a incerteza da obrigação exequenda”) - é se foi acertado decidir indeferir liminarmente o requerimento em que, afinal, o interessado DD, se opôs à execução e à venda, requerendo, quer a declaração de extinção da obrigação exequenda, quer, a suspensão da execução/venda, até à apreciação final da Oposição.
*
IV – A) - O circunstancialismo processual e a factualidade a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I  supra.
B) – A sentença homologatória da partilha,  transitada  em  julgado, associada ao  mapa que homologou,  consubstanciam o  título executivo   que possibilitam, ao credor de tornas, pedir que, no próprio processo de inventário se proceda à venda dos bens adjudicados  ao  devedor  das mesmas, até onde seja necessário para obter o respectivo pagamento (artº 1378.º n.º 3 do antigo CPC; cfr. artº 1122 do NCPC, aditado por Lei nº 117/2019 de 13-09-2019).
A Mma. Juíz do Tribunal “a quo”, para alicerçar o decidido indeferimento liminar, escreveu, designadamente:
«[…] DD funda a sua oposição no facto de a venda  determinada nos autos principais de inventário se tratar de uma execução especial – assente numa decisão judicial de  homologação  de  partilha  de bens proferida nos autos de inventário e consequente requerimento, ao  abrigo do disposto no artigo 1378.º, n.º 3  do antigo Código de Processo  Civil – e que aquele se encontra em tempo em virtude dos factos relevantes para a oposição terem ficado assentes com a  decisão proferida no processo  n.º 103/18.5T8MBR, que transitou em julgado a   13/10/2021.
Compulsada tal decisão, conforme certidão junta a estes autos e aos autos principais,    decorre    inequivocamente    que   os   prédios    em   causa foram adquiridos pelo interessado FF por usucapião, tendo sido excluídos da partilha adicional por não fazerem parte do acervo hereditário dos inventariados AA e mulher BB. Não vislumbra o Tribunal, por conseguinte, e revisitado o artigo 729.º do Código de Processo Civil, qual dos fundamentos aí previstos é que o aqui executado lança mão para fundar a sua oposição – sendo certo,  inclusive,  que nem a indica.
Acresce que, e como decidido por despacho proferido a 12/11/2021, no âmbito do processo de inventário a  que os presentes autos são apensos  –  não existe qualquer direito de compensação ou qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação.


Com efeito, não existe qualquer contracrédito do executado, como aquele pretende fazer crer, uma vez que, volte-se a frisar, os bens em causa não  estão sujeitos à colação uma vez que foram excluídos da partilha adicional  por serem pertença exclusiva de FF, que os adquiriu por usucapião. […]».
Ora, na realidade, conforme acima consta, no despacho proferido a 12/11/2021 foi negada a existência de compensação, mas arrimada na circunstância de não haver lugar à  colação por ter sido reconhecido, na acção nº  103/18.5T8MBR, ao interessado FF  e aí Autor,   o direito de propriedade sobre os prédios em causa, fundado na usucapião, pelo que, não sendo o fundamento dessa propriedade, as doações de tais prédios que lhe foram feitas pelos inventariados, os mesmos, tal como foi decidido nessa acção, deviam ser excluídos do mencionado inventário e não podiam ser objecto de partilha adicional, por não fazerem parte do acervo hereditário dos Inventariados.
Foi nesta linha, também, o entendimento da Mma. Juiz, na decisão ora recorrida.
Ora, a sentença proferida na acção nº 103/18.5T8MBR, ou melhor, o respectivo caso julgado, se bem interpretamos aquela, apenas obsta  à  partilha dos prédios a que respeita, “rectius”, em incidente de partilha adicional, não obstando a  que os  mesmos sejam considerados para efeitos de colação, ou, seja, em temos práticos, que o respectivo valor seja considerado para que se componham os quinhões de todos os interessados   do inventário em termos de não se tolher o respectivo  direito  a  uma partilha equilibrada, e, portanto,  justa.
Mas, dir-se-á, como o direito de propriedade de tais prédios foi reconhecido com base na usucapião, a doação dos mesmos já não pode legitimar a não sujeição à colação.


Salvo o devido respeito, não concordamos com esse   entendimento.
Escreve, com acerto Ana Isabel Cardoso Rosado “in” “Dissertação de Mestrado em Direito e Prática Jurídica Especialidade  de  Direito  Civil”, págs 80 e 84):4
«[…] nada na  lei leva a que seja excluído do cálculo da legítima o  valor   dos bens doados em relação aos quais, em virtude do decurso do tempo, se reconhece um direito de propriedade do donatário, por via da usucapião.   (…)
O donatário ao receber os bens por via de doação feita  pelo  de  cujus  adquire a propriedade dos mesmos, assim como a respectiva posse em nome próprio. Porém, como já foi dito, as doações quer sejam mortis causa quer sejam inter vivos, podem ser afectadas pela acção de redução, o que põe em causa o direito de propriedade do donatário – seja este também herdeiro legitimário ou não. Mas a usucapião185, que permite a aquisição do direito  de propriedade em virtude do decurso do tempo, cumpridos  os  prazos  legais, é susceptível de ser posta em causa pela acção de redução, prevalecendo sempre o direito à redução por inoficiosidade do herdeiro legitimário, enquanto mecanismo de tutela da sua legítima   subjectiva.
(…)
como refere PAULO SOARES DO NASCIMENTO invocar o instituto da usucapião significaria que o mecanismo da redução das liberalidades inoficiosas perderia todo o sentido de protecção do herdeiro legitimário, na sua vertente de tutela quantitativa da  legítima
(…)
A invocação da usucapião pode dar-se a todo o tempo contra terceiros, desprovidos de um título de vocação hereditária. Porém, por outro lado, já não poderá a usucapião ser invocada contra o sucessível que concorre à sucessão    na    qualidade    de    herdeiro    legitimário,    por,  precisamente, contrariar o princípio da intangibilidade da legítima, princípio basilar do sistema sucessório português.  […]».
Posto isto, atente-se no que se escreveu no Acórdão desta Relação de Coimbra, de 11/05/2004, Agravo nº 3822/03 (Des. Jaime  Fereira) 5:
«[…] com as doações regularmente efectuadas pela “de cujus” a favor dos seus herdeiros, foi transmitida a propriedade dos bens doados como mero efeito desse contrato de disposição gratuita e desde que  o  mesmo  teve  lugar –  é o que resulta dos artºs 940º, nº 1; 947º, nº  1; e 954º, al. a), todos   do C. Civ.
Tal transmissão, porém, não evita que os donatários-descendentes da doadora (autores há que entendem estar também o cônjuge sobrevivo, que seja também donatário, obrigado a este dever, como salienta Rodrigues Bastos in Notas ao Código Civil, vol. VII, Lisboa 2002, pg. 323; veja-se, também, o Prof. Oliveira Ascensão, in “Direito Civil- Sucessões“, 5ª ed. revista, pg. 531) devam restituir à massa da  herança desta, para  igualação da partilha, os bens ou valores recebidos em doação, para, assim, poderem entrar na sucessão da ascendente, tanto mais que todos os bens imóveis relacionados foram doados com obrigação de colação para os  herdeiros  assim beneficiados - é o que resulta dos artºs 2104º, nº 1; 2105º; 2106º e 2113º, todos do C. Civ..
A fundamentação deste instituto do direito sucessório acha-se  no  significado social que é atribuído às doações em vida feitas a presuntivos herdeiros legitimários do doador,  considerando-as  como  meras antecipações da herança (a ocorrer necessariamente no   futuro).
Tal conferência (ou dever de restituição) faz-se pela imputação do valor da doação... na quota hereditária (sendo esse valor aquele que os bens doados tiverem à data da abertura da sucessão), o que é a regra, ou pela restituição dos próprios bens doados, se para tanto houver acordo de  todos os  herdeiros – artºs 2108º, nº 1; e 2109º, nº 1, do C.   Civ..
Assim, na primeira dessas situações (e apenas essa situação   se  nos coloca), o beneficiário-donatário conserva no seu património os bens doados, sendo apenas o seu valor imputado na sua quota hereditária, com  o  valor reportado à data da abertura da herança (data da morte do de cujus)   […]».
Dito isto, ou seja, afirmada a possibilidade de sujeição à colação dos bens doados, e adquirido que está que o ora Apelante, para  o  efeito,  requereu a emenda da partilha, o ficar como credor  de tornas  do interessado FF é ainda uma mera eventualidade, não se podendo afirmar que o ora Apelante tenha sobre este, que o  nega,  um crédito exigível judicialmente.
Ora, a compensação, embora possa respeitar a um crédito não reconhecido judicialmente, reconhecimento esse que é apenas condição de eficácia  daquela, necessita, para poder ser invocada que respeite a um crédito  exigível judicialmente (artº 847, nº 1, a), do Código   Civil).
Do exposto resulta que, por não ser titular de um crédito exigível judicialmente, não é possível ao Apelante invocar a compensação, para neutralizar o crédito de tornas que o interessado FF tem sobre ele e que está assente em título que se mantém   incólume.
Por isso é manifesta a improcedência da oposição do ora Apelante, quer à execução, quer à venda.
Por outro lado, não podendo a execução ser suspensa por causa prejudicial, ainda que entendida assim a emenda da partilha (artº 272.º, n.º 1, do NCPC    e Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 1960 - actualmente com força de uniformização de jurisprudência), não ocorre  outro motivo justificado de suspensão, que, na prática, não equivalha à prejudicialidade e, que, portanto, possa ser invocado nos termos da 2ª   parte


do nº1 desse art. 272.º. [Cfr. Acórdão desta Relação de Coimbra, de 05/19/2020, Apelação nº 1075/09.2TBCTB-E.C1 (Relatora: Des. Ana Vieira),  consultável  em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase].
Assim, embora com diferente fundamentação, confirma-se o indeferimento liminar decidido pelo Tribunal “a quo”, improcedendo a  Apelação.

*
V - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes desta Relação  de  Coimbra em, julgando a Apelação improcedente, confirmar a decisão recorrida.


Custas pelo Apelante (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC).


11/10/20226


(Luiz José Falcão de Magalhães)
(António Domingos Pires Robalo)
(Sílvia Maria Pereira Pires)

1 Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.

2 Utilizar-se-á a sigla “CPC” para referir o código pretérito, ou, excepcionalmente, nos casos em que transcrevemos texto onde essa sigla foi já utilizada para identificar o novo Código de Processo Civil.

3 Cfr. Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ  de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos estes arestos consultáveis em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, tal como aqueles que, desse Tribunal e sem referência de publicação, ou com uma outra, vierem a ser citados adiante.

4 https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/40780/1/ulfd140520_tese.pdf.

5 Consultável em “consultável em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase.

6 Processado e revisto pelo Relator.