Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4060/19.2T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
CONSELHO DE FAMÍLIA
BENEFICIÁRIO
AUTONOMIA DA VONTADE
VIOLAÇÃO DE LEI
DIREITO INTERNACIONAL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. O RJMA consagra o critério do primado da vontade do beneficiário não apenas na escolha do acompanhante, mas também das pessoas que deverão cooperar com este, fiscalizar a sua actuação, e substituí-lo nas suas faltas e impedimentos, o que inclui os membros do Conselho de Família e, em especial, o protutor.

II. Se a decisão judicial não considerou que a beneficiária não dispusesse de capacidade bastante para compreender o acto de escolha dos membros do Conselho de Família, ao nomear como protutor um sujeito, contra a vontade expressa da beneficiária, violou as disposições legais do RJMA, que deverão ser interpretadas à luz do teor da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. AA intentou acção especial de acompanhamento de maior em benefício de BB:

 I. — requerendo que lhe seja aplicada a medida de acompanhamento de representação geral, com administração total de bens;

II. — indicando-se a si próprio para exercer as funções de acompanhante, na qualidade de filho da beneficiária.

2.  A beneficiária BB contestou, alegando:

I. — a ilegitimidade do Requerente;

II. — a desnecessidade de medidas de acompanhamento e, subsidiariamente, desde que as medidas de acompanhamento sejam consideradas necessárias,

III. — a designação do seu cônjuge CC como acompanhante;

IV — a designação dos seus filhos DD e EE como membros do conselho de família.


3. O Requerente AA:

I. — respondeu à excepção de ilegitimidade, concluindo pela sua improcedência;

II. — requereu o suprimento da autorização da beneficiária para a propositura da acção.

3. Foi suprida a autorização da beneficiária para a propositura da acção pelo requerente, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 141º, n.º 2, do Código Civil.

4. O Tribunal de instância proferiu sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor:

Pelo exposto, julga-se necessário o acompanhamento de BB, por esta se encontrar impossibilitada de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e de cumprir os seus deveres, e

 1. — Determina-se que beneficie das medidas de representação geral e administração total de bens, as quais se tornaram convenientes desde Dezembro de 2018;

2. — Limita-se os direitos pessoais de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adoptar, de cuidar e de educar os filhos ou os adoptados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender, de testar e bem assim o direito de celebrar negócios da vida corrente;

 3. — Nomeia-se para o cargo de acompanhante CC, o qual no seu exercício deverá privilegiar o bem-estar e a recuperação da beneficiária, com a diligência requerida a um bom pai de família devendo, nomeadamente, assegurar que a beneficiária mantenha o seguimento médico regular em consultas com o seu médico assistente, cumprindo as prescrições que aí vierem a ser determinadas; deverá igualmente manter um contacto permanente com a beneficiária.

4. — Designam-se para integrar o Conselho de Família, AA, na qualidade de protutor, e DD, na qualidade de vogal.

5. Fixa-se em 5 anos o prazo de revisão oficiosa das medidas de acompanhamento, o qual se inicia com a data do trânsito em julgado da presente sentença. Sem custas (artigo 4.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. h) do Regulamento das Custas Processuais) .”


5. Inconformados com o segmento da decisão relativo à designação dos membros do conselho de família, a beneficiária BB e o acompanhante nomeado CC interpuseram recurso de apelação e AA, recurso subordinado.


6. O Tribunal da Relação julgou improcedentes os dois recursos, e decidiu:“Em face do exposto julga-se improcedente o recurso principal e o recurso subordinado, mantendo-se a sentença recorrida. Custas em cada um dos recursos pelos recorrentes respectivos.”


7. Inconformados, a beneficiária BB e o acompanhante nomeado CC interpuseram recurso de revista.


8. Finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões (transcrição):

“1. A Beneficiária manifestou antecipadamente, a 1 de Março de 2018, a sua vontade, de forma livre e esclarecida, não só quanto à escolha do acompanhante, mas também quanto à escolha das pessoas a designar para o Conselho de Família.

2. Tal como na escolha do acompanhante, na escolha do protutor há que atender primeiramente à vontade do Beneficiário e se ela não existir, o que não é o caso, há que apurar e designar a pessoa, familiar ou não, que melhor salvaguarde o interesse imperioso do Beneficiário, como claramente resulta do disposto no Art. 143º do Código Civil.

 3. Assim o impõe a Convenção dos Direitos as Pessoas com Deficiência, mormente os seus Arts. 3º e 12º que consagram os Princípios da Dignidade, da Autonomia e da Participação, plasmados, nomeadamente nos seguintes normativos da legislação nacional: legitimidade do próprio para intentar a acção de acompanhamento (Art. 141º, nº 1 do C.C.); a prevalência da sua vontade quanto à escolha do acompanhante (Art. 143º, nº 1 do C.C.); a relevância da vontade antecipadamente expressa (Art. 900º, nº 3 do C.P.C.).

4. O Art. 143º, nº 1 do C.C. remete para o regime da tutela com as devidas adaptações e não afasta a relevância da vontade antecipadamente expressa.

5. E o Art. 900º, nº 3 do C.P.C. manda atender à vontade antecipadamente expressa sem excluir quanto à designação do protutor.

6. O Tribunal a quo faz errada interpretação e aplicação das normas contidas nos mencionados artigos.

7. “Compete ao próprio beneficiário, por respeito à sua dignidade, autodeterminar a sua esfera de interesses. A ausência ou limitação da capacidade de autodeterminação imediata não afasta a manifestação da sua vontade anterior à incapacidade, pelo que as opiniões e interesses anteriormente manifestados terão obrigatoriamente de ser considerados, sendo aqueles tanto mais vinculativos quanto maior for o seu grau de concretude, a forma das declarações e a capacidade de autodeterminação na data em que foram formuladas. Quando seja necessário recorrer a um terceiro para apoiar ou assistir a formação ou formulação da vontade do beneficiário, aquele terá que se vincular ao querido e desejado por este e não a padronização por critérios estritamente objectivos(62).” (pags. 31 e 32 do artigo acima referido do Professor Geraldo Ribeiro). (negrito nosso).

8. “Toda a actuação sobre a esfera pessoal ou patrimonial do beneficiário terá que ser feita por referência aos interesses, vontade e valores manifestados anteriormente ao fenómeno incapacitante(67). O recurso a critérios objectivos apresenta-se, como já aludimos, como ultima ratio, na ausência de meios para reconstruir a vontade da pessoa incapaz, isto é, na impossibilidade de determinar a vontade presumida da pessoa. Mesmo a objectivização dos critérios de actuação não prescinde de um esforço de avaliação individual desses mesmos critérios, atento o momento e a oportunidade da situação(68).”(pag. 33). O sistema é construído a partir da presunção de plena capacidade e de garantia dos direitos interesses do beneficiário, em particular opondo-se ao acompanhante. A hetero-determinação é proibida, devendo prevalecer sempre a vontade do beneficiário.” (pag. 35 do artigo acima referido do Professor Geraldo Ribeiro).

9. Se fundamento não existe para desrespeitar a vontade antecipadamente expressa pela Beneficiária, também carece de fundamento a decisão de designar o filho mais velho, Requerente nos presentes autos, sem se apurar se o mesmo tinha ou não condições para o exercício do cargo de protutor.

10. Sendo que este, tendo-se ausentado há muitos anos da vida da sua mãe não conhece a sua vontade, os seus gostos e preferências, pelo que é impossível respeitá-las.

11. Tal decisão constitui violação dos direitos fundamentais da Requerida, plasmados nos Artigos 13º e 26º da Constituição da República Portuguesa, bem como uma inaceitável ingerência na vida privada e familiar da Requerida pelo Estado Português, ao contrariar a vontade expressa de uma cidadã sobre a gestão da sua vida, num momento em que ainda se encontrava lúcida.

12. A nomeação do filho mais velho da Requerida como seu protutor, contrariando a vontade expressa da mesma, viola o nº 1 do Artº 8 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que diz: “Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”, sendo que, o nº 2 do mesmo artigo diz: “Não pode haver ingerência da Autoridade Pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei (negrito nosso)

13. Há que respeitar a vontade antecipadamente manifestada pela beneficiária e, em conformidade, designar-se para o cargo de protutor o seu filho EE.

14. O Tribunal a quo não só não atendeu à vontade antecipadamente expressa do acompanhado, como se impunha, nomeadamente por força do disposto no Art. 900º, nº 3 do C.P.C., como também não apurou de saber quem, na falta de escolha, melhor salvaguardaria o interesse do beneficiário.

15. Nem mesmo ponderou os critérios estabelecidos nos Arts. 1951º e 1952º do C.Civil, os quais, sempre terão que ser interpretados e aplicados à luz dos princípios consagrados na Convenção de Nova Iorque.

16. E se os tivesse ponderado teria chegado à conclusão de que o Requerente nunca deveria ser designado como protutor mais que não fosse pelo afastamento físico e emocional entre mãe e filho e também pela manifestação de vontade daquela em sentido contrário.

17. O Tribunal a quo faz assim uma interpretação errada das normas contidas nos Artigos 1 951º, 1952º e 1953º do Código Civil.

18. Na designação do protutor não se trata de acautelar os interesses de todos nem de fazer a vontade ao Requerente.

19. Trata-se de promover a Dignidade, a qualidade de vida os Direitos da Beneficiária bem como de respeitar a sua vontade.

20. Do Art. 1956º do Código Civil: resulta, desde logo, que as funções do protutor vão muito para além da simples fiscalização: a) Cooperar com o acompanhante no exercício das funções tutelares, podendo encarregar-se da administração de certos bens do menor nas condições estabelecidas pelo conselho de família e com o acordo do tutor; b) Substituir o acompanhante nas suas faltas e impedimentos, passando, nesse caso, a servir de protutor o outro vogal do conselho de família; c) Representar o acompanhado em juízo ou fora dele, quando os seus interesses estejam em oposição com os do acompanhante e o tribunal não haja nomeado curador especial.

21. Ou seja, por um lado pressupõe-se a boa articulação entre acompanhante e protutor por forma a poder existir cooperação, por outro, o protutor pode ser chamado a substituir o acompanhante.

22. Tanto o acompanhante como o protutor têm que assegurar o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres do beneficiário, conforme resulta do disposto no Art. 140º, nº 1 do Código Civil.

23. A interpretação que o Tribunal a quo faz do disposto dos Arts. 143º, nº 1 do C.C., 900º do C.P.C. e do 1952º do C.C. conduz a um resultado inaceitável face ao atual enquadramento jurídico, ou seja, quando a medida de acompanhamento é a da representação geral o beneficiário é equiparado ao menor, aplicando-se-lhe, sem mais, o regime da tutela.

24. Ora tal interpretação está em absoluta contradição com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem que consagra, entre outros muito em especial os seguintes artigos:

25. Artigo 6º (direito a um processo equitativo) uma vez que se está a privar a beneficiária do processo equitativo em que se respeitasse a sua vontade antecipadamente expressa;

26. Artigo 8º (respeito pela sua vida privada e familiar) ao se escolher, contra a sua vontade, pessoa para fiscalizar a forma como a pessoa por ela escolhida (o acompanhante) para gerir a sua vida pessoal, de saúde e patrimonial.

27. E também ao proporcionar situações de ameaça do bem-estar e tranquilidade da família que a beneficiária escolheu, com quem vive em paz e harmonia, ao permitir a intromissão de alguém que, apesar de filho é um estranho para a beneficiária e para a sua família e que, no passado, causou grande perturbação e sofrimento à sua mãe.

28. Artigo 14º (proibição de discriminação) privando-a de, em condições de igualdade como qualquer outra pessoa escolher quem pode ter uma palavra (fiscaliza o acompanhante) e poder vir a tomar decisões em sua representação (se e quando tiver que substituir o acompanhante) quer quanto à sua saúde, cuidados ou património.

29. Os autos estão repletos de factos e provas no sentido de que a beneficiária nunca quereria que o seu filho mais velho tivesse qualquer tipo de influência na sua vida.

30. Designá-lo como protutor é desrespeitar o Direito à Autodeterminação da Beneficiária.

31. A decisão recorrida não teve presente os princípios gerais consagrados no Artigo 3º da Convenção de Nova Iorque, aliás em sintonia com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, quais sejam, entre outros: a) O respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, e independência das pessoas; b) Não discriminação; c) Participação e inclusão plena e efectiva na sociedade; d) O respeito pela diferença e aceitação das pessoas com d e f i c i ê n c i a c omo p a r t e d a diversidade humana e humanidade; e) Igualdade de oportunidade.

 32. À beneficiária não está a ser respeitada na sua Liberdade de Escolha (ela escolheu a composição do conselho de família) nem a Igualdade de Oportunidades uma vez que a qualquer cidadão é reconhecida a liberdade de escolher por quem quer ser representada bem como os mecanismos de salvaguarda de que quem a representa o faz de acordo com a sua vontade, gostos e preferências.

 33. A decisão recorrida desrespeita ainda o disposto no nº 2 do Art. 12º da mesma Convenção: “Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiências têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida” (negrito nosso).

34. Ou seja, a interpretação que o Tribunal a quo faz do normativo aplicável nega capacidade jurídica à beneficiária e escolhe quais as decisões antecipadamente expressas que podem valer e quais aquelas que não podem valer.

35. Isto porque, no seu entendimento que não se pode aceitar, algumas decisões têm que ceder perante a necessidade de proteger a beneficiária de eventual atuação do acompanhante contrária à sua vontade.

36. Viola-se ainda o nº 5 do Art. 12º da Convenção impõe aos Estados Partes que tomem” todas as medidas apropriadas e efectivas para assegurar a igualdade de direitos das pessoas com deficiência em serem proprietárias e herdarem património, a controlarem os seus próprios assuntos financeiros e a terem igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e asseguram que as pessoas com deficiência não são, arbitrariamente, privadas do seu património.” (negrito e sublinhado nossos).

37. Ignora-se que às pessoas com deficiência deve ser reconhecido o direito, não só de serem titulares do seu património e de o gerirem como entenderem como também de escolherem não só quem as represente na sua gestão, e mesmo disposição, mas também quem mais possa ter alguma palavra nessa sua gestão.

38. “O artigo 12.º da Convenção impede que se recorra à condição de deficiência como justificação de recusa ou limitação da capacidade jurídica de uma pessoa(33). Esta premissa é fundamental para arregimentar a interpretação de todas as normas que têm na sua hipótese uma séria possibilidade de recusar reconhecer plena capacidade jurídica de gozo e de agir do beneficiário.” (pag. 17 do artigo acima referido do Professor Geraldo Ribeiro).

39. Ignora-se ainda o disposto no nº 4 do Art. 12º da Convenção: “Os Estados Partes asseguram que todas as medidas que se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem as garantias apropriadas e efectivas para prevenir o abuso de acordo com o direito internacional dos direitos humanos. Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, aplicam-se no período de tempo mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial. As garantias são proporcionais ao grau em que tais medidas afectam os direitos e interesses da pessoa.”

40. O que ressalta é a necessidade de controlo periódico por parte de uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial no que respeita ao exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da beneficiária.

 41. Ou seja, a fiscalização cabe a uma autoridade ou órgão judicial competente, no nosso caso, ao Juiz e ao Magistrado do Ministério Público, sendo que é este que preside ao conselho de família.

42. Sendo que é o Ministério Público o requerente que deve atuar “sempre como instrumento de salvaguarda dos interesses do beneficiário, se necessário, mesmo contra a vontade expressa deste (falamos das situações limites de capacidade diminuída para compreender e decidir em salvaguarda de interesses próprios).”

43. A Convenção, não se refere a qualquer outro órgão ou pessoa que assuma a fiscalização do acompanhante, nem especificamente ao protutor.

44. Nem se pode aceitar como razoável que se aceite para o acompanhamento de maior a mesma solução que se encontra consagrada para a tutela de menores, única atualmente consagrada na Lei, uma vez que a tutela de maiores foi eliminada pela Lei nº 49/2018.

45. O douto Acórdão recorrido segue também ao arrepio da Constituição da República Portuguesa, há luz da qual todo o Regime do Maior Acompanhado tem que ser interpretado e aplicado, muito em especial os Arts. 1º (Dignidade da Pessoa Humana), 13º (Igualdade), 18º (Aplicação directa dos Direitos, Liberdades e Garantias); 26º (Livre e Pleno Desenvolvimento da Personalidade)

 46. “A cada ser humano deverá ser reservada a competência para definir e conformar a sua própria vida, o que implica uma realização inevitavelmente circunstancial deste princípio, quanto à definição e materialização do seu concreto conteúdo. Não pode, por isso, o Estado assumir uma função paternalista e impor uma protecção não querida pelo próprio(26).” (pag. 14 do artigo acima referido do Professor Geraldo Ribeiro). (negrito nosso).

47. Ora, no caso subjudice, a beneficiária, bem ciente de como a sua doença iria evoluir, no pleno uso da sua capacidade, decidiu quem queria ter por perto a decidir por ela ou a ajudar a decidir por ela.

 48. E fê-lo de forma exaustiva focando em detalhe cada área da sua vida: a pessoal, a prestação de cuidados e a patrimonial.

49. Não respeitar a sua vontade, vontade essa que não tem nada de bizarro, de excêntrico ou de prejudicial aos seus interesses, é violar a sua Dignidade mediante uma atitude paternalista do Tribunal que não encontra fundamento em qualquer normativo legal ou princípio enquadrador.

50. Não existe qualquer fundamento para a intromissão do Estado, nesta concreta situação.

51. O normativo constante do Art. 1952º do Código Civil nos poderia levar, no caso subjudice, à designação do filho mais velho como protutor.

52. Tal normativo contem um elenco não exaustivo mas apenas exemplificativo dos elementos a ponderar.

53. E a remissão feita pelo Art. 145º, nº 4 do Código Civil para tal preceito é feita com a ressalva “com as devidas adaptações”, podendo até ser dispensada a constituição do conselho de família.

54. Mesmo que não quisesse atender à vontade da beneficiária, o que não se pode aceitar, o Tribunal a quo teria sempre de ponderar os diversos elementos exemplificados no Art. 1952º do C.C.

55. Quanto à proximidade de grau ela é idêntica pois tanto a designação feita pelo Tribunal como a escolha da beneficiária incidem sobre filhos desta.

56. Relativamente a relações de amizade, ficou claro na prova produzida, mormente os testemunhos de DD e FF, já acima identificados, que nunca a Beneficiária quereria o filho AA a tomar decisões por si, tanto mais que há vários anos a abandonou quando saiu de casa.

57. Ficou ainda demonstrado, incluindo por alegação do próprio, que a relação entre a mãe e o filho mais velho, AA, primeiro era conflituosa e depois, desde que o mesmo saiu de casa em 2013, inexistente, resumindo-se, desde Março/Abril de 2021 a visitas tendencialmente semanais de trinta minutos, conforme resulta dos testemunhos de GG e de EE, acima já identificados.

58. Acresce ainda que, nenhuma prova foi produzida no sentido de que o Requerente tem aptidões, quer para prestar ou assegurar cuidados, quer para gerir os bens de sua mãe, sendo certo que se trata de património avultado e de complexa gestão.

59. Muito pelo contrário:

60. Há vários anos que o Requerente saiu de casa de sua mãe e que deixou de com ela conviver, o mesmo se passando com os irmãos mais novos.

61. E saiu de casa por incompatibilidades e conflitos familiares com todos os que habitam a casa da mãe.

 62. Também o critério do lugar de residência não poderia levar a designar o Requerente.

 63. O mesmo vive a vários quilómetros de distância.

 64. E, quanto à vontade manifestada pela beneficiária, foi exatamente no sentido oposto ao da designação feita pelo Tribunal pois esta escolheu os seus filhos mais novos, à data ainda menores, EE e DD para integrarem o conselho de família.

65. Isto em detrimento dos filhos mais velhos, então já maiores.

66. E, quanto ao critério da idade, sendo todos agora maiores, é indiferente e há muito se abandonou o conceito feudal de dar a primazia ao filho mais velho.

67. Aliás, esta foi mesmo uma das grandes conquistas da mudança de paradigma consagrado pelo Regime do Maior Acompanhado – abandonar o critério supletivo consagrado na anteriormente vigente redação do Art. 143º do C.C., muito em especial a norma contida no Art. 143º, n 1 d), 1ª parte.

68. O paradigma atual deixa para segundo plano as relações de parentesco devendo a escolha recair na pessoa, familiar ou não, que melhor possa salvaguardar o melhor interesse do Beneficiário.

69. Para além de um desrespeito total pela sua vontade, tal designação está a potenciar conflitos ou situações de impasse.

70. Assim, nem vontade nem interesses da beneficiária são respeitados ou promovidos.

71. Estando a família dividida, como o Tribunal apurou, a consequência é que não existem condições para um bom entendimento entre acompanhante, protutor e vogal, o que nos parece indispensável à promoção da qualidade de vida da Beneficiária e à prossecução dos seus interesse e vontades, quer pessoais quer patrimoniais, em especial caso se verifique o infortúnio de o Acompanhante ter que ser substituído, transitória ou definitivamente.

72. Ao contrário do que se diz na sentença recorrida e corroborado no douto Acórdão da Relação de Lisboa, não se trata de acautelar os interesses de todos!

73. E muito menos das suas expectativas como herdeiros!!

74. Ou seja, a designação do protutor merece a mesma ponderação que a designação do acompanhante, sendo a vontade e a relação de confiança os alicerces determinantes de uma decisão que verdadeiramente respeite a Dignidade da Beneficiária.

 75. Assim sendo, deve a douta sentença recorrida, quanto à designação do protutor, ser revogada e substituída por outra que designe para o cargo de protutor EE.

76. Pois, quanto a este, para além da vontade antecipadamente expressa pela beneficiária em documento outorgado perante Notário e devidamente certificado pelo mesmo, existem nos autos elementos, mais do que suficientes para o designar como protutor:

77. Na verdade, foi testemunhado que o mesmo vive e sempre viveu com a mãe em perfeita ha rmoni a f ami l i a r (de sde que os i rmãos ma i s ve lhos s a í r am de c a s a -20220203113802_5905336_287123 – minutos 10.10 – 10: 30) com a sua irmã gémea e com o marido da mãe (20220203113802_5905336_2871230, minutos 2.26 – 6:19) e 20220203143318_5905336_2871230 – minutos 2:54 – 5:23)

78. Presta-lhe cuidados, articulando-se com a cuidadora profissional e com o acompanhante (20220203143318_5905336_2871230 – minutos 3:00 – 9:18)

79. Contribui significativamente para a paz e harmonia que reina na casa da Beneficiária, (20220203143318_5905336_2871230 – minutos 2:54 – 5:23, 6:26 – 7:01 e 7:41 – 8:15) e que não se pode quebrar pois isso seria ameaçar a qualidade de vida da Beneficiária.

80. EE é estudante de Economia (20220203113802_5905336_287123 – minutos 0:12 a 0:15), aluno de mérito da Universidade ... e tem-se mantido informado sobre os negócios da mãe, nomeadamente tem acompanhado a evolução da L..., tem conhecimento dos seus Relatórios e Contas (20220203113802_5905336_287123 – minutos 31:50 – 33:42).

 81. São presenciados, quer pela cuidadora profissional, conforme acima identificado, quer pelos amigos que frequentam a casa, nomeadamente pelo Dr. HH (20220203102950_5905336_2871230 – minutos 31:32 – 33:45) as relações de afeto e a diligência com que este filho cuida da mãe.

82. EE no seu depoimento manifestou disponibilidade e vontade para assumir a responsabilidade de continuar a assumir os cuidados que presta à sua mãe, assessorando o acompanhante e esclarecendo que o faz independentemente de existir uma decisão judicial que o determine (20220203113802_5905336_2871230 – minutos 25:30 – 26:40).

83. Pela prova produzida pode concluir-se, com segurança, que este filho está à altura de substituir o acompanhante em suas eventuais faltas ou impedimentos.

84. Ou seja, tal como se exige ao acompanhante, o protutor, se o tiver que o substituir, EE é capaz de cumprir o disposto no Art. 146º do Código Civil (1 - No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada. 2 - O acompanhante mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada”).

85. Face a tudo o que se acaba de alegar, o douto Acórdão recorrido, na parte em confirma a designação do requerente como protutor, deve ser substituído por decisão que designe EE como protutor, assim se respeitando a vontade de sua mãe e designando-se pessoa que oferece condições de promover os seus direitos, defender os seus interesses e assumir, em cada momento, as funções próprias de tal cargo.

86. Nestes termos se decide por forma a assegurar a harmonização de decisões em todos os domínios da vida da beneficiária, não causando prejuízos a ninguém, atento o bom relacionamento e propósito comum de promover a qualidade de vida da beneficiária entre acompanhante e membros do conselho de família. ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!”


9. Não foram apresentadas contra-alegações.


 10. Os Recorrentes pediram que o recurso fosse admitido como revista normal e, subsidiariamente, como revista excepcional.


11. Foi proferido despacho a não admitir a revista normal, objecto de reclamação para a conferência, que confirmou o despacho e determinou a remessa à formação para efeitos de admissão da revista excepcional, subsidiariamente pedida, o que a formação decidiu em sentido favorável, por acórdão,impondo-se assim conhecer do recurso.


Cumpre analisar e decidir.


II. Fundamentação

De facto

12. Da primeira instância vieram provados os seguintes factos:

1.    A beneficiária nasceu a .../12/1962, em ..., ..., e é filha de II e de JJ.

2.    Tem quatro filhos: o requerente, nascido a .../9/1995; KK, nascida a .../4/1998; DD e EE, gémeos nascidos a .../1/2001.

3.    Na sequência de uma discussão familiar, em 2013, meses antes de atingir a maioridade, o requerente saiu de casa da sua mãe e foi viver com o seu pai, tendo contactado com a mãe escassas vezes depois desse acontecimento.

4.    E o mesmo sucedeu com a segunda filha da beneficiária, a KK, que também saiu de casa da mãe em Junho de 2017 e foi viver com amigos da família e pouco depois com o pai e o irmão.

5.    Em 22/7/2017 a beneficiária casou com CC, no regime de separação de bens, pessoa com quem mantinha uma relação amorosa desde 2012.

6.    A beneficiária vive em sua casa, com o marido e os dois filhos mais novos, tendo uma cuidadora consigo durante o dia.

7.    Faz exercícios motores e cognitivos e fisioterapia.

8.    Os dois filhos mais novos estão de relações cortadas com os dois filhos mais velhos da beneficiária.

9.    A mãe e irmão da beneficiária faleceram com demência frontotemporal e/ou esclerose lateral amiotrófica.

10. Por conhecer a possibilidade de sofrer de tais patologias, a beneficiária integrou um projecto de investigação clínica genética onde participou num estudo genético.

11. Tais participações tiveram lugar em Março de 2014, Junho de 2015 e Outubro de 2016, alturas em realizou exames, com uma avaliação muito pormenorizada, tendo os resultados da beneficiária sido normais e não apresentando sintomas.

12. Em Junho de 2017 a beneficiária teve um encontro com o requerente onde, ainda que falando pouco, teve um discurso lógico, congruente e conexo, compatível com processamento de informação cognitiva de alguma complexidade social.

13. A beneficiária outorgou, no Cartório Notarial ..., em Novembro de 2017, procurações a favor do seu cônjuge, conferindo-lhe poderes de gestão e disposição do capital social como melhor entendesse, nas sociedades L..., S.A., R..., S.A., S..., S.A., M..., Lda.

14. A 10/11/2017 a beneficiária conferiu ao seu cônjuge os mais diversos poderes para gerir e dispor do seu património mobiliário e imobiliário, de entre os quais os de representá-la em acções judiciais de qualquer natureza.

15. Tais procurações foram outorgadas pela beneficiária a pedido desta, após análise do seu teor durante dois a três meses, e bem assim troca de impressões sobre o seu alcance e adequação entre a beneficiária e o Sr. Notário, por forma a espelhar a vontade da beneficiária.

16. Aquando da sua outorga, a beneficiária encontrava-se acompanhada pelo seu cônjuge e pelos amigos LL e FF, tendo a

beneficiária também trocado impressões com estes sobre as procurações que outorgava, a sua adequação, alcance e vontade manifestada.

17. Quanto a cuidados pessoais e de saúde, por procuração de 30/4/2018, outorgada no mesmo Cartório Notarial, conferiu a beneficiária poderes ao seu cônjuge para tomar todas as decisões que se afigurarem necessárias quanto a cuidados pessoais e de saúde de que venha a carecer, devendo ser o mandatário a pessoa que a representa e toda e qualquer circunstância.

18. Na mesma procuração conferiu poderes ao seu cônjuge para “aceder aos dados pessoais da mandante, bem como informações e relatórios clínicos, podendo solicitá-los e levantá-los junto de qualquer instituição pública ou privada”.

19. A 1/3/2018 emitiu a declaração, com o respectivo termo de autenticação, onde afirmou que, caso, em virtude de perda da sua capacidade para tomar decisões livres e esclarecidas, lhe venham a ser aplicadas medidas como a interdição, a inabilitação ou quaisquer outras que venham a ser criadas e que impliquem a nomeação de tutor, curador, representante legal, acompanhante, conselho de família, ou outras figuras tendentes a assisti-la, acompanhá-la ou representá-la, a sua vontade antecipadamente expressa era a seguinte: a) que seja o seu cônjuge CC, com ela casado no indicado regime de bens, natural de ..., ..., e com a declarante residente, o seu tutor, curador, acompanhante, ou outra figura análoga que venha a ser criada, cabendo-lhe a ele assisti-la ou representá-la em todos os assuntos pessoais, de saúde ou de gestão dos seus bens; b) Que sejam os seus filhos EE e DD, ambos solteiros, naturais de ..., ..., a acompanhar e a ajudar o seu cônjuge no desempenho daquelas funções, quer integrando o conselho de família, quer assumindo funções iguais ou equivalentes às que, na legislação actual, cabem ao protutor e ao vogal do conselho de família.

20. Em 14/12/2017 a beneficiária foi observada pela primeira vez, em termos assistenciais, pelo Dr. MM, na Clínica ..., por queixas de hiperfagia, apatia, falta de interesses, comportamentos sociais inapropriados e alterações de linguagem.

21. Realizou exame neurológico em 23/1/2018 com uma avaliação global MMSE de 27 pontos em 30, valor que indica um defeito cognitivo ligeiro na beneficiária.

22. Os valores até 27 pontos são normais de acordo com o grupo de escolaridade, considerando-se normativo para a beneficiária, face ao grupo de escolaridade a que pertence, um valor de 28 a 30.

23. Não apresentava alterações na capacidade de atenção sustentada por períodos curtos de tempo/velocidade de processamento.

24. Apresentava defeito acentuado na capacidade de atenção dividida, por dificuldade marcada em alterar entre estímulos diferentes, o que se repercute na capacidade de organizar as acções.

25. Apresentava defeito acentuado na capacidade de atenção selectiva com controlo inibitório, o que se repercute na inibição da resposta mais imediata.

26. Apresentava defeito acentuado na capacidade de iniciativa verbal semântica e na fonológica, o que se repercute nas funções executivas.

27. A sua capacidade mnésica apresentava um defeito ligeiro na memória imediata, defeito moderado na capacidade de controlo mental e defeito acentuado na capacidade de aprendizagem, de uma lista de palavras com controlo do processo de codificação, em que melhorou o seu desempenho para níveis normais com o fornecimento de pistas/categorias semânticas, e com perda de informação após um intervalo de interferência, recuperando novamente com pistas.

28. Não apresentava alterações na capacidade de orientação pessoal, espacial ou temporal.

29. Apresentava defeito acentuado na capacidade de acesso à semântica.

30. Não apresentava alterações na capacidade construtiva bidimensional.

31. Apresentava defeito acentuado na capacidade construtiva tridimensional/raciocínio visuo-espacial.

32. Em 8/2/2018 foi-lhe diagnosticada demência frontotemporal genética, quadro clínica e sintomaticamente arrastado, crónico e lentamente progressivo.

33. Tal defeito cognitivo que a beneficiária apresentava em Janeiro de 2018 limitava a sua tomada de decisões mais complexas, mas permitia a tomada de decisões simples de forma consciente e autónoma, em especial as afectivas.

34. Desde a avaliação inicial registou-se um lento agravamento clínico, cognitivo e funcional.

35. Em Janeiro de 2018 a beneficiária leu um discurso longo na festa de aniversário da sociedade L....

36. Em 12/4/2018 a beneficiária esteve presente na Assembleia Geral da sociedade L....

37. Em 18/5/2018 a beneficiária esteve presente na reunião do Conselho de Administração da sociedade L..., onde comunicou a sua renúncia ao cargo de Presidente do Conselho de Administração, apresentada em 2/5/2018.

38. Em 6/4/2021, aquando da sua audição pelo Tribunal, a beneficiária precisava de auxílio de terceiro para a marcha, marcada por rigidez e pequenos passos.

39. Apresentou uma marcada ansiedade, quase paralisante, com a ausência de pessoa conhecida.

40. Não respondeu a qualquer pergunta, manteve-se sempre em silêncio, completamente alheia ao que a rodeava, com semblante assustado e músculos aparentemente tensos, movimentando lentamente a cabeça em procura provável de ajuda ou de referência que a tranquilizasse.

41. Não conseguiu escrever, cumprir comandos simples, não sendo perceptível o seu entendimento sobre o que lhe era pedido.

42. Nessa altura precisava de ajuda para comer e beber.

43. Em 28/4/2021, aquando da presença da beneficiária no Centro Hospitalar ..., continuou sem conseguir estabelecer qualquer tipo de comunicação eficaz.

44. Dirigiu o olhar ao observador, quando interpelada, aparentemente entendendo que a si se lhe dirigiam.

45. Não cumpriu de forma sistemática comandos motores simples, revelando não existir plena compreensão da linguagem verbal.

46. Uma das escassas instruções que cumpriu foi o pedido de olhar para o seu cônjuge, não o fazendo das duas vezes que lhe foi solicitado o mesmo em relação ao filho (requerente).

47. Não lê e não consegue escrever.

48. Fez levante, mas apenas com apoio e insistência da cuidadora, conseguindo deambular com apoio unilateral, apresentando uma marcha de pequenos passos.

49. Apresentava uma atenção dificilmente captável e não fixável.

50. Usa cueca-fralda desde Março de 2020, uma vez que não consegue expressar a sua necessidade de ir à casa de banho.

51. Já anteriormente a utilizava para sair à rua.

52. Precisa de ajuda total para vestir e higiene.

53. Não toma iniciativa para marcha ou mudança de posição, tendo de ser estimulada e auxiliada a fazê-lo, e tem marcada dificuldade em descer escadas, mesmo com apoio.

54. Apresenta escassa interacção social, admitindo-se que possa reconhecer familiares próximos ou cuidadores.

55. É incapaz de efectuar compras, não conhece o valor dos produtos ou do dinheiro, sendo incapaz de efectuar cálculos.

56. O funcionamento social e autonomia da beneficiária encontram-se absolutamente prejudicados.

57. A incapacidade definitiva de que padece a beneficiária terá surgido insidiosa e progressivamente, porventura flutuante e dependente da complexidade concreta de tarefas ou comportamentos.


De Direito

13. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

Atentas as conclusões das alegações de recurso, tendo também em atenção o teor do acórdão da Formação, a única questão que importa apreciar assenta na legalidade da nomeação do filho mais velho da beneficiária, AA, como protutor, contra a vontade expressa da beneficiária manifestada em 01-03-2018.

14. Entrando na questão objecto do recurso, verificamos que a 1.ª instância decidiu constituir o Conselho de Família (o qual pode ser dispensado nos termos do disposto no art. 145.º, n.º 4, do CC), designando para integrar tal órgão, AA, na qualidade de protutor, e DD, na qualidade de vogal.

14.1. A beneficiária e o acompanhante insurgem-se contra a nomeação de AA como protutor, alegando que a beneficiária manifestou antecipadamente, a 1 de Março de 2018, a sua vontade, de forma livre e esclarecida, não só quanto à escolha do acompanhante, mas também quanto à escolha das pessoas a designar para o Conselho de Família, declarando ser sua vontade “que sejam os seus filhos EE e DD, ambos solteiros, atualmente menores, naturais de ..., ..., a acompanhar e a ajudar o seu marido no desempenho daquelas funções, quer integrando o conselho de família, quer assumindo funções iguais ou equivalentes às que, na legislação atual, cabem ao protutor e ao vogal do conselho de família”.

Alegam os recorrentes que tal como na escolha do acompanhante, na escolha do protutor há que atender primeiramente à vontade do beneficiário como impõe “a Convenção dos Direitos as Pessoas com Deficiência, mormente os seus Arts. 3º e 12º que consagram os Princípios da Dignidade, da Autonomia e da Participação, plasmados, nomeadamente nos seguintes normativos da legislação nacional: legitimidade do próprio para intentar a acção de acompanhamento (Art. 141º, nº 1 do C.C.); a prevalência da sua vontade quanto à escolha do acompanhante (Art. 143º, nº 1 do C.C.); a relevância da vontade antecipadamente expressa (Art. 900º, nº 3 do C.P.C.).”

Sustentam que “o Art. 143º, nº 1 do C.C. remete para o regime da tutela com as devidas adaptações e não afasta a relevância da vontade antecipadamente expressa. E o Art. 900º, nº 3 do C.P.C. manda atender à vontade antecipadamente expressa sem excluir quanto à designação do protutor.”

Referem também que a decisão recorrida “viola os direitos fundamentais da beneficiária, plasmados nos Artigos 13º e 26º da Constituição da República Portuguesa” e constitui uma “inaceitável ingerência na vida privada e familiar da Requerida pelo Estado Português, ao contrariar a vontade expressa de uma cidadã sobre a gestão da sua vida, num momento em que ainda se encontrava lúcida”, além de violar o nº 1 do Artº 8 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Por último, alegam que as instâncias não apuraram “quem, na falta de escolha, melhor salvaguardaria o interesse do beneficiário, não ponderando os critérios estabelecidos nos Arts. 1951º e 1952º do C.Civil, os quais, sempre terão que ser interpretados e aplicados à luz dos princípios consagrados na Convenção de Nova Iorque”, pois, “se os tivesse ponderado teria chegado à conclusão de que o Requerente nunca deveria ser designado como protutor mais que não fosse pelo afastamento físico e emocional entre mãe e filho e também pela manifestação de vontade daquela em sentido contrário.”

14.2. No acórdão recorrido, justificou-se a nomeação do requerente desta acção como protutor em sentido contrário à escolha feita pela beneficiária pela circunstância de os critérios que presidem à escolha dos vogais do conselho de família passarem, tão só, pela observância do disposto no art.° 1952° do CC, ao contrário do que sucede com o acompanhante em relação ao qual a conjugação do n.º 1 do art. 143ºº do CC com o n.º 3 do art.° 900.º do CPC conduz a que, na nomeação do cônjuge da beneficiária como seu acompanhante, o tribunal recorrido tivesse de acautelar o respeito pela vontade antecipadamente expressa pela mesma.

Segundo a Relação compreende-se a distinção entre o critério de escolha do acompanhante e o critério de escolha dos vogais do conselho de família pois “enquanto o conselho de família só existe enquanto órgão de fiscalização e acompanhamento do exercício das funções do tutor, já as funções do acompanhante prendem-se com o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada, e com a obrigação de manter contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada”.

Assim, entendeu a Relação que “o conselho de família é constituído (através da nomeação dos seus vogais), não em razão do respeito pelos princípios que norteiam a designação do acompanhante do beneficiário, mas porque a situação de incapacidade deste o faz ficar sujeito ao regime da tutela, sendo o acompanhante o seu representante legal e ficando sujeito aos direitos e obrigações que emergem dos arts. 1935.º e seguintes do CC, incluindo a fiscalização e acompanhamento do conselho de família.”

Conclui-se no acórdão recorrido que “deve ser promovida a constituição de um conselho de família que fiscalize de modo eficaz, mas equilibrado, a actuação do acompanhante, designadamente em face da existência de divergências entre os filhos da beneficiária ou entre algum destes e o referido acompanhante, que vai assegurar a representação legal da mesma segundo o regime da tutela.”

Pelo que, “no caso concreto, tendo presente a posição crítica do requerente em relação ao cônjuge da beneficiária (amplamente expressa na P.I. e na alegação de recurso) e a circunstancia de a outra vogal nomeada (a filha mais nova da beneficiaria) estar de “relações cortadas” com o requerente, justifica-se que este deva integrar a composição do conselho de família, como elemento da "facção minoritária", ficando igualmente com as funções de fiscalização da acção do acompanhante, enquanto protutor, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 1955° do Código Civil, já que só assim se obtém o referido equilíbrio entre as pessoas das relações familiares da beneficiária que conflituam quanto à gestão da pessoa e dos bens da mesma, essencial para uma fiscalização activa e eficaz.”


15. Façamos em primeiro lugar o enquadramento normativo da questão.

A Lei n.º 49/2018, de 14-08, veio revogar o regime das interdições e inabilitações e, em sua substituição, criou o Regime Jurídico do Maior Acompanhado (doravante RJMA), podendo ler-se na Proposta de Lei n.º 110/XIII [1] que deu origem àquele diploma que os fundamentos finais da alteração das denominadas incapacidades dos maiores são, em síntese, os seguintes: “a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível; a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar; a flexibilização da interdição/inabilitação, dentro da ideia de singularidade da situação; a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; o primado dos seus interesses pessoais e patrimoniais; a agilização dos procedimentos, no respeito pelos pontos anteriores; a intervenção do Ministério Público em defesa e, quando necessário, em representação do visado”.

A adoção deste novo regime foi já qualificada como a “a maior reforma na Parte Geral do Código Civil após a sua publicação em 25 de Novembro de 1966[2], uma verdadeira “revolução coperniciana[3] desencadeada pela adesão de Portugal à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em Nova Iorque em 30 de março de 2007[4] (e ao seu Protocolo Adicional). No novo paradigma, a pessoa com deficiência é vista como sujeito de direitos, rejeitando-se situações genéricas de incapacidade de maiores de dezoito anos. Como sintetiza Pinto Monteiro, “Proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela referida Convenção da ONU e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão”.


16. No artigo 1.º da referida Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência estabelece-se que o respectivo objecto “é promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”, sendo um dos princípios gerais da Convenção “o respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, e independência das pessoas” (art. 3.º, al. a)).

Assume especial relevância o disposto no art. 12.º dessa Convenção com a epígrafe “Reconhecimento igual perante a lei” no qual se dispõe o seguinte:

“1 - Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito ao reconhecimento perante a lei da sua personalidade jurídica em qualquer lugar.

2 - Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiências têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida.

3 - Os Estados Partes tomam medidas apropriadas para providenciar acesso às pessoas com deficiência ao apoio que possam necessitar no exercício da sua capacidade jurídica.

4 - Os Estados Partes asseguram que todas as medidas que se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem as garantias apropriadas e efectivas para prevenir o abuso de acordo com o direito internacional dos direitos humanos. Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, aplicam-se no período de tempo mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial. As garantias são proporcionais ao grau em que tais medidas afectam os direitos e interesses da pessoa.

5 - Sem prejuízo das disposições do presente artigo, os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas e efectivas para assegurar a igualdade de direitos das pessoas com deficiência em serem proprietárias e herdarem património, a controlarem os seus próprios assuntos financeiros e a terem igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e asseguram que as pessoas com deficiência não são, arbitrariamente, privadas do seu património.”


Como decorre do considerando n) do Preâmbulo desta Convenção, os Estados Partes reconhecem “a importância para as pessoas com deficiência da sua autonomia e independência individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas”.

Como nota Paula Távora Vítor, “a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, direito internacional recebido pelo Estado Português, impõe-se aos tribunais na sua função decisória”, devendo ser “convocada como um importante elemento de interpretação do novo regime plasmado inovadoramente no Código Civil.”[5] Neste conspecto, do art. 12.º da mencionada Convenção, em especial do seu parágrafo 4, extrai-se o princípio do respeito pelas “vontades e preferências” do beneficiário que releva do mais vasto princípio do respeito pela sua autonomia.[6]

Afirma a mesma autora que a expressão “vontade e preferências”, pretende funcionar “como uma barreira relativamente a intervenções coercivas (que são identificadas tanto com a figura do internamento psiquiátrico, como com a própria tutela. Da opção por esta fórmula resulta também o abandono de qualquer referência aos “melhores interesses” (best interests). De facto, este estalão, pelas conotações paternalistas que se lhe associa, acaba por se apresentar como controverso mesmo nos casos em que não há informação disponível sobre a pessoa. (…) A expressão da vontade da pessoa com deficiência deve ter relevância em vários momentos, devendo considerar-se quer a sua manifestação no momento presente, quer nas várias modalidades em que a autonomia prospetiva pode operar.”[7].

Também Geraldo Rocha Ribeiro, a este propósito afirma que “a ordem jurídica assenta, pois, no personalismo ético que reconhece liberdade para a autodeterminação individual e responsável da pessoa (ou seja, reconhecer a dignidade da pessoa humana é consagrar a sua autodeterminação e consequente responsabilidade). A imposição de limites por parte do Estado a estas dimensões essenciais da ordem jurídica é admissível apenas a título excepcional e por necessidade de protecção de interesses jurídicos superiores ou equivalentes. Reconhece-se à pessoa a liberdade real e jurídica de conformar a sua vida e gerir os seus interesses, não podendo o Estado, por isso, impor arbitrariamente um paternalismo anacrónico e redutor da essência humana (…) Estas considerações implicam que o princípio da dignidade da pessoa humana seja centrado a partir da perspectiva da pessoa e que nela se desenvolva e se materialize, recusando-se qualquer imposição ou determinação exógena, quer pelo Estado, quer por terceiros. A cada ser humano deverá ser reservada a competência para definir e conformar a sua própria vida, o que implica uma realização inevitavelmente circunstancial deste princípio, quanto à definição e materialização do seu concreto conteúdo. Não pode, por isso, o Estado assumir uma função paternalista e impor uma protecção não querida pelo próprio. [8]

Refere o mesmo autor que “compete ao próprio beneficiário, por respeito à sua dignidade, autodeterminar a sua esfera de interesses. A ausência ou limitação da capacidade de autodeterminação imediata não afasta a manifestação da sua vontade anterior à incapacidade, pelo que as opiniões e interesses anteriormente manifestados terão obrigatoriamente de ser considerados, sendo aqueles tanto mais vinculativos quanto maior for o seu grau de concretude, a forma das declarações e a capacidade de autodeterminação na data em que foram formuladas. (…) Mas, ancorando esta asserção nos valores da igualdade, da proporcionalidade e do cuidado, não pode defender-se uma intervenção por critérios objectivos, derrogando a vontade e interesses subjectivos do beneficiário. O termo de comparação terá que ser referente à liberdade de consentimento de que goza a pessoa não assistida. A esta é reconhecida autonomia para consentir ou acordar numa auto ou hetero-lesão dos seus interesses, desde que isso não prejudique terceiros ou não ofenda os bons costumes ou a ordem pública. Neste sentido, ao beneficiário terá que ser reconhecida igual faculdade, para consentir ou dissentir numa intervenção, por terceiros, sobre a sua pessoa (…) Toda a actuação sobre a esfera pessoal ou patrimonial do beneficiário terá que ser feita por referência aos interesses, vontade e valores manifestados anteriormente ao fenómeno incapacitante. O recurso a critérios objectivos apresenta-se, como já aludimos, como ultima ratio, na ausência de meios para reconstruir a vontade da pessoa incapaz, isto é, na impossibilidade de determinar a vontade presumida da pessoa. Mesmo a objectivização dos critérios de actuação não prescinde de um esforço de avaliação individual desses mesmos critérios, atento o momento e a oportunidade da situação. [9]

Conclui este autor que “as declarações antecipadas devem vincular a definição do interesse subjectivo da pessoa num momento de incapacidade, desde que ofereçam garantias de certeza e clareza. Cumpridos estes requisitos, não se poderá afastar a vontade então expressamente manifestada pela objectivação de um qualquer critério, pois os critérios de normalidade ou a automática transferência de valores do acompanhante para o beneficiário representam uma coisificação desta última, negando-se a sua plena dignidade”. [10]


17. À luz do exposto, perguntar-se-á agora se do regime jurídico apresentado decorre algum contributo para a resposta à questão objecto do recurso, no sentido de se dar prevalência à vontade livre e esclarecida da beneficiária na escolha dos membros do Conselho de família.

E a resposta só pode ser positiva.

E nesse sentido militam, nomeadamente, as seguintes razões, acolhidas pela lei, no sentido de a vontade do beneficiário ser um elemento de especial relevo no modelo legal de acompanhamento do maior:

- a instauração da açcão de maior acompanhado depende de autorização do beneficiário, salvo se o mesmo não possa livre e conscientemente dar essa autorização, caso em que o Tribunal a poderá suprir, exigindo-se sempre uma decisão judicial para esse efeito;

- a Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto que visou consagrar no nosso direito interno o regime previsto Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência;

-  na convenção dá-se primazia à autonomia da pessoa acompanhada, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível;

- na Convenção não se distingue entre a escolha da pessoa ou pessoas que acompanhem ou representem a pessoa beneficiária (o acompanhante ou acompanhantes no nosso regime interno) e a escolha das pessoas que fiscalizem esse acompanhamento;

- no regime do maior acompanhado o espírito das soluções normativas é da protecção dos interesses do beneficiário;

- a solução defendida pela Relação parece querer acautelar o interesse de todos os intervenientes processuais, ou seja, não apenas da beneficiária, mas também do seu cônjuge e de todos os seus filhos, a partir do regime do conselho de família;

- de acordo com o disposto no art. 1954.º do CC, “pertence ao conselho de família vigiar o modo por que são desempenhadas as funções do tutor e exercer as demais atribuições que a lei especialmente lhe confere.”;

- a função de órgão de fiscalização e acompanhamento do exercício das funções do tutor não obriga a que na composição do conselho de família se integrem pessoas mais distantes do beneficiário e do tutor, como solução que melhor promove a fiscalização e acompanhamento do tutor;

- não se aventa que seja mais benéfico ou mais correspondente com o objectivo da lei a constituição de um conselho de família que fiscalize de modo eficaz, mas equilibrado, a actuação do acompanhante, através da sua composição por pessoas que merecem uma não aceitação prévia por parte do beneficiário, nomeadamente por este não manter com essas pessoas uma relação familiar e social correspondente a um grau de interacção satisfatório;

- primazia à autonomia da pessoa acompanhada implica a total liberdade desta escolher tanto a pessoa que deva ser o seu acompanhante, como as pessoas que tenham por função a fiscalização deste último, independentemente dos motivos ou intenções do beneficiário / acompanhado, exigindo-se apenas que a vontade do beneficiário seja livre e esclarecida (como sucede no caso em apreço);
- a solução propugnada no acórdão recorrido é de um paternalismo redutor da pessoa da beneficiária, impondo uma protecção não querida por aquela e não imposta pela lei, nem adequada ao espírito do sistema;


Na esteira de Geraldo Rocha Ribeiro, ja citado, podemos afirmar:

 “compete ao próprio beneficiário, por respeito à sua dignidade, autodeterminar a sua esfera de interesses. A ausência ou limitação da capacidade de autodeterminação imediata não afasta a manifestação da sua vontade anterior à incapacidade, pelo que as opiniões e interesses anteriormente manifestados terão obrigatoriamente de ser considerados, sendo aqueles tanto mais vinculativos quanto maior for o seu grau de concretude, a forma das declarações e a capacidade de autodeterminação na data em que foram formuladas.”

E segundo a mesma orientação, podemos também desviarmo-nos da decisão recorrida quando o Tribunal se pautou por factores objectivos na escolha dos membros do Conselho de Família, quando, citando o mesmo autor, “não pode defender-se uma intervenção por critérios objectivos, derrogando a vontade e interesses subjectivos do beneficiário. O termo de comparação terá que ser referente à liberdade de consentimento de que goza a pessoa não assistida. A esta é reconhecida autonomia para consentir ou acordar numa auto ou heterolesão dos seus interesses, desde que isso não prejudique terceiros ou não ofenda os bons costumes ou a ordem pública. Neste sentido, ao beneficiário terá que ser reconhecida igual faculdade, para consentir ou dissentir numa intervenção, por terceiros, sobre a sua pessoa (…) Toda a actuação sobre a esfera pessoal ou patrimonial do beneficiário terá que ser feita por referência aos interesses, vontade e valores manifestados anteriormente ao fenómeno incapacitante. O recurso a critérios objectivos apresenta-se, como já aludimos, como ultima ratio, na ausência de meios para reconstruir a vontade da pessoa incapaz, isto é, na impossibilidade de determinar a vontade presumida da pessoa. Mesmo a objectivização dos critérios de actuação não prescinde de um esforço de avaliação individual desses mesmos critérios, atento o momento e a oportunidade da situação.”

Assim, também na escolha dos membros do Conselho de Família, “as declarações antecipadas devem vincular a definição do interesse subjectivo da pessoa num momento de incapacidade, desde que ofereçam garantias de certeza e clareza. Cumpridos estes requisitos, não se poderá afastar a vontade então expressamente manifestada pela objectivação de um qualquer critério, pois os critérios de normalidade ou a automática transferência de valores do acompanhante para o beneficiário representam uma coisificação desta última, negando-se a sua plena dignidade.”


Não é menos válido o argumento dos recorrentes quando afirmam:

Estando a família dividida, como o Tribunal apurou, a consequência é que não existem condições para um bom entendimento entre acompanhante, protutor e vogal, o que nos parece indispensável à promoção da qualidade de vida da Beneficiária e à prossecução dos seus interesse e vontades, quer pessoais quer patrimoniais, em especial caso se verifique o infortúnio de o Acompanhante ter que ser substituído, transitória ou definitivamente. Ao contrário do que se diz na sentença recorrida e corroborado no douto Acórdão da Relação de Lisboa, não se trata de acautelar os interesses de todos! E muito menos das suas expectativas como herdeiros!! Ou seja, a designação do protutor merece a mesma ponderação que a designação d acompanhante, sendo a vontade e a relação de confiança os alicerces determinantes de uma decisão que verdadeiramente respeite a Dignidade da Beneficiária.”

Na verdade, nos termos do disposto no art. 1956.º do CC, aqui aplicável, com as devidas adaptações, para além das funções de fiscalização, cabe ao protutor: “a) Cooperar com o acompanhante no exercício das funções que a este cave, podendo encarregar-se da administração de certos bens do beneficiário nas condições estabelecidas pelo conselho de família e com o acordo do acompanhante; b) Substituir o acompanhante nas suas faltas e impedimentos, passando, nesse caso, a servir de protutor o outro vogal do conselho de família; c) Representar o beneficiário em juízo ou fora dele, quando os seus interesses estejam em oposição com os do acompanhante e o tribunal não haja nomeado curador especial.”, carecendo de sentido que o beneficiário disponha de total liberdade para escolher o seu acompanhante em caso de verificação futura de uma incapacidade e não disponha da mesma liberdade para escolher a pessoa (protutor) que deve cooperar com aquele e substituí-lo nas suas faltas e impedimentos.


Poder-se-ia igualmente aduzir:

- Ao contrário do que se afirma no acórdão recorrido, na escolha dos vogais do Conselho de Família, a lei não exclui a preponderância da vontade do beneficiário. O n.º 4 do art. 145.º do CC prevê que a representação legal do beneficiário segue o regime da tutela, mas com as adaptações necessárias, o que implica conferir primazia à vontade do beneficiário de acordo com o regime legal do maior acompanhado interpretado à luz da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

- Por outro lado, no art. 1952.º, n.º 1, parte final, do CC, estabelece-se como um dos critérios de escolha dos vogais do conselho de Família, o interesse manifestado pela pessoa do menor. Ora, o regime da tutela visa o suprimento das responsabilidade parentais sobre uma criança ou jovem menor de 18 anos, que deverá naturalmente obedecer à pessoa encarregue da sua formação e educação, sem prejuízo de se ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes de acordo com a sua maturidade (art. 1878.º, n.º 2), o que não se pode comparar com o beneficiário do regime do maior acompanhado que se encontra, de acordo com o novo regime legal, em posição de absoluta igualdade com as pessoas que não necessitam de protecção, sendo que o estabelecimento de limitações judiciais à sua capacidade deve restringir-se ao absolutamente necessário à sua protecção, de acordo com o princípio da subsidiariedade e da mínima intervenção na autonomia pessoal e familiar do beneficiário. A aplicação do art. 1952.º, n.º 1, do CC, com as devidas adaptações, ao regime do maior acompanhado exige, assim, que seja especialmente tida em conta, com absoluta primazia sobre os outros critérios, a escolha livre e esclarecida feita antecipadamente pelo próprio beneficiário antes de se verificar a sua incapacidade.

- Acresce ainda que o art. 900.º, n.º 3, do CPC, determina que a sentença proferida na acção especial de maior acompanhado deve respeitar a vontade antecipadamente expressa pelo acompanhado, não se distinguindo entre a escolha do acompanhante e a escolha dos membros do Conselho de Família.


Ainda que reportados a casos de escolha do representante legal do beneficiário (e não ao conselho de família), as soluções e fundamentos apresentados na jurisprudência deste STJ devem ter-se-por aplicáveis ao conselho de família, cumprindo aqui salientar os seguintes arestos:

Ac. de 10-03-2022, Revista n.º 2076/16.0T8CSC.L2.S1 Texto integral disponível em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0ce5bae85121ae1f8025880d005c95b0?OpenDocument


I - Resulta da conjugação dos arts. 140.º e 143.º, ambos do CC que o critério a observar na designação do acompanhante é o do “imperioso interesse do beneficiário” que se reporta aos direitos humanos e liberdades fundamentais da pessoa, nomeadamente aos seus direitos à solidariedade, ao apoio e à ampliação da sua autonomia.

II - Na designação do acompanhante, a lei atribui preferência à escolha feita pelo próprio acompanhado/beneficiário, pois não só a dignidade da pessoa humana implica que se respeite a sua vontade como uma pessoa da confiança do acompanhado é, por regra, aquela que está em melhores condições para promover o seu bem-estar emocional e assegurar-lhe, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente.

III - Só não será de respeitar a escolha do acompanhado se as suas faculdades mentais não lhe permitirem fazer uma tal avaliação, isto é, se não tiver capacidade para compreender e avaliar a realidade que o cerca, ou se a pessoa por ele escolhida não se revelar idónea para o exercício do cargo.

IV - Cabe, assim, ao tribunal, de acordo com o critério do “imperioso interesse do beneficiário”, confirmar, ou não, a escolha do próprio acompanhado ou do seu representante legal ou, na falta de escolha por parte destes, designar o acompanhante ou acompanhantes, que devem estar em condições de exercer um conjunto de poderes-deveres de cuidado e diligência, dirigidos a promover, nos termos do art. 146.º, n.º1, do CC, o bem-estar e a recuperação do acompanhado, na concreta situação considerada.

V - Evidenciando os autos que a requerida não tem bom relacionamento com a requerente, sua mãe, e que sempre se opôs a que esta fosse nomeada sua acompanhante, tanto basta para afastar essa nomeação, pois isso implicaria não só uma violação injustificada da vontade da acompanhada como constituiria uma ofensa à sua dignidade humana e à sua autonomia.


Ac. de 17-12-2020, Revista n.º 5095/14.7TCLRS.L1.S1 - Texto integral disponível em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/18aedf8355a0068c80258678004caeca?OpenDocument

I - O art. 891.º, n.º 1, do CPC manda aplicar ao processo de acompanhamento de maior, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária (arts. 986.º a 988.º do CPC).

II - Sobre o cabimento e âmbito do recurso de revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária, haverá de ajuizar de forma casuística, em função dos respetivos fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata da resolução tomada segundo critérios de conveniência e de oportunidade.

III - O conceito de “interesse imperioso do beneficiário”, que preside à escolha do acompanhante, nos termos do art. 143.º do CC, é um conceito indeterminado, que se reporta aos direitos fundamentais da pessoa, nomeadamente, aos seus direitos à solidariedade, ao apoio e à ampliação da sua autonomia.

IV - A família não pode ser conceitualizada, quando está em causa o exercício dos deveres de cuidado do acompanhante de pessoa idosa residente numa instituição, como um mero conjunto de laços biológicos ou formais, reconhecidos pelo direito. A noção de família, como resulta da conjugação do art. 143.º, n.º 2, com o art. 146.º do CC, deve conter elementos de proximidade afetiva, auxílio, responsabilidade e, pelo menos, interesse pela definição do projeto de vida da pessoa acompanhada, pelo seu bem-estar e recuperação, bem como disponibilidade para a visitar.



Em síntese, é de concluir que não deve ser excluído da composição do conselho de família alguém que tenha sido apontado pelo beneficiário como sendo a pessoa que escolheria para protutor, quando a vontade manifestada pelo beneficiário foi livre e esclarecida, tomada em momento anterior à incapacidade que justificou o regime de maior acompanhado, salvo se existirem motivos concretos e ponderosos que justifiquem não levar em consideração a pessoas indicada pelo beneficiário – que nos caso dos autos não vieram demonstrados.


III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, revoga-se o acórdão recorrido, determinando a baixa do processo ao Tribunal recorrido para que decida em conformidade com o direito definido.

Sem custas, por não ter havido contra-alegações e o recurso ser procedente.


Lisboa, 19 de Janeiro de 2023


Fátima Gomes (Relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto Oliveira

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[1] Disponível no seguinte link: https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=42175
[2] António Pinto Monteiro, “Das incapacidades ao maior acompanhado – breve apresentação da Lei número 49/2018”, O novo regime jurídico do maior acompanhado, Coleção Formação Contínua do Centro de Estudos Judiciários, fevereiro 2019, p. 33, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.
[3] Mafalda Miranda Barbosa, “Fundamentos, Conteúdo e Consequências do Acompanhamento de Maiores”, O novo regime jurídico do maior acompanhado, Coleção Formação Contínua do Centro de Estudos Judiciários, fevereiro 2019, p. 63, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.
[4] Aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30/07 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30/07, tendo sido objeto de publicação no Diário da República I, n.º 146, de 30/07/2009.
[5] Paula Távora Vítor, “O maior acompanhado à luz do artigo 12.º da CDPD”, Julgar, n.º 41, Coimbra, p. 47.
[6] Paula Távora Vítor, ob. cit., p. 44.
[7] Paula Távora Vítor, ob. cit., p. 44.
[8] GERALDO ROCHA RIBEIRO, “O instituto do maior acompanhado à luz da Convenção de Nova Iorque e dos direitos fundamentais”, in Julgar online, maio de 2020, págs. 12 a 14, acessível em:
 http://julgar.pt/o-instituto-do-maior-acompanhado-a-luz-da-convencao-de-nova-iorque-e-dos-direitos-fundamentais/
[9] GERALDO ROCHA RIBEIRO, op. cit., págs. 31 a 33.
[10] GERALDO ROCHA RIBEIRO, op. cit., pág. 34.