Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2076/16.0T8CSC.L2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
ACOMPANHANTE
AUTONOMIA DA VONTADE
Data do Acordão: 03/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Resulta da conjugação dos artigos 140º e 143º, ambos do Código Civil que o critério a observar na designação do acompanhante é o do “imperioso interesse do beneficiário” que se reporta aos direitos humanos e liberdades fundamentais da pessoa, nomeadamente aos seus direitos à solidariedade, ao apoio e à ampliação da sua autonomia.

II. Na designação do acompanhante, a lei atribui preferência à escolha feita pelo próprio acompanhado/beneficiário, pois não só a dignidade da pessoa humana implica que se respeite a sua vontade como uma pessoa da confiança do acompanhado é, por regra, aquela que está em melhores condições para promover o seu bem-estar emocional e assegurar-lhe, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente.

III. Só não será de respeitar a escolha do acompanhado se as suas faculdades mentais não lhe permitirem fazer uma tal avaliação, isto é, se não tiver capacidade para compreender e avaliar a realidade que o cerca, ou se a pessoa por ele escolhida não se revelar idónea para o exercício do cargo.

IV. Cabe, assim, ao tribunal, de acordo com o critério do “ imperioso interesse do beneficiário ”, confirmar, ou não, a escolha do próprio acompanhado ou do seu representante legal ou, na falta de escolha por parte destes, designar o acompanhante ou acompanhantes, que devem estar em condições de exercer um conjunto de poderes-deveres de cuidado e diligência, dirigidos a promover, nos termos do artigo 146.º, n.º 1, do Código Civil, o bem-estar e a recuperação do acompanhado, na concreta situação considerada.

IV. Evidenciando os autos que a requerida não tem bom relacionamento com a requerente, sua mãe, e que sempre se opôs a que esta fosse nomeada sua acompanhante, tanto basta para afastar essa nomeação, pois isso implicaria não só uma violação injustificada da vontade da acompanhada como constituiria uma ofensa à sua dignidade humana e à sua autonomia.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


***



I. Relatório


1. AA intentou ação de interdição/inabilitação, a que por força da alteração da lei se aplicam as normas do processo especial de acompanhamento de maior, pedindo que seja decretado o acompanhamento da sua filha maior BB.

Alegou, para tanto e em síntese, que a requerida apresenta um quadro de doença psicológica grave, que a torna dependente de terceiros no que se refere à gestão do seu património, uma vez que a doença de que padece determina a sua incapacidade para reger a sua pessoa e administrar os seus bens.


2. Foi dada publicidade à ação, nos termos do disposto no art° 893° do CPC.


3. Citada, a requerida contestou, impugnando a factualidade alegada pela requerente.


4. Procedeu-se a perícia médico-legal que concluiu que a requerida reúne os critérios legais para que lhe seja aplicado o regime da maior acompanhada em certas áreas (disposição patrimonial e na área da saúde).

A pedido da requerida foi realizada nova perícia oficial, que confirmou o resultado da primeira perícia.


5. Foi efetuada a audição da requerida, da requerente e das testemunhas apresentadas.


6. O Magistrado do Ministério, emitiu parecer final no sentido de ser determinado o acompanhamento da requerida.


7. Foi proferida sentença, que julgou a ação procedente e, em consequência, declarou o acompanhamento da requerida maior, BB, nascida no dia .../.../1984, em ..., filha de CC e de AA.


8. Inconformada com tal decisão, dela apelou a requerida para o Tribunal da Relação ... que proferiu acórdão que declarou a nulidade da sentença recorrida «quer por via da total ausência de fundamentação de parte integrante da decisão de direito - no que concerne à escolha do acompanhante da maior acompanhada -, quer no que respeita à deficiente especificação da motivação da matéria de facto e ainda por carecer de apuramento de factos não conclusivos que alicercem a necessidade, ou não, do acompanhamento da requerida », determinando «a sua substituição por outra em que surjam supridos os apontados vícios geradores das nulidades avançadas, o que poderá passar, ou não, pela produção prévia de alguns meios de prova».


9. Baixados os autos ao Tribunal de 1ª Instância, foi aí proferida nova sentença que decidiu:

«Face ao exposto julgo a acção procedente por provada e, em consequência, declaro o acompanhamento da requerida maior, BB, nascida no dia .../.../1984, em ..., filha de CC e de AA.

Fixo a data do início do acompanhamento no dia 12.09.2017.

Não são conhecidos testamento vital ou procuração de cuidados de saúde.

Atendendo à prova produzida, ao facto de a requerente não concorrer à herança do seu falecido cônjuge, por à data do óbito estarem judicialmente separados de pessoas e bens (art° 2133° n°3 do Cód. Civil), ao facto de a irmã da requerida, DD, concorrer com esta à herança do seu pai e por considerar que o seu companheiro tentou ajudá-la a levantar grande quantidade de dinheiro, no dizer dele para comprarem uma casa e um carro, considero adequado nomear e nomeio como acompanhante à requerida para as questões patrimoniais de relevo a sua mãe, AA, sendo que as contas bancárias da requerida serão tituladas pela requerente e pela requerida, mas apenas movimentadas pela requerente/acompanhante, sendo que os valores da propriedade da requerida estão sujeitos às autorizações judiciais necessárias à sua utilização e a prestação de contas, e os bens imóveis só podem ser transaccionados pela acompanhante, sem prejuízo das necessárias autorizações judiciais - art° 143° n° 2 -e) do Código Civil, na sua redacção actual.

Para acompanhamento nas na gestão da sua saúde da requerida nomeio o seu companheiro EE, por ser que vive diariamente com a requerida e parece que até agora tem conseguido ministrar os medicamentos receitados e a tem acompanhado às necessárias consultas médicas (art° 145° n° 2 do Cód. Civil, redacção actual).

Fica vedado à maior acompanhada a celebração de negócios, sem apoio do acompanhante AA, excepcionando-se, no entanto, de gestão normal da sua vida, sendo que para tal deve ser fixado um valor mensal a ser entregue à requerida, valor que será retirado do seu património e que deve ser fixado pelo Conselho de Família, a máxima brevidade possível.

Para integrar o Conselho de Família, presidido pelo Ministério Público, nomeio AA (mãe da requerida); EE (companheiro da requerida) e DD (irmã da requerida).

Sem custas - art° 4° n°1-I) na redacção dada pela Lei 49/2018 de 14/08.

Registe, notifique e comunique à Conservatória do Registo Civil competente.

Valor da acção: 30.000,01 €.»


10. Inconformada com esta decisão, a requerida dela apelou para o Tribunal da Relação, que proferiu acórdão que, julgando a apelação parcialmente procedente e revogando em parte a sentença recorrida, decidiu:

«a) Declarar o acompanhamento da requerida maior, BB, nascida no dia .../.../1984, em ..., filha de CC e de AA.

b) Fixar a data do início do acompanhamento no dia 12-09-2017.

c) Serem desconhecidos testamento vital ou procuração de cuidados de saúde.

d) Nomear a irmã da Requerida, DD, como sua acompanhante nas seguintes atribuições:

- para as questões patrimoniais de relevo, sendo que as contas bancárias da requerida serão tituladas pela ora nomeada e pela Requerida, mas apenas movimentadas pela acompanhante, sendo que os valores da propriedade da requerida ficarão sujeitos às autorizações judiciais necessárias à sua utilização e a prestação de contas, e os bens imóveis só poderão ser transaccionados pela acompanhante, sem prejuízo das necessárias autorizações judiciais - art.° 143° n° 2, al. e) do Código Civil, na sua redacção actual.

e) Nomear o companheiro da Requerida, EE, como seu acompanhante nas seguintes atribuições:

- na gestão das questões inerentes à saúde da requerida;

- representando-a no processo de inventário judicial da herança aberta por morte do pai da requerida (até ao trânsito em julgado da sentença de partilhas).

f) Ficar vedado à maior acompanhada a celebração de negócios, sem o apoio da acompanhante DD, excepcionando-se os de gestão normal da sua vida, sendo que para tal deve ser fixado um valor mensal a ser entregue à requerida, valor que deverá ser retirado do seu património e que deve ser fixado pelo Conselho de Família com a máxima brevidade possível.

g) Nomeiam-se, para integrar o Conselho de Família, o Ministério Público, que presidirá e, como vogais, EE (companheiro da requerida) e DD (irmã da requerida).

Registe, notifique e comunique à Conservatória do Registo Civil competente. Sem custas, por delas estar isento este processo (art.° 4.°, n.° 2, al. h) do Regulamento das custas processuais)».


11. Inconformada com esta decisão, na parte em que nomeou a irmã da requerida, DD, como sua acompanhante para as questões patrimoniais de relevo e o EE para o processo de inventário para partilha da herança do pai de ambas, a requerente dela interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1 – O processo especial de acompanhamento de maiores tem por escopo a valorização dos direitos de pessoas deficientes, da sua dignidade e autonomia,

2 – sendo, em termos substanciais, um processo de jurisdição voluntária.

3 – A designação do Acompanhante cabe ao tribunal, que poderá confirmar ou não a escolha do Acompanhado, podendo aquele designar vários acompanhantes.

4 – Não estando em causa a nomeação de EE como Acompanhante na gestão das questões de saúde da Acompanhada /Requerida como foi decidido pelas instâncias, não se concorda com o acórdão recorrido em nomear a DD como Acompanhante para as questões patrimoniais de relevo e o EE para o processo de inventário para partilha da herança do pai de ambas,

5 – na medida em que ambos sempre recusaram a necessidade de acompanhamento da Requerida BB, bem sabendo a deficiência de que a mesma é portadora, com o intuito de procederem à sua vontade à partilha da sobredita herança, em prejuízo da Requerida,

6 – nunca tendo a DD, sabendo das necessidades por que passa a Requerida, ajudado monetariamente a mesma, nomeadamente prestando contas da herança como cabeça de casal,

7 – sendo, ao invés, o único intuito da Recorrente salvaguardar a mesma herança da cobiça alheia e destinar a mesma ao futuro de sua filha, que não tem outros meios de sobrevivência, dado a deficiência de que é portadora,

8 – nomeando-se a Recorrente Acompanhante da Requerida para as questões patrimoniais, como foi determinado pela 1ª instância, cuja decisão deve repristinar-se,

9 – a tal não se opondo o disposto no art. 146, nº 2 C. C., dado tratar-se tão só da gestão e administração de património.

10 – Violou o acórdão recorrido o disposto nos arts. 140, 143, 145 e 146 C.C., por erro de interpretação das mesmas disposições legais.

Termos em que, deve a presente revista ser julgada procedente e, em consequência, revogar-se o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença da 1ª instância proferida, com as legais consequências».


12. A requerida respondeu, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:

«A) Aos 13/07/2016 a Recorrente e Requerente dos Autos apresentou contra a aqui Recorrida Acção Especial de Interdição.

B) Por Sentença datada de 09/12/2020, o Tribunal de Primeira Instância decidiu, entre outros declarar o acompanhamento da Requerida e nomear como acompanhante para as questões patrimoniais de relevo a sua mãe, AA, a qual integraria o Conselho de Família.

C) Inconformada a aqui Recorrida, apresentou, aos 08/01/2021, Recurso de Apelação para o Digníssimo Tribunal da Relação, que por Acórdão datado de 15/04/2021, julgou o seu Recurso procedente, decretando que a referida Sentença fosse substituída por outra.

D) No seguimento do referido Acórdão e em cumprimento ao ordenado pelo Tribunal Superior, o Tribunal de Primeira Instância proferiu aos 29/09/2021, nova Sentença na qual declarou o acompanhamento da Requerida, nomeando como acompanhante para as questões patrimoniais de relevo a sua mãe, AA, a qual integraria o Conselho de Família.

E) Mais uma vez, e não se conformando com o entendimento do Tribunal de Primeira Instância, a aqui Recorrida apresentou novo Recurso, para o Tribunal da Relação.

F) Tendo o Digníssimo Tribunal a quo julgado a Apelação em parte procedente, declarando o acompanhamento da Requerida, mas desta feita, nomeando a Irmã da Requerida, DD, como sua acompanhante, ficando nomeado o Companheiro da Requerida, EE, para as questões da gestão das questões inerentes à saúde da Requerida e da sua representação no processo de inventário judicial da herança aberta por morte do Pai daquela.

G) Sucede que, a ora Recorrente não se conformando com o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ..., vem dele apresentar Recurso, assente essencialmente no fundamento de violação da lei substantiva.

H) Contudo, conforme se demonstrará a Recorrente não logra demonstrar qualquer erro de julgamento.

DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO

I) Importa desde logo referir que a Recorrente não impugna a matéria de facto dada como provada, pelo que, retira-se de tal omissão que a Recorrente não discorda da mesma.

J) Não se socorre de qualquer prova gravada, não fazendo sequer referência aos Depoimentos prestados nem esclarece em que medida as normas identificadas foram indevidamente interpretadas.

K) Cumprindo salientar que a Decisão recorrida não padece de qualquer vício, uma vez que resultou de entre várias soluções tidas como legais e do caso concreto.

L) No que diz respeito à decisão dos Acompanhantes designados, não se discute que o Digníssimo Tribunal tem o poder-dever de decidir de forma contrária à vontade do Beneficiário da Medida, quando tal seja necessário.

M) Sucede que, no caso em apreço, não existe fundamento para contrariar a vontade da Recorrida.

N)  Desde logo porque não só o Depoimento da Testemunha FF (Psiquiatra que acompanhada a Requerida desde o ano de 2017), como também o 2.º e último Relatório pericial (junto aos Autos em 15/05/2020) são peremptórios em atestar que a Requerida reúne as necessárias competências cognitivas e emocionais para compreender o conceito de Acompanhante e manifestar a sua preferência quanto aos mesmos.

O) Por outro lado, a Requerida sempre expressou ao longo de todo o Processo que, a ser-lhe decretado o Acompanhamento, não queria que fosse a Mãe a assumir esse cargo.

P) E não resultou provado que os Acompanhantes designados pelo Tribunal a quo não são idóneos ou que existe um qualquer conflito de interesses.

Q) Não tendo a Recorrente indicando sequer em que depoimentos assenta a sua convicção ou de onde retira tal conclusão.

R) O facto de os Acompanhantes designados não partilharem da opinião de que a Requerida tivesse necessidade de Acompanhamento, não tem qualquer relevo para o exercício do cargo. Porquanto sempre ajudaram a Requerida, ao contrário da Mãe.

S) Informalmente os Acompanhantes sempre cuidaram e zelaram escrupulosamente pela Saúde e Bem-estar da Requerida, intervindo inclusive na gestão da esfera patrimonial sempre que necessário, em particular o seu Companheiro.

T) Basta para tanto atentar nos Depoimentos da própria Requerida, da sua Irmã DD e da Requerente.

U) Importa ainda chamar à colação a Decisão proferida no âmbito dos Autos de Internamento compulsivo, que correram termos com o n.º 19824/17…, junto do Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., que decretou o Arquivamento dos Autos, atenta a melhoria no estado clínico da Requerida, e por não subsistirem motivos para manter o presente internamento compulsivo.

V) Bem demonstrando que o entendimento dos Acompanhantes não é infundado ou irresponsável.

W) A restante argumentação da Recorrente reduz-se a acusações (graves e que atentam inclusive contra a Honra dos Acompanhantes), inexistindo argumentos jurídicos ou factuais atendíveis.

X) Por fim, no que diz respeito ao alegado conflito de interesses patrimoniais com a Irmã DD, relativamente à Herança de que ambas são Herdeiras por morte do Pai, o Digníssimo Tribunal a quo, tomou a decisão necessária e bastante para, a existir tal conflito, o mesmo seja dirimido - uma vez que a Acompanhante DD deve acompanhar a Requerida em todas as questões de maior relevo, à excepção do Inventário Judicial da referida Herança.

Y) Concluindo-se assim que, face aos factos dados como provados, não podia ser proferida outra Decisão que não a que vem doutamente decretada no Acórdão recorrido».


Termos em que pugna pela manutenção do acórdão recorrido.


13.  Após os vistos, cumpre apreciar e decidir.



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II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação dos recorrentes, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, a única questão a decidir consiste em saber quem deve ser nomeado acompanhante da requerida para as questões patrimoniais de relevo e para representá-la no processo de inventário para partilha da herança do seu pai.


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IV. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


São os seguintes os factos dados como provados pelas instâncias:

1 - BB, solteira (a viver em união de facto com EE), maior, nasceu no dia .../.../1984, em ..., sendo filha de CC e de AA.

2 – A requerida, desde a sua infância, foi acompanhada em neuropediatria e pedopsiquiatria e posteriormente por psiquiatra e actualmente apresenta um quadro de "perturbação afectiva bipolar tipo I, condição codificada pela Classificação Internacional de Doença (ICD - 10) como F 31, associada a uma incapacidade cognitiva ligeira (discapacidade cognitiva)", doença crónica, que lhe dificulta a gestão dos seus bens e cuidados com a sua saúde. [redação dada pelo Tribunal da Relação]

3 - A incapacidade de que sofre a requerida, indicada no ponto anterior, tem por tradução uma redução das competências cognitivas, que por sua vez tornam mais difícil a compreensão de material complexo ou a execução de tarefas mais exigentes do ponto de vista cognitivo. A perturbação afectiva bipolar tipo I é uma perturbação crónica do humor, condicionado - de forma simplificada - a ocorrência de sintomas afectivos, psíquicos, motores, cognitivos, entre outros, sendo possível medicamente de serem tratados (como é o caso, assistindo-se a razoável estabilidade clínica ao longo dos últimos 2-3 anos). (...) Em termos pragmáticos o funcionamento social e autonomia estão prejudicados. [redação dada pelo Tribunal da Relação]

4 – A sua incapacidade reflecte-se em dificuldades no domínio financeiro e avaliação do valor económico do património, associada a uma redução global (ligeira) das competências cognitivas, podendo comprometer o seu património de montante mais elevado ou de natureza complexa e o assumir de endividamento fácil. [redação dada pelo Tribunal da Relação]

5 - A requerida foi internada compulsivamente em 12.09.2017, por abandono de medicação que originou surto psicótico.

6 - Por óbito do seu pai, foram deixados à herdeira bens (dinheiro e bens imóveis), sendo que a mesma herança não se mostra partilhada e que é também herdeira da mesma a irmã da requerida DD.

7 - A requerida abandonou a casa da sua mãe (requerente) para ir viver com o seu companheiro, EE, e deixou de se relacionar com a mãe.

8 - À data do óbito do pai da requerida a requerente estava separada judicialmente de pessoas e bens do seu cônjuge.

9 - Em dias não concretamente apurados de Abril de 2016, a requerida, acompanhada de EE, tentou levantar quantia muito elevada em numerário (não concretamente apurada) das contas tituladas por si e pela sua mãe, na Caixa Geral de Depósitos (... e de ...).» [redação dada pelo Tribunal da Relação]

10- A Requerida reúne as necessárias competências cognitivas e emocionais para compreender o conceito de acompanhante e manifestar a sua preferência quanto ao(s) mesmo(s). [aditado pelo Tribunal da Relação]



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3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se unicamente com a questão de saber sobre quem deve recair a escolha ou designação do acompanhante da requerida para as questões patrimoniais de relevo e para representá-la no processo de inventário para partilha da herança do seu pai.


Isto porque o Tribunal de 1ª Instância nomeou à requerida, para as questões patrimoniais de relevo, a requerente AA, mãe da requerida, atendendo «ao facto de a requerente não concorrer à herança do seu falecido cônjuge, por à data do óbito estarem judicialmente separados de pessoas e bens (art° 2133° n° 3 do Cód. Civil), ao facto de a irmã da requerida, DD, concorrer com esta à herança do seu pai e por considerar que o seu companheiro tentou ajudá-la a levantar grande quantidade de dinheiro, no dizer dele para comprarem uma casa e um carro ».


Entendimento diverso teve o Tribunal da Relação que, revogando a decisão da 1ª Instância, nesta parte, nomeou a irmã da requerida, DD, como sua acompanhante «para as questões patrimoniais de relevo, sendo que as contas bancárias da requerida serão tituladas pela ora nomeada e pela Requerida, mas apenas movimentadas pela acompanhante, sendo que os valores da propriedade da requerida ficarão sujeitos às autorizações judiciais necessárias à sua utilização e a prestação de contas, e os bens imóveis só poderão ser transaccionados pela acompanhante, sem prejuízo das necessárias autorizações judiciais - art.° 143° n° 2, al. e) do Código Civil, na sua redacção actual » e nomeou o companheiro da requerida, EE, como seu acompanhante «na gestão das questões inerentes à saúde da requerida » e para representá-la «  no processo de inventário judicial da herança aberta por morte do pai da requerida (até ao trânsito em julgado da sentença de partilhas)».

E fê-lo com base na seguinte fundamentação:

« Neste âmbito, há desde logo que ter presente que consta desde o início do processo e ao longo do mesmo - começando pela contestação e posteriormente da sua audição, repetindo-se nos relatórios médico forenses - que a requerida sempre se opôs a que fosse a requerente, sua progenitora, a sua acompanhante, quiçá por entender que esta poderá estar na origem de parte do seu percurso de vida menos gratificante, existindo uma alegada "incompatibilidade" entre ambas, que a requerida considera poder ser até considerada de conflito de interesses.

Não importa aqui indagar da razão ou sem razão de tal postura, há sim que reconhecer que esse "estado de alma" existe e é patente, sendo certo também que mesmo antes do seu internamento compulsivo em 2017 que não convive com a Requerente (mais precisamente desde 12-06-2016), denotando-se que após aquele o seu estado de saúde tem revelado estabilidade, senão mesmo melhoria.

Tudo isto para se dizer que se considera inadequado nomear a sua mãe como acompanhante da Requerida, na medida em que tal contraria a sua vontade expressa, não se vendo razões válidas para que não seja respeitada, pois que, como se apurou (ponto 10. dos factos dados por provados), «a Requerida reúne as necessárias competências cognitivas e emocionais para compreender o conceito de acompanhante e manifestar a sua preferência quanto ao(s) mesmo(s)». Acresce, como veremos de seguida, que surgem no horizonte outras possibilidades.

De acordo com a vontade expressa da Requerida, esta aceitaria que lhe fossem nomeados como seus acompanhantes, o seu companheiro, EE e sua irmã, DD».


Insurge-se a requerente contra a nomeação da  DD, como acompanhante da requerida para as questões patrimoniais de relevo, e do EE para representá-la no processo de inventário para partilha da herança do seu pai, argumentando que «ambos sempre recusaram a necessidade de acompanhamento da Requerida BB, bem sabendo a deficiência de que a mesma é portadora, com o intuito de procederem à sua vontade à partilha da sobredita herança, em prejuízo da Requerida, nunca tendo a DD, sabendo das necessidades por que passa a Requerida, ajudado monetariamente a mesma, nomeadamente prestando contas da herança como cabeça de casal».


Vejamos.


Reconhecendo a desadequação do regime das interdições e inabilitações até então previsto no Código Civil, veio a Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto revogar estes institutos e, em sua substituição, criar o Regime Jurídico do Maior Acompanhado, norteado pelos princípios da “primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível” e da “subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns”, e por um “modelo de acompanhamento e não de substituição, em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada, e não substituída, na formação e exteriorização da sua vontade” (cfr.  Proposta de Lei n.º 110/XIII[2]).

Trata-se de uma alteração legislativa, que encontra eco nos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, consagrados nos arts. 1º e 13º da CRP, e resultante de obrigações internacionais do Estado Português após adesão à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em Nova Iorque em 30 de março de 2007 (e ao respetivo Protocolo Adicional), cujo artigo 1º estabelece ser seu objeto “promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”.

Podemos, assim, dizer, tal como já afirmado no Acórdão do STJ, de 17.12.2020 ( processo nº  5095/14.7TCLRS.L1.S1)[3] , que este novo regime « pretende ser a realização infraconstitucional das liberdades e direitos das pessoas portadoras de deficiência com vista a encontrar soluções individualizadas, que ultrapassem a rigidez da interdição e da inabilitação, garantindo à pessoa acompanhada a sua autodeterminação, e promovendo, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente, de acordo com o princípio da máxima preservação da capacidade do sujeito».

Nesta conformidade, preceitua o artigo 140º, nº 1 do C. Civil que «o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença», estabelecendo o nº 2 deste mesmo artigo que «a medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam» .

E, sob a epígrafe “Acompanhante”, prescreve o artigo 143º do CC que :

«1 - O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.

2 - Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente:

a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto;

b) Ao unido de facto;

c) A qualquer dos pais;

d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado;

e) Aos filhos maiores;

f) A qualquer dos avós;

g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado;

h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação;

i) A outra pessoa idónea.

3 - Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um, com observância dos números anteriores».


Resulta claro da conjugação destes artigos, por um lado, que o critério a observar na designação do acompanhante é o do “imperioso interesse do beneficiário” que, no dizer do citado Acórdão do STJ, de 17.12.2020, é «um conceito indeterminado, que se reporta aos direitos fundamentais da pessoa, nomeadamente, aos seus direitos à solidariedade e ao apoio, bem como à ampliação da sua autonomia».

E, por outro lado, que a lei atribui preferência à escolha feita pelo próprio acompanhado/beneficiário, o que bem se compreende, pois não só a dignidade da pessoa humana implica que se respeite a sua vontade como uma pessoa da confiança do acompanhado é, por regra, aquela que está em melhores condições para  promover o seu bem-estar emocional e assegurar-lhe, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente.

Só não será de respeitar a escolha do acompanhado se as suas faculdades mentais não lhe permitirem fazer uma tal avaliação, isto é, se não tiver capacidade bastante para compreender esse ato[4], ou se a pessoa por ele escolhida não se revelar idónea para o exercício do cargo.

Cabe, assim, ao tribunal, de acordo com o critério do “ imperioso interesse do beneficiário ”, confirmar, ou não, a escolha do próprio acompanhado ou do seu representante legal ou, na falta de escolha por parte destes, designar o acompanhante ou acompanhantes, que, no dizer do supra referido acórdão do STJ, «deve estar em condições de exercer um conjunto de poderes-deveres de cuidado e diligência, dirigidos a promover, nos termos do artigo 146.º, n.º 1, do Código Civil, o bem-estar e a recuperação do acompanhado, na concreta situação considerada».

Ora analisando, o caso dos autos à luz destas considerações e provado que ficou que a requerida reúne as necessárias competências cognitivas e emocionais para compreender o conceito de acompanhante e manifestar a sua preferência quanto ao(s) mesmo(s) [cfr. nº 10 dos factos provados], não vemos razão para dissentir das nomeações feitas pelo Tribunal da Relação.

Desde logo porque, tal como ressalta claramente das alegações de recurso de apelação da requerida e das suas contra alegações em sede de recurso de revista, a requerida aceita que lhe sejam nomeados acompanhantes a sua irmã, DD, e o EE, com quem vive em união de facto, sendo certo que nada se provou quanto às razões invocadas pela recorrente para justificar o seu afastamento do exercício destas funções.

Em segundo lugar, porque ao longo deste processo (cfr. contestação, audição, relatórios  médico forenses, alegações de recurso de apelação e contra alegações do presente recurso de revista), a requerida sempre se opôs à nomeação da requerente, sua mãe, para sua acompanhante, evidenciando os factos provados e supra descritos no ponto 7, que não tem um bom relacionamento com esta, o que tanto basta afastar a nomeação, pois isso não só implicaria uma violação injustificada da vontade da acompanhada como constituiria uma ofensa à sua dignidade humana e à sua autonomia.

Daí entender-se, em consonância com o acórdão recorrido, que os acompanhantes nomeados, por serem pessoas da confiança da acompanhada, são aqueles que, efetivamente, estão em melhores condições para promover o seu bem-estar emocional e assegurar-lhe, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente.

Não ocorre, por isso, qualquer violação do preceituado nos artigos, 140º, 143º, 145º e 146.º, ambos do Regime Jurídico do Maior Acompanhado, cumprindo julgar o recurso improcedente.



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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

As custas da revista ficam a cargo da recorrente.

Notifique



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Supremo Tribunal de Justiça, 10 de março de 2022

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

João Cura Mariano

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2]Disponível https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=42175
[3] Acessível in www.dgsi/stj.pt.
[4] Neste sentido, cfr. Paula Távora Vítor, “O Maior Acompanhado À Luz do Artigo 12º dA CDPD”, in Julgar, nº 41, 2020, pág. 44 e Acórdão da Relação de Coimbra, de 03.11.2020 (processo nº 156/19.9T8OHP.C1) Acessível in www.dgsi.pt.