Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
217/12.5TBSAT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: PETIÇÃO INICIAL
PEDIDO EXPRESSO
PEDIDO IMPLÍCITO
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Data do Acordão: 12/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SÁTÃO      
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 28º, 193º, Nº 3 E 467º DO CPC.
Sumário: I – No percurso expositivo de uma petição inicial (contendo a identificação das partes e da acção a narração e a conclusão) podem existir pedidos expressamente formulados como tal na conclusão do articulado e pedidos deslocalizados dessa conclusão final, formulados ao longo do articulado na exposição dos factos e das razões de direito, mas com suficiente individualização em termos de propiciarem a sua detecção e compreensão com essa natureza: a de pedidos;

II – É o que sucede com a invocação expressa, embora ao longo da narração e não na conclusão do articulado, da aquisição pelos autores de um prédio por usucapião, quando da propriedade desse prédio se deduz (este no pedido expresso na conclusão) um direito de preferência dos referidos autores na alienação de um outro prédio (confinante e que onera o prédio dos autores com uma servidão de passagem);

III – Vale como situação deste tipo a indicação, no articulado, dos elementos que se entende integrarem a usucapião, seguida da referência expressa de se invocar esse título aquisitivo da propriedade, mesmo que no elenco final dos pedidos este reconhecimento da propriedade não seja expressamente formulado como pedido, mas tão-só o pedido de declaração do direito de preferência, condicionado pelo reconhecimento daquele direito de propriedade;

IV – A compreensão pelo réu, evidenciada na contestação, de que a afirmação dessa aquisição por usucapião envolve outras pessoas não demandadas pelos autores, significa ter o réu percebido a natureza de pedido implícito dessa aquisição por usucapião, alicerçando tal incidência, com base na regra interpretativa de um articulado processual que subjaz, com vocação de generalidade, ao artigo 193º, nº 3 do CPC (artigo 186º, nº 3 do Novo CPC) a consideração dessa referência à usucapião, não obstante deslocalizada da conclusão do articulado, como traduzindo um pedido efectivamente formulado pelos autores;

V – Assim, envolvendo esse pedido implícito e deslocalizado de reconhecimento da aquisição por usucapião o afastamento da dominialidade desse prédio de outras pessoas não demandadas (os formalmente comproprietários com os autores de um prédio mais vasto integrando o que se afirma ter sido adquirido por usucapião), ocorre uma situação de litisconsórcio necessário natural entre os autores e aqueles comproprietários, em termos de estes deverem ser igualmente demandados para que a decisão relativa a esse direito de propriedade (o pedido implícito condicionante do pedido explícito referido ao direito de preferência) produza o seu efeito útil normal, nos termos do artigo 28º, nº 2 do CPC (artigo 33º, nº 2 do Novo CPC);

VI – A preterição deste litisconsórcio necessário gera uma situação de ilegitimidade processual, determinando a prolação no saneador de uma decisão de absolvição da instância.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa
            1. Em 4 de Agosto de 2012[1], J… e mulher, M… (AA. e Apelantes na presente instância de recurso) demandaram E… e marido, A… (doravante os 1ºs RR. e aqui Apelados) e L… e marido, P… (doravante os 2ºs RR. e aqui também Apelados).
Nesta acção pretendem os AA. preferir à 2ª R. na venda, que aqui se encontra documentada a fls. 29/30, a esta R. efectuada pelos 1ºs RR. no dia 28/02/2012, suportando esse direito de preferência numa situação de confinância com um prédio que afirmam pertencer-lhes (a eles AA.) – estando em causa neste particular o direito de preferência previsto no artigo 1380º, nº 1 do Código Civil (CC). Adicionalmente, alegando estar o respectivo prédio onerado com uma servidão de passagem em favor do prédio alienado entre os RR. (que seria um prédio encravado), pretendem os AA., igualmente, preferir nessa venda – desta feita por referência ao direito de preferência previsto no artigo 1555º, nº 1 do CC.

            1.1. Existem algumas especificidades, na afirmação pelos AA. da propriedade do prédio a partir do qual pretendem construir as respectivas preferências, importando aqui referir essa incidência, que assumirá um papel central na economia argumentativa deste Acórdão.
            1.1.1. Como primeiro elemento a reter temos a afirmação pelos AA., logo no artigo 1º da respectiva p.i. de serem (eles) os “legítimos proprietários” do prédio que identificam como “[t]erreno de semeadura, vinha e lameiro, sito ao ‘Porto’, limites de Abrunhosa, a confrontar do nascente com… , inscrito na matriz da freguesia de …, com a área aproximada de 5.300 m2’.
E acrescentam os AA. a este respeito:
“[…]
2. Tal prédio adveio à propriedade e posse dos autores, por o haverem adquirido a…, por escritura pública de 10 de Março de 1995, celebrada no Cartório Notarial de Penalva do Castelo.
3. Embora na escritura conste a venda aos autores de uma fracção do prédio inscrito na matriz sob o artigo …, daquela freguesia, o certo é que essa fracção há muitos anos, antes da celebração da escritura atrás referida, se encontrava demarcada e autonomizada, como prédio distinto e autónomo.
4. Sendo que, a sua identificação como fracção daquele prédio, só tinha relevância para efeitos meramente fiscais.
5. Na verdade, o antigo prédio do artigo …, fora há muitas dezenas de anos, antes da celebração dessa escritura, de 10 de Março de 1995, dividido em glebas, devidamente demarcadas e autonomizadas.
6. Como se tratando de prédios distintos, resultantes do fraccionamento daquele primitivo prédio.
7. Sendo que tais glebas, há muitas dezenas de anos antes da referida escritura, haviam sido dadas de arrendamento ao cultivador directo aos compradores indicados nessa escritura, ou aos seus respectivos antecessores.
8. Assim acontecendo relativamente aos autores, no que respeita ao prédio identificado no artigo 1º, que há muitas dezenas de anos antes dessa escritura, havia sido arrendado aos pais da autora e sogros do autor, a quem estes vieram a suceder no respectivo arrendamento.
9. Estando, porém por si próprios, a cultivar esse prédio distinto e autónomo, com exclusão de outras pessoas, desde há mais de 30 anos.
10. Em Março de 1995, os proprietários e usufrutuários do primitivo prédio, resolveram proceder à venda aos respectivos caseiros, das glebas de que eram arrendatários, tendo para isso celebrado a escritura pública referida, em que se indicaram as fracções aproximadas de cada uma dessas glebas, relativas à totalidade do artigo matricial.
11. Mas, sem que se pretendesse que os compradores ficassem em regime de compropriedade, mas antes que cada um dos compradores ficasse proprietário pleno da fracção que fiscalmente lhe era atribuída e que já correspondia a prédios devidamente autonomizados, que cada um deles agricultava. Aliás,
12. Por si e antecessores de quem o houveram, vêm os autores possuindo o prédio identificado no artigo 1º, cultivando a parte de semeadura com milho, batatas, feijão e hortaliças, tratando as videiras na parte de vinha e colhendo as respectivas uvas e apascentando gados e colhendo erva, na parte de lameiro.
13. Continuadamente, por muito mais de 15, 20 e 30 anos.
14. À vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com exclusão de outras pessoas, com a consciência de não lesarem direitos de outrem e a convicção de exercerem um direito próprio de proprietários.
15. Sendo que, por mais de 15, 20 e 30 anos, nos termos atrás alegados, o prédio identificado no artigo 1º, foi considerado sempre prédio devidamente demarcado e autonomizado. Deste modo,
16. Se outro titulo não tivessem, teriam pois os autores adquirido também o referido prédio, por usucapião que também invocam.
[…]”.
           
            1.1.2. Para efectiva compreensão da situação interessa indicar o pedido expressamente formulado pelos AA. em função do conjunto de  asserções acima transcritas:
“[…]
Nos termos expostos, deve a presente acção ser julgada provada e procedente, e em consequência deve:
a) - Declarar-se o direito de preferência dos autores na compra do prédio, objecto da escritura, referida no artigo 34º;
b) - Em consequência declarar-se os autores substituídos aos réus compradores L… e marido, na referida compra e venda, mediante o recebimento por estes, do respectivo preço e demais despesas referidas no artº 38º;
c) - Autorizar-se ou ordenar-se o cancelamento do registo de aquisição do referido prédio, que tenha sido efectuado a favor dos réus compradores[[2]];
[…]”.

            1.2. Contestaram os 2ºs RR. (os compradores do prédio pretendido preferir) negando, desde logo, serem os AA. (os preferentes) “[os] donos e legítimos possuidores do prédio descrito no artigo 1º da […] p.i., contrariamente ao que alegam” (fls. 41). A este respeito, explicitando a respectiva visão da situação dominial desse prédio, referem – e trata-se da questão central na economia decisória deste recurso – o seguinte:
“[…]
2.º
Vejamos,
Os AA., conforme escritura junta com a P.I. sob doc. nº 2 , compraram em conjunto com mais seis outras pessoas singulares, o prédio inscrito na matriz sob o artigo …;

Tal prédio, apresentava as seguintes características aquando da compra realizada aos 10 de Março de 1995 (fls. 8 do doc. nº 2 junto com a P.I.):
‘terreno de cultura e vinha com fruteiras aveleiras, videiras em cordão e casa de arrecadações, sita ao Porto, limite da freguesia de …, com a área total de
vinte e sete mil e quinhentos metros quadrados , inscrita na matriz sob o artigo …, com o valor patrimonial de cento e treze mil quinhentos e vinte e quatro escudos.’

Os ora AA foram na escritura a que se vem fazendo referência (doc. nº 2 junto com a P.I.) ali ‘oitavos’ outorgantes;

Aos AA foi vendido por tal escritura (fls. 8 do doc. nº 2 junto com a P.I.) ‘ quatro mil seiscentos e oitenta e um, vinte e três mil duzentos e dezoito avos do seguinte prédio … artigo …

Os AA compraram, em regime de compropriedade, no ano de 1995, com os demais então compradores, o prédio rústico artigo ...

E após tal compra no ano de 1995 (doc. nº 2 junto com a P.I.) nunca mais os AA compraram em tal prédio nada a ninguém, vejam-se doc.s nºs 1 junto com a P.I. e nº 1 cuja junção agora se requer datado de 17/09/2012.

Do que resulta, que, os AA. apenas possuem no prédio rústico artigo … a alíquota que ab initio compraram pela escritura junta como doc. nº 2 na P.I.

Assim, os AA. são comproprietários do artigo 486º onde têm uma alíquota de quatro mil seiscentos e oitenta e um, vinte e três mil duzentos e dezoito avos.
10º
Face ao que vem de dizer-se, os AA. não são donos e possuidores de forma única, com exclusão de outrem, do artigo ...
11º
O artigo … ficou em compropriedade, pertença de várias pessoas singulares, desde a escritura do ano de 1995, doc. 2 da P.I. situação jurídica que se mantém até ao presente momento.
12º
Os comproprietários do artigo … poderiam, caso se verificassem os demais requisitos legais para o efeito, o que in casu não acontece como iremos demonstrar infra, todos em conjunto, exercer o direito legal de preferência na venda do prédio contíguo artigo … identificado nos autos nos doc. 3 e 4 juntos com a Douta P.I.
13º
O prédio artigo … tendo sido adquirido pelos AA e outras 6 pessoas singulares no ano de 1995, Doc. 2 da P.I., mantém no presente momento os seguintes comproprietários , doc. nº 1 da P.I.:

14º
O supra identificado comproprietário J…, já faleceu pelo que lhe ocupam hoje o lugar e direitos que lhe pertenciam os herdeiros…
15º
E, entretanto, neste mesmo no artigo …, prédio-mãe, foi feito um destaque, desanexando-se uma parcela de terreno de 1.150m2, pelo processo administrativo 628/2008, veja-se doc. nº 1 da P.I.. e doc. 1. cuja junção se requer com esta contestação.
16º
Até ao presente momento nunca foi providenciada qualquer outra divisão ou fraccionamento do prédio artigo …, doc. nº 1 cuja junção se requer aos autos com esta peça processual.
17º
Assim, encontrando-se o prédio artigo …., de que os AA são comproprietários, indiviso para se poder ter efeito útil normal nesta acção de preferência haveriam que estar em juízo a exercer o direito legal de preferência nos termos peticionados não apenas os AA mas estes acompanhados dos demais consortes ou comproprietários.
18º
Tal exigência decorre do artigo 1405º nº1 do CC que refere ‘os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular …’
[…]
20º
Verifica-se assim ilegitimidade activa dos AA para intentarem a presente acção desacompanhados dos demais comproprietários, por in casu a relação jurídica obrigar a litisconsórcio necessário activo.
21º
Pois, se se verificasse a procedência da acção o artigo … sobre o qual os AA pretendem preferir não poderia ser anexado ao artigo … por não haver identidade de proprietários.
22º
Isto é, depois do ganho de causa o prédio sobre o qual os AA haviam preferido e do qual passariam a ser único proprietários, art. …, não poderia ser anexado ao prédio art. … por este não ser apenas dos AA mas destes em conjunto com demais comproprietários como supra identificados…
23º
A haver ganho de causa, o artigo … ficaria propriedade de forma exclusiva dos AA continuando contudo o artigo … a ser possuído em regime de compropriedade pelos AA e outros comunheiros supra identificados.
24º
O fim visado pela leis que visam garantir o direito de preferência na venda de prédio rústico e também nomeadamente aquelas a que os AA fizeram apelo na sua Douta P.I. não seriam de qualquer alcançados com o ganho destes, hipótese académica, nesta lide, tal qual foi apresentada em juízo pelos AA.
25º
Pelo que suscitada a ilegitimidade activa dos AA. nos termos supra expostos haverá a mesma de ser conhecida já no Despacho Saneador.
[…]”.

Ademais, impugnaram os RR. qualquer dos direitos de preferência invocados.
            1.3. Finda a fase dos articulados, proferiu a Senhora Juíza o saneador-sentença de fls. 83/90consubstancia este a decisão objecto do presente recurso – cujo pronunciamento decisório, para além de uma apreciação positiva, in itinere, da legitimidade processual dos AA., correspondeu à absolvição dos RR. do pedido, determinada nos seguintes termos (e optamos aqui por transcrever esse pronunciamento no que parece constituir a sua formulação mais alargada):
“[…]
[A] alegação da aquisição de uma parcela autónoma por usucapião a desanexar de um outro prédio, para produzir efeitos, implicaria a dedução de pedido autónomo contra os titulares inscritos do prédio donde se pretende desanexar e, no caso concreto, tal pedido não se encontra formulado nem a acção foi proposta contra os titulares inscritos do prédio …/ de S. Miguel de Vila Boa.
Assim sendo, ainda que os Autores provassem que têm utilizado a parcela invocada por usucapião, a sentença não constituiria título comprovativo do seu direito uma vez que tal pedido não foi formulado e, ainda que o fosse, não poderia ser procedente porque não foi invocado perante os interessados em contradizer.
Pelo exposto, a acção tem de improceder, o que, desde já, se declara, absolvendo-se os Réus do pedido.“.

            1.4. Inconformados, apelam agora os AA. a esta Relação, formulando a rematar o respectivo recurso as conclusões que aqui se transcrevem:
“[…]
II – Fundamentação
            2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pela Apelante – transcrevemo-las no antecedente item 1.4. – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC) – ou, se se entendesse aplicável o Novo CPC, nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º deste[3]. Assim, fora das conclusões só valem, em sede de recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo, em qualquer dos casos, o artigo 660º, nº 2 do CPC, ou o artigo 608º, nº 2 do Novo CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.
            Refere-se o recurso, e é fácil percebê-lo pela motivação no seu trecho conclusivo, ao controlo da asserção decisória presente no saneador-sentença apelado. O fundamento do recurso pode, pois, ser enunciado nos seguintes termos: saber se as peculiares circunstâncias detectadas pelo Tribunal a quo na construção da acção pelos AA. conduzem à absolvição dos RR. quanto ao pedido (referimo-nos às peculiaridades relativas à dominialidade do prédio que os AA. invocam ser seu, em função do que alegam quanto a essa dominialidade própria e excludente de outrem e quanto ao sentido que atribuem à escritura de fls. 19/26).
Aliás, procurando ser algo mais específicos na fixação do tema do recurso, diremos que este se refere a todo o complexo percurso argumentativo seguido pela Senhora Juíza a quo para, depois de ter considerado os AA. como partes legítimas – diz a Magistrada serem (eles) as partes processualmente legítimas face à acção (por eles) construída –, depois de ter considerado isto, dizíamos, entendeu a Senhora Juíza absolver os RR. do pedido, por este – e cremos ter interpretado correctamente o sentido da decisão – não ter sido deduzido como pedido autónomo de aquisição da propriedade do prédio a partir do qual pretendem (os AA.) “construir” o(s) direito(s) de preferência, e por não ter sido autonomamente deduzido “contra os titulares inscritos do prédio donde se pretende desanexar”, esse (outro) prédio indutor da preferência aqui visada.
2.1. É isto, pois, o que importa esclarecer neste recurso, sendo que, para esse efeito e como incidências processuais (factos processuais) relevantes, vale o somatório das circunstâncias descritas ao longo de todo o item 1. supra, embora adicionalmente haja que considerar os factos que a própria decisão recorrida, assumindo-os por via da prova documental existente no processo, entendeu estarem provados, enunciando-os com esse sentido no respectivo texto a fls. 86/88:
“[…]
Não obstante não se considere verificada a excepção de ilegitimidade dos Autores, ainda assim, entendemos estar na posse de todos os elementos para, nesta fase, decidir de mérito.
Senão vejamos:
Resultam dos autos os seguintes factos provados (por prova documental):
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Sátão sob o nº … da freguesia de S. Miguel de Vila Boa, um prédio rústico situado em Porto, com 26350m2, composto por terreno de cultura e vinha e casa de arrecadação, a confrontar ...
2. O prédio referido no número anterior encontra-se inscrito pela AP. 4 de 1995/05/16, na proporção de 5120/23218 a favor de …, tendo como causa a compra.
3. O prédio referido em 1. encontra-se inscrito pela AP. 5 de 1995/05/16, na proporção de 4681/23218, a favor de …, tendo como causa a compra.
4. O prédio referido em 1. encontra-se inscrito pela AP. 9 de 1995/05/16, na proporção de 1236/23218, a favor de …, tendo como causa a compra.
5. O prédio referido em 1. encontra-se inscrito pela AP. 4 de 1995/06/26, na proporção de 4373/23218, a favor de …, tendo como causa a doação.
6. O prédio referido em 1. encontra-se inscrito pela AP. 5 de 2007/05/25, na proporção de 2305/23218, a favor de …, tendo como causa a sucessão hereditária.
7. Os Autores adquiriram o direito identificado em 3. por escritura pública de compra e venda outorgada em 10 de Março de 1995 no Cartório Notarial de Penalva do Castelo, lavrada a folhas ...
8. Pela AP. 14 de 2008/12/03 foi desanexada uma parcela do prédio identificado em 1. com 1150m2 destinada a construção urbana, a confrontar do ...
9. O prédio identificado no número anterior foi adquirido por … e foram vendedores ...
10. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Sátão o prédio nº …/, composto por prédio rústico, situado em Porto, Abrunhosa, freguesia de S. Miguel de Vila Boa, inscrito na matriz sob o artigo ...
11. Os prédios identificados em 1. e 10. são confinantes.
12. Por escritura pública outorgada em 28.02.2012, no Cartório Notarial de Sátão, a folhas …, … declararam vender e L… declarou comprar o prédio identificado em 11.
13. O preço do negócio de compra e venda identificado em 12. foi de €12.500,00.
14. As despesas de IMT foram de €615,00, de imposto de selo €100,00 e do registo de €100,00.
15. A escritura pública custou €217,00.
[…]”.

            2.2. Existe no saneador-sentença apelado um elemento que, não tendo determinado em si mesmo a decisão, é estratégico quanto à abordagem do sentido que esta acabou por assumir. Referimo-nos à apreciação, in itinere da decisão final, da legitimidade processual dos AA., sendo de notar que o Tribunal apreciou positivamente a verificação deste pressuposto da instância, afirmando serem os AA. partes legítimas com esse particular sentido (isto é, em sentido processual):
“[…]
[N]a petição inicial os Autores alegam que são donos de um prédio autónomo adquirido por usucapião e não de uma parte indivisa de um prédio maior.
É, pois, juridicamente sustentável a instauração da acção nos termos propostos.
Conclui-se, deste modo, que os Autores J… e mulher M… são titulares da relação material controvertida descrita na petição inicial, a qual é plausível do ponto de vista das soluções de direito aplicáveis à causa.
Decide-se, assim, julgar improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade dos Autores J… e mulher M…, invocada pelos Réus L… e marido na respectiva contestação.”.

            Não obstante, com um certo sabor a paradoxo, na decisão final absolutória dos RR. quanto ao pedido, a mesma situação, a falta de algumas pessoas na acção (“[dos tais] titulares inscritos do prédio donde se pretende desanexar...”) parece ser apresentada como correspondendo à ratio decidendi dessa absolvição do pedido. Falamos de paradoxo – e sempre concedendo que este seja só aparente –, porque a legitimidade processual trata de quem está e de quem não está num determinado processo, determinando quem deveria estar como pressuposto da adjectivação de um determinado direito, sendo que no caso da decisão apelada, tendo-se começado por dizer que estava na acção quem deveria estar, em função da afirmação efectivamente presente na petição inicial de propriedade pelos AA. “[…] de um prédio autónomo adquirido por usucapião e não de uma parte indivisa de um prédio maior”, esta mesma circunstância – e isso expressaria o possível paradoxo – é depois apresentada como motivo da improcedência da acção, dizendo-se o seguinte: “[…] ainda que os AA. provassem que têm utilizado a parcela invocada por usucapião, a sentença não constitui título comprovativo do seu direito uma vez que tal pedido não foi formulado e, ainda que o fosse, não poderia ser procedente porque não foi invocado perante os interessados em contradizer” (transcrição de fls. 90).
            Note-se que esta situação – uma afirmação positiva inicial da legitimidade das partes, referida aos pressupostos processuais, e uma posterior absolvição do pedido baseada na consideração de faltar alguém como parte na acção, configurando-se o caso como de litisconsórcio necessário ou de legitimidade plural –, uma situação deste tipo, dizíamos, não é desconhecida da nossa jurisprudência e doutrina, sinal evidente de encerrar ela um problema com sentido, não traduzindo essa incidência, pois, uma impossibilidade lógica geradora de um qualquer solecismo jurídico.
Veja-se a este propósito, com efeito, como reflexo deste tipo de problema, a situação tratada no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 210/2000 (Vítor Nunes de Almeida)[4], que decidiu pela conformidade constitucional da referida incidência, expressando decisoriamente esse juízo nos termos seguintes: “[não] julgar inconstitucional a norma constante do artigo 288º, nº 1, alínea d), do Código do Processo Civil, em conjugação com a norma constante do artigo 28º, nº 2, do mesmo Código, quando interpretada no sentido de que, em litisconsórcio necessário activo, a parte julgada processualmente legítima pode não ver reconhecido o direito de que se arroga por não terem intervindo na acção os restantes co-interessados[5].
            O possível paradoxo acima aludido não se refere, pois, à questão da articulação da legitimidade processual, positivamente resolvida no saneador-sentença, com a legitimidade substantiva de terceiros não demandados para esta acção, enquanto factor determinante da absolvição dos RR. do pedido. A questão reside antes na circunstância, que essa sim, nos termos em que a decisão a articula, parece-nos encerrar alguma contradição, de se aceitar (para a aferição da legitimidade processual) que os AA. teriam, porventura mal localizado dentro da petição inicial, instaurado a acção assumindo como pressuposto serem eles “[…] donos de um prédio autónomo adquirido por usucapião e não de uma parte indivisa de um prédio maior” (fls. 86), quando, depois, na mesma decisão, a respeito da absolvição do pedido, se diz “[…] que tal pedido não foi formulado […]” (fls. 90) pelos AA., fazendo-se descaso, neste segundo passo argumentativo do saneador-sentença, da afirmação expressa pelos AA. no articulado inicial (artigo 16º acima transcrito no item 1.1.1.), depois de terem caracterizado devidamente a situação de usucapião, segundo a qual “[se] outro título não tivessem. Teriam pois os autores adquirido também o referido prédio por usucapião, que também invocam” (sublinhado aqui acrescentado). 
            Entendemos que a efectiva compreensão pelo julgador dentro do processo (dentro de um mesmo processo) de quais os pedidos explícitos e devidamente localizados e de quais os pedidos implícitos e, eventualmente, deslocalizados dentro do articulado – isto no sentido de serem somente apresentados na narração e, portanto, fora da parte conclusiva do articulado inicial e menos claramente –, entendemos que uma incidência deste tipo, dizíamos, deve ser objecto (repetimos: dentro do mesmo processo) de um tratamento coerente e uniforme. É que, se se diz algo equivalente a que esse pedido existe, para daí deduzir um pressuposto processual, caso da legitimidade ad causam, não cremos que se possa, depois disso, deixar de pressupor a existência desse mesmo pedido (dizer até que ele não foi formulado…) para efeitos de aferição da legitimidade substantiva que é dedutível da formulação desse mesmo pedido.
            Vale aqui o entendimento que, sendo discutível[6] – admitimos que o seja –, foi aceite recentemente no Acórdão desta Relação de 10/09/2013 (Jorge Arcanjo)[7], também subscrito pelos ora relator e o aqui Primeiro Adjunto: “[o] pedido formulado pelo autor na petição inicial (artigo 467º, nº 1, e) do CPC) deve, em regra, ser feito na conclusão. Contudo, tal não obsta a que possa também ser expresso na parte narrativa do articulado, desde que se revele com nitidez a intenção de obter os efeitos jurídicos pretendidos[8].
            Ancora-se esta posição, desde logo, no entendimento de um articulado processual, designadamente uma petição inicial, como configurando “[…] uma declaração de vontade tendente a obter determinado efeito jurídico, devendo ser interpretada segundo o critério estabelecido nos artigos 236º, nº 1 e 238º nº 1 do Código Civil […]”[9], acrescentando-se colher este entendimento algum respaldo no artigo 295º do CC, ao determinar a aplicação aos actos jurídicos que não se configurem como negócios jurídicos das disposições do Código Civil referentes a estes, designadamente das atinentes à interpretação e integração previstas nos ditos artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, “na medida em que a analogia das situações o justifique”. Esta problemática acaba por entroncar na da caracterização disjuntiva dos actos das partes no processo, quanto aos efeitos, como actos de natureza constitutiva ou postulativa[10], sendo que um articulado processual – uma petição inicial, uma contestação, uma réplica ou um outro articulado – corresponderá tendencialmente, na sua função primordial (propor uma acção, contestá-la e reconvir, responder a uma excepção, etc.), à categoria de acto postulativo[11].
Note-se que a referência ao artigo 236º do CC interessa neste contexto (o da interpretação de acto processual correspondente a um articulado) como via para afirmar a relevância de um sentido normal da declaração na compreensão do efectivo sentido desse acto em algum dos seus elementos e até, por referência ao nº 2 do mesmo artigo 236º, para conferir valor interpretativo ao conhecimento pelos destinatários desse acto processual – destinatários que aqui funcionariam como declaratários – da vontade real do declarante.
Esta questão é desenvolvidamente tratada por Paula Costa e Silva (na obra referida na nota 12 supra), tomando como ponto de partida a afirmação de não ter o legislador do Código de Processo Civil construído um sistema de interpretação dos actos de processo nos termos em que isso sucede relativamente à lei, nos artigos 9º e seguintes do CC e à declaração negocial nos artigos 236º e seguintes do CC:
“[…]
Se é verdade que o Código de Processo Civil não contém um regime geral de interpretação dos actos das partes, é também verdade que ele inclui uma disposição fundamental em matéria de interpretação, a maioria das vezes não qualificada como tal. Referimo-nos ao artigo 193º, nº 3 [[12]].
[…]
Existe um paralelismo evidente entre o disposto no artigo 236º, nº 2 do CC e no artigo 193º, nº 3 do CPC.
De acordo com o artigo 236º, nº 2 do CC, a declaração emitida vale com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário. O que significa que pode existir uma total descoincidência entre a vontade real e a vontade tal como foi ou aparece declarada. Neste caso, e porque o declaratário sabe exactamente aquilo que o declarante pretende, passa-se por cima do texto, valendo a declaração eventualmente com um sentido que aquele nem sequer comporta.
O que encontramos no artigo 193º, nº 3 é algo de semelhante. Também neste caso a petição vale de acordo com o sentido real que o autor pretendia atribuir-lhe. A interpretação (no caso da ininteligibilidade) ou a integração (no caso de falta) realizadas pelo réu mostram que ele atribuiu o sentido correcto à imprecisa ou incompleta forma de expressão do autor.
Tanto num caso, como no outro, o sentido do acto pode ser fixado contra o texto.
No entanto, há uma dissemelhança entre os dois regimes. Enquanto o artigo 236º, nº 2 vincula o declaratário a uma intenção, que ele conhece, e que não pressupõe uma interpretação da declaração, o artigo 193º, nº 3 pressupõe que seja através da interpretação que o declaratário consegue apurar a intenção do declarante. Num caso, a intenção é oponível porque é conhecida; no outro, essa intenção é oponível porque foi descoberta.
[…]”[13] (sublinhado acrescentado).


            E acrescenta a Professora Paula Costa e Silva, justificando a vocação de generalidade como regra interpretativa do artigo 193º, nº 3 do CPC no que tange aos actos processuais:
“[…]
Se os diversos sujeitos processuais procederem a uma descodificação do acto, fixando-lhe um sentido comum, será este o sentido juridicamente relevante do acto postulativo.
O que equivale a dizer que, havendo uma coincidência entre a intenção do autor e o sentido apreendido da formalização dessa intenção, será esse o sentido com que deve valer o acto.
Pelo que, em caso de entendimento comum do acto postulativo, o sentido que a este é fixado coincide com o sentido genericamente considerado relevante quando se procede à fixação do sentido de uma declaração negocial. Nestes casos, exprimindo o acto de forma adequada a intenção do seu autor e sendo essa intenção appreendida, tanto pelo tribunal, como pela parte contrária, poderá concluir-se que o acto terá o sentido correspondente à intenção do seu autor
[…]”[14] (sublinhado acrescentado).

Fornecem-nos estas considerações elementos muito relevantes para a apreciação do caso concreto, em particular no que respeita à articulação lógica da pretensão dos AA., quanto ao exercício dos direitos de preferência de que se arrogam titulares, com o percurso expositivo que adoptam para caracterizar esses invocados direitos de preferir à R. na venda correspondente à escritura de fls. 29/30.
            É o que veremos de seguida.
Desde já, porém, importa anotar que os AA. explicaram por etapas e desenvolvidamente, ao longo do respectivo articulado inicial, os termos em que chegaram ao resultado final por eles aqui pretendido – chamemos assim à pretensão de obter o reconhecimento, numa dupla base concorrente ou alternativa, do direito de preferir à 2ª R. na tal compra documentada a fls. 29/30. E, enfim, tão claramente caracterizaram os AA: a situação, que os RR. contestantes, compreendendo perfeitamente o problema que se configurava, equacionaram devidamente todas as incidências dessa pretensão, construindo a respectiva defesa (para além da simples impugnação dos direitos de preferência em si mesmos) com base nos elementos especificamente decorrentes dessas incidências.
2.2.1. Com efeito, encarando as particularidades do caso concreto – rectius, lendo conjugadamente a petição inicial, a contestação e a decisão ora recorrida –, verificamos que os RR. invocaram a excepção de ilegitimidade dos AA., derivada da falta no processo das outras pessoas envolvidas na escritura de 10 de Março de 1995 (o doc. 2 junto com a p.i.) – e equacionaram-na muito correctamente, como veremos com o resultado deste recurso –, entendendo perfeitamente a expressa invocação pelos AA. da aquisição por usucapião do prédio do qual se pretende fazer derivar a preferência e, paralelamente, compreendendo a exacta articulação delineada pelos AA. entre os pedidos expressamente formulados na parte culminante do articulado, pedidos estes directamente reportados ao exercício dos direitos de preferência, e os elementos condicionantes destes direitos (e destes pedidos) referidos ao estatuto dominial sobre o prédio do qual os AA. afirmam ser proprietários. Perceberam os RR. perfeitamente, é um facto que inegavelmente resulta da respectiva contestação[15] – aliás, percebeu-o o Tribunal, tal como o percebe quem quer que leia a petição inicial –, que só conferindo à escritura de 10 de Março de 1995 o particular sentido indicado na petição inicial – “[e]m Março de 1995, os proprietários e usufrutuários do primitivo prédio, resolveram proceder à venda aos respectivos caseiros, das glebas de que eram arrendatários, tendo para isso celebrado a escritura pública referida, em que se indicaram as fracções aproximadas de cada uma dessas glebas, relativas à totalidade do artigo matricial”; “[m]as sem que [pretendessem] que os compradores ficassem em regime de compropriedade, mas antes que cada um dos compradores ficasse proprietário pleno da fracção que fiscalmente lhe era atribuída e que já correspondia a prédios devidamente autonomizados, que cada um deles agricultava […]” (artigos 10º e 11º da p.i.) –, só a pressuposição desta interpretação quanto ao (afirmado) verdadeiro sentido da escritura de 10 de Março de 1995, dizíamos, possibilitava aos AA. construírem os respectivos direitos de preferência referidos à confinância e à oneração por servidão de passagem, isto tomando como título de aquisição do prédio pelos AA. o negócio consubstanciado nessa escritura.
Paralelamente, também perceberam os RR. ao contestarem a questão da prescrição aquisitiva que, cumulativa ou alternativamente à interpretação da escritura nos termos antes indicados, era (foi) do mesmo passo invocada pelos AA. como suporte da sua dominialidade sobre o prédio a partir do qual construíam os direitos de preferência. Neste caso, aliás, embora deslocalizado da parte conclusiva do articulado, porventura em termos menos canónicos, apresenta-se-nos no plano da evidência terem os AA. formulado o pedido correspondente à aquisição por usucapião no texto da petição: “[s]e outro título não tivessem, teriam pois os autores adquirido também o referido prédio por usucapião, que também invocam” (escreveram no artigo 16º da p.i.). E, enfim, também nos parece que, tendo o Tribunal equacionado correctamente esta incidência a propósito da legitimidade processual, não é correcto que venha mais tarde afirmar o contrário (o que na prática representou o contrário) para colocar um fim substantivo – não um fim processual – à acção contra estes RR.
Dir-se-á que os AA. têm muito para provar “antes” da prova dos pressupostos dos direitos de preferência propriamente ditos. E dir-se-á, ainda, que têm de o provar contra pessoas que não demandaram agora e que, nesta ou noutra acção, terão de demandar. Será assim, admitimos – é assim, sem dúvida, quanto à falta nesta acção de necessariamente demandados –, mas isso só significa que têm os AA. muito para provar e que terão de o provar contra mais pessoas que estes RR. aqui demandados, significa, tão-somente, que têm uma acção que assenta em elementos condicionantes, eventualmente que têm pela frente uma acção difícil. Todavia, o que isso não significa é que exista uma acção já apta a ser julgada quanto à sua substância, logo no saneador, por absolvição dos RR. do pedido, quando tudo se reconduz por ora, apenas, a uma situação de preterição de litisconsórcio necessário passivo, determinado pelo encadeamento dos pedidos explícitos e implícitos envolvidos nessa acção.
De facto, é disso que aqui se trata – da verificação de litisconsórcio necessário natural, nos termos do artigo 28º, nº 2 do CPC (artigo 33º, nº 2 do Novo CPC) – quanto à necessidade de, em função dos pedidos implícitos condicionantes da existência da preferência pelos AA., ser afectada a posição de determinadas pessoas que aqui não foram demandadas, quanto à dominialidade destas sobre um determinado prédio, nos termos resultantes, prima facie, da escritura de 10 de Março de 1995, junta como doc. 2 anexado à p.i. É que, se os AA. provarem ser correcto (ser o correcto) o particular entendimento que propugnam dessa escritura, a posição desses outros participantes nesse negócio (referimo-nos a todos os que figuram como compradores nessa escritura) sairá afectada quando à respectiva propriedade sobre o “prédio” formalmente referido nessa escritura como um prédio único. Porque a posição destes não demandados sairá necessariamente afectada pela possível procedência da acção (nessas questões prévias condicionantes), têm eles de estar presentes na discussão aqui travada, para que a decisão, encarada globalmente, produza o seu efeito útil normal, no sentido em que, seja por via da interpretação do sentido da escritura defendido pelos AA., seja por via da actuação da usucapião nos termos por estes configurada, terá de haver uma decisão simultânea, embora logicamente encadeada, para todos os interessados[16] participantes na dita escritura de 10 de Março de 1995, no sentido em que todos eles nos aparecem – eventualmente na forma, mas é facto que aparecem – como comproprietários de um prédio assumido como único do qual os AA. afirmam ser exclusivos proprietários de uma parcela, em termos que excluem quaisquer outras pessoas, designadamente aqueles intervenientes nessa escritura. Porque a afirmação da preferência (o objectivo dos AA. nesta acção) pressupõe aquele elemento (serem só eles os proprietários do prédio que identificam na p.i.), e porque entendemos que os AA. implicitamente formularam essas pretensões condicionantes, está caracterizada a situação de litisconsórcio necessário.
Ora, a preterição de litisconsórcio necessário, seja ele legal, convencional ou natural, não gera ilegitimidade substantiva, gera, isso sim, ilegitimidade processual[17], conduzindo esta à absolvição da instância – não à absolvição do pedido –, nos termos dos artigos 493º, nº 2 e 494º, alínea e) do CPC, independentemente da possibilidade decorrente do artigo 269º, nº 1 do CPC (artigo 261º, nº 1 do Novo CPC).        
            2.3. E assim alcançámos a questão de fundo colocada pelo presente recurso, em função do sentido da decisão apelada: a absolvição dos RR. do pedido, quando a situação é de absolvição da instância por ilegitimidade decorrente de preterição de litisconsórcio necessário.
Como pano-de-fundo de toda esta questão não deixamos de encontrar na decisão recorrida a vexata quaestio do Direito Processual Civil português a respeito da legitimidade, geralmente identificada, disjuntivamente, como “tese Alberto dos Reis” e “tese Barbosa de Magalhães”, sendo que a referenciação a esta última[18] da questão da legitimidade apresenta-se problemática fora das situações de legitimidade singular e directa e, concretamente, nas situações de litisconsórcio necessário. Este elemento problematizante é referido por Carlos Lopes do Rego, anotando o artigo 26º do CPC, nos termos seguintes:
“[…]
É […] inquestionável que a legitimação extraordinária, traduzida na exigência do litisconsórcio ou na atribuição da legitimidade indirecta, nunca depende das meras afirmações do autor, expressas na petição inicial, mas da efectiva configuração da situação em que assenta a legitimidade, designadamente da real inexistência de outros interessados que devam ser considerados litisconsortes necessários; ou da efectiva demonstração do interesse ou da titularidade da relação legitimante que justifica a atribuição de legitimidade indirecta.
[S]empre foi pacífico que, nas situações de litisconsórcio necessário, não será a mera circunstância de o autor omitir na petição a existência de outros interessados, litisconsortes necessários de alguma das partes, que lhe permitirá obter decisão sobre o mérito da causa, se o juiz, por qualquer forma, conseguir aperceber-se da efectiva existência daqueles.
[…]
Deste modo, […] não é a simples circunstância de o autor afirmar na petição inicial que não há outros interessados que devam figurar na causa como litisconsortes necessários; ou de ele se arrogar um interesse em obter providência judicial que se repercute directamente na esfera jurídica alheia que, só por si, o torna parte legítima na causa.
Qual será a razão desta dualidade de tratamento para a legitimidade normal e para a legitimidade extraordinária, sempre claramente intuída na doutrina e na jurisprudência?
A resposta parece-nos ser a seguinte: é que, enquanto o problema da titularidade ou pertinência da relação material controvertida se entrelaça estreitamente com a apreciação do mérito da causa, os pressupostos em que se baseia a legitimidade plural ou a legitimidade indirecta aparecem claramente destacados do objecto do processo; e funcionando claramente como «questões prévias» relativamente à admissibilidade da discussão entre as partes acerca da relação material controvertida, dessa forma condicionando a possibilidade de prolação de decisão sobre o mérito da causa.
[…]”[19].

            Com efeito, para além do interesse em demandar e em contradizer logo aferido face ao desenho da lide operado pelo autor, convoca ainda a questão da legitimidade directa para a causa – e é particularmente relevante em situações de efeitos múltiplos, sequenciais e indirectos derivados dos possíveis resultados da acção –, a aferição daquilo que se identifica, também em sede de legitimação processual, como “[o] poder de produção, pela parte, dos efeitos que podem decorrer da decisão de procedência ou de improcedência da acção; [significando isto] que, para ser parte legítima, não basta ter interesse em demandar ou em contradizer, pois que é ainda necessário que a parte, activa ou passiva, possa produzir os efeitos substantivos que decorrem da procedência ou improcedência da acção[20].
Ora, sendo evidente que o poder de “isolar” (“destacar”, se se preferir) o prédio identificado pelos AA. como fonte dos respectivos direitos de preferência, dentro da escritura celebrada em 1995, seja por via da interpretação desta ou da sobreposição a esta de uma aquisição desse prédio por usucapião, sendo evidente que esta pretensão confronta os AA. com os restantes participantes na escritura, é a todos estes – além de aos directamente envolvidos na preferência – que compete discutir a questão da propriedade do prédio que os AA. afirmam ser só seu. Eram todas estas pessoas, com efeito – referimo-nos aos que figuram como compradores na escritura de 1995 –, que poderiam (que podem) actuar sobre a realidade predial emergente da referida escritura, designadamente operando a divisão que os AA. aqui pressupuseram.
            Trata-se, pois, é o que concluímos, de um problema de legitimidade necessária para a causa globalmente considerada, associado ao entendimento de existirem pedidos envolvidos implicitamente na narração, além dos expressamente formulados na conclusão, sendo que o desvalor resultante da ausência no processo de alguém necessariamente legitimado para esses pedidos implícitos origina a absolvição da instância, não a absolvição do pedido.
É neste sentido que discordamos da decisão recorrida, e é com tal sentido que a alteraremos nesta apelação.
            2.3. Sumário elaborado pelo relator:
I – No percurso expositivo de uma petição inicial (contendo a identificação das partes e da acção a narração e a conclusão) podem existir pedidos expressamente formulados como tal na conclusão do articulado e pedidos deslocalizados dessa conclusão final, formulados ao longo do articulado na exposição dos factos e das razões de direito, mas com suficiente individualização em termos de propiciarem a sua detecção e compreensão com essa natureza: a de pedidos;
II – É o que sucede com a invocação expressa, embora ao longo da narração e não na conclusão do articulado, da aquisição pelos autores de um prédio por usucapião, quando da propriedade desse prédio se deduz (este no pedido expresso na conclusão) um direito de preferência dos referidos autores na alienação de um outro prédio (confinante e que onera o prédio dos autores com uma servidão de passagem);
III – Vale como situação deste tipo a indicação, no articulado, dos elementos que se entende integrarem a usucapião, seguida da referência expressa de se invocar esse título aquisitivo da propriedade, mesmo que no elenco final dos pedidos este reconhecimento da propriedade não seja expressamente formulado como pedido, mas tão-só o pedido de declaração do direito de preferência, condicionado pelo reconhecimento daquele direito de propriedade;
IV – A compreensão pelo réu, evidenciada na contestação, de que a afirmação dessa aquisição por usucapião envolve outras pessoas não demandadas pelos autores, significa ter o réu percebido a natureza de pedido implícito dessa aquisição por usucapião, alicerçando tal incidência, com base na regra interpretativa de um articulado processual que subjaz, com vocação de generalidade, ao artigo 193º, nº 3 do CPC (artigo 186º, nº 3 do Novo CPC) a consideração dessa referência à usucapião, não obstante deslocalizada da conclusão do articulado, como traduzindo um pedido efectivamente formulado pelos autores;
V – Assim, envolvendo esse pedido implícito e deslocalizado de reconhecimento da aquisição por usucapião o afastamento da dominialidade desse prédio de outras pessoas não demandadas (os formalmente comproprietários com os autores de um prédio mais vasto integrando o que se afirma ter sido adquirido por usucapião), ocorre uma situação de litisconsórcio necessário natural entre os autores e aqueles comproprietários, em termos de estes deverem ser igualmente demandados para que a decisão relativa a esse direito de propriedade (o pedido implícito condicionante do pedido explícito referido ao direito de preferência) produza o seu efeito útil normal, nos termos do artigo 28º, nº 2 do CPC (artigo 33º, nº 2 do Novo CPC);
VI – A preterição deste litisconsórcio necessário gera uma situação de ilegitimidade processual, determinando a prolação no saneador de uma decisão de absolvição da instância;  
     
III – Decisão
            3. Face ao exposto, procedendo o recurso[21], revoga-se a decisão recorrida de absolvição dos RR. do pedido, substituindo-a pela absolvição dos RR. da instância por verificação da excepção de ilegitimidade decorrente da preterição, nos termos acima indicados, de litisconsórcio necessário.
            Custas pelos RR./Apelados.
Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 03/12/2013 

(J. A. Teles Pereira - Relator)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)

[1] Data da propositura da acção, marcando ela a aplicação à presente instância de recurso do regime processual originariamente decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Não se aplica aqui, desta feita por estar em causa decisão recorrida (a de fls. 83/90) anterior a 1 de Setembro de 2013, as normas do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho (v. os respectivos artigos 7º, nº 1 e 8º, cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, 2013. p. 15). Assumimos ser discutível se a regra do artigo 7º, nº 1 da Lei nº 41/2013, a única disposição do Diploma introdutório do Novo Código de Processo Civil que se refere expressamente à instância de recurso, abrange os recursos referidos a decisões anteriores a 01/09/2013 aos quais já se aplicasse o regime do DL nº 303/2007 – processos instaurados depois de 01/01/2008 –, sendo que quanto a estes, em rigor, não há qualquer regime transitório expressamente definido, pelo que há que entender que, em tais casos, se continuará a aplicar o regime antigo, o que aqui é sinónimo do regime “originário” do DL nº 303/2007, até porque, se o legislador se preocupou em definir um regime para as acções instauradas antes de 01/01/2008, não tem sentido concluir que um regime idêntico também vale para as acções propostas depois dessa data, além de que a “tradição” dos nossos Diplomas introdutórias de reformas profundas do Processo Civil – concedendo nós que essa tradição vale o que vale… – é tratar a instância de recurso como um caso individualizado dentro do direito processual transitório, sendo que isso afastaria a aplicação aqui, aos recursos, da regra da aplicação imediata tendencial do artigo 5º do Diploma introdutório.
[2] Em incidência que o suporte escrito do processo não regista – vale-nos o histórico do citius – os AA., seguindo aliás sugestão da Senhora Juíza (referência citius 660983), desistiram deste último pedido, o da alínea c), reduzindo tudo ao que – expressamente – peticionaram nas alíneas a) e b) (requerimento apresentado em 14/02/2013).
[3] Em qualquer caso, v. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[4] Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000210.html.
[5] Da fundamentação deste aresto transcrevemos as seguintes passagens:
“[…]
[E]ntender que a falta de legitimidade do Autor gera improcedência do pedido […] traz implícita, ou pelo menos convoca, uma das problemáticas mais debatidas pela doutrina processualista – a da qualificação da legitimidade como mero pressuposto processual ou como requisito de sentença favorável ao Autor. Entre nós não se apagaram os ecos da controvérsia doutrinal entre Barbosa de Magalhães, que defendia esta última posição, e Alberto dos Reis, defensor da tese contrária. No próprio plano do direito constituído, a controvérsia encontra-se longe de estar encerrada, tanto assim que se projectou em recentes alterações introduzidas no Código de Processo Civil. O texto do artigo 26º em vigor, por razões que se indicam no preâmbulo do Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, não acolheu os termos do nº 4 desse artigo que tinha sido introduzido pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro. Neste, quanto à configuração da legitimidade singular, ter-se-á pretendido acolher uma solução próxima da proposta por Barbosa de Magalhães (cfr. o respectivo preâmbulo). Para os efeitos do presente acórdão, bastará porém recordar que a generalidade dos partidários da legitimidade para a causa (legitimatio ad causam), ou seja como matéria de fundo, sempre entenderam que a titularidade do direito aparecia por vezes "disjunta do fundo da causa, como por ex., nos casos de transmissão do direito, ou de relações jurídicas com litisconsórcio activo ou passivo necessário, ou nos casos de substituição processual", e que a decisão que poria termo à causa por ilegitimidade teria ‘efeitos mais restritos que a decisão que incide sobre o restante fundo da causa’ (cfr. Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, Coimbra, 1982, pág. 177-178). Manuel de Andrade, reconhecendo que a lei processual qualifica a legitimidade como pressuposto processual, inclina-se claramente para a sua qualificação no plano do rigor dogmático, como ‘condição da acção’, ou seja, como requisito indispensável para ser julgada procedente a acção (cfr. do A. cit., Noções elementares de processo civil, I, Coimbra, 1963, pag.s 85 e 73), e refere expressamente que, pelo menos para efeitos de caso julgado, a qualificação legal não poderá fazer obstáculo a que a legitimidade seja tratada até certo ponto como condição de acção; nessa ordem de ideias, "em muitos casos também, de certo modo, estará nestas condições [isto é, em condições de fazer caso julgado material] a decisão que julga parte ilegítima o Autor ou o Réu". Paralelamente, ‘quanto à decisão julgando legítimas as partes, só notaremos agora que ela pode não impedir o tribunal de julgar a acção improcedente pelo mesmo motivo por que rejeitou a ilegitimidade’ (ob. cit., pag. 282, nota 3). Para este Autor, como se vê, o tratamento da legitimidade como requisito processual não afasta a possibilidade de, inclusivamente no mesmo processo, a mesma valer como condição da acção, no pressuposto, porém, de que a força de caso julgado material só operará entre as partes, como se verá mais adiante. A decisão agora em juízo, em que o STJ entendeu estar perante uma situação de litisconsórcio activo necessário em virtude da natureza da relação jurídica, claramente concebeu a legitimidade do Autor como condição de fundo ou requisito de sentença favorável ao Autor.
[…]” (sublinhado acrescentado).
[6] Referimo-nos ao entendimento de Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, p. 249.
[7] Processo nº 6/07.9TBPNH.C1, disponível no sítio do ITIJ na seguinte localização:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/f2fa2825cd83088580257beb004dabc1.
[8] Na jurisprudência desta Relação, v. o Acórdão de 20/03/2007 (Hélder Almeida), no processo nº 951/05.6TJCBR.C1, disponível no sítio do ITIJ na seguinte localização:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/78224a6c37e4d116802572ac004d3a3.
“[…]
Sendo a petição inicial um todo, o juiz não pode deixar de conhecer de um pedido que, não constando embora expressamente das conclusões da p.i., está, no entanto, claramente formulado no articulado, onde se revela com nitidez a intenção de obter os efeitos jurídicos correspondentes.
[…].
[9] A citação é do Acórdão desta Relação indicado na nota 8. V. o Acórdão do STJ de 21/04/2005 (Salvador da Costa), no processo nº 05B942, disponível na base do ITIJ na seguinte localização:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/acce0304c67bcbe08025703d005c27cb.
“[…]
1. À interpretação da petição inicial, porque ela se traduz em declarações escritas dirigidas ao tribunal, é aplicável o disposto nos artigos 236, nº 1 e 238, nº 1, do Código Civil.
[…].
[10]Quanto aos efeitos, os actos das partes podem ser constitutivos ou postulativos. Os actos constitutivos são aqueles que produzem imediatamente os seus efeitos, isto é, que constituem uma determinada situação processual sem necessidade de uma decisão do tribunal: é o caso, por exemplo, da desistência da instância, da confissão de um facto ou da junção de um documento. Os actos postulativos são aqueles nos quais é solicitada uma decisão do tribunal e cujos efeitos só se produzem mediante essa decisão: é o que sucede com todos os actos nos quais é formulado um pedido” (Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 2000, p. 94).
[11] Dizemos “tendencialmente” porque um articulado é susceptível de integrar características constitutivas e postulativas. Isto mesmo é sublinhado por Paula Costa e Silva:
“[…]
Se bem se vir, a qualificação de um acto como postulativo ou constitutivo em sentido estrito depende de uma análise do conteúdo do acto, que se encontra na estrita dependência da função que se destina a preencher.
Pensemos na contestação.
Se o réu, aproveitando o momento e o acto formal de contestação, se limitar a confessar o pedido, não estaremos perante uma contestação recondutível à categoria dos actos postulativos. Quando o réu confessa o pedido, não visa influenciar psicologicamente o juiz de modo a que este profira uma decisão com determinado conteúdo. O conteúdo da decisão foi determinado pelo conteúdo da contestação/confissão, porque o réu subtraiu a pretensão formulada pelo autor ao exercício do poder jurisdicional. Neste caso a contestação assume-se como acto constitutivo em sentido estrito.
Ao invés, se o réu aproveitar a contestação para deduzir uma excepção peremptória ou um pedido reconvencional, deles fazendo decorrer um qualquer pedido, então esta contestação em concreto será integrável na categoria dos actos constitutivos postulativos.
Em síntese pode dizer-se que o acto postulativo tem um mais relativamente ao acto constitutivo. Para além de, uma vez praticado, criar uma nova situação processual, o acto postulativo demanda o poder decisório do tribunal. Esta demanda do poder judicial não ocorre no acto simplesmente constitutivo.
[…]
O único factor de distinção reside na função que o acto desempenha, Enquanto os actos postulativos se destinam a obter uma decisão com um dado conteúdo através do exercício de influência psicológica sobre o juiz, os actos constitutivos em sentido estrito não têm essa função.
[…]” (Acto e Processo. O Dogma da Irrelevância da Vontade na Interpretação e nos Vícios do Acto Postulativo, Coimbra, 2003, p. 210)
[12] Estabelece este (ao qual equivale o artigo 186º, nº 3 do Novo CPC):
Artigo 193º
Ineptidão da petição inicial
2 – Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
3 – Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, não se julgará procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.

[13] Acto e Processo…, cit., pp. 388/389.
No Acórdão desta Relação de 22/03/2011, proferido pelo ora relator no processo nº 243/06.3TBFND-B.C1, equacionámos a questão específica do modelo interpretativo de uma decisão judicial:
“[…]
I – Na interpretação de uma decisão judicial que formou caso julgado material convergem aspectos respeitantes à interpretação das leis (artigo 9º do CC) e à interpretação dos negócios jurídicos (artigos 236º e 238º do CC).
II – Não correspondendo a decisão judicial a um verdadeiro negócio jurídico (a referência a este neste quadro decorre da remissão do artigo 295º do CC), não se traduz ela (a decisão judicial) numa declaração pessoal de vontade do julgador, que possa ser entendida na base da determinação de um propósito subjectivo, assente numa determinada expressão verbal descontextualizada da fundamentação.
III – A decisão vale, pois, objectivamente, enquanto ponto de chegada de um percurso guiado pela causa de pedir e pela fundamentação jurídica que, com base naquela, justificou essa decisão.
[…]”
(http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/bc78204f8a3f86ea80257869004ce5a).
[14] Acto e Processo…, cit., p. 390.

[15] Todas estas peças processuais foram transcritas nos seus trechos fundamentais no item 1. deste Acórdão e permitem compreender as considerações aqui tecidas a esse respeito.
[16] V. o critério indicado em J. Castro Mendes, M. Teixeira de Sousa, Direito Processual Civil (obra em preparação), §20º, IV, 6, 6.2.: “[a] maneira mais impressiva de mostrar a necessidade do litisconsórcio natural é recorrer a um aspecto temporal: o litisconsórcio é necessário se tiver de haver uma decisão simultânea para todos os interessados”.
[17] V. J. P. Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª ed., Coimbra, 2011, pp. 405/406.
[18] V. a caracterização das duas posições por Miguel Teixeira de Sousa, A Legitimidade Singular em Processo Declarativo, Lisboa, 1979, pp. 52/53.
[19] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª ed., Coimbra, 2004, p. 56.
[20] Castro Mendes, M. Teixeira de Sousa, Direito Processual Civil, cit. na nota 17, §20º, III.
[21] Procede, obviamente, numa sua vertente argumentativa que propicia a alteração da decisão recorrida.