Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:992/15.5BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:06/22/2023
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:REVERSÃO
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
ATOS ISOLADOS
GESTÃO DE FACTO
Sumário:I-Inexiste uma presunção legal da administração de facto, verificada que esteja a administração de direito de uma sociedade por determinada pessoa.
II-Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, não podendo a mesma ser atestada pela prática de atos isolados, mas antes pela existência de uma atividade continuada, na medida em que a gerência é, antes do mais, a investidura num poder.
III-Da interpretação conjugada do artigo 11.º do CRCom, com o desiderato inerente ao registo comercial regulado no artigo 1.º desse diploma legal, apenas se infere a gerência de direito, nada permitindo extrapolar quanto à gerência de facto, porquanto visam apenas dar publicidade a uma situação jurídica e não a uma situação de facto.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I-RELATÓRIO


O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a oposição intentada por L…, no âmbito do processo de execução fiscal nº 1546201101064916 e apensos, inicialmente instaurada pelo Serviço de Finanças de Mafra, contra a sociedade “A…, Lda”, e contra si revertida, para cobrança coerciva de dívidas de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) do ano de 2011, no valor de €12.434,38.

A Recorrente, apresentou alegações tendo concluído da seguinte forma:

“I. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou procedente a oposição judicial, intentada por L…, já devidamente identificada nos autos e que, em consequência, ordenou quanto a esta a extinção do processo de execução. fiscal n.º 1546201101064916 e apensos, a correr no Serviço de Finanças de Mafra.

II. Entende a Fazenda Pública que mal esteve o Tribunal a quo na douta sentença proferida porquanto, existindo elementos nos autos que impunham decisão diversa na apreciação dos factos relevantes, promoveu uma errónea aplicação do direito a estes mesmos factos, ao ignorar circunstancias factuais que, constantes dos autos, mas não levadas ao probatório, mas também da matéria de facto dada como provada, denunciam o exercício da gerência de facto por parte da Oponente; circunstâncias estas que, tendo sido ignoradas, impõem, salvo melhor opinião, a anulação da sentença recorrida.

III. Desde logo, convém ter presente que da matéria de facto dada como provada consta como documentalmente assente (e nunca contestada) que a Oponente era gerente de direito da devedora originária desde a data de constituição desta, que a Oponente assinou documentos juridicamente vinculativos da devedora originária perante a administração fiscal no lapso de tempo relevante para a entrega do tributo nos cofres da Fazenda Pública, e mais ainda, que no exercício das suas funções e mesmo após ter aberto um salão de cabeleireiro, auferiu rendimentos da categoria A (os quais englobam as remunerações dos gerentes pelo exercício do cargo) pagos pela devedora originária até ao ano de 2012.

IV. Tal factualidade abundante vem comprovada por documentação que nunca foi contestada pela Oponente nos autos e só por si é suficiente para afastar a matéria de facto dada como provada nos pontos 11 a 13 do probatório. Pois que se a mesma auferiu até 2012 rendimentos pagos pela Devedora Originária, tal como consta do ponto 10 do probatório, não se pode simplesmente extrair que a mesma afastou-se da vida quotidiana da devedora originária por causa do salão de cabeleireiro que abriu, pois que então como justificar o pagamento de remunerações até 2012? Decerto não seria para pagamento de salários de uma trabalhadora que teria se afastado em 2009 como parece resultar da sentença recorrida. O acervo que resulta da sentença e da documentação junta aos autos também não permitem conjugar o seu afastamento da sociedade como uma mera trabalhadora em 2009 com a assinatura de documentos vinculativos da devedora originária perante a administração fiscal.

V. Com efeito, dos autos resulta inequivocamente que não se pode dar como provada a matéria factual elencada nos pontos 11 a 13 do probatório, pois que se baseou em depoimentos que não afastaram as evidências resultantes da documentação junta aos autos: certidão de registo comercial, requerimentos dirigidos à administração fiscal em Maio e Outubro de 2011 e comprovativos de retenção na fonte sobre rendimentos auferidos até ao ano de 2012. E nenhuma relevância pode ser atribuída às observações tecidas na sentença recorrida de que um destes documentos foi destinado a um processo de execução fiscal que não está em causa nos presentes autos, pois o que releva é o facto de o mesmo demonstrar que a Oponente agiu perante terceiros vinculando a devedora originária. Aliás, a dar alguma razão a esta consideração ínsita na sentença, toda e qualquer prova que pudesse ser obtida vinculando a devedora originária perante entidades provadas nunca poderia ser apta a provar a gerência de facto pois que nunca esta documentação seria destinada a um processo de execução fiscal.

VI. Das observações acima tecidas é imperioso não só eliminar do probatório aos pontos 11 a 13, como também acrescentar ainda que, conforme documentação constante dos presentes autos e anexa à informação prestada pelo OEF, a Oponente dirigiu-se ao SF Mafra em 03/05/2011 para aí, em representação da devedora originária, ser citada para o PEF n.º 1546201101013360. Tal facto deve assim figurar no probatório, porque documentalmente provado e nunca impugnado pela parte contrária.

VII. Por conseguinte, é inegável que o Oponente, nesse lapso de tempo que decorreu entre os anos de 2001 e 2012, anos em que auferiu rendimentos pagos pela devedora originária, foi uma das pessoas que determinou os rumos financeiros da devedora originária diante de terceiros, o que fez designadamente diante da administração fiscal, e não obstante possa ter passado grande parte do seu tempo ocupada com o salão de cabeleireiro que teria aberto ao público em 2009, pois que, aliás durante o ano de 2011, estabeleceu diversas interações com a administração fiscal.

VIII. Decorre das regras da experiência que existe efetividade e continuidade do exercício da gerência de facto no período que medeia entre os anos de 2011 e 2012, ainda mais quando tal período engloba a perceção de rendimentos e a assinatura de documentos vinculativos da devedora originária, aliado ao facto de inexistirem acontecimentos que venham a contrariar a presunção constante do Registo Comercial, já que o registo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida (artigo 11.º do Código do Registo Comercial - CRC).

IX. E, no caso sub judice, respeitando a dívida exequenda a créditos resultantes de tributos cujo prazo legal de pagamento ou entrega terminou no período do exercício da administração por parte do Oponente, a disciplina a ter em consideração será a estabelecida no artigo 24.º, n.º 1, al. b), da LGT. Sendo que o ónus da prova da gerência de facto, conforme já reiterado pela inúmera doutrina e jurisprudência que se debruça sobre a matéria, cabe à Administração Fiscal.

X. Nesse sentido, do que vem acima explanado, nada nos autos permite afastar a continuidade do exercício da gerência de facto pela Oponente no período que medeia a perceção de rendimentos da categoria A na qual se insere a remuneração de gerentes, ou seja nos anos de 2001 e 2012, conclusão esta que deve ainda ser reforçada pela assinatura de documentação diversa em representação da devedora originária em período que coincide com o período de entrega do tributo em cobrança nos autos executivos.

XI. Assim, com base nesta comprovada gerência de direito e facto, cabe, pois, ao julgador utilizar as diversas presunções judiciais ao seu alcance, nomeadamente as posições assumidas no processo, as provas produzidas e as regras da experiência para concluir a gerência de facto. Face ao referido, deve-se assim concluir que a Oponente era gerente de direito e de facto, sendo responsável pelo não cumprimento do dever fundamental de pagar os impostos por parte da devedora originária.

XII. Em suma, com o devido e muito respeito, o Tribunal a quo, ao decidir como efetivamente o fez, menosprezou o entendimento consolidado e reiterado da jurisprudência emanada pelos Tribunais Superiores, estribando o seu entendimento numa inadequada valoração da matéria de facto e de direito relevante para a boa decisão da causa, tendo violado o disposto na al. b) do n.º1 do art.º 24º da Lei Geral Tributária, impondo-se assim quer a alteração da matéria de facto dada como provada na sentença nos moldes acima descritos, como ainda a substituição do sentido decisório da mesma, julgando a Oposição improcedente por não provada com as legais consequências.

Termos em que, e com o douto suprimento de vossas excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a sentença ora recorrida, com as demais e devidas consequências legais, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”


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A Recorrida apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:

“I. No entender da Oponente Recorrida, a lei foi devidamente interpretada e aplicada porquanto o artº 24º, nº1 da Lei geral tributária (LGT) exige uma prática contínua de atos determinantes da atividade económica, financeira , expansão comercial e volume de negócios.

II. Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, não podendo a mesma ser atestada pela prática de atos isolados praticados pelo Oponente, ac. Do TCAN de 2/2/2012, proc. nº 00273/09.

III. Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, não podendo a mesma ser atestada pela prática de atos isolados praticados pelo Oponente.

IV. De dois atos isolados praticados pela Oponente, em que, aparentemente, terá agido em representação da executada originária num momento concreto do ano 2011, não é viável, à luz das regras de experiência comum, extrair a conclusão de que o mesmo exerceu, de facto, a gerência da dita sociedade.” Ac. Do TCA-Norte de 20/02/2012, proc.00273/09.3BEPNF.

V. Do facto de a Oponente ter auferido remunerações da sociedade devedora originária, tal não significa que a Oponente exercesse de facto a gerência, podendo significar a renumeração das funções administrativas desempenhadas ou tão só que, sendo gerente designada, a sociedade cumpriu com as respetivas obrigações declarativas e contributivas à Autoridade Tributária e também para a Segurança Social, independentemente de exercer ou não a gerência de facto da sociedade devedora originária.

VI. Deve assim ser mantida toda a matéria de facto dada como provada nos pontos 11 a 13 do probatório.

VII. A prova testemunhal foi livremente interpretada pelo Tribunal “a Quo” e foi muito mais completa e abrangente que a prova documental feita por três documentos isolados que apenas podem provar o facto especifico circunstanciado em cada um deles, ficando por apurar todas as circunstâncias inerentes á gerência de facto de uma sociedade.

VIII. Os documentos juntos com a contestação á oposição não ficam sujeitos ao contraditório por falta de meio processual para o efeito.

IX. Acontece que o documento datado de 3/5/2022 apenas foi junto com a contestação e por isso a Oponente não teve meio processual para o impugnar, logo não pode só por isso, o mesmo ser dado como provado.

X. Razão pela qual não deve tal documento ser acrescentado ao probatório.

XI. Os documentos em causa não definem nem demonstram os rumos financeiros da devedora originária.

XII. A gerência revela-se pela prática de atos de disposição ou de administração, de acordo com o objeto social da sociedade, em nome e representação desta, vinculando-a perante terceiros e pela intervenção do executado / revertido na direção da atividade da empresa e, desse modo, a prova da gerência de direito não faz presumir legalmente o efetivo exercício da função, pelo que deve a Administração trazer aos autos os elementos que comprovem o efetivo exercício da gerência [cfr. Ac. Do STA de 28/02/2007/Proc. nº 01132/06 e de 11/03/2009/Proc. nº 0709/06].

XIII. Ou seja, a gerência de facto de uma sociedade consiste no efetivo exercício das funções que lhe são inerentes e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade. Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade.

XIV. É certo, que da gerência de direito podem ser extraídos factos indiciadores da gerência de facto, assim se estando perante meras presunções judiciais, simples ou de experiência, as quais sempre poderão ser afastadas por simples contraprova, não lhe sendo aplicável a regra do artigo 350º de CC, nos termos da qual as presunções legais só podem ser ilididas pela prova do contrário.

XV. Contudo, as presunções legais são as ilações que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido e quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz [cfr. artigos 349º e 350º do Código Civil].

XVI. Daí que, não existe no nosso ordenamento jurídico suporte normativo que permita concluir que o facto de alguém ter sido nomeado administrador de direito de determinada sociedade faça presumir legalmente o exercício de facto dessa administração. A prova da gerência de facto compete à Autoridade Tributária [cfr. Ac. TCAS de 07/06/2018/Proc. nº 618/10.3BELRS].

XVII. Por outro lado, com a remessa da oposição a Tribunal o órgão de execução fiscal, remeteu certidão permanente da Conservatória do Registo Comercial da sociedade devedora originária e histórico de declarações de IRS da Oponente, referentes aos anos de 2001 a 2012, para demonstrar que a Oponente era gerente de direito da devedora originária e que auferiu da sociedade devedora originária remunerações.

XVIII. O que não é suscetível, de forma isolada e descontextualizada, de demonstrar o exercício da gerência de facto da Oponente na sociedade devedora.

XIX. Da gerência nominal não resulta qualquer presunção de gerência de facto. Do artigo 11º do CRC resulta apenas que se presume que é gerente de direito aquele que consta como gerente do registo comercial.

Devendo assim ser mantida a sentença recorrida. Fazendo-se a A COSTUMADA JUSTIÇA.”


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A Digna Magistrada do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“Com relevância para a decisão, considera-se provada a seguinte factualidade constante dos autos:

1. Em 27-10-1997, através da Ap. n.º 15/19971027, foi averbado na Conservatória do Registo Comercial a constituição da sociedade «A…, Lda.», tendo sido designados gerentes todos os sócios, R…, A… e a Oponente, sendo a forma de obrigar a sociedade através da assinatura de um gerente (cfr. certidão permanente a fls. 17 e 18 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

2. Em 15-06-2011 foi instaurado pelo Serviço de Finanças de Mafra, contra a sociedade «A.., Lda», o processo de execução fiscal n.º 1546201101064916, para cobrança de dívida proveniente de IVA do ano de 2011, no valor de € 6.635,18 (cfr. fls. 1 e 2 do processo de execução fiscal – PEF – apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

3. Ao processo de execução fiscal identificado no número antecedente foi apensado o processo de execução fiscal n.º 1546201101104047 (cfr. fls. 26 do PEF apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

4. Em 10-05-2011 foi apresentado pela sociedade «A…, Lda.», junto do Serviço de Finanças de Mafra, requerimento a oferecer à penhora créditos sobre clientes para pagamento da dívida em cobrança no processo de execução fiscal n.º 1546201101013360, o qual se encontra assinado pela Oponente (cfr. fls. 22 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

5. Em 21-10-2011 foi apresentado pela sociedade «A…, Lda.», junto do Serviço de Finanças de Mafra, requerimento a solicitar o pagamento em prestações da dívida em cobrança no processo de execução fiscal n.º 1546201101104047, o qual se encontra assinado pela Oponente (cfr. fls. 22/verso dos autos e fls. 27 do PEF apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

6. Em 19-06-2014, o Chefe do Serviço de Finanças de Mafra proferiu projecto de decisão de reversão contra a Oponente, relativamente à dívida cobrada coercivamente no processo de execução fiscal n. º 1546201101064916 e apensos (cfr. fls. 16 e 17 do PEF apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

7. Em 28-09-2014 foi pelo Chefe do Serviço de Finanças de Mafra proferido despacho de reversão contra a Oponente, relativamente à dívida cobrada coercivamente no processo de execução fiscal n.º 1546201101064916 e apensos, no valor de € 12.434,38 (cfr. fls. 20 e 21 do PEF apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

8. Em 14-10-2014 foi entregue à Oponente, citação para o processo de execução fiscal n.º 1546201101064916, no valor de € 12.434,38 (cfr. fls. 22 a 24 do PEF apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

9. A presente Oposição foi remetida por correio registado ao Serviço de Finanças de Mafra em 03-11-2013, tendo dado entrada neste Tribunal em 11-03-2015 (cfr. fls. 2 e 8 dos autos);

10. Consta da base de dados da Autoridade Tributária que, entre os anos de 2001 e 2012 a Oponente auferiu rendimentos da categoria A pagos pela sociedade «A…, Lda.» (cfr. fls. 19 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

11. Até 2009, apesar de ser conhecida pelos trabalhadores da sociedade «A…, Lda.» como a “patroa”, a Oponente exercia funções de administrativa/empregada de escritório auxiliando o marido J… (facto que se extrai das declarações de parte da Oponente e do depoimento das testemunhas A… e R…);

12. Em 2009 a Oponente abriu um cabeleireiro, para o qual foi trabalhar, tendo deixado a sociedade «A…, Lda.», sendo substituída nas suas funções por B… (facto que se extrai das declarações de parte da Oponente e do depoimento das testemunhas A…, R… e B…);

13. Quer antes, quer depois de 2009, era J… quem tomava decisões na sociedade «A…, Lda.», decidia sobre pagamentos e vendas e dava instruções aos trabalhadores (facto que se extrai do depoimento das testemunhas A…, R… e B…);

14. Qualquer questão relacionada com assuntos dos trabalhadores era tratada com J… (facto que se extrai do depoimento das testemunhas A…, R… e B…);


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A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Não existem factos não provados, em face das possíveis soluções de direito, com interesse para a decisão da causa. “


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A decisão da matéria de facto fundou-se no seguinte:

“Quanto aos factos elencados nos números 1 a 10, a convicção do tribunal, baseou-se na análise crítica de toda a prova produzida nos autos, designadamente nas informações oficiais e documentos constantes dos autos e do processo de execução fiscal apenso, não impugnados conforme indicado em cada número do probatório, tudo de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.

Quanto aos factos elencados nos números 11 a 14, a convicção do Tribunal fundou-se na prova testemunhal produzida, tendo sido ponderado e valorado o depoimento das testemunhas ouvidas e as declarações de parte da Oponente, conforme infra se descreve.

A Oponente, nas declarações de parte prestadas, as quais se mostraram credíveis, revelou que, a partir de 2008, face às dificuldades financeiras que a empresa começou a sentir, começou a tirar cursos de cabeleireira para procurar outra actividade e fonte de rendimento, tendo aberto um salão de cabeleireiro em 2009 e deixado a sociedade.

Referiu também que, mesmo quando estava na sociedade, sempre foi o seu marido J… quem tomava todas as decisões e que apenas o auxiliava, como empregada de escritório. Disse ainda que nos anos de 2010, 2011 e 2012 já nem sequer se deslocava à sociedade e que quem a substituiu na empresa, nas funções que exercia, foi B….

A testemunha A… revelou conhecimento directo dos factos, por ter exercido funções de técnico de instalação de sistemas de alarme na sociedade entre os anos de 2001 e 2013.

Nu depoimento credível e isento, afirmou que a Oponente era sua “patroa”, mas que a partir de 2009 esta passou a trabalhar num salão de cabeleireiro do qual era proprietária, tendo deixado a sociedade e que a empresa começou a sentir dificuldades financeiras a partir de 2008, em resultado dos clientes não pagarem e da diminuição do trabalho.

Afirmou também que era J…, marido da Oponente, quem tomava decisões e que a Oponente apenas o auxiliava na área administrativa e que em 2011, 2012 e 2013 a Oponente não ia ao escritório. Até 2009 era vista pelos trabalhadores como a “patroa”, tratando de assuntos relacionados com pagamentos e salários. A partir de 2009, disse, passou a ver mais a Oponente no salão de cabeleireiro do que no escritório da empresa.

A testemunha C… não revelou conhecimento directo dos factos, uma vez que apenas conheceu a Oponente em 2008, porque os filhos frequentavam o mesmo estabelecimento de ensino. Nada soube dizer sobre o funcionamento da sociedade. Disse apenas que conhece a Oponente como sendo cabeleireira, não sabendo precisar se desde 2008 ou 2009 e que era no salão que a costumava encontrar.

A testemunha R… também revelou conhecimento directo dos factos, por ter exercido as funções de técnico de instalações de alarme na sociedade «A…, Lda.» entre os anos de 2000 e 2010.

Evidenciou de forma espontânea, num depoimento credível e imparcial, que na empresa, sempre tratou de tudo com J…, que passava muito tempo fora das instalações da empresa e que todas as instruções que lhe eram dadas era por parte do J…. Nada soube dizer sobre se a Oponente era gerente da sociedade, nem se esta assinava documentos.

A testemunha B… também revelou conhecimento directo dos factos, por ter trabalhado na sociedade «A…, Lda.» entre 2008 e 2010. Apesar de ser primo da Oponente, o seu depoimento revelou credibilidade e isenção, tendo evidenciado que foi para a empresa trabalhar em substituição da Oponente depois de esta ter saído. Disse de forma convicta e peremptória, que todas as decisões eram tomadas por J…, tudo o que se relacionava com pagamentos e vendas passava por J…. Evidenciou também que nunca reportou nada à Oponente e que a assinatura de documentos e cheques eram efectuados por J…, desconhecendo se a Oponente assinava documentos.”


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a presente oposição deduzida contra o processo de execução fiscal nº 1546201101064916 e apensos, inicialmente instaurado pelo Serviço de Finanças de Mafra, contra a sociedade “A…, Lda”, e contra si revertida, para cobrança coerciva de dívidas de IVA, do ano de 2011, no valor de €12.434,38.

Cumpre, desde já, relevar que em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto importa, assim, decidir se ocorre o apontado erro de julgamento sobre a matéria de facto arguido pela Recorrente no sentido da Recorrida ter sido gerente de facto da sociedade devedora originária e, com base nesse julgamento, se deve ser revogada a sentença na medida em que, por virtude desse erro, conclui pela ilegitimidade daquela para contra si prosseguir a execução a que se opôs.

Procedendo a legitimidade da responsável subsidiária importa julgar, em substituição, a questão prejudicada atinente ao pressuposto da culpa e sua ilisão.

Vejamos, então.

A Recorrente sustenta que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de facto, visto que, por um lado, descurou factualidade reputada de relevo para o caso vertente, e por outro lado, valorou desacertadamente factualidade constante no acervo probatório dos autos, a qual face ao regime jurídico aplicável permitiria concluir que a Oponente, ora Recorrida, é parte legítima.

Densifica, para o efeito, que a Oponente se encontrava registada como gerente de direito da sociedade devedora originária, assinou documentos juridicamente vinculativos e em sua representação, e auferiu rendimentos da categoria A pagos pela devedora originária até ao ano de 2012.

Peticiona, para o efeito, a supressão dos pontos 11 a 13 do probatório, porquanto se baseou em depoimentos que não afastaram as evidências resultantes da documentação junta aos autos, concretamente, certidão de registo comercial, requerimentos dirigidos à AT em maio e outubro de 2011 e comprovativos de retenção na fonte sobre rendimentos da categoria A auferidos até ao ano de 2012, e bem assim o aditamento de um facto concatenado com a citação do processo executivo e documentalmente suportado.

Atentemos, então, se lhe assiste razão no alegado erro de julgamento de facto, cumprindo, assim, convocar a tramitação processual atinente à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Para o efeito, importa começar por aferir se a Recorrente cumpriu os requisitos consignados no artigo 640.º do CPC.

Preceitua o aludido normativo que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Com efeito, no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao Recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adotada pela decisão recorrida (1) António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pp 165 e 166; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; Vide, designadamente, Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº 6505/13, de 2 de julho de 2013..

No concernente à observância dos requisitos constantes do citado normativo relativamente à prova testemunhal , após posições divergentes na Jurisprudência, mormente, na Jurisdição Comum o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que “[e]nquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.” (2) Ac. STJ de 01.10.2015, P. 824/11.3TTLRS.L1.S1; Ac. STJ de 14.01.2016, P. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1; Ac. STJ de 11.02.2016, P. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, P. nº 299/05; Ac. STJ de 22.09.2015, P. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção; Ac. STJ, datado de 29/09/2015, P. nº 233/09; Acórdão de 31.5.2016, 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, 449/410; Acórdão do STJ de 27.1.2015, 1060/07.

Note-se que, a indicação exata das passagens de gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo, naturalmente, do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, conforme decorre do artigo 662.º do CPC (3) Vide, designadamente, Acórdão do STJ datado de 19/02/2015, proferido no processo nº 299/05.06TBMGD.P2.S1., aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT.

Dir-se-á, portanto, que o que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do artigo 640.º do CPC (4) Conforme doutrina o Ac. STJ. de 03/03/2016, no processo nº 861/13.3TTVIS.C1.S..

Mais importa ter presente que nem todos os factos alegados pelas partes, ainda que provados, carecem de integrar a decisão atinente à matéria de facto, porquanto apenas são de considerar os factos cuja prova (ou não prova) seja relevante face às várias soluções plausíveis de direito. Por outro lado, cumpre distinguir entre factos provados e meios de prova, sendo que uns não se confundem com os outros.

Feitos estes considerandos iniciais, importa transpor os mesmos para o caso vertente.

Como visto, a Recorrente requer a supressão dos seguintes pontos do probatório:

“11. Até 2009, apesar de ser conhecida pelos trabalhadores da sociedade «A…, Lda.» como a “patroa”, a Oponente exercia funções de administrativa/empregada de escritório auxiliando o marido J… (facto que se extrai das declarações de parte da Oponente e do depoimento das testemunhas A… e R…);
12. Em 2009 a Oponente abriu um cabeleireiro, para o qual foi trabalhar, tendo deixado a sociedade «A…, Lda.», sendo substituída nas suas funções por B… (facto que se extrai das declarações de parte da Oponente e do depoimento das testemunhas A…, R… e B…);
13. Quer antes, quer depois de 2009, era J… quem tomava decisões na sociedade «A…, Lda.», decidia sobre pagamentos e vendas e dava instruções aos trabalhadores (facto que se extrai do depoimento das testemunhas A…, R… e B…)”

Ora, atentando na aludida factualidade dimana inequívoco que o meio probatório que fundamentou a sua fixação, cingiu-se, exclusivamente, na prova testemunhal, sendo certo que, de acordo os ónus legais plasmados para o efeito, e supra expendidos, a Recorrente não cumpriu os aludidos requisitos, na medida em que não obstante requeira a supressão dos pontos 11) a 13) do probatório, não procede à transcrição de qualquer depoimento ou convoca qualquer excerto, nem, tão-pouco, indica, com exatidão, as passagens de gravação dos depoimentos que pretende ver analisados, e que justificam a aludida supressão.

Com efeito, não basta a conclusiva alegação de que os depoimentos não afastaram as evidências resultantes da documentação junta aos autos, quando, ademais, os documentos convocados, concretamente, certidão de registo comercial, requerimentos dirigidos à AT em maio e outubro de 2011 e comprovativos de retenção na fonte sobre rendimentos da categoria A auferidos até ao ano de 2012, em nada permitem inferir qualquer contradição que permitisse fundar a requerida eliminação.

De relevar, neste concreto particular, que a certidão do registo comercial apenas permite inferir a gerência de direito, nada conflituando com o expendido nos pontos 11) a 13) do probatório. Sendo certo que, os requerimentos a que alude a Recorrente, e bem assim o recebimento de rendimentos da Categoria A, não só se encontram vertidos no probatório, tendo sido, devidamente, valorados pelo Tribunal a quo, como em nada traduzem qualquer errada interpretação, ou contradição na medida em que, conforme veremos em sede própria, os visados requerimentos representam atos isolados, donde, sem o exigível animus e caráter de continuidade, e o recebimento de rendimentos da Categoria A não permite, sem mais, inferir que o foram enquanto membro de órgão estatutário.

E por assim ser, improcede a visada supressão do probatório.

Atentemos, ora, no peticionado aditamento por complementação.

A Recorrente peticiona o aditamento do seguinte facto: “a Oponente dirigiu-se ao SF Mafra em 03/05/2011 para aí, em representação da devedora originária, ser citada para o PEF n.º 1546201101013360” convocando, para o efeito, documentação constante dos presentes autos respeitante à aludida citação e anexa à informação prestada pelo OEF.

De salientar, desde já, que o supra expendido não tem a roupagem de facto, porquanto evidencia um juízo conclusivo atinente ao ato de representação e vinculação, o que obstaria ao seu aditamento nos aludidos moldes.

É certo que podia, quando muito, constar a menção da aposição da assinatura no aviso de citação, mas sem que, naturalmente, se pudesse inferir qualquer juízo de facto quanto à circunstância de tal realidade resultar de um ato de deslocação propositado e vinculativo da Oponente. No entanto, ainda assim, ajuizamos que tal asserção não apresenta relevo enquanto ato de vinculação societário e que permita inferir, fidedignamente, pela gerência de facto, como se impunha, e quando, ademais, existe prova contrária e espelhada nos pontos 11) a 13) do probatório.

Dir-se-á, neste particular, que a aposição da assinatura num aviso de citação não permite, sem mais, extrapolar a gerência de facto, conforme faz a Recorrente. Ademais, e conforme já evidenciado anteriormente e no sentido propugnado pelo Tribunal a quo, a gerência não se presume tem, efetivamente, de ser cabalmente demonstrada, não podendo, por isso, consubstanciar-se em inferências decorrentes de atos que consubstanciam meros atos materiais que podem ser executados por quaisquer funcionários da citanda, não implicando qualquer poder de vinculação ou que permita extrapolar a gestão, a administração e poder decisório (cfr. artigos 246.º, nº3, do CPC ex vi, artigo 192.º, nº2, do CPPT (5) Vide, designadamente, Ac. TCAS, proferido no processo nº 1406/19, de 06.02.2020).

Face a todo o supra expendido, indefere-se a requerida supressão do probatório e bem assim o evidenciado aditamento por complementação.

Aqui chegados, estabilizada a respetiva matéria de facto, importa, então, aferir se o Tribunal a quo incorreu nos erros sobre os pressupostos de facto e de direito, na medida em que da prova carreada aos autos resulta demonstrada a gerência de facto.

Neste concreto particular, aduz que da matéria de facto dada como provada consta como documentalmente assente que a Oponente era gerente de direito da sociedade devedora originária desde a data de constituição desta, que assinou documentos juridicamente vinculativos da devedora originária perante a AT no lapso de tempo relevante para a entrega do tributo nos cofres do Estado, e mais ainda, que no exercício das suas funções e mesmo após ter aberto um salão de cabeleireiro, auferiu rendimentos da categoria A, os quais englobam as remunerações dos gerentes pelo exercício do cargo, pagos pela devedora originária até ao ano de 2012.

Sufragando, adicionalmente, que decorre das regras da experiência que existe efetividade e continuidade do exercício da gerência de facto no período que medeia entre os anos de 2011 e 2012, e que o registo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida (artigo 11.º do Código do Registo Comercial - CRC).

Dissente a Recorrida, propugnando pela manutenção da decisão recorrida, na medida em que o regime normativo aplicável, conforme ajuizado na decisão recorrida, exige uma prática contínua de atos determinantes da atividade económica, financeira, expansão comercial e volume de negócios, o que não se verifica, de todo, no caso vertente, conforme resulta do probatório.

O Tribunal a quo, assim o entendeu tendo ressalvado, desde logo, que os dois requerimentos vertidos no probatório com assinatura da Recorrida representam atos isolados que não permitem sustentar de forma inequívoca a gerência de facto, na medida em que a assinatura tem de ser entendida e interpretada como “[u]ma mera decorrência da gerência nominal, não tendo a virtualidade de comprovar a eventual gerência de facto para o período em causa.”

Ajuizando, adicionalmente, que “[n]ão demonstrou a Fazenda Pública de forma clara e inequívoca que a Oponente tenha sido abordada para se pronunciar, ou se tenha pronunciado, sobre os negócios a celebrar, empréstimos a contrair, política de vendas a prosseguir ou clientes a quem contactar. Ou sequer que a Oponente tenha celebrado qualquer contrato em representação e no interesse da executada, ou vendido os seus produtos ou serviços, ou, ainda, celebrado qualquer prestação de serviços.”

Apartando, outrossim, a valia do fundamento atinente ao pagamento de rendimentos da categoria A, salientando, para o efeito, que “[n]em a circunstância de constar que a Oponente terá auferido rendimentos da categoria A pagos pela sociedade devedora originária obsta a tal entendimento, não se podendo daí extrair o exercício efectivo da gerência, pois que tal facto nada demonstra quanto àquele exercício. Aliás, tal facto ate bate certo com o alegado pela Oponente quando afirma que exercia funções de empregada de escritório. Por outro lado, diga-se, nem sequer se encontra demonstrado que a remuneração foi auferida na qualidade de membro de órgão estatutário.”

Concluindo, assim, pela falta de cumprimento do ónus probatório por parte da AT, enfatizando, a final, que “[n]ão obstante a Fazenda Pública não ter demonstrado de forma cabal o exercício da gerência por parte da Oponente, a verdade é que esta demonstrou que, pese embora tenha figurado como gerente de direito da sociedade, nunca assumiu a gestão e direcção da mesma.”

E a verdade é que, atentando na esteira de entendimento supra expendida, não se secunda o juízo de censura que lhe é endereçado, porquanto devidamente interpretado o quadro normativo vigente com a devida transposição para o caso vertente.

Senão vejamos.

No caso sub judice, encontramo-nos face à reversão de dívidas de IVA do ano de 2011, sendo, portanto, aplicável o regime constante na LGT.

Convoquemos, então, o quadro jurídico atinente ao efeito.

De harmonia com o disposto no artigo 23.º, nº 1 e 2, da LGT:

“1 - Os administradores, diretores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.

2 - A responsabilidade prevista neste artigo aplica-se aos membros dos órgãos de fiscalização e revisores oficiais de contas nas pessoas coletivas em que os houver, desde que se demonstre que a violação dos deveres tributários destas resultou do incumprimento das suas funções de fiscalização.”

Do teor do normativo legal supratranscrito resultam dois regimes distintos da responsabilidade do gestor, classificados de acordo com o fundamento pelo qual o gestor é responsabilizado, a saber, a responsabilidade pela diminuição do património e a responsabilidade pela falta de pagamento.

Concretizando.

Enquanto, a responsabilidade pela diminuição do património se encontra regulada na alínea a), do nº1, do artigo 24º da LGT, a responsabilidade pela falta de pagamento está consagrada na alínea b), do nº1, do artigo 24º da LGT.

O citado artigo 24.º da LGT, introduziu nas suas alíneas a) e b), uma repartição do ónus da prova da culpa, distinguindo entre:

- as dívidas vencidas no período do exercício do cargo relativamente às quais se estabelece uma presunção legal de culpa na falta de pagamento (cfr. a parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º da LGT);

- as demais previstas como geradoras de responsabilidade, concretamente, aquelas cujo facto constitutivo se tenha verificado no período do exercício do cargo (e não se vençam neste) e aquelas cujo prazo legal de pagamento ou entrega termine já após o termo do exercício do cargo. Nestas situações o ónus da prova impende sobre a Administração Tributária, ou seja, os gerentes ou administradores podem ser responsabilizados desde que seja feita prova de culpa dos mesmos na insuficiência do património social.

Convoque-se, neste particular, o Acórdão do STA proferido no recurso nº 0944/10, de 2 de março de 2011, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que refere que:

“I - Nos termos do artigo 24.º, n.º 1, da LGT, não basta para a responsabilização das pessoas aí indicadas a mera titularidade de um cargo, sendo indispensável que tenham sido exercidas as respetivas funções.

II - Não existe presunção legal que imponha que, provada a gerência de direito, por provado se dê o efetivo exercício da função, na ausência de contraprova ou de prova em contrário.

III - A presunção judicial, diferentemente da legal, não implica a inversão do ónus da prova.

IV - Competindo à Fazenda Pública o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária do gerente, deve contra si ser valorada a falta de prova sobre o efetivo exercício da gerência.”

Como doutrinado no citado Aresto, não existe presunção legal que imponha que, provada a gerência de direito, por provado se dê o efetivo exercício da função, na ausência de contraprova ou de prova em contrário, resultando apenas uma presunção legal, mas apenas da culpa do administrador pela insuficiência do património da sociedade devedora originária. Sem embargo, naturalmente, de o Tribunal, sendo caso disso, recorrer a presunções judiciais reputadas adequadas e pertinentes e de acordo as regras de experiência comum.

E de facto, atentando no probatório dos autos, nada nos permite concluir que a Recorrida praticou atos de gestão, donde que é parte legítima.


Com efeito, do probatório não consta qualquer asserção fática que a Oponente tenha praticado quaisquer atos que exteriorizem vinculação societária, quer no período a que respeita o tributo, quer na data limite do seu pagamento voluntário, dele dimanando apenas a gerência de direito.

Como visto, um dos fundamentos em que se ancora o erro de julgamento está concatenado com a nomeação enquanto membro de órgão estatutário e com a presunção contemplada no artigo 11.º do CRCom., porém tal argumentação em nada permite inferir a gerência de facto.

E isto porque, por um lado, a Recorrida não nega a gerência nominal da sociedade devedora originária, constando a mesma do registo comercial, desde a data de constituição da sociedade, conforme resulta plasmado no probatório, e por outro lado, porque da interpretação conjugada do artigo 11.º do CRCom, com o desiderato inerente ao registo comercial regulado no artigo 1.º desse diploma legal, apenas se infere a gerência de direito, nada permitindo extrapolar quanto à gerência de facto, porquanto visam apenas dar publicidade a uma situação jurídica e não a uma situação de facto (6) Vide, designadamente, Ac. TCAS, proferido no processo nº 97/11, de 29.09.2022..

Ademais, há que ter presente que a inscrição da nomeação dos membros dos órgãos de administração de sociedades comerciais, é, efetivamente, uma obrigação legal estatuída no artigo 3.º, n.º 1, al. m), do CRCom.

Não logrando, assim, provimento a alegação atinente à presunção plasmada no artigo 11.º do CRCom, visto que, a presunção dela dimanante é uma presunção da gestão de direito, concatenada, portanto, com a situação jurídica e não com a situação de facto, ou seja, com a efetividade das funções.

No concernente à assinatura dos documentos evidenciados em 4) e 5) do probatório, secunda-se o ajuizado pelo Tribunal a quo no sentido de que os mesmos mais não representam que atos isolados que não permitem inferir uma atividade continuada, como exigível legalmente.

Com efeito, para se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efetivamente, dos respetivos poderes, que seja um órgão atuante da sociedade, não podendo a mesma ser atestada pela prática de atos isolados, mas antes pela existência de uma atividade continuada. Dir-se-á, portanto, que a gerência é, assim, antes do mais, a investidura num poder (7) Sobre o traço distintivo entre gerente de direito e gerente de facto, vide, designadamente, Acórdão proferido pelo TCAN, no processo01417/05.0BEVIS, de 16 de abril de 2015.

Aliás, face às alegações da Recorrida na sua p.i, e tendo, outrossim, presente que a AT não carreou aos autos qualquer elemento que indicie, inequivocamente, a gestão e cujo ónus se circunscrevia na sua esfera jurídica, tal falta de prova teria de ser contra si valorada.

Neste particular, atente-se no doutrinado no Aresto do TCA Norte, proferido no processo no processo nº 01210/07.5, de 30 de abril de 2014, do qual se extrai, designadamente, o seguinte:

“[N]ão se olvida que no dia 26-03-2004 deu entrada no Serviço de Finanças de Matosinhos 2 um pedido de pagamento em prestações em nome da executada M…, em que o oponente assina, na qualidade de gerente, conforme carimbo aposto - fls. 66-68. Todavia, afigura-se-nos que esse (único) facto provado, e embora possa constituir um indício no sentido do exercício efectivo da gerência por parte do ora Recorrido, por si só, não é suficiente para permitir a conclusão de que o mesmo exerceu a gerência de facto da devedora originária no período em questão. Como se decidiu no acórdão deste TCAN de 20/12/2011, proferido no processo 639/04.5BEVIS-AVEIRO, www.dgsi.pt, “[d]e um acto isolado praticado pelo Oponente, em que, aparentemente, terá agido em representação da executada originária num momento concreto […] não é viável, à luz das regras de experiência comum, extrair a conclusão de que o mesmo exerceu, de facto, a gerência da dita sociedade…”.

Logo, da assinatura de dois atos pontuais da Recorrida, não é viável, à luz das regras de experiência comum, extrair a conclusão de que a mesmo exerceu, de facto, a gerência da dita sociedade, quando, ademais, se encontra refletido no probatório que a gerência, de facto, se encontrava a cargo de J….

No concernente ao fundamento atinente à remuneração da Categoria A, o mesmo não permite, outrossim, lograr o efeito almejado pela Recorrente, porquanto do probatório apenas é possível extrair que consta da base de dados da AT que, entre os anos de 2001 e 2012 a Recorrida auferiu rendimentos da categoria A, pagos pela sociedade devedora originária.

Contudo, não resulta, desde logo, esclarecido se o recebimento pela Oponente de remunerações ao serviço da devedora originária o foi pelo exercício do cargo administrativo ou se pelo exercício de funções eventualmente técnicas, ou de outra natureza, não associadas ao cargo de gerência para que a Oponente estava inscrita no registo, nada dimanando, desde logo, quanto a eventuais descontos para a Segurança Social. Aliás, nem foi junta, tão-pouco, a correspondente declaração contributiva da Segurança Social.

Ademais, não é apenas pela mera circunstância de um gerente de direito receber remuneração enquanto membro de órgão estatutário, que se pode inferir, sem mais, que o mesmo exerce, de facto, as respetivas funções, até porque o recebimento de rendimentos da categoria A, nessa qualidade, será uma decorrência daquela inscrição, não tendo, por conseguinte e sem mais, a virtualidade de comprovar positivamente a alegada gerência de facto para o período em causa (8) Vide, designadamente, Acórdãos do TCASul, proferidos nos processos nºs 1043/13, de 11.01.2023, de 412/14 e 422/14, ambos de 15.12.2021, e TCA Norte, proferidos nos processos nºs 00489/06.4BEPNF, 15.09.2016, 00761/13, de 08.03.2018 e 1649/14, de 21.06.2018..

Ora, em face do referido, e conforme resulta expresso da factualidade provada, é manifesto que a Entidade Exequente não alegou, nem provou factos, que indiciem, de forma segura e inequívoca, o exercício da gerência de facto. Acresce que da demais documentação carreada para os autos, concretamente, dos elementos constantes no processo de execução fiscal apenso, não resulta qualquer documento que permita extrair a conclusão de que a Recorrida exerceu, de facto, a gerência da sociedade à data da prática dos factos tributários e do seu vencimento.


Adicionalmente, e conforme resulta expresso na sentença e com total anuência deste Tribunal, também da prova testemunhal resulta patente que a mesma nunca exerceu a direção efetiva da sociedade da sociedade devedora originária, dela dimanando que até 2009, exercia, meramente, funções de administrativa/empregada de escritório auxiliando o marido J…, o qual era, efetivamente, o responsável da sociedade, tomando decisões sobre pagamentos e vendas e dando instruções aos trabalhadores.


Resulta, assim, que face à prova produzida nos autos, a AT não estava legitimada a efetivar a reversão contra a Recorrida devido a falta de prova dos pressupostos da reversão no âmbito do processo de execução fiscal nº 1546201101064916.

E por assim ser, a decisão que assim o decidiu não padece do erro de julgamento que lhe é assacado, devendo, por conseguinte, ser confirmada.


***


IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

-NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.

Custas pela Recorrente.

Registe.Notifique.



Lisboa, 22 de junho de 2023

(Patrícia Manuel Pires)

(Jorge Cortês)

(Luísa Soares)