Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B942
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ACTO PROCESSUAL
PETIÇÃO INICIAL
INTERPRETAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO
Nº do Documento: SJ200504210009427
Data do Acordão: 04/21/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3738/04
Data: 10/19/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1. À interpretação da petição inicial, porque ela se traduz em declarações escritas dirigidas ao tribunal, é aplicável o disposto nos artigos 236, nº 1 e 238, nº 1, do Código Civil.
2. Não pode ser interpretada como pedido de execução específica do contrato promessa aquele em que o autor, promitente-comprador, expressa a pretensão de condenação dos réus, promitentes-vendedores, na celebração da escritura e a procederem à sua marcação ou a facultar-lhe os documentos para esse efeito, sem qualquer referência à execução especifica do contrato nem a qualquer norma que a esse instituto se refira.
3. A expressão condenar está utilizada no artigo 661º, nº 1, do Código de Processo Civil em termos de abranger pedidos de mera declaração, de anulação ou outros formulados em acções declarativas constitutivas.
4. Tendo a Relação declarado transmitido para o promitente comprador o direito de propriedade sobre o prédio em causa, não obstante o diverso pedido por aquele formulado, impõe-se a anulação do decidido.
5. A circunstância de os réus não haverem impugnado o entendimento do tribunal da 1ª instância no sentido de que o autor havia formulado pedido de execução específica, não era obstáculo à arguição da nulidade do acórdão da Relação por infracção de limites em virtude de a sentença proferida no tribunal da 1ª instância ter sido absolutória sob o fundamento de não ser aplicável ao contrato-promessa em causa o novo regime da execução específica.
6. Anulado o acórdão da Relação, como os promitentes-vendedores incorreram em mora na celebração do contrato prometido, impõe-se a sua condenação no seu cumprimento, tal como pedido pelo promitente comprador, nos termos do artigo 817º do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I

"A" intentou, no dia 7 de Maio de 1997, contra B e C, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a celebrar o contrato definitivo de compra e venda de indicado imóvel, a procederem à marcação da escritura do contrato ou, em alternativa, a facultar-lhe os documentos necessários para esse fim de modo a poder ele próprio fazer a marcação, a pagarem-lhe não menos de 500.000$00 a título de danos não patrimoniais, sob o fundamento de haver celebrado com o réu um contrato-promessa de compra e venda, haver pago a totalidade do preço e o réu se recusar a celebrar a escritura e a fornecer os elementos necessários para o efeito.

Os réus afirmaram, em contestação, terem denunciado o contrato-promessa e avisado o autor de que tinha à sua disposição o dobro do sinal recebido no montante de 425.000$00, nada mais tendo recebido, ter a quantia de 200.000$00 sido entregue a quem não estava mandatado para a receber, não a haverem recebido, terem sido entregues fora do prazo convencionado, haver mora do autor, ter este invadido uma servidão de passagem e não haver fundamento para a pretendida indemnização.

Na réplica, o autor afirmou que sempre diligenciou para que a escritura fosse outorgada, que os réus é que estão na situação de mora, que a denúncia do contrato-promessa só ocorreu depois de os terem notificado judicialmente para comparecerem no cartório notarial para celebrar o contrato e não estar afastada a execução específica.

O autor apresentou articulado superveniente no dia 16 de Junho de 2001, afirmando ter consignado em depósito a quantia de 50.000$00, o que foi julgado válido, e declarada extinta a sua obrigação no confronto com os réus por sentença proferida no dia 20 de Maio de 1999, confirmada por acórdão da Relação, proferido no dia de 11 de Maio de 2000, e os réus responderam ser isso irrelevante por ter ocorrido depois da denúncia do contrato-promessa.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, no dia 31 de Outubro de 2003, que absolveu os réus do pedido, com fundamento na circunstância de esta excluída, na espécie, a execução específica e por a indemnização devida pelo promitente-vendedor ao promitente comprador apenas corresponder à devolução do sinal em dobro.
Apelou o autor, e a Relação, por acórdão proferido no dia 19 de Outubro de 2004, deu provimento ao recurso, declarando transmitida para ele o direito de propriedade sobre o prédio objecto do contrato-promessa.

Interpuseram os apelados recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:

- o acórdão recorrido é nulo por ter condenado em objecto diverso do pedido em violação dos artigos 661º, nº 1 e 668º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil;
- tendo em conta o disposto no Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, e o artigo 12º do Código Civil, é aplicável ao contrato-promessa em causa a lei vigente ao tempo da sua celebração, que não admite a sua execução específica, por haver sinal passado;
- não estava vedado aos recorrentes denunciar o contrato-promessa e recusar a celebração da escritura, por não terem recebido 200.000$00 de reforço do sinal, embora tenha sido recebido pelo seu representante;
- as obras realizadas no imóvel e a obtenção das respectivas licenças e a aprovação do projecto deferido pela câmara ocorreram sem autorização ou consentimento dos recorrentes;
- a recorrente, filha dos promitentes vendedores, foi alheia ao negócio em causa, recusou celebrar a escritura por crer na versão expendida pelo recorrente, surdo-mudo;
- não agiram com abuso do direito, pelo que a denúncia do contrato não é subsumível ao artigo 334º do Código Civil;
- o acórdão recorrido violou os artigos 661º, nº 1, do Código Civil e 12º, 442º e 830º do Código Civil.

Respondeu o recorrido, em síntese de conclusão:
- o acórdão recorrido não é nulo, porque dos articulados resulta que a pretensão do recorrido foi a execução específica, os recorrentes entenderam e pugnaram pela não aplicação do normativo que a prevê e aceitaram a sentença proferida no tribunal da 1ª instância nesse sentido e só neste recurso suscitam a questão da não aplicabilidade do artigo 830º do Código Civil;
- não houve violação dos artigos 12º, 442º e 830º do Código Civil, porque, atenta a data do incumprimento do contrato-promessa pelos recorrentes, aplica-se o último dos referidos normativos, na redacção posta pelo Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho.

Por acórdão proferido no dia 1 de Fevereiro de 2005, a Relação entendeu não ocorrer a nulidade do acórdão recorrido, sob o fundamento de o pedido formulado pelo recorrido não dever ser interpretado literal ou restritivamente, mas como expressão de formulação mais ampla no quadro da petição inicial como um todo, em termos de significação de um pedido de execução específica.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. O autor tomou conhecimento da existência do imóvel para vender, referido sob 2, através de uma placa que se encontrava no local, na qual se dizia: "Vende-se. Contactar D", com o número de telefone correspondente à agência imobiliária daquele senhor.
2. No dia 30 de Julho de 1979, B e E, por um lado, e o autor, por outro, declararam por escrito:
- os primeiros prometerem vender ao segundo, livre de ónus e encargos, por 675.000$00, o prédio urbano composto de casa térrea com quintal, sita na Rua de Óscar da Silva, ..., Padrão ou Areia de Same, freguesia de Leça da Palmeira, inscrita na matriz sob o artigo 1867;
- os primeiros terem recebido do segundo, como sinal e princípio de pagamento, 100.000$00, e os restantes 575.000$00 serem pagos, 300.000$00 até ao dia 15 de Julho de 1979, e 275.000$00 até 15 de Novembro de 1979;
- a casa prometida vender é entregue ao promitente comprador devoluta e no estado em que se encontra, e a cargo daquele fica o pagamento da sisa que for devida bem como a escritura;
- a escritura definitiva de compra e venda será outorgada até 15 de Novembro de 1979.
3. No dia 30 de Julho de 1979, B e E declararam, por escrito, terem recebido de A 325.000$00 como reforço do sinal e princípio de pagamento do preço da venda do prédio urbano sito na Rua Óscar da Silva, nº ..., lugar do Padrão ou Areia de Same, freguesia de Leça da Palmeira, Matosinhos, inscrito na matriz sob o artigo 1867, conforme contrato-promessa do 8 de Junho último, ficando assim elevado a 425.000$00 o sinal e princípio de pagamento, e em dívida apenas 250.000$00, continuando em vigor as restantes condições do referido contrato.
4. O autor nunca contactava directamente com os réus, mas sim através de D, a quem a aqueles tinham entregue a responsabilidade da venda do imóvel.
5. O autor sempre entregou todas as quantias relativas ao pagamento parcial do valor da venda a Francisco Freire, que lhe passava recibos de quitação das quantias referidas, bem como a indicação por extenso das prestações a que se referiam tais quantias.
6. O autor fez nova entrega de dinheiro a D, no montante de 200.000$00, no dia 20 de Novembro de 1979, e do qual recebeu recibo de quitação, não tendo, contudo, recebido novo aditamento ao declarado sob 1.
7. D, durante todos os trâmites das negociações do declarado sob 1, actuou como representante dos réus, sendo por seu intermédio que o instrumento respectivo, bem como o seu aditamento, chegaram ao poder do autor.
8. O autor, desde o declarado sob 1, pôde desde logo proceder às alterações que quis no imóvel, nomeadamente obter as licenças necessárias nas entidades competentes para aprovação do projecto de obras que pretendia realizar, como efectivamente realizou.
9. O autor sempre insistiu com D para que ele tratasse de obter junto do réu a documentação necessária para a marcação e a celebração da escritura, tendo inclusive pago 32.000$00 para despesas com a documentação necessária para o efeito.
10. O autor sempre foi dizendo a D que só entregaria os restantes 50.000$00 para liquidar o imóvel quando a escritura estivesse marcada, usando isto como forma de pressionar B e E ou D de modo a marcarem a escritura de forma mais rápida.
11. O cônjuge do réu B faleceu no dia 26 de Abril de 1986, e D faleceu no dia 13 de Novembro de 1989.
12. O autor insistiu com a ré, por diversas vezes, no sentido de ela proceder à marcação da escritura, e, apesar de várias vezes solicitados, nunca os réus facultaram aos autores os documentos necessários à marcação da escritura de compra e venda.
13. O autor implementou a notificação judicial avulsa dos réus no dia 2 de Abril de 1993, para procederem à obtenção da documentação necessária para outorga da escritura no prazo de 15 dias a contar da data da presente notificação, e para, em seguida, no dia 3 de Maio de 1993, pelas 15 horas, comparecerem no 2º Cartório Notarial de Matosinhos para a celebração da escritura de compra e venda da casa prometida vender, devendo entretanto entregar com a devida antecedência a documentação exigida e necessária para o acto, que se não derem cumprimento ao que lhes é comunicado sejam advertidos de que contra eles irá ser proposta ma acção judicial para marcação de prazo e um pedido de indemnização cível pelos prejuízos entretanto causados ao requerente, o que ocorreu, quanto a eles, no dia 14 de Abril de 1993.
14. Por carta registada enviada ao advogado do autor, António Brochado, no dia 29 de Abril de 1993, os réus declararam-lhe denunciar o contrato-promessa mencionado sob 1 e que ele tinha à sua disposição o dobro do sinal por eles recebido, à qual o autor não respondeu.
15. O autor depositou o remanescente do valor global da venda do imóvel - 50.000$00 - no dia 3 de Junho de 1993, recorrendo para o efeito ao processo de consignação judicial em depósito daquela quantia, em cujo processo foi proferida sentença, transitada em julgado, na qual foi julgado válido o depósito efectuado pelo autor B no montante de 50.000$00 e extinta a obrigação de pagamento da quantia que foi acordada no instrumento mencionado sob 1 para efeitos da celebração da escritura de compra e venda.

III
As questões essenciais decidendas são as de saber se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por infracção de limites e se o recorrido tem ou não direito a impor ou não aos recorrentes a pretendida execução específica.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes e do recorrido, sem prejuízo de a solução dada a uma prejudicar a solução a dar a outra ou outras, a resposta às respectivas questões pressupõe a análise da seguinte problemática:
- pressupostos legais da nulidade de acórdãos, sentenças ou despachos por infracção de limites;
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por infracção de limites decisórios?
- caracterização do contrato mencionado sob II 2 e dos seus efeitos jurídicos;
- síntese do núcleo de facto essencialmente relevante na decisão do recurso;
- a mora e o incumprimento definitivo no quadro obrigacional;
- situação dos recorrentes e do recorrido relativamente ao cumprimento do mencionado contrato;

- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos assentes e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela análise dos pressupostos legais da nulidade de acórdãos, sentenças ou despachos por infracção de limites.
O pedido é, grosso modo, o efeito que o autor ou sujeito processual equiparado pretende obter com a acção ou a reconvenção ou a enunciação da tutela jurisdicional que visam obter por via judicial (artigo 498º, nº 3, do Código de Processo Civil).
É um corolário do princípio do dispositivo, por via do qual se pretende significar que as partes dispõem em regra do processo e da relação jurídica controvertida.
Expressa a lei, por referência directa à sentença, aplicável aos acórdãos proferidos nos tribunais superiores, ser a mesma nula quando condene em quantidade ou objecto diverso do pedido (artigos 668º, nº 1, alínea e), e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O referido normativo está conexionado com o que se prescreve no artigo 661º, nº 1, do Código de Processo Civil, segundo o qual o tribunal não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Assim, a nulidade a que se reporta a alínea e) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil constitui a sanção para o vício de limites a que alude o nº 1 do artigo 661º do mesmo diploma.
O referido normativo é harmónico o que se prescreve no artigo 3º, nº 1, do Código de Processo Civil, inspirado pelo princípio dispositivo, segundo o qual o tribunal não pode resolver o conflito de interesses sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes, em conexão com o disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 467º do mesmo diploma.
A expressão condenar está utilizada no artigo 661, n. 1, do Código de Processo Civil em sentido pouco rigoroso, certo que não pode deixar de abranger, dado o seu escopo finalístico, pedidos que não sejam de condenação, designadamente de mera declaração, de anulação ou outros formulados em acções constitutivas.
Objecto diverso do pedido formulado é o que dele diverge na sua estrutura ou qualidade.
Verificando-se a nulidade do acórdão da Relação invocada pelos recorrentes, ou seja, a derivada de vício de limites de decisão, deverá este Tribunal supri-la e declarar em que sentido aquele acórdão se considera modificado (artigo 731º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

2.
Vejamos agora se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por infracção de limites decisórios.
Tendo em conta o que resulta da lei a propósito do pedido ele deve ser envolvido, além do mais, pela característica da expressividade (artigos 3º, nº 1, e 467º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil).
Só se pode determinar, como é natural, sobre se ocorre o mencionado vício de limites depois de se interpretarem os termos do pedido tal como são formulados na petição inicial ou instrumento processual equiparado.
Como se trata de declaração de parte, por escrito, embora dirigida ao tribunal, em regra no confronto da parte contrária, a sua interpretação deve operar, à luz do disposto nos artigos 236º, nº 1, e 238º, nº 1, do Código Civil, tendo também em conta a respectiva causa de pedir.
A execução específica do contrato-promessa em causa traduzir-se-ia na declaração judicial de transmissão do direito de propriedade sobre o prédio em causa da esfera jurídica dos recorrentes para a esfera jurídica do recorrido, em substituição da declaração de vontade dos primeiros (artigo 830º, nº 1, do Código Civil).
Ao longo da petição inicial, o recorrido refere-se às suas tentativas sem êxito junto dos recorrentes e de outrem para que a escritura relativa ao contrato prometido fosse celebrada sob a prévia apresentação dos respectivos documentos.
E terminou-a com a afirmação de não poder aceitar que os réus mantenham a atitude de não celebrarem a escritura, terem passado cerca de 18 anos sem essa celebração, haver-se consciencializado que voluntariamente eles não a iriam celebrar, continuar a querer que o contrato-promessa se cumpra e que ele é passível de se cumprir.
Na petição inicial e no articulado superveniente apresentados pelo recorrido, inexiste a mínima referência, em sede de causa de pedir, à execução específica do contrato em causa, nem a qualquer norma jurídica que se refira a esse instituto de direito substantivo.
E o pedido que o recorrido formulou é claro no sentido de condenação dos réus a celebrar o contrato definitivo de compra e venda do imóvel e a procederem à marcação da escritura ou a facultar-lhe todos os documentos necessários para esse fim de modo a que possa fazer a marcação.
Perante este quadro, um declaratário normal colocado na posição do juiz da causa, entenderia que o recorrido exigiu em juízo, no confronto dos recorrentes, o cumprimento do contrato em causa, nos termos da primeira parte do artigo 817º do Código Civil.

Não tem, por isso, fundamento legal a conclusão expressa no acórdão recorrido de que a petição inicial no seu conjunto revelava que o recorrido formulou contra os recorrentes um pedido de execução específica do contrato em causa.
Assim, como a Relação declarou, isto em termos de efeitos do decidido, a transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel da esfera jurídica dos recorrentes para o recorrido, sem que tal tenha sido por este pedido em juízo, a conclusão é no sentido de que o acórdão recorrido está afectado de nulidade por infracção de limites decisórios.
A circunstância de os recorrentes não haverem impugnado o entendimento do tribunal da primeira instância de que o recorrido havia formulado o pedido de execução específica não pode relevar em seu desfavor, porque a decisão por ele proferida foi absolutória, pelo que não tinha legitimidade para dela interpor recurso nem para a ampliação do interposto pelo recorrido (artigos 689, nº 1, e 684-A, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Impõe-se, por isso, que este Tribunal anule o mencionado acórdão e supra esse vício processual por via da decisão do mérito da causa.
Fica, por isso, prejudicado, por um lado, o conhecimento por este Tribunal da questão de saber se o normativo da primeira parte do nº 3 do artigo do artigo 830º do Código Civil, na redacção decorrente do artigo único do Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, é ou não aplicável ao caso vertente (artigo 660, n. 2, 1ª parte, 713º, nº 2, e 726º do Código de Processo Civil).
E, por outro, a questão de saber se o direito à execução específica não podia, no caso vertente, ser afastado pelas partes por via da constituição de sinal, por se tratar de contrato-promessa de contrato oneroso de transmissão de direitos reais sobre edifício já construído (artigos 410º, nº 3, e 830, nº 3, do Código Civil).

3.
Caracterizemos agora o contrato mencionado sob II 2, celebrado entre o recorrido e o recorrente e B, no que concerne à sua natureza e efeitos.
Como o referido contrato foi celebrado no dia 30 de Julho de 1979, é-lhe aplicável a primitiva redacção do artigo 410º, nºs 1 e 2, do Código Civil (artigo 12º, nº 1, do Código Civil).
Expressa o primeiro dos mencionados normativos que à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições relativas ao contrato prometido, salvo as concernentes à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
O referido normativo mantém a sua redacção primitiva, isto é, não foi alterado pelo Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho, nem pelo Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro.
O nº 2 do referido artigo, porém, prescrevia na sua primitiva redacção que a promessa relativa à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pelos promitentes.
E actualmente, por via do artigo único do Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, o referido normativo expressa que a promessa relativa à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral.
A referida alteração normativa não assume, todavia, qualquer relevo na caracterização do contrato em análise.
Tendo em conta os factos mencionados II 2 e 3, estamos perante um contrato-promessa de compra e venda de imóvel, com passagem de sinal e traditio para o promitente-comprador, o recorrido, do imóvel convencionado como objecto mediato do contrato prometido.
Por via dele, assumiram o recorrido e o recorrente e o seu cônjuge a obrigação de outorga no contrato de compra e venda do referido imóvel, o primeiro na posição de comprador e os últimos na posição de vendedores, ou seja, vincularam-se a recíproca prestação de facto positivo.

4.
Façamos agora a síntese do núcleo de facto essencialmente relevante na decisão do recurso.
O recorrente, B, e E declararam comprometer-se a vender ao recorrido e este comprar-lhes, por 675.000$00, o referido prédio, tendo logo o último entregue aos primeiros, através de D, como sinal e princípio de pagamento, 100.000$00.
Convencionaram então que os restantes 575.000$00 seriam pagos, 300.000$00 até 15 de Julho de 1979, e 275.000$00 até 15 de Novembro de 1979, data da celebração do contrato prometido.
No dia 30 de Julho de 1979, o recorrido entregou ao recorrente e a E, através de D, mas 325.000$00, a título de sinal e de princípio de pagamento, os primeiros deram-lhe quitação e expressaram que o primeiro só lhes ficava a dever 250.000$00 e que se mantinham as restantes cláusulas do contrato.
Assim, o recorrido ficou vinculado a entregar ao recorrente e a E, até 15 de Novembro de 1979, data aprazada para a celebração do contrato de compra e venda, a quantia de 250.000$00.
Apesar de o referido contrato de compra e venda não ter sido celebrado até ao 15 de Novembro de 1979, data convencionada para o efeito, o recorrido entregou ao recorrente e a E, através de D, a quantia de 200.000$00.
O recorrido sempre insistiu com D para que ele obtivesse junto do recorrente a documentação necessária para a marcação e a celebração da escritura, pagando-lhe para o efeito a quantia de 32.000$00, e disse-lhe, para o pressionar com vista a tal celebração, que só lhe entregaria os restantes 50.000$00 quando a escritura estivesse marcada.
O recorrente e E não se prontificaram a celebrar o contrato de compra e venda em causa, sendo que ela faleceu cerca de seis anos depois da data inicialmente convencionada para essa outorga, e D cerca de nove anos depois disso.
O recorrido insistiu com os recorrentes, por diversas vezes, no sentido de eles procederem à marcação da escritura ou de lhe entregarem os documentos para o efeito, mas assim não procederam.
No dia 14 de Abril de 1993 os recorrentes são judicialmente notificados pelo recorrido para obterem a documentação necessária para outorga da escritura no prazo de 15 dias e comparecerem em determinado cartório notarial no dia 3 de Maio seguinte para esse efeito.
No dia 3 de Julho de 1993, o recorrido consigna judicialmente em depósito a quantia de 50.000$00 e é declarada a extinção da sua obrigação de pagamento mencionada sob II 2 e 3.
Os recorrentes comunicam então ao recorrido a declaração de denúncia do contrato-promessa e que tinha à sua disposição o dobro do sinal passado.

5.
Atentemos agora na mora e o incumprimento definitivo no quadro obrigacional em geral.

Os contratos devem ser pontualmente cumpridos e o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (artigos 406º, n.º 1 e 762º, n.º 1, do Código Civil).
Distingue-se, nesta sede, entre o mero retardamento da prestação e a sua não realização definitiva. No primeiro caso, na altura do vencimento, o devedor não cumpre, mas a sua prestação ainda é possível e com interesse para o credor; no segundo caso, tal já não é possível.
O devedor considera-se constituído na situação de mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação ainda possível não foi efectuada no tempo devido (artigo 804º, n.º 2, do Código Civil).
O momento da constituição em mora ocorre, em regra, depois de o devedor haver sido notificado judicial ou extrajudicialmente para cumprir, salvo, além do mais que aqui não releva, se a prestação tiver prazo certo (artigo 805º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Civil).
A prestação que o devedor não realizou no momento devido mas materialmente possível pode, em razão das circunstâncias envolventes, deixar de assumir interesse para o credor, o que equivale a incumprimento definitivo.
É isso que resulta da lei, ao expressar que se em consequência da mora o credor perder o interesse que tinha na prestação, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação (artigo 808º, n.º 1, do Código Civil).
A referida perda do interesse na prestação por parte do credor não é aferida por aquilo que a esse propósito ele considera, certo que deve ser apreciada em termos objectivos (artigo 808º, n.º 2, do Código Civil).
No juízo sobre se a perda do interesse do credor corresponde ou não à realidade das coisas relevam não só as declarações negociais das partes, como também o seu comportamento posterior e as demais circunstâncias envolventes.

6.
Vejamos agora a situação dos recorrentes e do recorrido relativamente ao cumprimento do mencionado contrato.
O recorrido devia entregar ao recorrente e a E 250.000$00 até à celebração do contrato de compra e venda, mas entregou-lhes, através de D, 200.000$00, isto é, cinco dias depois do termo do prazo convencionado para o efeito.
Decorre deste circunstancialismo que o recorrido, o recorrente e E acordaram tacitamente na prorrogação do prazo de celebração do contrato de compra e venda, altura em que o primeiro devia entregar aos últimos a quantia restante de 50.000$00.
Ficaram, por isso, sem prazo as obrigações das partes de celebração do contrato de compra e venda prometido e a do recorrente de pagar a referida quantia de 50.000$00, correspondente ao resto do preço.
O recorrido quebrou a referida situação de impasse quanto à execução do contrato-promessa em causa por via da notificação judicial avulsa dos recorrentes no dia 14 de Abril de 1993 para comparecerem em determinados cartório notarial, dia e hora, depois de previamente obterem os documentos necessários (artigo 805º, nº 1, do Código Civil).
Entretanto, o recorrido consigna em depósito a favor dos recorrentes a restante quantia de 50.000$00 o obtém no confronto dos últimos a declaração judicial de extinção da sua obrigação de pagamento.
E os recorrentes, em vez de obterem os documentos necessários à outorga do contrato de compra e venda e de comparecerem no aludido cartório notarial para o efeito optaram por denunciar o aludido contrato-promessa.
O recorrido não estava em situação de mora, certo que só estavam vinculados a entregar aos recorrentes a quantia de 50.000$00 na data da celebração do contrato de compra e venda e a não celebração deste não lhe era imputável.
Não tinham, por isso, fundamento contratual ou legal para operarem a denúncia do referido contrato-promessa, pelo que a sua declaração nesse sentido dirigida ao recorrido é absolutamente ineficaz.
E constituíram-se na situação de mora no cumprimento do contrato-promessa, justificando a pretensão contra ele deduzida pelo recorrido de condenação no seu cumprimento, ou seja, na celebração do contrato de compra e venda.

7.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos assentes e da lei.
Como o recorrido formulou no confronto dos recorrentes o pedido de condenação na celebração do contrato prometido de compra e venda do imóvel e a Relação, na sequência da sentença absolutória proferida no tribunal da 1ª instância, declarou transmitido da esfera jurídica dos últimos para a do primeiro o direito de propriedade sobre aquele imóvel, o seu acórdão está afectado de nulidade por vício de limites de decisão.
Fica, por isso, prejudicado o conhecimento da questão de saber se ao contrato-promessa acima referido, celebrado no dia 30 de Julho de 1979, é aplicável, no que concerne à possibilidade de execução específica não obstante a existência de sinal passado, a primitiva redacção do artigo 830º do Código Civil ou o actual nº 3 deste artigo, segundo a redacção decorrente do artigo único do Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro.
O recorrido não incorreu na situação de mora ou de incumprimento definitivo em relação ao contrato-promessa em causa, e os recorrentes não tinham fundamento legal para operarem a sua denúncia, pelo que esta quedou irrelevante por ineficaz.
Ao invés, foram os recorrentes que se constituíram na situação de mora no que concerne à celebração do contrato prometido, pelo que deve proceder o pedido condenatório que o recorrido formulou no seu confronto nos termos do artigo 817º do Código Civil.
Fica, por isso, prejudicado o conhecimento no recurso da excepção imprópria do abuso do direito, a que se reporta o artigo 334º do Código Civil, invocada pelo recorrido.
Procede, por isso, parcialmente, o recurso.
Vencidos parcialmente, são os recorrentes e o recorrido responsáveis pelo pagamento das custas respectivas, na proporção do vencimento (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Tendo em conta a natureza do referido vencimento, à luz de um juízo de proporcionalidade, justifica-se que se defina a responsabilidade pela dívida de custas do recorrido e dos recorrentes na proporção de metade.

IV
Pelo exposto, dá-se parcial provimento ao recurso, anula-se o acórdão recorrido, condenam-se os recorrentes a celebrar com o recorrido o contrato de compra e venda do prédio mencionado sob II 2 e a procederem à marcação da respectiva escritura ou a facultarem ao recorrido os documentos necessários para o efeito, e condenam-se os recorrentes e o recorrido no pagamento das custas respectivas, na proporção de metade, incluindo as da acção e do recurso de apelação.

Lisboa, 21 de Abril de 2005.
Salvador da Costa,
Ferreira de Sousa,
Armindo Luís.