Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
52/20.7T8TND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE DANOS
CONTRATO DE ALUGUER OPERACIONAL
INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 10.º E 11.º DO DECRETO-LEI N.º 446/85, DE 25/09, 9.º, 236.º E 238.º, TODOS DO CÓDIGO CIVIL, E 130.º DO REGIME DO CONTRATO DE SEGURO APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 72/2008, DE 16 DE ABRIL.
Sumário: I - A cláusula de um contrato de seguro que exclui a responsabilidade da seguradora pelos danos ocorridos quando o condutor do veículo seguro voluntariamente abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade, deve ser interpretada no sentido de que só existe exclusão do risco se o condutor, após terem sido chamadas as autoridades policiais e tendo conhecimento desse facto, abandonar o local do sinistro, sem justificação, antes de estas comparecerem no local.

II - Ocorrendo a perda total do bem dado em locação por contrato de aluguer operacional de veículo e objecto de seguro facultativo de danos próprios do veículo, com ressalva de direitos a favor da locadora/proprietária do bem, o tomador do seguro, locatário, pode demandar conjuntamente a locadora e a seguradora, peticionando a condenação da seguradora a pagar ao locador a quantia correspondente ao valor do bem locado e, simultaneamente, a condenação do locador a entregar-lhe aquela quantia, deduzida da importância relativa às rendas vincendas e ao valor residual e demais despesas em dívida do contrato.

Decisão Texto Integral:







Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO

A. , intentou acção declarativa sob a forma de processo comum contra B. , S.A. e C. (Portugal), Lda.,

Pedindo que julgada procedente, porque provada a presente acção, sejam condenadas:

a) A 1.ª Ré a pagar à 2.ª Ré a quantia total de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), acrescida esta quantia de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação da 1.ª Ré e até efectivo e integral pagamento;

b) A 2.ª Ré a pagar ao A. a quantia lhe foi entregue pela 1.ª Ré deduzida da importância relativa às rendas vincendas e ao valor final/residual, acrescida esta quantia de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação da 2.ª Ré e até efectivo e integral pagamento;

c) A 1.ª Ré a pagar ao A. a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de incumprimento contratual pela privação do uso do veículo de substituição, acrescida esta quantia de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação da Ré e até efectivo e integral pagamento.

Para fundamentar os seus pedidos alega que celebrou com a 2ª R. um contrato de renting do veículo C. 418 Grand Coupé, com a matricula ..., veículo seguro na 1ª R., com a cobertura de danos próprios e que, no dia 29-01-2019, pelas 1:00 horas, despistou-se com este veículo, do qual resultou a perda total do veículo, atendendo aos custos da reparação e aos elementos estruturais do mesmo.

Mais alega que tendo comunicado o sinistro à 1ª R., esta declinou a responsabilidade, permanecendo o A. vinculado ao pagamento, até ao presente, das rendas do contrato, apesar de privado do uso do veículo.


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Regularmente citadas, as rés apresentaram contestação, alegando a 1ª R. que o autor abandonou o local do sinistro antes da chegada das autoridades policias, razão pela qual se encontra excluída a cobertura do sinistro e a 2ª R. a excepção de incompetência territorial do tribunal, mais requerendo, caso venha a ser considerada procedente o pedido formulado contra a 1ª R., a sua condenação “a pagar ao Autor a quantia que lhe for entregue pela 1ª Ré, deduzida do valor das prestações vincendas, valor residual, comissões, despesas e impostos devidos no âmbito do Contrato de Aluguer Operacional a Consumidor n.º ... celebrado entre a 2ª Ré e o Autor, a apurar em sede de execução de sentença, devendo, no mais, improceder o pedido deduzido pelo Autor contra a 2ª Ré.


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Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificando-se o objeto do litígio, enunciando-se os temas da prova, e admitindo-se a prova apresentada pelas partes, após o que teve lugar a audiência final, sendo proferida sentença na qual se decidiu absolver as RR. do pedido, por improcedência da acção.


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Não conformado com esta decisão, impetrou o A. recurso da mesma relativamente à matéria de facto e de direito, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

1.º CONSIDERA O RECORRENTE QUE O TRIBUNAL A QUO ERROU NO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO, QUER NA APRECIAÇÃO DA PROVA PRODUZIDA, DOCUMENTAL E TESTEMUNHAL, QUER POR A PROVA EXISTENTE NOS AUTOS E A PRODUZIDA EM AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO IMPÕEM UMA DECISÃO DIVERSA QUANTO À MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA.

2.º ENTENDE O RECORRENTE QUE A DECISÃO RECORRIDA INCORREU, AINDA, EM ERRO DE DIREITO AO TER CONSIDERADO QUE NO PRESENTE CASO ESTAVAM PREENCHIDOS OS REQUISITOS DA CLÁUSULA 5ª, ALÍNEA E) DAS CONDIÇÕES GERAIS DO SEGURO AUTOMÓVEL FACULTATIVO, CELEBRADO ENTRE O A. E A 1.º RÉ, QUE ESTIPULA QUE FICAM AINDA EXCLUÍDOS DO ÂMBITO DO SEGURO OS DANOS OCORRIDOS QUANDO O CONDUTOR DO VEÍCULO VOLUNTARIAMENTE ABANDONE O LOCAL DO ACIDENTE DE VIAÇÃO ANTES DA CHEGADA DA AUTORIDADE POLICIAL, QUANDO ESTA TENHA SIDO CHAMADA POR SI OU POR OUTRA ENTIDADE.

3.º A DECISÃO RECORRIDA NÃO PODERIA TER DADO COMO PROVADOS OS FACTOS VERTIDOS NOS NÚMEROS 36, 37 E 38 DA MATÉRIA DE FACTO ASSENTE.

4.º POR CONTRAPARTIDA A DECISÃO RECORRIDA DEVERIA TER DADO COMO PROVADO QUE O AUTOR NÃO SABIA, AQUANDO DO ABANDONO DO LOCAL DO ACIDENTE, QUE IAM OU HAVIAM SIDO CHAMADAS AS AUTORIDADES POLICIAIS.

5.º PARA DAR COMO PROVADOS OS FACTOS CONSTANTES EM 36, A DECISÃO RECORRIDA ATENDEU AO DOCUMENTO DE FLS. 124.

6.º POR SUA VEZ, PARA DAR COMO PROVADO O FACTO CONSTANTE EM 37, A DECISÃO RECORRIDA NÃO APRESENTOU QUALQUER FUNDAMENTO.

7.º A DECISÃO RECORRIDA ERROU, NOTORIAMENTE, NA APRECIAÇÃO DA PROVA DOCUMENTAL, EM CONCRETO DO DOCUMENTO CONSTANTE A FLS. 124, PORQUANTO O MESMO IMPÕE DECISÃO CONTRÁRIA À PROFERIDA PELA DECISÃO RECORRIDA NO QUE RESPEITA AOS PONTOS 36 E 37 DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO ASSENTE E DA REFERIDA MATÉRIA DADA COMO NÃO ASSENTE.

8.º DO DOCUMENTO CONSTANTE A FLS. 124, DA AUTORIA DA 2.º RÉ RESULTA, DE FORMA CLARA E EXPRESSA, QUE:

- "... FOI DESPOLETADA UMA CHAMADA SOS AUTOMÁTICA..."

- "A CHAMADA FOI ESTABELECIDA COM SUCESSO, E O AGENTE TENTA FALAR COM O CONDUTOR MAS NÃO OBTÉM RESPOSTA APESAR DO RUÍDO DE FUNDO."

- "NESTE SENTIDO FORAM DESPOLETADOS OS PROTOCOLOS DE ASSISTÊNCIA."

- "CONTACTADA A POLÍCIA LOCAL, GNR, OS MESMOS INFORMAM QUE SE VÃO

DESLOCAR PARA O LOCAL..."

9.º NÃO RESTAM DÚVIDAS, PORTANTO, QUE A CHAMADA QUE FOI DESPOLETADA DE FORMA AUTOMÁTICA É A CHAMADA PARA O CALL CENTER DA C. E NÃO A CHAMADA DAS AUTORIDADES POLICIAIS.

10.º RESULTA DE FORMA CLARA, DA ANÁLISE DO DOCUMENTO DE FLS. 124, QUE HÁ DUAS CHAMADAS, DOIS MOMENTOS, DISTINTOS E SEPARADOS NO TEMPO: UM PRIMEIRO MOMENTO EM QUE OCORRE, DE FORMA AUTOMÁTICA, UMA CHAMADA ENTRE O CARRO E A C. E UM SEGUNDO MOMENTO EM QUE OCORRE UMA CHAMADA, DE FORMA MANUAL/NÃO AUTOMÁTICA, ENTRE A C. E AS AUTORIDADES POLICIAIS.

11.º RESULTA AINDA CLARO, DESSE MESMO DOCUMENTO DE FLS. 124, QUE ENTRE ESSAS DUAS CHAMADAS TEVE LUGAR UM OUTRO EVENTO EM QUE A C. TENTOU FALAR COM O CONDUTOR DO VEÍCULO SEGURO, MAS SEM SUCESSO.

12.º ISTO É, RESULTA CLARO QUE APÓS O CARRO TER ENTRADO, DE FORMA AUTOMÁTICA, EM CONTACTO COM O FUNCIONÁRIO DA C. , ESTE TENTA FALAR COM O CONDUTOR DO VEÍCULO, "MAS NÃO OBTÉM RESPOSTA".

13.º PELO EXPOSTO, DEVE DAR-SE COMO ASSENTE QUE AS AUTORIDADES POLICIAIS FORAM CHAMADAS PELO FUNCIONÁRIO DA C. APÓS ESTE TER TENTADO, SEM SUCESSO, FALAR COM O CONDUTOR DO AUTOMÓVEL SEGURADO.

14.º JAMAIS PODERIA A DECISÃO RECORRIDA TER DADO COMO PROVADO OS FACTOS CONSTANTES NOS PONTOS 36 E 37 DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA.

15.º SE O FUNCIONÁRIO DA C. NÃO CONSEGUIU FALAR COM O CONDUTOR DO VEÍCULO SEGURADO, AQUI AUTOR, ESTE NÃO PODIA, SEGUNDO AS REGRAS DA EXPERIÊNCIA DA VIDA, TER CONHECIMENTO DE QUE AQUELE IRIA CHAMAR AS AUTORIDADES POLICIAIS.

16.º PELO QUE, AQUANDO DO ABANDONO LOCAL DO ACIDENTE, O A. NÃO SABIA NEM PODIA SABER QUE AS AUTORIDADES FORAM OU IRIAM SER CHAMADAS.

17.º POR OUTRO LADO, PARA DAR COMO PROVADOS O FACTO CONSTANTE NO PONTO 38 DA MATÉRIA DE FACTO ASSENTE, A DECISÃO RECORRIDA REFERE QUE E. (MILITA DA GNR), F. E G. (BOMBEIROS), DECLARARAM QUE A ESTRADA, VIA, ESTAVA SUJA COM TERRA E DESTROÇOS DA VIATURA, TENDO HAVIDO OPERAÇÕES DE LIMPEZA DA MESMA.

18.º AO CONTRÁRIO DO QUE CONSTA DA DECISÃO RECORRIDA, O QUE AS REFERIDAS TESTEMUNHAS - E. (MILITA DA GNR), F. E G. (BOMBEIROS) - DECLARARAM FOI QUE APÓS O DESPISTE FICARAM NA BERMA DA ESTRADA E NO TALUDE DESTROÇOS DO VEÍCULO E TERRA.

19.º OU SEJA, TODAS AS TESTEMUNHAS REFERIRAM EXPRESSAMENTE QUE NA VIA NÃO FICOU QUALQUER DESTROÇO DO VEÍCULO OU TERRA.

20.º ALIÁS, TAL O ENTENDIMENTO VAI AO ENCONTRO DO PONTO 10 DA MATÉRIA DE FACTO ASSENTE: PORQUE DO DITO ACIDENTE NÃO RESULTARAM OUTROS SINISTRADOS, PORQUE A FAIXA DE RODAGEM ESTAVA COMPLETAMENTE LIVRE E DESOCUPADA SEM QUALQUER OBSTÁCULO PROVENIENTE DO DESPISTE E PORQUE, NÃO OBSTANTE OS DANOS SOFRIDOS NA SUA VIATURA, CIRCULAVA ATRÁS DO A. O SEU COLEGA J. , NA VIATURA DA MARCA VOLKSWAGEN POLO DE COR CINZENTA, AQUELE DECIDIU PARA CASA... A FIM DE TRATAR OS FERIMENTOS.

21.º EM SUMA, E NO QUE DIZ RESPEITO À MATÉRIA DE FACTO, DEVERIA A DECISÃO RECORRIA TER DADO COMO PROVADO O SEGUINTE:

36. AS AUTORIDADES POLICIAIS FORAM CHAMADAS PELO FUNCIONÁRIO DO CALL CENTER DA C. APÓS ESTE TER TENTADO, SEM SUCESSO, FALAR COM O CONDUTOR DO VEÍCULO SEGURADO, O AUTOR.

37. O AUTOR NÃO FALOU COM O CALL CENTER DA C. .

37 A. O AUTOR NÃO SABIA, AQUANDO DO ABANDONO DO LOCAL DO ACIDENTE, QUE IAM OU HAVIAM SIDO CHAMADA AS AUTORIDADES POLICIAIS.

38. NA VIA, APÓS O DESPISTE REFERIDO EM 4 E 5 DOS FACTOS PROVADOS, NÃO FICARAM DESTROÇOS DO VEÍCULO NEM TERRA.

22.º A DECISÃO RECORRIDA VIOLOU AS NORMAS JURÍDICAS VERTIDAS:

. NA CLÁUSULA 5.ª, N.º 1, AL. A) DAS CONDIÇÕES GERAIS DO SEGURO AUTOMÓVEL FACULTATIVO;

. NO ARTIGO 11.º DA LEI DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS (DL N.º 446/85, DE 25 DE OUTUBRO);

. NO ARTIGO 236.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL;

. NO ARTIGO 342.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL; E

. NOS ARTIGOS 1º, 43º E 99º DO REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO (DL 72/2008, DE 16 DE ABRIL).

23.º A DECISÃO RECORRIDA DEVERIA TER INTERPRETADO A NORMA VERTIDA NA CLÁUSULA 5.ª, N.º 1, ALÍNEA A) DO CONTRATO DE SEGURO, TAL COMO ENTENDE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE ACORDO COM OS CRITÉRIOS PREVISTOS NA NORMA DO N.º 1 DO ARTIGO 236.º DO CÓDIGO CIVIL, OU SEJA, TENDO EM CONTA A NATUREZA E O OBJETO DO SEGURO, O TEOR DAS SUAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS, O SEU CONTEXTO, A SUA FINALIDADE E O SEU EFEITO ÚTIL, BEM COMO DE ACORDO COM O PRINCÍPIO GERAL CONSAGRADO NO ART. 11º DA LCCG, SEGUNDO O QUAL, EXISTINDO DÚVIDAS QUANTO AO ENTENDIMENTO DO DESTINATÁRIO PREVALECE O SENTIDO MAIS FAVORÁVEL AO ADERENTE/SEGURADO,

24.º PARA CONCLUIR, TAMBÉM COM O SUPRE TRIBUNAL DE JUSTIÇA, QUE A EXCLUSÃO DA COBERTURA DO SINISTRO SÓ TEM RAZÃO DE SER SE O CONDUTOR DO VEÍCULO, SEM MOTIVO QUE O JUSTIFIQUE, ABANDONAR O LOCAL DO ACIDENTE, DEPOIS DE SABER QUE AS AUTORIDADES POLICIAIS FORAM CHAMADAS PARA TOMAR CONTA DA OCORRÊNCIA.

25.º DEVERIA AINDA A DECISÃO RECORRIDA TER CONCLUÍDO QUE RECAÍA SOBRE A 1.ª RÉ A PROVA DOS FACTOS OU CIRCUNSTÂNCIAS EXCLUDENTES DO RISCO (ART. 342º, Nº 2, DO CC) E QUE A MESMA NÃO LOGROU FAZER PROVA DE TAIS FACTOS.

26.º CONFORME RESULTA DA MATÉRIA DE FACTO AGORA ALTERADA, TENDO

ESSENCIALMENTE POR FUNDAMENTO O DOCUMENTO DE FLS. 124 DA AUTORIA DA 2.ª RÉ, NOS PRESENTES AUTOS FICOU MESMO PROVADO O CONTRÁRIO DA PRETENSÃO DA 1.º RÉ.

27.º ISTO É, AS AUTORIDADES POLICIAIS FORAM CHAMADAS PELO FUNCIONÁRIO DO CALL CENTER DA C. APÓS ESTE TER TENTADO, SEM SUCESSO, FALAR COM O CONDUTOR DO VEÍCULO SEGURADO, PELO QUE O AUTOR NÃO SABIA, AQUANDO DO ABANDONO DO LOCAL DO ACIDENTE, QUE IAM OU HAVIAM SIDO CHAMADA AS AUTORIDADES POLICIAIS.

28.º NÃO SE VISLUMBRA TAMBÉM QUALQUER OUTRO NORMATIVO JURÍDICO QUE OBRIGASSE O A. A PERMANECER NO LOCAL DO ACIDENTE, UMA VEZ QUE NA VIA, APÓS O DESPISTE, NÃO FICARAM DESTROÇOS DO VEÍCULO NEM TERRA.

29.º ACRESCE QUE O A. ABANDONOU O LOCAL DO ACIDENTE A FIM TRATAR DOS FERIMENTOS.

30.º POR TODO O EXPOSTO NÃO PODE PROCEDER A FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA VERTIDA NA DECISÃO RECORRIDA.

31.º TENDO EM CONSIDERAÇÃO NÃO SÓ A MATÉRIA DE FACTO PROVADA, MAS TAMBÉM A ALTERAÇÃO À MATÉRIA DE FACTO REQUERIDA, DEVERIA A DECISÃO RECORRIDA TER APLICADO AS NORMAS VERTIDAS NOS ARTIGOS NOS ARTIGOS 1º, 43º E 99º DO REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO (DL 72/2008, DE 16 DE ABRIL) E, CONSEQUENTEMENTE, TER CONDENADO AS RÉS CONFORME PETICIONADO PELO A.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, deve a decisão recorrida ser revogada e, em sua substituição, ser proferido acórdão que condene:

. A 1.ª Ré a pagar à 2.ª Ré a quantia total de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil

euros), acrescida esta quantia de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação da 1.ª Ré e até efetivo e integral pagamento;

. A 2.ª Ré a pagar ao A. a quantia lhe foi entregue pela 1.ª Ré deduzida da importância relativa às rendas vincendas e ao valor final/residual, acrescida esta quantia de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação da 2.ª Ré e até efetivo e integral pagamento; e

. A 1.ª Ré a pagar ao A. a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de incumprimento contratual pela privação do uso do veículo de substituição, acrescida esta quantia de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação da Ré e até efetivo e integral pagamento.

Assim se faz a acostumada JUSTIÇA!”


*

           

Pela 1ª R. foram interpostas contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar:


a) se se impõe a alteração da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido, por dos meios de prova documental e testemunhal, não decorrer a prova da matéria impugnada;
b) se dos autos resulta verificada a causa de exclusão de cobertura dos danos próprios do veículo sinistrado, por abandono do local pelo condutor, antes da chegada das autoridades policiais;

c) não se verificando a apontada exclusão do risco e ocorrendo a perda total do veículo, apurar o valor indemnizatório e os beneficiários dos montantes seguros.


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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores-adjuntos, cumpre decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

“Factos Provados:

1-No dia 29 de Janeiro de 2019 - TERÇA FEIRA - pela 1h00 da manhã, circulava o Autor com o veículo automóvel ligeiro de passageiros marca C. , modelo 418 Gran Coupé, com a matrícula ... – no Itinerário Principal 3 (IP3).

2. O referido veículo encontra-se registado em nome da C. (Portugal), Lda., tendo esta celebrado um contrato de Aluguer Operacional / Locação Operacional (contrato n.º ...) com o A., sendo esta a proprietária do veículo em causa (conforme documento que compõe fls. 15-19 cujo teor se dá por reproduzido.

3. O contrato de Aluguer Operacional / Locação Operacional tem o valor total imputado ao A. de € 47.898,36 (€ 4.470,29 1.º aluguer + € 21.878,97 restantes 59 prestações + € 239,85 comissão de abertura + € 215,25 Comissão de Finalização + € 199,42 Comissão de Processamento + € 20.894,59 pagamento final)

4. Ao km 110 do IP3 (Distrito Viseu, Concelho de Tondela, União de Freguesias de São Miguel de Outeiro e Sabugosa) no sentido Coimbra - Viseu do IP3, o Autor perdeu o controlo da viatura que conduzia tendo ido embater no sinal de quilometragem e na rede que se encontra paralelamente à estrada - doc. que compõe fls. 12-14 cujo teor se dá por reproduzido

5. Por motivos não apurados, a viatura entrou em despiste, razão pela qual saiu de forma descontrolada da faixa de rodagem pela direita para a berma da estrada, acabando por chocar de frente contra a referida placa e rede, assim se imobilizando naquele local após o embate com a vedação.

6. O local onde ocorreu o descrito acidente é uma curva sem sinalização luminosa.

7. Em virtude do despiste e subsequente choque referidos e como sua consequência directa e necessária a referida viatura automóvel ficou bastante danificada.

8. Naquele momento, sendo de madrugada, na zona apenas circulava um colega do A., J. , uma vez que ambos vinham da mesma reunião Associação ... com sede em ..., da qual o A. é presidente da direcção.

9. O Autor, saiu do mesmo com ferimentos ligeiros - aspecto ensanguentado - no rosto e na mão direita.

10. Porque do dito acidente não resultaram outros sinistrados, porque a faixa de rodagem estava completamente livre e desocupada sem qualquer obstáculo proveniente do despiste e porque, não obstante os danos sofridos na sua viatura, circulava atrás do A. o seu colega J. , na viatura da marca Volkswagen Polo de cor cinzenta, aquele decidiu ir para casa, sita no ....,... a fim de tratar os ferimentos.

11. Na manhã do dia 29 de Janeiro a esposa do Autor, L. , juntamente com o J. , deslocaram-se ao local do acidente tendo verificado que a viatura já lá não estava.

12. De seguida a esposa do A. e o J. deslocaram-se à GNR de ..., tendo-lhe sido comunicado que o automóvel havia sido transportado pelo reboque para ....

13. Naquela data encontrava-se em vigor o contrato de seguro do ramo automóvel celebrado entre o Autor e a Ré, titulado pela apólice com o nº ..., pelo qual aquele declarou transferir para esta, a qual declarou assumir, a responsabilidade de acidentes de viação ocorridos com o veículo automóvel referido e de acordo com as condições particulares da apólice – cf. documento de fls. 20-46, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

14. O beneficiário do respectivo seguro (segurado) é o respectivo proprietário, ou seja, a aqui Ré, C. (Portugal), Lda.

15. O seguro contratado entre Autor e 1.ª Ré abrange a cobertura facultativa de danos próprios da referida viatura segurada, obrigando-se a Ré a indemnizar o Autor por quaisquer danos que ocorressem na mesma como consequência, nomeadamente, de choque, colisão, capotamento e quebra isolada de vidros, até ao limite do valor seguro à data de eventual sinistro, sendo que a franquia tinha o valor de € 0 (zero euros).

16. O contrato de seguro contratado garante o valor de aquisição do Veículo Seguro.

17. À data do mencionado sinistro encontrava-se o automóvel aqui em causa avaliado e seguro pela 1.ª Ré pelo valor de € 45.000,00 – cf. doc. fls. 47.

18. À data do sinistro o contrato de seguro encontrava-se pago pelo A e, consequentemente, em vigor - cf. doc. fls. 50.

19. No dia 31 de Janeiro o A. efectuou a respectiva participação do sinistro automóvel / declaração amigável à 1.ª Ré doc. 51.

20. Nesse mesmo dia, 31 de Janeiro, o A. deslocou-se à GNR de ... tendo participado o acidente automóvel aqui em causa.

21. A partir do referido dia 29.01.2019 o mencionado automóvel ficou imobilizado primeiramente nos reboques em ... e posteriormente na C. em ...., ficando o Autor impossibilitado de o usar nas suas deslocações diárias como era habitual até então e a aguardar a tomada de decisão da Companhia de Seguros Ré no seguimento da participação por si efectuada logo no próprio do descrito acidente e que deu origem ao processo interno de ocorrência n.º 1011/ .../001.

22. A 27 de Fevereiro de 2019 a 1.ª Ré enviou carta ao A. a negar a responsabilidade pelas indemnizações devidas, conforme documento de fls. 52 cujo tero se dá por reproduzido.

23. Após a realização de perícia pelos serviços técnicos da Companhia de Seguros a 1.ª Ré enviou nova carta datada de 8 de Março de 2019 ao A. informando-o que o custo de reparação dos estragos por aquela orçamentado - e efectivamente correspondente aos danos sofridos no veículo do Autor em consequência do acidente descrito - foi de € 38.776,10 – cf. documento de fls. 47 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

24. Nessa mesma carta de 8.3.2019, a 1.ª Ré informou o Autor que face ao referido valor dos danos (€ 38.776,10) considerava o automóvel como perda total.

25. Através da mesma comunicação mais informou a 1.ª Ré que a melhor proposta para aquisição do salvado válida até 05/05/2019 foi de € 16.633,00 e que o A. podia transaccionar o salvado directamente com a entidade proponente, Aopt Serviços e Sistemas Automóvel Lda.

26. No seguimento da recepção pelo Autor de tal comunicação, o mandatário do Autor, em 18.03.2019 e em representação deste, enviou comunicação à Ré na qual comunicou que o Autor não aceitava a declinação de responsabilidade verificada quanto à regularização do dito sinistro, por não assistir à Ré qualquer fundamento quanto ao motivo de exclusão de responsabilidade invocado – cf. documento de fls. 5354vs. e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

27. Na referida comunicação o mandatário do Autor transmitiu à Ré que considerando que o sinistro em causa se encontrava abrangido pelo contrato de seguro celebrado entre aquela e o Autor, sendo o mesmo válido e eficaz e não ocorrendo qualquer causa de exclusão da responsabilidade, nomeadamente a incorrectamente por aquela invocada - o Autor tem apenas uma relação contratual com a seguradora 1.ª Ré e não com outra entidade, nomeadamente com empresas que pretendam adquirir o salvado.

 

28. Até hoje o A. não obteve qualquer resposta da 1.ª Ré nem esta procedeu ao A. ao pagamento de qualquer indemnização.

29. A 1ª Ré também não procedeu à entrega ao A. de um veículo de substituição.

30. Não obstante, e apesar de o veículo ter sido dado pela 1.ª Ré como perda total, a verdade é que o A. continuou a cumprir o contrato de Aluguer Operacional com a 2.ª Ré, pagando uma mensalidade de € 370,83, sem poder usufruir do automóvel.

31. Até ao momento do julgamento da presente acção, o A. já pagou à 2.ª ré os valores ao mês de Abril de 2021 a quantia de €23.044,58, a título do contrato de aluguer.

32. O A. entretanto, entrou também em contacto com a 2.ª Ré no sentido de esta tentar alcançar um acordo com a 1.ª ré, o que não veio a suceder - doc. de fls. 76-77.

33. Desde Abril de 2021 até ao final do contrato encontram-se por pagar à 2.ª Ré 15 prestações no valor, cada uma, de €374,21, mais o valor final de € 20.894,58, mais a comissão de finalização no valor de € 215,25, o que perfaz o total de € 26.722,98.

34. Falta ainda pagar à 2.ª Ré a quantia de € 1,85 relativo ao aluguer n.º 2 que talvez por lapso a factura continha o valor de € 372,36 em vez de € 374,21.

35. O A. não pretende adquirir a propriedade do veículo ou do salvado.

36. As autoridades policiais foram chamadas por accionamento automático do sistema de segurança do veículo, que tem tal equipamento e em caso de sinistro liga para o call center da C. e foram accionados os meios de socorro – fls. conforme documento de fls. 124 cujo teor se dá por reproduzido.

37. O autor esteve a falar com o call center da C. .

38. Na via, após o despiste referido em 4.5. dos factos provados, ficaram destroços do veículo e terra.

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que:

O autor não soubesse que haviam sido accionados os meios de socorro.


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DA REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Insurge-se o recorrente contra a decisão que absolveu as recorridas do pedido formulado nos autos, impetrando a alteração da matéria de facto provada sob os pontos 36, 37 e 38, requerendo que em sua substituição e com base no documento de fls. 124 e no depoimento das testemunhas E. (militar da GNR), F. e G. (bombeiros), seja dado como provado que

36. As autoridades policiais foram chamadas pelo funcionário do call center da C. após este ter tentado, sem sucesso, falar com o condutor do veículo segurado, o autor.

37. O autor não falou com o call center da C. .

37 A. O autor não sabia, aquando do abandono do local do acidente, que iam ou haviam sido chamada as autoridades policiais.

38. Na via, após o despiste referido em 4 e 5 dos factos provados, não ficaram destroços do veículo nem terra.

Decidindo:

a) da apreciação do recurso quanto à matéria de facto;

Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, versa o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

No que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» [1]

Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:

- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;

- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;

- E a decisão alternativa que é pretendida.”[2]

O recorrente nas suas alegações satisfaz estes requisitos, pelo que o recurso relativamente à impugnação da matéria de facto é de admitir.

Passando à sua apreciação concreta, impugna o recorrente nas suas conclusões recursórias as respostas dadas pelo tribunal recorrido aos pontos 36, 37 e 38, por considerar que do documento junto a fls. 124 e do depoimento das testemunhas inquiridas a esta matéria, não resultou o que consta destes pontos.

Posto isto, no que toca à possibilidade e limites da reapreciação da matéria de facto, dos artsº 640 nº1 b) e 662 nº1 e 2 do C.P.C., resulta garantido um efectivo duplo grau de jurisdição. Nos termos destes preceitos, impõe-se ao julgador de 2ª instância que forme sua própria convicção, podendo, inclusive, recorrer a meios de prova não indicados pelas partes ou produzir novos meios de prova se os entender por pertinentes e essenciais à boa decisão destes factos.

No entanto, existindo um duplo grau de jurisdição no que se reporta à matéria de facto, tem este de ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil e temperado pelo facto de, decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficiar dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer. É que, conforme refere Teixeira de Sousa[3], “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.

Assim sendo, há em primeiro lugar que averiguar se os factos apurados decorrem dos meios de prova prestados ou se, na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram desconsiderados meios de prova legal, violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que se deram como assentes.

Nada obstando à apreciação do recurso sobre a matéria de facto, o tribunal com vista à apreciação desta impugnação, procedeu à audição integral da prova e examinou os articulados e documentos juntos aos autos.

É a seguinte a convicção do tribunal recorrido, quanto à matéria de facto:

Para julgar como provados os factos que antecedem o tribunal fundou a convicção no conjunto das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, conjugadas com as regras da experiência comum e distribuição do ónus da prova, a saber:

Nos documentos identificados nos factos provados que foram juntos pelas partes, cujo teor dos mesmos se dá por reproduzido.

Tais documentos foram conjugados como depoimento de J. , funcionário da ... de que o autor é gerente, tendo relatado que no dia em causa seguida de ..., para ..., na sua própria viatura, atrás do veículo conduzido pelo autor, tendo chegado ao local do sinistro logo de imediato e socorrido o autor, o qual lhe pediu para o transportar para ..., não obstante a insistência da testemunha em o levar ao Hospital, o que foi recusado em virtude de ter pequenas lesões, apenas umas escoriações.

Referiu que o automóvel ficou cerca de 10 metros fora da estrada no talude da mesma.

Declarou que não telefonou para accionar os meios de socorro.

Que levou o autor a casa onde ficou também a dormir, uma vez que no dia seguinte tinha trabalho a desempenhar na cidade de ....

Descreveu que no dia seguinte foi ao local com a esposa do autor e que no local não havia destroços nem se encontrava o veículo, não obstante no dia anterior haver destroços na via.

Tal depoimento foi prestado sobre factos que presenciou, com detalhes que lograram convencer o tribunal da autenticidade dos mesmos.

No depoimento de L. , que referiu ter aparecido em casa o autor, o qual apresentava lesões numa mão e na cara, pequenas escoriações superficiais, que limpou e desinfectou, sendo que se recusava a ir ao hospital.

Que o autor apareceu acompanhado da testemunha J. , o qual dormiu na sua casa, tendo corroborado as démarches no dia seguinte para recuperar o veiculo.

Que nos 2-3 meses subsequentes ao sinistro o autor se deslocava à boleia com os colaboradores da OMB e que depois, por não ser aceite o dever se indemnizar pela 1ª Ré, comprou um veículo em 2ª mão, pelo valor aproximado de €15.000,00.

Tal depoimento foi prestado com espontaneidade sobre os factos que presenciou.

No depoimento de E. , militar da GNR que se deslocou ao local, no dia do acidente sendo que teve conhecimento do mesmo, pelo CODU, desconhecendo quem terá accionado os meios de socorro.

Ao chegar ao local não encontraram o condutor, tendo feito uma procura de pessoas no local, não tendo encontrado.

Descreveu o local onde se encontrava o veículo, no talude da estrada, além dos estragos no veículo, existiam estragos na vedação da estrada, a via estava suja com terra e destroços da viatura.

Que ao saberem quem era o condutor contactaram a PSP para se deslocar ao Hospital de ... e a casa deste para fazerem o teste de alcoolémia, o que não conseguiram.

Tal depoimento foi prestado com espontaneidade, compatível com os documentos dos autos, sendo que corroborou as medições e teor do auto de fls. 12 e seguintes, logrando convencer o tribunal da autenticidade dos factos.

No depoimento de D. , perito averiguador que relatou ter contactado com o autor no dia 15 de Fevereiro de 2019, na loja de ... e ainda se encontrava combalido com dores.

Não presenciou o acidente, não tendo averiguado como foram accionados os meios de socorro, tendo sido um depoimento muito parco em detalhes, em nada podendo esclarecer o tribunal.

No depoimento de H. profissional de seguro que nada soube do acidente, a não ser da análise documental, tendo corroborado o tero das cartas trocadas entre a 1ª ré e o autor.

No depoimento de I. , perito avaliador que se deslocou à oficina oficial da C. em ..., tendo avaliado os estragos e custo de reparação, tendo descrito que havia muitos estragos não visíveis no veículo e eram estruturais sendo que o custo de reparação seria superior ao veículo, e que haveria riscos de insegurança estrutural do veiculo.

Tal depoimento foi prestado sobre factos que presenciou, sendo compatível como as regras da experiência comum quando a este tipo de sinistros, logrando assim convencer o tribunal da autenticidade dos factos.

No depoimento de F. , G. , bombeiros que se deslocaram ao local, e que relataram o estado em que se encontrava o veículo, a estrada estava suja, tendo havido operações de limpeza da mesma, não tendo encontrado o condutor.

Referiram que se deslocaram após ter sido accionado o sistema de socorro, desconhecendo quem o accionou.

Tais depoimentos são compatíveis com os documentos e restantes depoimentos, logrando assim convencer o tribunal da autenticidade dos depoimentos.

Passando à apreciação concreta da matéria de facto impugnada, no que se reporta aos factos relativos ao contacto com as autoridades policiais, foi junto a fls. 124 uma informação prestada pela C. , a solicitação do tribunal, da qual resulta o seguinte: “confirmamos que no dia 29/01/19 às 1:08 a.m. foi despoletada uma chamada SOS automática, sendo que do registo que temos em sistema, no momento do embate, encontra-se um ocupante e 3 airbags são despoletados. A chamada foi estabelecida com sucesso e o agente tenta falar com o condutor, mas não obtém resposta, apesar do ruído de fundo.

Neste sentido foram despoletados os protocolos de assistência.

Contactada a policia local, a GNR, os mesmos informam que se são deslocar ao local, no entanto à chegada ao local do sinistro, o agente de autoridade informa que o condutor não se encontra no local, não sendo necessária a prestação do serviço e, neste momento a chamada é terminada.”

Ouvido o depoimento do agente de autoridade E. , este confirmou que efectivamente se deslocou ao local a pedido do CODU, não sabe a origem da chamada para as autoridades policiais e que no local não se encontrava o condutor, não existindo outros veículos acidentados.

Por sua vez, do depoimento da testemunha D. , perito averiguador resultou que em conversa com o condutor do veículo, ora A., ocorrida posteriormente ao acidente, em 15 de Fevereiro, este lhe terá dito que as autoridades policiais terão sido chamadas pelo sistema automático do veículo e que efectivamente ouviu vozes dentro do carro após o acidente, mas que lhes não respondeu porque combalido após o embate.

Daqui não decorre nem que o A., conforme referido no ponto 37 “esteve a falar com o call center da C. ” o que sempre implicaria um diálogo, sequer que se tenha apercebido, naquela ocasião, de que se tratava de um contacto do call center. O facto não provado para o efeito assume-se como perfeitamente irrelevante para a decisão da causa, pois que da não prova de um facto negativo não se extrai a prova do seu contrário. E, era essa prova que tinha de ser feita, bem como que o A. sabia, ou devia saber, que tinham sido chamadas as autoridades policiais.

Com efeito, a exclusão constante da apólice impunha a alegação e prova, a cargo da seguradora, conforme o exige o artº 342 nº2 do C.C., por se tratar de facto impeditivo do direito alegado pelo A. (excepção de direito material), de que o A. sabia que haviam sido accionados os meios de socorro e por inerência as autoridades policiais e, sabendo-o, abandonou de forma voluntária o local, antes da chegada das referidas autoridades policiais.

Por outro lado, em relação ao ponto 36, a versão dele constante não reflecte igualmente os distintos momentos ocorridos entre o contacto automático dos sistemas electrónicos do veículo para o call center e a chamada deste call center para as autoridades policiais ocorrida após a impossibilidade de contacto com o condutor.

Nesta medida, altera-se o referido ponto, dividindo-o em dois pontos, porque mais conforme ao que consta do doc. de fls. 124, com a seguinte redacção:

36. Após o acidente, o sistema de segurança do veículo, efectuou um contacto automático para o call center da C. .

36-A. Na sequência desse contacto, o funcionário do call center tentou estabelecer contacto com o condutor, sem sucesso, pelo que contactou as autoridades policiais, a fim de se deslocarem ao local do acidente.

Elimina-se o ponto 37.

Por outro lado, em relação ao ponto 38, é este contraditório com o ponto 10. Não se pode dar como assente que o condutor abandonou o local do despiste por não existir na via qualquer obstáculo ou destroços do acidente e dar-se como provado que na via ficaram destroços do veículo e terra.

A respeito da eventual existência de destroços do veículo e de terra na via, causados pelo despiste, resultou do depoimento dos bombeiros que se deslocaram ao local, F. e G. , que o veículo acidentado estava totalmente fora da faixa de rodagem, junto da escapatória aí existente e que não existiam destroços do veículo na via. Relativamente à terra, resultou que se encontrava vestígios de terra na berma, que foi limpa, conforme consta do relatório junto com o ofício remetido pelos Bombeiros a 12/11/20, mas fora da faixa de rodagem.

Elimina-se assim o ponto 38, por desconforme à prova produzida e contrário ao facto provado com o nº 10.

Por outro lado, da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido não resultaram especificadas as condições particulares e cláusulas gerais da apólice de seguro, relevantes para a boa decisão da causa tendo em conta os pedidos formulados, não bastando, para o efeito, uma genérica remissão para estas clausulas, muito menos considerando-as como reproduzidas.

Nesta medida, acordam os Juízes desta Relação em dar como provados, por recurso ao artº 662 nº1 do C.P.C., os seguintes factos constantes da apólice de seguro referida nos pontos 13 a 17, por relevantes para a boa decisão da causa:

39-Das condições particulares da apólice referida no ponto 13, consta a cobertura de “Veículo de Substituição- Número de dias de uso contratados: 30.

Cobertura de veículo de Substituição: o presente contrato garante a disponibilização de um veículo de substituição da gama “Equivalente”. (…) Veículo de Substituição nível 2: sem franquia.”

40-De acordo com a cláusula 3ª das Condições Gerais do seguro facultativo de responsabilidade civil automóvel, “considera-se o veículo em situação de perda total, quando se verifique uma das seguintes situações:

(…)

b) A reparação seja materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança;

c) O valor da reparação, adicionado ao valor do salvado, seja superior ao capital seguro do veículo e, simultaneamente, o valor da reparação seja superior a 70% do capital seguro do veículo;”

41-Nos termos da cláusula 5ª das condições gerais do seguro facultativo de responsabilidade civil automóvel “ficam ainda excluídos do âmbito do Seguro Automóvel Facultativo:

(…)

e) Danos ocorridos quando o Condutor do veículo seguro recuse submeter-se a testes de alcoolémia ou de deteção de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, bem como quando voluntariamente abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”.

Por último altera-se a redacção do ponto 15, por desconforme ao teor da apólice e ao beneficiário nela designado (clausula 10ª das Condições Gerais) e ao referido no ponto 14, substituindo-se pelo seguinte:

15-O seguro contratado entre Autor e 1.ª Ré abrange a cobertura facultativa de danos próprios da referida viatura segurada, obrigando-se a Ré a indemnizar o beneficiário por quaisquer danos que ocorressem na mesma como consequência, nomeadamente, de choque, colisão, capotamento e quebra isolada de vidros, até ao limite do valor seguro à data de eventual sinistro, sendo que a franquia tinha o valor de € 0 (zero euros).

É pois a seguinte a matéria de facto a considerar:

1-No dia 29 de Janeiro de 2019 - TERÇA FEIRA - pela 1h00 da manhã, circulava o Autor com o veículo automóvel ligeiro de passageiros marca C. , modelo 418 Gran Coupé, com a matrícula ... – no Itinerário Principal 3 (IP3).

2. O referido veículo encontra-se registado em nome da C. (Portugal), Lda., tendo esta celebrado um contrato de Aluguer Operacional / Locação Operacional (contrato n.º ...) com o A., sendo esta a proprietária do veículo em causa (conforme documento que compõe fls. 15-19 cujo teor se dá por reproduzido.

3. O contrato de Aluguer Operacional / Locação Operacional tem o valor total imputado ao A. de € 47.898,36 (€ 4.470,29 1.º aluguer + € 21.878,97 restantes 59 prestações + € 239,85 comissão de abertura + € 215,25 Comissão de Finalização + € 199,42 Comissão de Processamento + € 20.894,59 pagamento final)

4. Ao km 110 do IP3 (Distrito Viseu, Concelho de Tondela, União de Freguesias de São Miguel de Outeiro e Sabugosa) no sentido Coimbra - Viseu do IP3, o Autor perdeu o controlo da viatura que conduzia tendo ido embater no sinal de quilometragem e na rede que se encontra paralelamente à estrada - doc. que compõe fls. 12-14 cujo teor se dá por reproduzido

5. Por motivos não apurados, a viatura entrou em despiste, razão pela qual saiu de forma descontrolada da faixa de rodagem pela direita para a berma da estrada, acabando por chocar de frente contra a referida placa e rede, assim se imobilizando naquele local após o embate com a vedação.

6. O local onde ocorreu o descrito acidente é uma curva sem sinalização luminosa.

7. Em virtude do despiste e subsequente choque referidos e como sua consequência directa e necessária a referida viatura automóvel ficou bastante danificada.

8. Naquele momento, sendo de madrugada, na zona apenas circulava um colega do A., J. , uma vez que ambos vinham da mesma reunião Associação ... com sede em ..., da qual o A. é presidente da direcção.

9. O Autor, saiu do mesmo com ferimentos ligeiros - aspecto ensanguentado - no rosto e na mão direita.

10. Porque do dito acidente não resultaram outros sinistrados, porque a faixa de rodagem estava completamente livre e desocupada sem qualquer obstáculo proveniente do despiste e porque, não obstante os danos sofridos na sua viatura, circulava atrás do A. o seu colega J. , na viatura da marca Volkswagen Polo de cor cinzenta, aquele decidiu ir para casa, sita no ..., ....a fim de tratar os ferimentos.

11. Na manhã do dia 29 de Janeiro a esposa do Autor, L. , juntamente com o J. , deslocaram-se ao local do acidente tendo verificado que a viatura já lá não estava.

12. De seguida a esposa do A. e o J. deslocaram-se à GNR de ..., tendo-lhe sido comunicado que o automóvel havia sido transportado pelo reboque para ....

13. Naquela data encontrava-se em vigor o contrato de seguro do ramo automóvel celebrado entre o Autor e a Ré, titulado pela apólice com o nº ..., pelo qual aquele declarou transferir para esta, a qual declarou assumir, a responsabilidade de acidentes de viação ocorridos com o veículo automóvel referido e de acordo com as condições particulares da apólice – cf. documento de fls. 20-46, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

14. O beneficiário do respectivo seguro (segurado) é o respectivo proprietário, ou seja, a aqui Ré, C. (Portugal), Lda.

15. O seguro contratado entre Autor e 1.ª Ré abrange a cobertura facultativa de danos próprios da referida viatura segurada, obrigando-se a Ré a indemnizar o beneficiário por quaisquer danos que ocorressem na mesma como consequência, nomeadamente, de choque, colisão, capotamento e quebra isolada de vidros, até ao limite do valor seguro à data de eventual sinistro, sendo que a franquia tinha o valor de € 0 (zero euros).

16. O contrato de seguro contratado garante o valor de aquisição do Veículo Seguro.

17. À data do mencionado sinistro encontrava-se o automóvel aqui em causa avaliado e seguro pela 1.ª Ré pelo valor de € 45.000,00 – cf. doc. fls. 47.

18. À data do sinistro o contrato de seguro encontrava-se pago pelo A e, consequentemente, em vigor - cf. doc. fls. 50.

19. No dia 31 de Janeiro o A. efectuou a respectiva participação do sinistro automóvel / declaração amigável à 1.ª Ré doc. 51.

20. Nesse mesmo dia, 31 de Janeiro, o A. deslocou-se à GNR de ... tendo participado o acidente automóvel aqui em causa.

21. A partir do referido dia 29.01.2019 o mencionado automóvel ficou imobilizado primeiramente nos reboques em ... e posteriormente na C. em ..., ficando o Autor impossibilitado de o usar nas suas deslocações diárias como era habitual até então e a aguardar a tomada de decisão da Companhia de Seguros Ré no seguimento da participação por si efectuada logo no próprio do descrito acidente e que deu origem ao processo interno de ocorrência n.º 1011/ .../001.

22. A 27 de Fevereiro de 2019 a 1.ª Ré enviou carta ao A. a negar a responsabilidade pelas indemnizações devidas, conforme documento de fls. 52 cujo teor se dá por reproduzido.

23. Após a realização de perícia pelos serviços técnicos da Companhia de Seguros a 1.ª Ré enviou nova carta datada de 8 de Março de 2019 ao A. informando-o que o custo de reparação dos estragos por aquela orçamentado - e efectivamente correspondente aos danos sofridos no veículo do Autor em consequência do acidente descrito - foi de € 38.776,10 – cf. documento de fls. 47 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

24. Nessa mesma carta de 8.3.2019, a 1.ª Ré informou o Autor que face ao referido valor dos danos (€ 38.776,10) considerava o automóvel como perda total.

25. Através da mesma comunicação mais informou a 1.ª Ré que a melhor proposta para aquisição do salvado válida até 05/05/2019 foi de € 16.633,00 e que o A. podia transaccionar o salvado directamente com a entidade proponente, Aopt Serviços e Sistemas Automóvel Lda.

26. No seguimento da recepção pelo Autor de tal comunicação, o mandatário do Autor, em 18.03.2019 e em representação deste, enviou comunicação à Ré na qual comunicou que o Autor não aceitava a declinação de responsabilidade verificada quanto à regularização do dito sinistro, por não assistir à Ré qualquer fundamento quanto ao motivo de exclusão de responsabilidade invocado – cf. documento de fls. 5354vs. e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

27. Na referida comunicação o mandatário do Autor transmitiu à Ré que considerando que o sinistro em causa se encontrava abrangido pelo contrato de seguro celebrado entre aquela e o Autor, sendo o mesmo válido e eficaz e não ocorrendo qualquer causa de exclusão da responsabilidade, nomeadamente a incorrectamente por aquela invocada - o Autor tem apenas uma relação contratual com a seguradora 1.ª Ré e não com outra entidade, nomeadamente com empresas que pretendam adquirir o salvado.

 

28. Até hoje o A. não obteve qualquer resposta da 1.ª Ré nem esta procedeu ao A. ao pagamento de qualquer indemnização.

29. A 1ª Ré também não procedeu à entrega ao A. de um veículo de substituição.

30. Não obstante, e apesar de o veículo ter sido dado pela 1.ª Ré como perda total, a verdade é que o A. continuou a cumprir o contrato de Aluguer Operacional com a 2.ª Ré, pagando uma mensalidade de € 370,83, sem poder usufruir do automóvel.

31. Até ao momento do julgamento da presente acção, o A. já pagou à 2.ª ré os valores ao mês de Abril de 2021 a quantia de €23.044,58, a título do contrato de aluguer.

32. O A. entretanto, entrou também em contacto com a 2.ª Ré no sentido de esta tentar alcançar um acordo com a 1.ª ré, o que não veio a suceder - doc. de fls. 76-77.

33. Desde Abril de 2021 até ao final do contrato encontram-se por pagar à 2.ª Ré 15 prestações no valor, cada uma, de €374,21, mais o valor final de € 20.894,58, mais a comissão de finalização no valor de € 215,25, o que perfaz o total de € 26.722,98.

34. Falta ainda pagar à 2.ª Ré a quantia de € 1,85 relativo ao aluguer n.º 2 que talvez por lapso a factura continha o valor de € 372,36 em vez de € 374,21.

35. O A. não pretende adquirir a propriedade do veículo ou do salvado.

36. Após o acidente, o sistema de segurança do veículo, efectuou um contacto automático para o call center da C. .

36-A. Na sequência desse contacto, o funcionário do call center tentou estabelecer contacto com o condutor, sem sucesso, pelo que contactou as autoridades policiais, afim de se deslocarem ao local do acidente.

37. Eliminado.

38. Eliminado.

39-Das condições particulares da apólice referida no ponto 13, consta a cobertura de “Veículo de Substituição- Número de dias de uso contratados: 30.

Cobertura de veículo de Substituição: o presente contrato garante a disponibilização de um veículo de substituição da gama “Equivalente”. (…) Veículo de Substituição nível2: sem franquia”

 40- De acordo com a cláusula 3ª das Condições Gerais do seguro facultativo de responsabilidade civil automóvel, “considera-se o veículo em situação de perda total, quando se verifique uma das seguintes situações:

(…)

b) A reparação seja materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança;

c) O valor da reparação, adicionado ao valor do salvado, seja superior ao capital seguro do veículo e, simultaneamente, o valor da reparação seja superior a 70% do capital seguro do veículo;”

41-Nos termos da cláusula 5ª das condições gerais do seguro facultativo de responsabilidade civil automóvel “ficam ainda excluídos do âmbito do Seguro Automóvel Facultativo: (...)

e) Danos ocorridos quando o Condutor do veículo seguro recuse submeter-se a testes de alcoolémia ou de deteção de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, bem como quando voluntariamente abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”.


*


FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Funda a recorrente, nas suas conclusões, a sua discordância relativamente à qualificação jurídica dos factos efectuada na decisão sob recurso, essencialmente nos seguintes argumentos:

- não ficou demonstrado que o A. deliberadamente e, sabendo que tinham sido chamadas as autoridades policiais ao local, tenha abandonado este local sem qualquer justificação;

- não se pode considerar assim preenchida a cláusula de exclusão do seguro prevista no artº 5 das condições gerais da apólice de seguro facultativo, devendo esta clausula ser interpretada no sentido mais favorável ao A., ou seja, no sentido de que só operaria se este, deliberadamente e sabendo que as autoridades policiais tinham sido chamadas, se ausentasse do local sem justificação.

Decidindo

d) se dos autos resultaram factos de onde decorra verificada a causa de exclusão de cobertura dos danos próprios do veículo sinistrado, por abandono do local pelo condutor, antes da chegada das autoridades policiais;

 

Considerou a decisão sob recurso que operava a exclusão constante da cláusula 5ª referida no ponto 41, pelo facto de o A. se ter ausentado do local, antes da chegada das autoridades policiais, ainda que chamadas por terceiro (nomeadamente pelo call center da C. ), invocando, em apoio da sua posição, jurisprudência constante do Ac. desta Relação de 24.04.2012, proferida no processo nº 36/12.9YRCBR.

Mais considerou que “Não foi provado, e ao autor caberia tal prova, que desconhecia tal sistema, pois em regra, é uma opção do veículo e que tem custo acrescido do mesmo. É consabido que nunca deve ser abandonado o local do acidente, a menos que seja para se deslocar ao hospital” e que “Dos factos provados resulta à saciedade que o autor, logo após o acidente, se deslocou, na companhia do seu colaborar para sua casa, sabendo que havia um acidente e não desconhecendo o sistema de alerta do veículo que accionaria os meios de socorro. Tal cause de exclusão visa, precisamente, a de acautelar a frustração do condutor do veículo seguro ao teste de alcoolémia ou de detecção de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, servindo-se da fuga do local da ocorrência. Acresce que, atendendo ao local onde se encontrava o veículo, os destroços e sujidade existente no local, caberia a qualquer condutor assegurar que os outros ocupantes da via, não seriam prejudicados com tal, impondo-se que colocasse a sinalização adequada no local, o que não ocorreu, como resultou das declarações das testemunhas.”

Adiante-se desde já que se discorda de tal decisão e que a jurisprudência invocada na decisão recorrida não é a única posição defensável sobre a interpretação desta cláusula de exclusão do seguro. Interpretação que depende sempre, conforme resulta do artº 9º do C.C., da letra da lei, do pensamento legislativo e das circunstâncias em que esta lei foi elaborada, tendo ainda em conta a unidade do sistema jurídico em que se integra. Acresce que a referida clausula de exclusão constitui uma clausula contratual geral e que, na sua interpretação, se terá de atender aos critérios constantes dos artºs 10 e 11 do regime das clausulas contratuais gerais, constante do D.L. 446/85 de 25/09 (doravante LCCG).   

Posto isto e volvendo ao primeiro argumento seguido na decisão recorrida, não se vê que exista qualquer obrigação legal de contacto do condutor sinistrado com as autoridades policiais e de permanência deste no local do acidente, excepto nos casos previstos no artº 89 nº2 do C. da Estrada, ou seja, quando do acidente resultem mortos ou feridos. Exceptua-se desta obrigação legal imposta por via da referida norma, os casos em que os ferimentos ocorrem no próprio condutor, sem intervenção de terceiros.

Assim, ou existe obrigação de permanência do condutor no local do acidente ou não, sendo que esta a existir teria de resultar da lei ou de disposição contratual.

No caso em apreço, não existia disposição legal que obrigasse à intervenção das autoridades policiais, sendo esta intervenção meramente facultativa. Não existindo vítimas do acidente, a única obrigação imposta aos condutores intervenientes, consiste no fornecimento dos seus elementos de identificação, do proprietário do veículo se não coincidente com o condutor, e dos referentes à apólice de seguro, conforme o exige o nº1 do artº 89 do C. da Estrada.

Não existindo obrigação legal, poderá, no entanto, tal obrigação decorrer de disposição contratual, mormente de contrato de seguro com cobertura de danos próprios do veículo.

Neste conspecto, das condições gerais da cobertura de danos próprios, resulta a exclusão da responsabilidade da seguradora, nos termos da sua clausula 5ª por “e) Danos ocorridos quando o Condutor do veículo seguro recuse submeter-se a testes de alcoolémia ou de deteção de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, bem como quando voluntariamente abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade.”

A decisão recorrida considerou que se verifica a exclusão do risco com base nesta cláusula sempre que o condutor abandone o local e tenham sido chamadas as autoridades policiais, independentemente de ter sido alegado e provado que este sabia que estas tinham sido chamadas e, sabendo-o, tenha abandonado de forma voluntária e sem justificação, o local do acidente, antes da chegada destas autoridades.

Não acolhemos, no entanto, esta posição, pois que a aludida clausula, ao dispor que o risco se tem por excluído quando o condutor, de forma voluntária, abandone o local do acidente antes da chegada das autoridades policiais, pressupõe o conhecimento pelo condutor de que as autoridades policiais foram efectivamente chamadas ao local e que, tendo conhecimento e, já após este chamamento, abandone sem qualquer justificação o local. E, porque se trata de uma excepção de direito material, à seguradora que invoca a causa de exclusão, cabe o ónus de alegação e prova da verificação dos factos que a integram (artº 342 nº2 do C.C.)

Há ainda que ter em conta que o contrato de seguro celebrado entre o A. e a R. seguradora é um contrato de adesão, contendo cláusulas contratuais gerais, cuja redacção o contraente/aderente não pode nem influenciar nem discutir, não obstante se tratar de uma cobertura facultativa.

Assim sendo, constituindo estas clausulas e condições gerais específicas da aludida cobertura, nomeadamente as cláusulas referentes à exclusão do risco, clausulas contratuais gerais, é-lhes aplicável o respectivo regime, constante do D.L. 446/85 de 25 de Setembro (LCCG), conforme decorre expressamente do disposto no artº 3 da Lei do Contrato de Seguro[4], aprovado pelo D.L. 72/2008 de 16/04.

Nesta medida e, no que respeita à interpretação e integração dos negócios jurídicos, dispõe o artº 10 do LCCG que “As cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam.

O contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel por danos próprios é, como o próprio nome indica, um seguro de danos, neste caso em benefício de terceiro, sendo regulado pelas estipulações da respectiva apólice que não sejam proibidas pela lei e, subsidiariamente, pelo regime jurídico do contrato de seguro, estabelecido pelo já referido Decreto-Lei nº 72/2008, de 16.04 (artºs 123 a 174) e pelo Decreto Lei nº 214/97, de 16 de Agosto.

Assim sendo é por reporte a estes normativos e ao disposto nos artºs 236 a 238 do C.C., que terá de ser interpretada esta cláusula, tendo em conta as características próprias do contrato de seguro facultativo e os interesses que com ele se visaram assegurar. Se o contraente aderente visou salvaguardar a ocorrência de danos próprios no veículo, a seguradora conforme decorre desta clausula visou a cobertura de um determinado risco, dela excluindo aquelas situações que estão para além do risco. No caso em apreço, os danos decorrentes de sinistro em que o condutor esteja sob o uso de estupefacientes ou álcool, nele se incluindo os casos em que o condutor de forma voluntária recuse ou impossibilite, pelo abandono do local, os testes de detecção destas substâncias.

Refira-se que nos termos do disposto no artº 236 nº1 do C.C., a interpretação da declaração negocial deve, em princípio, fazer-se no sentido propugnado pela teoria da impressão do destinatário. Se o declaratário, que neste tipo de seguros é o tomador de seguro[5] (ainda que seja beneficiário, um terceiro), entendeu a declaração no sentido querido pelo declarante, nesse sentido é de interpretar a declaração, conforme decorre do nº 2 do art. 236 do C.C.; porém, se o declaratário entendeu e podia entender a declaração diferentemente do que o declarante queria significar com ela, ou se ao menos, estava em dúvida sobre o sentido querido pelo declarante, a interpretação terá de ser feita nos termos do nº 1 deste preceito. [6]

Por sua vez, estipula o artº 238 do C.C. que nos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha a mínima correspondência no texto, ainda que imperfeitamente expresso, só se admitindo que assim não seja se, as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e se este sentido corresponder à vontade real das partes.

No caso de contrato de seguro de danos próprios, em que a assunção do risco, corresponde a uma cobertura expressamente contratada, a interpretação não pode consistir na ampliação deste risco. Conforme se refere em Ac. proferido nesta Relação de Coimbra em 23/11/21[7], citando Moutinho de Almeida (Contrato de Seguro Estudos, Coimbra Editora, 2009 pág. 140 “mesmo nos casos em que se imponha uma interpretação complementadora por força da existência de cláusulas insuficientes, ou falta de cláusulas necessárias, tal interpretação não pode conduzir a uma ampliação do objecto negocial, limite este que, no domínio dos seguros, deve ser entendido de modo particular, dada a relevância da amplitude do risco no âmbito deste contrato, ali acrescentando que tal interpretação é de excluir quando “implique a ampliação do núcleo da prestação da seguradora, na acepção da jurisprudência alemã segundo a qual esse núcleo se reporta aquelas cláusulas que estabelecem as condições e delimitam a prestação da seguradora, sem as quais o núcleo essencial do contrato careceria de precisão.” 

Por outro lado, no caso de o sentido da clausula em apreço se configurar como ambíguo, resulta ainda do disposto no artº 11 nº1 do RCCG que deve ser interpretada de acordo com “o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real.”, prosseguindo por especificar no seu nº2 que, “na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente. 

Ora, uma clausula ambígua é aquela que, pela sua redacção, comporte diversos sentidos. Nesse caso deverá ser interpretada de acordo com o sentido que lhe daria um contraente indeterminado normal, o homem médio, que se limitasse a subscrevê-la ou aceitá-la. A respeito da interpretação de clausula em tudo semelhante, defendeu-se em recente Ac. do STJ de 18/03/21[8] que “Nesta tarefa interpretativa, importa ainda recordar o ensinamento de Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral Tomo I, 1999, págs. 478, 479 e 483) quando afirma que “a doutrina atual encara a interpretação do negócio jurídico como algo de essencialmente objetivo; o seu ponto de incidência não é a vontade interior: ela recai antes sobre um comportamento significativo.” Acrescenta ainda o mesmo autor que a autonomia privada “(...) tem de ser temperada com o princípio da tutela da confiança...”, que não se opõe à autonomia privada, antes a delimita, e que a própria interpretação não pode deixar de atender à boa-fé, ou seja, aos valores fundamentais do ordenamento jurídico que aí se jogam. Efetivamente, na referida cláusula é possível descortinar dois momentos relevantes para a verificação da exclusão: o do abandono do local do acidente antes da chegada das autoridades e o da chamada das autoridades policiais. Neste contexto, somos levados a considerar que a exclusão da cobertura do sinistro só tem razão de ser se o condutor do veículo, sem motivo que o justifique, abandonar o local do acidente, depois de saber que as autoridades policiais foram chamadas para tomar conta da ocorrência. Aliás, o segmento final da referida cláusula apenas adquire alguma utilidade quando interpretado no sentido que acabamos de enunciar, ou seja o de que a seguradora apenas poderá opor a exclusão da garantia contratada ao tomador se a autoridade policial tiver sido chamada ao local pelo condutor do veículo ou por outra entidade e, não obstante, aquele, depois disso, tiver voluntariamente e por sua iniciativa abandonado o local do acidente de viação antes da chegada dessa autoridade. É este, a nosso ver, o sentido normativo extraído da declaração negocial (cf. art. 236º, nº 1, do CC), se tivermos em conta, como instrumentos interpretativos, a natureza e o objeto do seguro, o teor das suas cláusulas contratuais, o seu contexto, a sua finalidade e o seu efeito útil, bem como o princípio geral consagrado no art. 11º, da LCCG, segundo o qual, existindo dúvidas quanto ao entendimento do destinatário, prevalece o sentido mais favorável ao aderente/segurado, e que se funda na autorresponsabilidade do declarante e na proteção do destinatário, uma e outra assentes na boa-fé, em sentido objetivo.”

Subscrevemos o entendimento expendido neste acórdão. Qualquer homem médio, colocado na posição do contraente aderente, interpretaria esta clausula, no sentido de que só existe exclusão do risco se o condutor, após terem sido chamadas as autoridades policiais e tendo conhecimento desse facto, abandone o local do sinistro, sem justificação, antes de estas comparecerem no local.[9]

É esta a interpretação mais conforme à letra e ratio desta norma de exclusão do risco, sem que da mesma se possa retirar qualquer efectiva ampliação do risco assumido pela seguradora.

Ora estes factos que integrariam a exclusão do risco, não resultaram da matéria assente, sendo certo que, conforme já referido, em acção intentada pelo tomador de seguro contra a Seguradora, com vista ao ressarcimento do dano sofrido, cabe ao primeiro o ónus de alegação e prova da verificação do risco coberto, e à segunda, o ónus de alegação e prova da verificação de uma cláusula de exclusão do risco (cfr. artº. 342º, nºs 1 e 2 do C.C.), prova que a ré não logrou fazer.

Pelo contrário, dos factos provados sob os pontos 10 e 36-A, decorre que o condutor após o acidente abandonou o local, mas não decorre nem que este soubesse que tinham sido chamadas as autoridades policiais, nem que tinha sido feito um contacto do call center da C. para as autoridades policiais, antes de este condutor abandonar o local do despiste. Ainda que assim não fosse, do ponto 10, decorre a justificação para o condutor se ter ausentado do local: a não intervenção de outro veículo, o facto de o veículo acidentado se encontrar na totalidade fora da faixa de rodagem, não existir qualquer vestígio do acidente na via e o facto de pretender tratar os ferimentos ligeiros que sofreu.

Assim sendo, não logrando a R. a prova da verificação da exclusão do risco, está a seguradora constituída na obrigação de indemnização pelos prejuízos sofridos, de acordo com as coberturas contratualmente assumidas e no limite destas, ao (s) beneficiário (s) designado (s) neste seguro. 

Impõe-se, assim, a revogação da decisão proferida nos autos, considerando este sinistro participado à 1ª R., como abrangido pela cobertura de danos próprios do veículo, de choque, colisão e capotamento.

Aqui chegados, tendo em conta os pedidos formulados contra ambas as RR., impõe-se fixar os danos cobertos ao abrigo deste seguro, bem como o beneficiário do risco e a existência de eventual obrigação de pagamento/restituição dos montantes a receber pela 2ª R., ao A.

c) do valor indemnizatório decorrente das coberturas de choque, colisão e capotamento.

O seguro facultativo de danos próprios do veículo rege-se pelas disposições e clausulas do contrato e pelos artigos 123.º a 174.º da LCS, no que não se mostrar especialmente regulado.
Nestes termos, dispõe o artº 128 deste RGCS que “A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”, mais dispondo o artº 130 nº1, do mesmo diploma legal, que “No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.”
Só assim não sucederá se as partes acordarem no valor do “interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado”. (artº 131 nº1 do RGCS)
Daqui decorre que o n.º 1 do citado artigo 130.º do RJCS expressamente prevê a admissão genérica de derrogação desse princípio indemnizatório, consagrando a prevalência, sobre este, do princípio da liberdade contratual.
Ora, a este respeito, acordaram A e 1ª R. de acordo com as condições particulares deste seguro, na cobertura do risco decorrente de choque, capotamento e colisão, ainda que involuntariamente causado pelo tomador do seguro, com um capital fixo de € 45.000,00.
Ocorrendo perda total do veículo é este o valor fixado como constituindo o valor do bem.
Da clausula 3ª das condições gerais deste seguro resulta que “considera-se o veículo em situação de perda total, quando se verifique uma das seguintes situações:

(…)

b) A reparação seja materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança;

c) O valor da reparação, adicionado ao valor do salvado, seja superior ao capital seguro do veículo e, simultaneamente, o valor da reparação seja superior a 70% do capital seguro do veículo;”

Ora, do ponto 24 dos factos assentes, decorre que a 1ª R. considerou este veículo em situação de perda total, por o valor da reparação exceder os 70% do capital seguro, aceite pelo tomador de seguro e pelo próprio proprietário/beneficiário, 2ª R. que aqui não contesta a verificação de perda total do veículo.

Nesta medida, a indemnização a satisfazer pela seguradora equivale ao valor do veículo, contratualmente fixado, ao beneficiário designado na apólice.

Com efeito, beneficiário deste seguro, conforme decorre do disposto na clausula 11ª das condições gerais do contrato de aluguer celebrado entre A. e R. e do teor do próprio clausulado de seguro (clausula 10ª das condições gerais desta cobertura) e das condições particulares, conforme ponto 14 dos factos assentes, é a C. , cujos direitos se mostram salvaguardados nesta apólice.

É esta a entidade à qual terá de ser paga a indemnização devida pela perda do bem e é essa a razão para a sua demanda nestes autos e para o pedido formulado nas alíneas a) e b) : a condenação da 1ª R a pagar à 2ª R. o valor contratualmente fixado pela perda do veículo e a condenação da 2ª R. a pagar ao A. o valor recebido, deduzido dos valores ainda em dívida neste contrato.

Decorrem estes pedidos assim formulados, da natureza própria do contrato outorgado entre A. e 2ª R. e do facto de o A. não ser nem o proprietário do veículo, nem um mero locatário a quem foi concedido o gozo temporário do bem, caso em que lhe não assistirá o direito a qualquer indemnização, embora lhe pudesse assistir o direito à atribuição de um veículo de substituição de acordo com a respectiva cobertura contratada.

Neste contrato denominado de “aluguer operacional”, à semelhança aliás da locação financeira, as rendas devidas pelo locatário não são o correspectivo do valor do uso do bem locado, mas antes parcelas do valor de aquisição final do veículo. Por assim ser, o locador é o proprietário do bem, concedendo o seu gozo ao locatário durante o prazo estipulado no contrato, mas estando desde logo clausulada a aquisição do bem no seu termo.

Conforme refere Gravato Morais[10]: “O contrato de aluguer de longa duração pode conter uma promessa (unilateral ou bilateral) de venda ou até uma proposta irrevogável de venda inserida na própria locação. Naquele caso, a transferência da propriedade ocorre com a posterior celebração do contrato de compra e venda (na promessa unilateral, depende da vontade do locatário, enquanto que, sendo a promessa bilateral, ambos os contraentes se encontram vinculados à celebração). Nesta hipótese, tal efeito opera com a simples aceitação do locatário da proposta de venda, considerando-se deste modo realizado o contrato de compra e venda. O locador, durante o período de vigência do negócio, concede ao outro o gozo temporário de um bem móvel e percebe não só a soma relativa à aquisição, mas ainda o lucro financeiro. No seu termo, o objecto encontra-se integralmente pago, pelo que naturalmente o locatário tem todo o interesse na sua aquisição. Depois de manifestar essa vontade ao locador, proceder-se-á à venda - só aqui se transferindo a propriedade do bem - por um preço pré-determinado, em regra equivalente ao valor do objecto à data do aluguer de longa duração.

Assim sendo, a transferência da propriedade para o locatário só ocorrerá, no termo do contrato, nos termos previstos na clausula 14ª, motivo pelo qual, nos seguros realizados referentes a este bem, o locador é o principal beneficiário do mesmo (clausula 11ª do contrato de aluguer de longa duração) e a entidade à qual deverá ser pago o valor do capital seguro.

Assente assim que, sendo a 2ª R. o beneficiário deste seguro, o valor a pagar pela 1ª R. o terá de ser a esta 2ª R., conforme peticionado pelo A.

Ocorre que a Locadora, beneficiária da indemnização pela perda total, recebeu já do locatário parte das prestações que, conforme referido, não se destinam meramente a ressarcir o gozo do bem, mas constituem parcelas do valor de aquisição. Assim, pese embora a responsabilidade decorrente do uso do veículo e de o risco de perda ou deterioração do bem correr por conta do locatário, conforme disposto nas clausulas 8ª, 9ª e 10ª do aludido contrato, sendo pago pela seguradora, em caso de perda total, o valor do veiculo, estipulou-se na clausula 11ª, ponto 4, das condições gerais deste contrato de ALD que a “indemnização que a Seguradora venha a liquidar destina-se a compensar o Locador do prejuízo por este sofrido com a perda do Bem, cujo montante é o devido pela caducidade do Contrato e que corresponde ao capital em dívida – acrescidos de eventuais rendas e outros encargos vencidos e não pagos à data da ocorrência do sinistro, respectivos juros de mora e todos os impostos devidos. O Locatário receberá o excesso ou pagará a diferença entre o valor total devido em consequência da caducidade do Contrato e a indemnização paga pelo Seguradora.”

Enquadrando-se no âmbito da caducidade do contrato, pela perda do bem, embora por facto não imputável ao locatário, visa-se evitar por meio desta clausula que, por via da cobertura de danos próprios de que é beneficiário o locador/proprietário, este venha a receber duas vezes, ou em excesso, o valor do bem destruído.

É neste âmbito que é formulado e tem de ser apreciado o pedido deduzido contra a 2ª R. que aqui, embora formalmente R. para efeitos de recebimento da quantia devida, se apresenta como a beneficiária da prestação devida por este seguro, constituída apenas na obrigação decorrente da clausula 11ª do contrato outorgado com o A. de, recebida a indemnização da seguradora, proceder ao acerto de contas com o locatário, entregando-lhe o montante que exceder as rendas vincendas e o valor final/residual, incluindo impostos devidos e outras despesas contratuais. Despesas que sempre seriam a suportar pelo Locatário, no que exceda o valor do capital seguro, pois que a perda do bem é-lhe imputável e o risco sempre correria por sua conta. Conforme se refere no Ac. da R de Guimarães de 29/09/16[11], embora por referência à locação financeira, “caso o locatário financeiro tenha continuado a pagar as rendas vencidas após a perda do bem, não reclamando o locador a indemnização da seguradora, nem se prevalecendo do direito à resolução do contrato, a única forma de restabelecer o equilíbrio contratual consiste na possibilidade de o locatário poder demandar conjuntamente o locador e a seguradora, pedindo a condenação da seguradora a pagar ao locador a quantia correspondente ao valor do bem locado e, simultaneamente, a condenação do locador a entregar-lhe aquela quantia, deduzida da importância relativa às rendas vincendas e, eventualmente, ao valor residual”.

Por assim ser, mostrando-se ressalvados os direitos da locadora proprietária, nos termos previstos nas condições particulares e gerais, é-lhe devido o pagamento da quantia de €45.000, cabendo ao beneficiário/proprietário do bem os montantes ainda em dívida, a título de rendas vincendas, impostos e valor residual que em Abril de 2021, conforme decorre da matéria de facto, ascendia a € 26.724.83 e, ao locatário que manteve o pagamento das prestações devidas à proprietária, o valor que remanescer, ou seja, deduzido das rendas vincendas, do valor residual e demais impostos e despesas do contrato que ainda permaneçam em dívida e que em Abril de 2021 ascendia a 18.275,17.

Relativamente aos juros peticionados da 2ª R., serão estes devidos apenas e tão só desde a data em que ocorra o pagamento da 1ª R. à 2ª R., por só neste momento se constituir a obrigação de pagamento desta 2ª R. ao A. e não desde a citação para a presente acção, conforme por este peticionado.

Por outro lado, no que se reporta à privação de uso do bem, decorrente da não atribuição de um veículo de substituição ao A., resulta esta cobertura das condições particulares, igualmente sem franquia, pelo prazo de 30 dias e, ao contrário do alegado pela R. seguradora, sem qualquer limite máximo de capital.

Esta cobertura, ao contrário do valor do bem destruído destina-se a ressarcir a privação de gozo do bem, sendo assim beneficiário da mesma, aquele que tinha o efectivo gozo - o locatário A.

Assim sendo, das condições particulares desta apólice resulta que se mostra assegurado em veículo de substituição de nível 2, de gama equivalente ao veiculo sinistrado, constando da clausula 3ª das condições especiais desta cobertura, a atribuição de um veículo de substituição em caso de privação forçada do uso do veículo seguro, em consequência de avaria ou de qualquer situação prevista no nível 1, nela se incluindo a perda total.

Por sua vez, decorre do disposto na clausula 4ª das condições especiais desta cobertura que em caso de perda total, sem pagamento de indemnização pela seguradora, deve esta assegurar ao lesado um veículo de substituição, a partir da data de participação do sinistro e até ao máximo de 5 dias (nº1 d), sem prejuízo do acordado nas condições particulares, que conforme vimos assegurava o período de 30 dias. É este o período durante o qual o A. tinha direito a um veículo de substituição, que lhe não foi entregue, sendo assim substituído, conforme decorre do disposto nas condições especiais, pelo pagamento do valor do aluguer de veículo de gama equivalente, durante este período.

Tratando-se de seguro de danos próprios, a ressarcibilidade de outros danos incluindo a privação de uso, está expressamente afastada por via do artº 130 do RGCS, excepto existindo convenção das partes em contrário e nos precisos termos desta convenção. Com efeito, conforme se refere em Ac. da R. do Porto de 06/02/18[12]Só na responsabilidade civil por factos ilícitos (extracontratual) ou baseada no risco o credor pode exigir do devedor uma indemnização superior à fixada no regime primeiramente citado, alegando que a mora lhe causou no caso concreto prejuízo mais elevado (nº3) [Cfr. neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol II, 3ª ed. revista, pág. 69.]. Mas, não sendo esse o caso, visto que estamos no domínio da responsabilidade contratual, a regra a aplicar é a que começámos por enunciar. De modo que, nunca o autor poderia ser indemnizado pela ré em função do dano que lhe adveio com a privação do uso do seu veículo. É verdade que este entendimento não é pacífico na jurisprudência. Há quem defenda que deve ser atribuída uma indemnização pela privação do uso do veículo sinistrado mesmo nos casos em que não foi contratada a cobertura facultativa de privação desse uso, considerando tal indemnização devida por violação de um dever acessório de conduta quando a seguradora demorou mais do que o razoável para o apuramento da indemnização devida e para o seu pagamento.”

Mas, como se sublinhou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10/10/2013 (Proc.º 598/12.0TBVCT.G1, consultável em www.dgsi.pt), a referida interpretação “atribui uma indemnização para além do valor contratado e confere (…) um tratamento igual a duas situações desiguais: a dos segurados que convencionaram a cobertura adicional da privação do uso e os que não a contrataram, sendo que os primeiro até estão adstritos a limites contratuais diários”.[13]

Não tendo sido indicado qualquer valor diário de aluguer deste veículo, o valor a fixar para indemnização do dano, terá de ser obtido por recurso à equidade, utilizando como referência o valor que o aluguer de veículo idêntico ou com características próximas teria para o A., tendo em conta as características do veículo sinistrado. Se, em pesquisas realizadas no mercado de aluguer, não se encontraram veículos disponíveis com estas concretas características, temos ainda assim que este valor peticionado pelo A., não se mostra impugnado pela seguradora, nem esta indica qualquer outro valor.

Assim sendo, este valor diário de €50,00/dia, afigura-se em consonância com os praticados pelo aluguer de longa duração de veículos de gama equivalente.

No que se reporta à imputação por custas, pese embora demandadas quer a Seguradora do veículo, quer a Locadora, entende-se que a obrigação da 2ª R. existe e está condicionada à procedência da pretensão quanto à 1ª R., e após satisfeita esta prestação, pelo que as custas da acção serão integralmente devidas pela 1ª R., por via do disposto no artº 527 nº1 do C.P.C.


*



DECISÃO
Pelo exposto, julgam os juízes desta relação em julgar procedente o recurso interposto pelo A. e nessa decorrência acordam:
a) na alteração da matéria de facto, fixada na primeira instãncia;
b) na condenação da 1ª R. a pagar à 2ª R. a quantia total de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), acrescida esta quantia de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação da 1.ª R. e até efectivo e integral pagamento;
c) na condenação da 1ª R. a pagar ao A. a quantia de €1500,00, correspondente ao valor do veículo de substituição, acrescida esta quantia de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação da 1ª R. e até efectivo e integral pagamento;
d) na condenação da 2.ª R. a pagar/restituir ao A. a importância recebida da 1ª R., deduzida do valor das rendas vincendas, valor residual e demais impostos e despesas em dívida pelo contrato de Contrato de Aluguer Operacional a Consumidor n.º ... celebrado entre a 2ª R. e o A., valor que em Abril de 2021 ascendia a €18.275,17, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data em que tenha ocorrido o pagamento da 1ª R. à 2ª R. e até efectivo e integral pagamento ao A.

*
 
As custas da acção fixam-se pela 1ª R. (artº 527 nº1 do C.P.C.).

Coimbra 18/01/22



[1] Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.
[2] Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S

[3]Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347
[4] É a seguinte a redacção do aludido preceito: “O disposto no presente regime não prejudica a aplicação ao contrato de seguro do disposto na legislação sobre cláusulas contratuais gerais, sobre defesa do consumidor e sobre contratos celebrados à distância, nos termos do disposto nos referidos diplomas.”
[5] Neste sentido vide ROMANO MARTINEZ, Pedro, Contratos Comerciais, Principia, a pág. 83.

[6] Ac. do STJ de 08 /09/16 , relator Orlando Afonso, proferido no proc. nº 1665/06.5TBOVR.P2.S1, disponível in www.dgsi.pt; no mesmo sentido defendendo a aplicabilidade destes critérios à interpretação destas cláusulas contratuais gerais, vide os Acs. do STJ de 5 de Julho de 2012, Processo 1028/09.0TVLSB.L1.S1; de 27 de Novembro de 2018, Processo n.º 3158/16.3T8LSB.L1.S1 e de 18 de Março de 2021, Processo n.º 1542/19.0T8LRA.C1.S1 , todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[7] Proferido no proc. nº 3310/20.7T8LRA.C1, de que foi relator Arlindo Oliveira, disponível in www.dgsi.pt.
[8] Em que foi relatora Maria Rosário Morgado, proferido no proc. nº 1542/19.0T8LRA.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt.

[9] Neste sentido, para além dos Acs. do TRC de 23/11/21 e do STJ de 18/03/21, já citados, vide ainda o Ac. do TRG de 10/10/19, relator José Flores, 412/16. 8T8WD.G1, disponível in www.dgsi.pt.
[10] “Contratos de Crédito ao Consumo”, 2007, pág. 57.
[11] Proferido no proc. nº 1030/14.0TBVCT.G1,de que foi relatora Francisca Micaela Vieira, disponível in www.dgsi.pt
[12] Ac. R. Porto de 06/02/18, relatora Márcia Portela, proc. nº 446/15.0T8AMT.P1, disponível para consulta in www.dgsi.pt
[13] Vidé ainda neste sentido Ac. do TRC de 15/11/2011 proferido no proc. 1452/09, Ac. do TRL de 25.06.2009, proferido no proc.1515/05,; Ac. do TRG de 20.11.2014, proferido no proc. 5620/13;  Acs. da R. Guimarães de 09/02/17, proc. nº 104/15.5T8PTL.G1; de16/02/17, proferido no proc. nº 183/15.5T8CBT.G1; de 02/11/17, proferido no proc. nº 2936/15.5T8BRG.G1; Ac. da R. Porto de 21/02/2018, proferido no proc. nº 32/17.0T8GDM.P1; Ac. do STJ de 13/07/17, proferido no proc. nº 188/14.3T8PBL.C1.S1, relatora Graça Trigo; em sentido contrário vidé Ac. do STJ de 14/12/16, proferido no proc. 2604/13.2TBBCL.G1.S1, relatora Fernanda Isabel Pereira, todos disponíveis para consulta in www.dsgi.pt