Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
325/21.1T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
RUÍNA DE MURO
DEVER DE CONSERVAÇÃO
FENÓMENOS CLIMÁTICOS
FACTO ILÍCITO
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 492.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A responsabilidade civil por danos causados pela ruína de edifício ou outra obra (designadamente, um muro) em resultado da omissão do dever de conservação desse edifício ou obra é regulada pelo art.º 492.º do CC (não pelo art.º 493.º).
II – O referido art.º 492.º apenas estabelece uma presunção de culpa (de quem está vinculado a esse dever) que não desonera o lesado do ónus de provar os restantes factos constitutivos do seu direito e, designadamente, o facto ilícito que está na origem dos danos, cabendo, portanto, ao lesado o ónus de provar a existência de vício de construção ou de conservação do edifício ou obra cuja ruína provocou os danos e, por consequência, a omissão do dever (do proprietário ou possuidor ou de outra pessoa que a ele esteja vinculada) de providenciar pela manutenção e conservação do edifício ou obra em adequadas condições de conservação, estabilidade e segurança.

III – Resultando provado que os danos sofridos pela autora foram causados pela queda/ruína de um muro e que essa ruína ocorreu por força do impulso e pressão exercida pela água da chuva que caiu com intensidade – por força de uma depressão (a depressão “Elsa”) que, naquela ocasião, afectava o estado do tempo em Portugal Continental – sem que se tivesse provado que o muro estava afectado de qualquer vício/defeito de conservação que tivesse contribuído para a sua ruína, não há fundamento legal para responsabilizar o proprietário do muro pelos danos que a sua ruína causou à autora.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA, residente na Av. ..., ..., ... ..., instaurou acção contra Herança de BB e contra os respectivos herdeiros CC, residente na Avenida ..., ... e DD, residente na Rua ..., ..., pedindo que estes sejam condenados a pagar-lhe:

· A quantia de 20.566,3€ a título de danos patrimoniais (tendo já em conta a redução do pedido que veio a ser efectuada na audiência de julgamento);

· A quantia de 7.500,00€ a título de danos não patrimoniais;

· A custear as despesas de reparação da viatura, orçamentada em 11.695,44€, (sem prejuízo de atualização de valores à data da reparação), seja entregando diretamente o montante à Autora, seja através de pagamento directo à oficina que apresentou o orçamento.

· Juros de mora vencidos e vincendos sobre essas quantias até pagamento.

Fundamenta a sua pretensão nos danos causados a um veículo de que é proprietária por força do desabamento – ocorrido no dia 20/12/2019 – de um muro contíguo à via onde o veículo estava estacionado e que pertence à herança Ré. Alega que o muro não oferecia a consistência necessária para garantir a segurança de todos aqueles que circulavam na via pública, fosse a pé ou através de qualquer meio de transporte e que os danos sofridos resultaram da actuação dos réus, que não diligenciaram – como era seu dever, nos termos do art.º 89.º do RJUE – pela conservação dos bens da herança, e que não existia, no local, qualquer sinalética que impedisse o estacionamento naquele local.

Mais alega ter sofrido os seguintes danos:

- Os danos causados no veículo cuja reparação foi orçamentada em 11.695,44€;

- O valor de 14.678,30€ que despendeu em serviço de táxi, no sentido de assegurar as deslocações para o trabalho, por não ter outro meio de transporte;

- O valor de 3.094,00€ correspondente ao valor que pagou desde a ocorrência com referência ao crédito que havia contraído para aquisição do veículo;

- O valor de 2.500,00€ correspondente ao valor que pagou pela aquisição de uma outra viatura que foi obrigada a adquirir para assegurar as suas deslocações;

- O valor correspondente ao IUC de 2019 e 2020, no valor de 146,79€ e 147,21€;

- Danos não patrimoniais para compensação dos quais reclama o valor de 7.500,00€.


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Os Réus contestaram, alegando, em resumo, que o muro estava em perfeitas condições e que o seu desabamento ocorreu por motivos de força maior e por força da depressão “Elsa” que ocorreu naquela ocasião e por força do excesso de pluviosidade e da pressão exercida pela água da chuva que se acumulou no local. Alegam: que em circunstâncias normais o muro não teria desabado; que nada poderiam fazer para evitar o desabamento do muro que nunca apresentou problemas de suporte; que não actuaram com culpa e que não têm responsabilidade por risco em virtude de o muro não acarretar qualquer actividade perigosa nem respondem pelos prejuízos resultantes de caso de força maior. Mais alegam que, caso se entenda que os Réus são responsáveis, sempre deverá ser tomada em conta a concorrência de culpa da Autora que, em face dos anúncios da tempestade, devia ter previsto que o muro poderia desabar.

Com esses fundamentos e impugnando ainda alguns dos danos alegados, concluem pela improcedência da acção.


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Foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.

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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu julgar a acção improcedente e absolver os Réus dos pedidos.

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Inconformada com essa decisão, a Autora veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou a ação improcedente e nessa senda os absolveu os réus do pedido;

2. O objeto da ação versa sobre os danos causados na viatura da autora que se encontrava estacionado, aquando da passagem de uma Depressão Meteorológica pela Covilhã, causados pela queda de pedras de grande porte e lama de um muro de suporte em alvenaria, construído de forma irregular, propriedade dos réus.

3. O derrube do muro atingiu duas viaturas, sendo que a viatura da autora ficou completamente destruída, ao ponto de ter um custo de reparação superior ao valor do próprio veículo, não obstante ser novo.

4. Vendo-se privada da utilização do veículo, a autora foi obrigada a contratar um serviço de táxi para se deslocar, continuou a pagar as prestações e outras despesas referentes ao contrato de compra e propriedade do veículo e teve que adquirir uma nova viatura.

5. A tempestade foi vastamente anunciada na comunicação social, sendo em função dessa difusão, conhecida pelos réus, que com efeito, não mencionaram nem muito menos provaram esse desconhecimento.

6. No caso em apreço nos autos aplica-se a presunção de culpa ínsita no art. 493.º, n.º1 do CPC, que refere que: 1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.», pelo que estamos perante uma situação de presunção legal de culpa e a inerente inversão do ónus da prova.

7. Em virtude da aplicação do art. 493.º do CC, competia à autora a prova dos danos e a sua proveniência e aos réus a prova de que empregaram todas as medidas exigidas pelas circunstâncias, de molde a prevenir, eliminar ou reduzir os danos causados.

8. A autora provou os danos, provou que os danos foram causados pelo derrube do muro de que são proprietários os réus e provou o quantum dos prejuízos cujo ressarcimento reclama.

9. Os réus reconheceram a propriedade do muro e a origem dos danos causados na viatura da autora, não tendo logrado fazer prova de que tinham tomado medidas para evitar ou diminuir os prejuízos causados.

10.Os réus não provaram que o muro tinha manutenção, não provaram que se deslocaram ao local, antes ou durante a tempestade, nem provaram ter colocado ou solicitado às autoridades competentes, a colocação de sinalética com vista a alertar os utentes da via, do perigo de derrocada.

11.O Relatório pericial apenas nos permite concluir que a parte do muro de características irregulares, que não ruiu, não apresenta sinais de falta de manutenção, mas nada conclui acerca da parte que ruiu, muito menos com a certeza que se impõe face à presunção de culpa legal.

12.O Relatório pericial fica-se com um simples “parece”, mas não afirma que o muro apresentasse consistência suficiente para não ruir, tanto que acabou por suceder o desprendimento de pedras de grande porte e atingir a viatura da vítima.

13.Não tendo logrado afastar a culpa que sobre si recaía em função da presunção legal, os réus devem ressarcir a autora dos prejuízos causados pelo derrube do muro de que são proprietários, nos termos peticionados e em consonância com os factos julgados provados no que tange a esses mesmos danos.

14.Ou seja, o valor pago pelo serviço de táxi, as despesas com a reparação da viatura, o valor pago pela aquisição de uma nova viatura e impostos associados.

15. Com esta decisão, o tribunal a quo interpretou erradamente a aplicação do direito, incorrendo em error iuris, impondo-se a correção e invertendo-se o sentido da decisão que corresponde à correta aplicação do direito, maxime o artigo supramencionado.

16. Como se depreende da leitura do artigo supramencionado impõe aos proprietários de imóveis, o dever de vigilância sobre os seus bens, acrescido em situações em que se prevejam condições atmosféricas que aumentem o risco de dano.

17. O dever de vigilância deve ser provado nos autos, demonstrando-se que os proprietários agiram de forma diligente e tiveram comportamentos preventivos, antes e durante a tempestade.

18. A culpa só seria ilidida se tivesse sido feita prova nesse sentido, ou seja, se os réus tivessem provado que tinham tido comportamentos que permitissem reduzir ou eliminar o risco e os danos causados à autora.

19. A tese ora defendida é corroborada por jurisprudência e doutrina, de que salientamos o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, relatado no Processo 17602/21.4T8LSB.L1-8, em 26/01/2023, com sublinhado nosso, consultável em: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3146f33a7b63a71e8025895000400c66?OpenDocument.

20. Deste Acórdão resulta que «2. O art.º 493º, nº 1, do Código Civil estabelece uma presunção de culpa por parte de quem tem a seu cargo (para além do mais) a vigilância de coisas imóveis, e consequentemente, a inversão do ónus da prova quanto à culpa.

Perante condições atmosféricas adversas, mormente,tempestades, com queda de chuva intensa, recai sobre os proprietários de imóveis um dever de diligência acrescido, contínuo e vigilante, designadamente sobre o sistema de escoamento da água caída em varandas, e a adoção de atitudes proactivas antes ou durante a tempestade, de molde a impedir a obstrução do sistema de escoamento e, assim, evitar a produção de danos em imóvel alheio, comportamento que o cidadão comum, diligente e prudente, cioso não só dos seus pertences, como preocupado com os prejuízos que os mesmos, em situações de crise, poderiam causar a terceiros, adotaria se colocado naquela mesma posição (cf. art.º487º, nº 2, CPC).

4. A falta de prova sobre tal conduta diligente faz recair sobre o proprietário o dever de ressarcir os prejuízos causados, nos termos do dito art.º 493º, nº 1 CC.»

21. Devem ser aditadas ao ponto «2.1.2 – Matéria de facto não provada » os seguintes pontos, redigidos nos seguintes termos, ou idêntico teor, e que desde já se requer:

Os réus procederam à manutenção e tomaram as devidas diligências, no sentido de evitar que o muro descrito em 1) ruísse e causasse prejuízos a terceiros;

Os réus, perante o aviso da passagem da Depressão pela Covilhã, tiveram a preocupação de confirmar, por si ou por terceiros, deslocando-se ao local, antes ou durante a tempestade, que o muro descrito em 1) não poria em risco bens de terceiros;

Os réus colocaram ou pediram às autoridades competentes que colocassem no local, sinalética que advertisse os transeuntes e condutores do perigo de derrocada do muro.

22. deve ser aditado ao ponto «2.1.1 – Matéria de facto provada » as alíneas b) e c) da Matéria de facto não provada e ora transcritas, e que desde já se requer:

b) Em virtude dos factos descritos nos autos, a autora teve que tratar de burocracias, com incómodos, perdas de tempo e inconvenientes.

c) Em virtude dos factos descritos nos autos, a autora viu o seu estado de saúde agravado, com perda de sono e dificuldade em descansar face ao desgosto e angústia.»

23. Deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a ação procedente e condene os réus no pagamento da Indemnização peticionada pela autora.

24. Está em causa neste recurso, a incorreta aplicação do art. 493.º n.º1 do Código Civil.

Nestes termos, e nos melhores de direito que V.Exas doutamente se dignarão suprir, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e em consequência ser revogada a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que condene os réus nos precisos termos do pedido formulado pela autora.

Não houve resposta ao recurso.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

· Saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos propostos pela Apelante;

· Saber se estão (ou não) verificados os pressupostos de que depende a responsabilidade civil dos Réus pelos danos sofridos pela Autora, apreciando, em concreto, a questão de saber se era a Autora/Apelante que tinha o ónus de provar que a ruína do muro – causadora os danos – ocorreu por força da existência de vício/defeito de conservação e, consequentemente, por omissão do dever dos Réus de providenciar por essa conservação ou se era aos Réus que competia provar que, em cumprimento dos seus deveres de vigilância, haviam tomado todas as providências necessárias para evitar os danos.


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III.

Na 1.ª instância julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. No dia 20 de Dezembro de 2019, pelas 19h00m, a Autora estacionou o veículo de matrícula ..-LF-.., na Travessa ..., ..., junto ao prédio misto, descrito na Conservatória do Registo Predial ...23, da União de Freguesias ... e ... (extinta freguesia ...) o qual se encontra delimitado, na parte que confronta com a via pública, por um muro de suporte de terras em alvenaria de pedra de granito, folha simples, com “aparelho” irregular e alinhamento irregular, com junta seca, aberta.

2. No local referido em 1) não existe qualquer sinalética que impeça o estacionamento de veículos.

3. Cerca das 19h15m do dia 20 de Dezembro de 2019, o muro referido em 1) desabou parcialmente, tendo os destroços – pedras e terra - caído em cima do veículo referido em 1), que ali se encontrava estacionado, cobrindo-o em toda a sua extensão, o que impediu que o mesmo pudesse ser retirado do local pelos seus próprios meios, tendo de ser rebocado.

4. O prédio referido em 1) é pertença da herança aberta por óbito de BB, da qual os Réus CC e DD são os únicos e universais herdeiros.

5. A Autora solicitou um orçamento para reparação da viatura referida em 1), o qual ascende a 11.695,44€, não tendo, até ao presente, a viatura sido reparada.

6. O valor da reparação do veículo matrícula ..-LF-.. é superior ao valor do mesmo.

7. Uma vez que a viatura referida em 1) ficou impedida de circular, a Autora contratou um serviço de táxi para as suas deslocações diárias, até à data referida em 10), no qual despendeu a quantia de 17.178,30€.

8. A Autora adquiriu a viatura referida em 1) em Janeiro de 2017, recorrendo a crédito bancário, com o qual despende a quantia de 221,10€ mensais.

9. Pese embora a viatura referida em 1) tenha ficado impedida de circular, a Autora continua a ter que liquidar as prestações relativas ao crédito que contraiu para a aquisição da mesma, bem como o respetivo IUC.

10. Em Outubro de 2020 a Autora adquiriu uma viatura pelo valor de 2.500,00€.

11. Nos dias 19 e 20 de Dezembro de 2019, o estado do tempo em Portugal continental foi condicionado por uma depressão complexa a oeste das Ilhas Britânicas, sendo um dos núcleos a depressão Elsa.

12. No dia 19 de Dezembro de 2019, na zona da Covilhã, ocorreram períodos de chuva, por vezes forte e persistente, tendo a quantidade de precipitação atingido valores da ordem de 130 milímetros, o que corresponde a cerca de 450% do valor médio dos maiores valores de precipitação máxima diária para a zona e para o mesmo, tendo a intensidade máxima de precipitação atingido 6 a 8 milímetros, em 10 minutos, o que corresponde a 170 a 230% do valor médio dos maiores valores da quantidade de precipitação em 10 minutos para a zona e para o mês.

13. No dia 20 de Dezembro de 2020, na zona da Covilhã, ocorreram períodos de chuva, por vezes forte e persistente, tendo a quantidade de precipitação atingido valores da ordem de 100 milímetros, sendo a intensidade máxima de precipitação de 4 a 5 milímetros, em 10 minutos.

14. O muro referido em 1) funciona por gravidade, tendo o colapso do mesmo ocorrido pelo impulso provocado pela água da chuva referida em 12) e 13).

15. À data referida em 1), o muro aí referido apresentava alguma vegetação e musgo, mas de pequena dimensão, a qual não contribuiu para o desabamento do mesmo.

16. A parte do muro referido em 1), que não ruiu, permanecia estável e sem sinais de degradação ou de falta de manutenção, à data da realização da peritagem (Setembro de 2022).


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Não se julgaram provados os seguintes factos:

a) O muro referido em 1) não oferecia a consistência necessária para garantir a segurança de todos aqueles que circulavam na via pública, fosse a pé ou através de qualquer meio de transporte.

b) Em virtude dos factos descritos nos autos, a Autora teve que tratar de burocracias, com incómodos, perdas de tempo e inconvenientes.

c) Em virtude dos factos descritos nos autos, a Autora viu o seu estado de saúde agravado, com perda de sono e dificuldade em descansar face ao desgosto e angústia.


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IV.

IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Como é sabido e como resulta expressamente do art.º 640.º do CPC, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria implica e exige – sob pena de rejeição – o cumprimento de uma série de ónus.

 Um desses ónus é o de indicar os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados (cfr. alínea a) do n.º 1 da citada disposição legal) e esta indicação tem que ser feita obrigatoriamente nas conclusões das alegações, já que são estas que delimitam o objecto do recurso e as concretas questões cuja apreciação é solicitada ao tribunal.

Assim, e tendo em conta as conclusões das alegações onde não encontramos identificados quaisquer outros pontos de facto, podemos concluir que a Apelante impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto em relação aos seguintes pontos e nos seguintes termos:

a) Sustenta – cfr. conclusão 22.ª – que devem julgar-se provados os seguintes factos (que a decisão recorrida não julgou provados – cfr. alíneas b) e c) dos factos não provados):

Que, em virtude dos factos descritos nos autos, a Autora teve que tratar de burocracias, com incómodos, perdas de tempo e inconvenientes;

Que, em virtude dos factos descritos nos autos, a Autora viu o seu estado de saúde agravado, com perda de sono e dificuldade em descansar face ao desgosto e angústia.

b) Sustenta – cfr. conclusão 21.ª – que sejam aditados à matéria de facto não provada (que se julguem, portanto, não provados) os seguintes factos:

Os réus procederam à manutenção e tomaram as devidas diligências, no sentido de evitar que o muro descrito em 1) ruísse e causasse prejuízos a terceiros;

Os réus, perante o aviso da passagem da Depressão pela Covilhã, tiveram a preocupação de confirmar, por si ou por terceiros, deslocando-se ao local, antes ou durante a tempestade, que o muro descrito em 1) não poria em risco bens de terceiros;

Os réus colocaram ou pediram às autoridades competentes que colocassem no local, sinalética que advertisse os transeuntes e condutores do perigo de derrocada do muro.

Analisemos, portanto, essa matéria.

Em relação aos factos que acabamos de enunciar sob a alínea a), importa dizer, desde já, que a impugnação deduzida não está em condições de ser apreciada, pelas razões que passamos a enunciar.

Além do ónus que já referimos (de indicar os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e que, por isso, são visados no recurso), a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto exige ainda o cumprimento do ónus de indicar a decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c) do n.º 1 do citado art.º 640.º) e o ónus de indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo). E, quando os meios probatórios invocados para fundamentar a impugnação tenham sido gravados, acresce ainda o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso (cfr. n.º 2, alínea a), do mesmo art.º 640.º).

Ora, em relação aos factos referidos (que, segundo a Apelante, deveriam julgar-se provados), apenas se diz nas alegações – para fundamentar essa pretensão – o seguinte:

“... devem os mesmos ser considerados como provados, não só pelas declarações das testemunhas invocadas na sentença, como pelo próprio senso comum, que permite aferir que qualquer pessoa que perante a situação descrita nos factos provados e supra mencionados, veria a sua vida afetada em função dos mesmos. Este mesmo processo é prova disso, uma vez que a simples decisão e intervenção de um processo judicial é um incómodo e acarreta uma carga psicológica”.

Ou seja, além de não identificar as testemunhas em causa – a não ser por remissão para a sentença –, a Apelante não identifica – como lhe era imposto pela norma acima citada – as concretas passagens dos respectivos depoimentos em que se fundaria a prova dos factos em causa.

Com efeito, não obstante o apelo que a Apelante faz ao “senso comum”, a verdade é que os factos em causa (sobretudo o último) não podem ser classificados como factos notórios (factos que são do conhecimento geral) – cfr. art.º 412.º do CPC – e, portanto, estando eles carecidos de alegação e prova, é certo que, para ver alterada a decisão que sobre eles foi proferida, a Apelante tinha que identificar os elementos probatórios em que se baseia e, invocando o depoimento de testemunhas, tinha que indicar com exactidão as passagens da gravação onde se encontram os excertos que justificariam a decisão de julgar provados aqueles factos.

A Apelante não cumpriu o ónus em questão e, portanto, o recurso não está, nessa parte, em condições de ser apreciado.

Acrescente-se apenas, em relação a esta matéria, que o primeiro facto (que, em virtude dos factos descritos nos autos, a Autora teve que tratar de burocracias, com incómodos, perdas de tempo e inconvenientes) sempre seria totalmente irrelevante, uma vez que os termos vagos e genéricos em que está redigido nunca permitiriam avaliar a gravidade do dano moral que dele se pretende extrair para o efeito de apurar se tinha (ou não) a gravidade necessária para justificar a atribuição de uma indemnização à luz do disposto no art.º 496.º, n.º 1, do CC.

Passamos agora a analisar a pretensão da Apelante em relação aos factos acima mencionado sob a alínea b).

Em relação a essa matéria – se bem percebemos – a Apelante não impugna, na verdade, qualquer decisão que tenha sido proferida, uma vez que sobre esses factos não foi proferida qualquer decisão (eles não foram julgados provados e também não foram julgados não provados). E não foi proferida decisão sobre esses factos porque eles não foram alegados.

Nessas circunstâncias, não vislumbramos o fundamento – e, sobretudo, não vislumbramos a utilidade – de incluir os factos em questão no elenco da matéria de facto não provada.

Com efeito, os factos a considerar para a decisão são, naturalmente, aqueles que resultam provados e, como parece óbvio, todos os factos que não se julgaram provados consideram-se, naturalmente, como “não provados”, seja aqueles que expressamente assim foram declarados pelo julgador, seja todos os demais factos que, por nunca terem sido alegados, nem sequer foram – nem tinham que ser – objecto de decisão.

Na verdade, em relação a factos que não foram alegados, apenas poderá ter utilidade a sua consideração – nos casos em que tal é possível à luz do disposto no art.º 5.º do CPC – se for para o efeito de os julgar provados; não fará sentido e não terá qualquer utilidade a consideração de factos não alegados para o efeito de não os julgar provados, até porque, a ser assim, caberia perguntar qual seria o limite e como poderia o julgador determinar os possíveis e eventuais factos (não alegados) sobre os quais deveria incidir o seu julgamento e a sua decisão.

Se bem entendemos, a Apelante entende que os Réus tinham o ónus de provar os factos em questão para o efeito de excluir a presunção de culpa que sobre eles recaía e afastar a sua responsabilidade. Será essa – aparentemente – a razão pela qual pretende que os factos sejam incluídos no elenco dos factos não provados, ou seja, para o efeito de se concluir que os Réus não fizeram prova desses factos – como era seu ónus – e que, como tal, não lograram afastar a presunção de culpa que sobre eles recaía.

Mas, salvo o devido respeito, tal não implica a necessidade de os factos serem expressamente incluídos no elenco da matéria de facto não provada. Caso se venha a entender – como entende a Apelante – que os Réus tinham efectivamente o ónus de prova daqueles factos para o efeito de afastar a sua responsabilidade, esse ónus implicaria, naturalmente, não só o ónus de provar esses factos, mas também o ónus de os alegar e, portanto, se tais factos não resultaram provados – porque nem sequer foram alegados – essa circunstância não deixará de ser valorada em seu desfavor. Para esse efeito, não será necessário que tais factos sejam expressamente julgados como “não provados” e tão pouco faz sentido que o sejam – como se disse – uma vez que, não tendo sido alegados, não tinham que ser objecto de decisão (fosse para os julgar provados ou fosse para os julgar não provados).

 

Improcede, portanto, a pretensão da Apelante no que toca à decisão da matéria de facto.


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DIREITO

Está em causa nos presentes autos – e no presente recurso – uma pretensão indemnizatória de danos causados num veículo (da Autora) pela queda de um muro (pertencente aos Réus) que, conforme resultou provado, ocorreu pelo impulso provocado pela água da chuva intensa ocorrida por força de uma depressão que naquela data afectava e condicionava o estado do tempo (a depressão Elsa).

A sentença recorrida julgou improcedente a referida pretensão, considerando, em linhas gerais:

· Que não resultou provada qualquer omissão dos deveres do proprietário (os Réus) no sentido de prevenir a queda do muro;

· Que a presunção de culpa estabelecida no art.º 492.º, n.º 1, do CC pressupõe que a ruína se deveu a um vício de construção ou a falta de conservação;

· Que, para que se pudesse concluir que havia ocorrido alguma omissão de um dever de agir por parte dos Réus e que havia sido ela a causa da queda do muro e dos eventuais danos por ela provocados, teria que ser demonstrado que a mesma não teria ocorrido se os Réus tivessem procedido à realização de um qualquer tipo de obras ou de manutenção no mesmo;

· Que, cabendo à Autora o ónus de provar os factos que consubstanciavam a alegada violação do dever objetivo de cuidado pelos Réus, nada se provou nesse sentido;

· Que não resultou demonstrado que o muro tenha ruido devido a falta de conservação e que os Réus tenham agido ilicitamente e com culpa, infringindo um dever legal de conduta, ou que tenham contribuído, com uma conduta indevida e omissiva, para o derrube do muro em questão;

· Que as condições atmosféricas previamente previstas pelo IPMA, não eram de molde a tornar previsível aos olhos de um proprietário médio, que o muro em apreço fosse ruir, uma vez que o mesmo se apresentava estável, sem sinais de degradação, não denotando, para um individuo comum, que estivesse em vias de ruir ou desmoronar;

· Que, de qualquer modo e resultando provado que o colapso do muro ocorreu pelo impulso provocado pela excessiva precipitação que caiu nos dias 19 e 20 de Dezembro de 2019, na zona da Covilhã, em virtude da depressão Elsa, sempre se teria como verificada uma situação excepcional que constituiu um caso de força maior e uma causa excludente da ilicitude de qualquer conduta omissiva dos Réus que tivesse existido.

Em desacordo com essa decisão, a Apelante, sustenta, em resumo:

· Que não devia ter sido – como foi – atribuído à Autora o ónus da prova no que concerne à manutenção (ou falta dela) do muro que causou os danos:

· Que, em face da presunção de culpa estabelecida no art.º 493.º do Código Civil, era aos Réus que cabia o ónus de ilidir essa presunção, demonstrando que tinham tomado atitudes de vigilância, que permitissem reduzir ou eliminar o risco de dano que os seus bens pudessem causar a terceiros;

· Que, para ilidir essa presunção, os Réus tinham que provar:

- Que procederam à manutenção e tomaram as devidas diligências, no sentido de evitar que o muro descrito em 1) ruísse e causasse prejuízos a terceiros;

- Que, perante o aviso da passagem da Depressão pela Covilhã, tiveram a preocupação de confirmar, por si ou por terceiros, deslocando-se ao local, antes ou durante a tempestade, que o muro descrito em 1) não poria em risco bens de terceiros;

- Que colocaram ou pediram às autoridades competentes que colocassem no local, sinalética que advertisse os transeuntes e condutores do perigo de derrocada do muro;

· Que, não tendo feito prova desses factos, os Réus não ilidiram a presunção de culpa que sobre eles recaía, estando, por isso, obrigados a indemnizar a Autora pelos danos que esta sofreu em consequência da queda do muro.


*

Apreciemos

Tendo em conta a situação descrita nos autos e a pretensão formulada, encontramo-nos claramente no âmbito da responsabilidade civil extracontratual que, como regra e ressalvando as situações em que a lei impõe a obrigação de indemnizar independentemente de culpa (responsabilidade objectiva), pressupõe: um facto voluntário do agente, a ilicitude desse facto, a culpa do agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto (ilícito e culposo) e o dano (cfr. art.º 483.º do CC[1]).

Por regra e salvo existência de presunção legal, caberá a quem reclama o direito de indemnização (o autor) o ónus de provar os factos em questão por serem constitutivos do seu direito – cfr. art.º 343.º, n.º 1, do CC – reafirmando o art.º 487.º, n.º 1, que, salvo havendo presunção legal de culpa, é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão.

Debrucemo-nos então sobre a questão de saber se estão (ou não) verificados os pressupostos da responsabilidade civil que a Autora pretende atribuir aos Réus.

O facto voluntário – definido por Antunes Varela[2] como “...um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana...”, excluindo, portanto, os factos naturais que não dependem da vontade humana e são por ela incontroláveis (casos de força maior ou de circunstâncias fortuitas invencíveis[3]) – corresponderia, no caso em análise, a um facto negativo, ou seja, uma omissão – sendo certo que não é imputada aos Réus qualquer acção ou facto positivo que tivesse estado na origem dos danos – que, conforme previsto no art.º 486.º, haverá de corresponder à omissão do dever de praticar um determinado acto que fosse imposto ao agente por força da lei ou de negócio jurídico.

No caso em análise, os deveres que os Réus alegadamente teriam omitido corresponderiam ao dever de providenciar pela manutenção do muro (cuja queda provocou os danos) em adequadas condições de conservação e o dever de vigiar esse muro e as suas condições de segurança.

A decisão recorrida, considerou – conforme se disse – que a Autora não havia logrado provar – como era seu ónus – os factos constitutivos do direito à indemnização que vinha reclamar, uma vez que não provou que os Réus tivessem omitido qualquer dever e, designadamente, o dever de manter o muro em adequadas condições de conservação e segurança. Considerou que, apesar de o n.º 1 do art.º 492.º estabelecer uma presunção de culpa do proprietário ou possuidor, tal presunção tem como pressuposto que a ruína se tenha devido a vício de construção ou a falta de conservação e cabia à Autora o ónus de provar este facto.

A Apelante, por seu turno, apela ao disposto no art.º 493.º, sustentando que, ao contrário do que se considerou, não era ela que tinha o ónus de provar a falta de manutenção do muro que causou os danos e que, em face da presunção de culpa estabelecida no art.º 493.º do Código Civil, era aos Réus que cabia o ónus de ilidir essa presunção, demonstrando que tinham tomado atitudes de vigilância, que permitissem reduzir ou eliminar o risco de dano que os seus bens pudessem causar a terceiros.

Analisemos, então, o disposto nas referidas disposições legais, sendo certo que é nelas que se centra a questão suscitada no recurso.

O art.º 492.º dispõe nos seguintes termos:

1. O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.

2. A pessoa obrigada, por lei ou negócio jurídico, a conservar o edifício ou obra responde, em lugar do proprietário ou possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a defeito de conservação”.

O art.º 493.º, n.º 1, dispõe:

Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.

Pensamos ser indiscutível – tal não é sequer questionado no presente recurso – que as referidas disposições legais não consagram situações de responsabilidade objectiva (responsabilidade independentemente de culpa); o que nelas se consagra são meras presunções de culpa que, nessa medida, retiram ao lesado o ónus (que, em princípio, lhe caberia) de provar essa culpa[4].

Estando em causa meras presunções de culpa e não presunções de ilicitude, recairá, em princípio, sobre o lesado o ónus de provar a existência do facto ilícito, ou seja, a omissão dos deveres aí mencionados (o dever de construir sem vícios, o dever de providenciar pela conservação do edifício ou obra e o dever de vigilância sobre a coisa); só depois de feita essa prova funcionaria a presunção de culpa ali estabelecida, recaindo sobre as pessoas ali mencionadas o ónus de provar que não tiveram culpa naquela omissão ou que os danos sempre se teriam verificado ainda que tivessem actuado sem culpa.

Essa situação – que é relativamente clara na situação prevista no art.º 492.º - não surge, no entanto, com clareza e evidência na situação prevista no art.º 493.º.

Vejamos.

Na situação prevista no art.º 492.º, o funcionamento da presunção de culpa ali estabelecida pressupõe – como resulta, de modo claro e expresso, da letra da lei – que esteja feita a prova de que os danos tenham sido causados pela ruína (de edifício ou outra obra) e que esta ruína tenha sido determinada por vício de construção ou defeito de conservação. Pressupõe-se, portanto, a prova de que a ruína ocorreu por vício/defeito de construção ou de conservação, daí resultando, automaticamente, a prova da omissão do dever de construir sem vícios ou do dever de providenciar pela conservação do edifício ou obra e, não existindo aí qualquer presunção, essa prova terá que ser feita pelo lesado; o lesado terá, portanto, que provar a existência de vício de construção ou de conservação do edifício ou obra e que a sua ruína ocorreu por causa desse vício. Feita essa prova, presumir-se-á então a culpa de quem está vinculado ao dever omitido, ficando, portanto, o lesado dispensado de fazer a prova da culpa, e recaindo sobre aquele o ónus de ilidir a presunção nos termos previstos na referida disposição legal.

Nesse sentido, poderão ver-se, entre outros, os seguintes Acórdãos[5]:

O Acórdão do STJ 11/11/2010 (processo n.º 7848/05.8TBCSC.L1.S1), em cujo sumário se lê: “O regime de inversão do ónus de prova contemplado no art. 492.º do C.C. só pode, sem mácula, aplicar-se, uma vez provado o vício de construção ou o defeito de manutenção, prova essa que incumbe ao autor (art. 342.º n.º 1 do C.C.), sob pena de defeso alargamento do âmbito da presunção prevista no primeiro dos normativos citados à causa da ruína”;

O Acórdão do STJ de 12/05/2005 (processo n.º 05B932), em cujo sumário se lê: “...a presunção de culpa do art. 492 C. Civ. só funciona uma vez provados os seus pressupostos, isto é quando se mostre ocorrer efectivamente a situação de facto que integra a sua previsão (Tatbestand), dependendo, pois, da demonstração de que na realidade houve vício de construção ou defeito de conservação ou manutenção determinante do evento danoso”;

O Acórdão do STJ de 09/10/2003 (processo n.º 03B2680) em cujo sumário se lê:O n.º 1 do artº 492º do C.Civil consagra uma presunção de culpa por parte do proprietário ou possuidor reportada a «edifícios ou outras obras que venham a ruir no todo ou em parte», conquanto que a derrocada ou queda do edifício provenham comprovadamente de vício de construção ou de defeito de conservação”;

O Acórdão do STJ de 06/02/96 (processo n.º 088120) em cujo sumário se lê: “Se se verificarem os respectivos pressupostos, o lesado não terá de provar culpa da entidade responsável pela conduta, que se presumirá (...) Mas, para tanto, "lege constituta", é indispensável a prova de ónus do lesado - de que tal ficou a dever-se a vício de construção ou defeito de conservação”;

O Acórdão da Relação do Porto 15/10/2013 (processo n.º 4319/10.4TBVFR.P1) em cujo sumário se lê: “Para que haja lugar à aplicação da presunção prevista no art. 492º do Cód. Civil torna-se necessário ao lesado provar que os danos provocados pelo edifício provieram de defeito na sua conservação”;

O Acórdão da Relação de Guimarães de 16/02/2012 (processo n.º 7788/05.0TBBRG.G1) em cujo sumário se lê: “...para que exista uma presunção de culpa do proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, necessário se revela que o lesado demonstre a existência de um vício de construção ou defeito de conservação, ou seja, que o lesado demonstre que a ruína foi devida a um vício de construção ou a falta de manutenção, uma vez que sobre ele incide o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito de indemnização - art. 342º do Cód. Civil”.

Ao contrário do que acontece na situação prevista no art.º 492.º - onde é possível fazer uma distinção clara entre o facto ilícito (cuja prova pertence ao lesado) e a culpa (que se presume) – a previsão do art.º 493.º é menos clara e evidente, seja porque a letra da lei não é tão clara, seja porque, na verdade, não é – ou pode não ser – fácil estabelecer uma efectiva separação entre o facto ilícito (omissão do dever de vigiar) e a culpa (omissão da diligência devida no cumprimento desse dever).

Daí que o STJ já tenha entendido, por diversas vezes, que o art.º 493.º estabelece, não só uma presunção de culpa, mas também uma presunção de ilicitude (presunção de incumprimento do dever de vigiar), de tal modo que o lesado apenas tinha que provar que os danos foram causados por determinada coisa e que o dever de vigilância estava a cargo de determinada pessoa, cabendo a esta o ónus de provar que havia observado – com a devida diligência – o dever de vigilância ou que os danos sempre se teriam produzido ainda que não houvesse culpa sua. Assim se decidiu nos Acórdãos do STJ de 02/03/2011 (processo n.º 1639/03.8 TBBNV.L1), 10/12/2013 (processo n.º 68/10.1TBFAG.C1.S1) e 30/09/2014 (processo n.º  368/04.0TCSNT.L1.S1)[6].

De qualquer forma, ainda que se tivesse como correcto esse entendimento – o que é discutível[7] –, pensamos que tal disposição legal não é aqui aplicável, uma vez que a situação dos autos é regulada pelo art.º 492.º.

Com efeito, o que está em causa nos autos é a ruína do muro em questão que, alegadamente, teria ocorrido por vício de conservação. Ainda que os situe no âmbito de um dever de vigilância, os deveres que, segundo a Apelante, os Réus teriam omitido – que, tendo em conta os factos que, na sua perspectiva, os Réus teriam que provar para excluir a sua culpa e, consequentemente, a sua responsabilidade, seriam: o dever de procederem à manutenção e tomar as devidas diligências, no sentido de evitar que o muro ruísse; o dever de confirmar, perante o aviso da passagem da Depressão, que o muro não punha em risco bens de terceiros e o dever de providenciarem pela colocação de sinalética que advertisse os transeuntes e condutores do perigo de derrocada do muro – correspondem, em última análise, ao dever de manter o muro em boas condições de conservação no sentido de evitar a sua ruína ou ao dever de vigiar e efectuar diligências no sentido de evitar que o vício existente causasse prejuízos a terceiros. Ou seja, o facto ilícito que estaria na origem da obrigação de indemnizar que a Autora pretende atribuir aos Réus seria sempre a omissão desse dever de conservação do muro, sendo certo que a causa apontada pela Autora para a ruína do muro que lhe provocou danos é, inquestionavelmente, a existência de vícios de conservação (ainda que, na sua perspectiva, não lhe deva ser atribuído o ónus de provar a existência desse vício, sustentando que cabia aos Réus o ónus de provar que o haviam cumprido ou que, perante a existência desse vício, haviam adoptado providências no sentido de evitar prejuízos de terceiros). Refira-se que, quando falamos num dever de vigilância sobre coisa imóvel – no caso, um muro – no sentido de evitar a sua ruína/queda/desmoronamento (é esta a situação dos autos), falamos, sobretudo, de um dever de vigiar o estado de conservação do imóvel e a eventual existência de vícios que afectem a sua solidez e a sua segurança e que, nessa medida, possam determinar a sua ruína e a subsequente produção de danos a terceiros e, portanto, o que está em causa será sempre o dever de providenciar pela conservação do muro e pela sua manutenção em adequadas condições de segurança e estabilidade.

Ora, a responsabilidade civil por danos causados pela omissão desse dever e consequente ruína de edifício ou outra obra é prevista e regulada pelo art.º 492.º e, portanto, é esta a disposição aplicável e não o art.º 493.º (neste sentido se decidiu também no Acórdão da Relação do Porto, acima referido, de 15/10/2013). Refira-se, a propósito, que o Acórdão da Relação de Lisboa que é citado pela Apelante (Acórdão de 26/01/2023[8]) não se reporta a situação em que os danos tenham sido causados pela queda ou ruína de qualquer edifício ou obra, mas sim a uma situação em que os danos foram provocados por falta de escoamento de águas acumuladas na varanda de imóvel e esta situação – sobre a qual incidiu este Acórdão – estava claramente fora do âmbito de previsão do art.º 492.º, ao contrário do que acontece na situação que está em causa nestes autos.

Assim, concluindo-se – como concluímos – pela aplicação do art.º 492.º é certo que, como resulta clara e expressamente do que aí se dispõe, cabia à Autora o ónus de provar que a ruína do muro (causadora dos danos) foi determinada por vício de construção ou de conservação. O que se estabelece na referida disposição legal é apenas uma presunção de culpa do proprietário ou possuidor do edifício ou outra obra (no caso, um muro) e não uma responsabilidade objectiva ou uma qualquer presunção de ilicitude que desonere o lesado de fazer prova do facto ilícito (a existência de vício de construção ou de conservação e, consequentemente, a violação do dever de construir sem vícios ou de manter o edifício em adequado estado de conservação) que é um dos factos constitutivos do seu direito à indemnização.

Sabemos que esse entendimento não é unânime. Com efeito, apesar de reconhecer que o citado preceito legal não consagra uma responsabilidade objectiva do proprietário, Luís Manuel de Menezes Leitão considera não dever ser imposto ao lesado o ónus de provar a existência de vício de construção ou de conservação, dizendo que “...fazer recair esta prova sobre o lesado equivale a retirar grande parte do alcance à presunção de culpa. Salvo no caso de fenómenos extraordinários, como os terramotos, a ruína de um edifício ou obra é um facto que indicia só por si o incumprimento de deveres relativos à construção ou conservação dos edifícios, não se justificando por isso que recaia sobre o lesado o ónus suplementar de demonstrar a forma como ocorreu esse incumprimento. É antes o responsável pela construção ou conservação que deve genericamente demonstrar que não foi por culpa sua que ocorreu a ruína do edifício ou obra – nomeadamente pela prova da ausência de vícios de construção ou defeitos de conservação – ou que os danos continuariam a verificar-se, ainda que não houvesse culpa sua[9].

Permitimo-nos, no entanto, discordar desse entendimento.

Em primeiro lugar, porque não tem o mínimo apoio na letra da lei; o que resulta do citado art.º 492.º é que a presunção de culpa nele estabelecida pressupõe a prévia demonstração de que a ruína (causadora dos danos) ocorreu por vício de construção ou defeito de conservação, ou seja, por omissão do dever de construir sem defeitos ou de providenciar pela conservação do edifício ou obra e, não estabelecendo a lei (nem na norma em questão, nem em qualquer outra) qualquer presunção de ilicitude (presunção de existência do defeito e de omissão do dever em questão), impor-se-á concluir que, nos termos gerais, é ao lesado que compete o ónus de provar esse facto que é constitutivo do seu direito à indemnização. 

É certo – como refere o citado autor – que, em circunstâncias normais e ressalvando a existência de fenómenos anormais ou extraordinários, a queda/ruína de um muro, edifício ou construção indiciará, só por si e em face das regras da experiência, um qualquer defeito ou vício de construção ou de conservação. Mas isso não nos permite concluir pela existência de qualquer presunção legal de existência daqueles vícios e omissão dos deveres em causa (presunção de ilicitude), mas sim – e apenas – pela existência de uma presunção natural ou judicial que facilitará a prova dos factos em questão.

No entanto, essa presunção (natural ou judicial) apenas será legítima nos casos em que aquela queda/ruína não encontra explicação em qualquer outro facto (seja ele um facto voluntário de alguém ou facto natural e anormal); se não existe qualquer outra causa aparente para essa queda ou ruína, será legitimo presumir que ela se ficou a dever a vícios do edifício ou obra (de construção ou conservação) que afectavam a sua solidez e a sua segurança.

Não é essa, no entanto, a situação dos autos, uma vez que sabemos – resultou provado – que, à data, ocorreu precipitação forte e intensa (por força da depressão Elsa) e que o muro ruiu por força do impulso provocado pela água da chuva, o que, só por si, poderá ter determinado a queda do muro sem que se possa inferir ou presumir que existisse em qualquer defeito ou vício de construção ou conservação que tivesse contribuído para a sua ruína, tanto mais que, conforme resultou provado, a parte do muro que não ruiu estava estável e sem sinais de degradação ou falta de manutenção (a indiciar, portanto, o cumprimento de um dever de vigilância e de manutenção do muro em moldes que, pelo menos em circunstâncias normais, seriam os adequados no sentido de evitar a sua ruína).

Assim, não tendo resultado provado que existisse algum vício/defeito do muro (degradação ou falta de manutenção/conservação) que tivesse contribuído ou potenciado a sua ruína, ficou por demonstrar o facto ilícito que poderia fundamentar a responsabilidade dos Réus ao abrigo do art.º 492.º (a omissão do dever de providenciar pela manutenção e conservação do muro) e era a Autora que tinha o ónus de provar esse facto por ser um facto constitutivo do seu direito em relação ao qual a lei não estabelece qualquer presunção legal que inverta o ónus da prova.

O que resultou provado – reafirmamos – é que a ruína do muro ocorreu por causa da chuva intensa que caiu, em termos anormais e excepcionais e por força da depressão que assolou o país naquela ocasião, não tendo resultado provado – como seria necessário para que os Réus pudessem ser responsabilizados – que para a produção desse resultado também tivesse contribuído qualquer defeito/vício de construção ou de conservação do muro.

Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                   (Arlindo Oliveira)

                                                     (Paulo Correia)    

[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição, pág. 419.
[3] Cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4.ª edição, pág. 365.
[4] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição, páginas 467 e 468.
[5] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[6] Disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Ana Prata, Código Civil Anotado, Vol. I, 2017, pág. 639.
[8] Proferido no processo n.º 17602/21.4T8LSB.L1-8, disponível em http://www.dgsi.pt.
[9] Direito das Obrigações, Vol. I, 15.ª edição, páginas 320 e 321.