Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5095/14.7TCLRS.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
PROCESSO ESPECIAL
TUTOR
DEVER DE SOLIDARIEDADE
DIREITOS FUNDAMENTAIS
PARENTESCO
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGAR A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

I - O artigo 891.º, n.º 1, do CPC manda aplicar ao processo de acompanhamento de maior, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária (artigos 986.º a 988.º do CPC).

II – Sobre o cabimento e âmbito do recurso de revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária, haverá de ajuizar de forma casuística, em função dos respetivos fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata da resolução tomada segundo critérios de conveniência e de oportunidade.

III – O conceito de “interesse imperioso do beneficiário”, que preside à escolha do acompanhante, nos termos do artigo 143.º do Código Civil, é um conceito indeterminado, que se reporta aos direitos fundamentais da pessoa, nomeadamente, aos seus direitos à solidariedade, ao apoio e à ampliação da sua autonomia.

IV - A família não pode ser conceitualizada, quando está em causa o exercício dos deveres de cuidado do acompanhante de pessoa idosa residente numa instituição, como um mero conjunto de laços biológicos ou formais, reconhecidos pelo direito. A noção de família, como resulta da conjugação do artigo 143.º, n.º 2, com o artigo 146.º do Código Civil, deve conter elementos de proximidade afetiva, auxílio, responsabilidade e, pelo menos, interesse pela definição do projeto de vida da pessoa acompanhada, pelo seu bem-estar e recuperação, bem como disponibilidade para a visitar. 

Decisão Texto Integral:
 

Processo n.º 5095/14.7TCLRS.L1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. AA., nascida em …… de 1945, residente no centro de Dia de ........., com sede na Rua…………, foi declarada interdita, por sentença proferida em 14 de março de 2018, por padecer de um quadro de demência, de etiologia vascular, de caráter crónico e irreversível, que a incapacita de reger a sua pessoa e bens.

2. Em 20 de maio de 2019, foi apresentado um requerimento por BB. , CC.  e DD. , irmãos da pessoa declarada interdita, pedindo que se procedesse à substituição do atual acompanhante (antigo tutor) de AA. , nomeando-se, nessa qualidade, BB. .

3. Realizadas as diligências consideradas pertinentes, veio o tribunal de 1.ª instância a proferir decisão, em 5 de março de 2020, na qual considerando inexistir “razão para a determinação de uma substituição do acompanhante e verificando mesmo que a designação de BB. como acompanhante não seria a que melhor salvaguardaria o interesse imperioso da beneficiária (artigo 143.º do Cód. Civil) indeferiu a substituição de acompanhante requerida – artigo 891.º, n.º 1, do Cód. Processo Civil”.

A sentença decidiu, também, condenar os requerentes ao pagamento de uma taxa sancionatória de 6 UC’s com o seguinte fundamento:

“Ainda, porque os requerentes não poderiam deixar de conhecer a falsidade das condições de vida que descreveram sobre quem indicaram para exercer o cargo de acompanhante, nomeadamente que não reside em Portugal e que nunca se interessou pela escolha de um local para o acolhimento da sua irmã, gerando o seu pedido variadíssimas despesas processuais, com a afetação de vários agentes colaboradores da Justiça, para além de um movimento processual constante de uma acção finda, tudo em vão, ao abrigo do disposto no artigo 10.º do Regulamento das Custas Processuais, condeno-os no pagamento de uma taxa sancionatória no valor de 6 UCs».

 

4. Inconformada com a decisão proferida veio, DD. , interpor recurso de apelação contra a sentença do tribunal de 1.ª instância, tendo o Tribunal da Relação ….. julgado improcedente o recurso e, por consequência, confirmado a decisão recorrida, tendo uma das Desembargadoras que integra o coletivo apresentado um voto de vencida.  

Nesse voto, afirmou o seguinte:

«Vencida. Entendo que os autos não contêm todos os elementos necessários para decidir, pois a apelante, DD., não foi sequer ouvida pela Segurança Social, apesar da promoção de fls 24 e do despacho de fls 25.

Além disso, discordo da aplicação da taxa sancionatória excepcional, pois não decorre dos factos enunciados na sentença recorrida e no acórdão que a conduta dos três Requerentes, irmãos da interdita, integre os legais pressupostos para essa sanção. Por último, não foi observado o contraditório quanto a esta sanção».

5. Novamente inconformada, DD. , interpõe recurso de revista, ao abrigo do artigo 671.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, formulando as seguintes conclusões:

«A. Vislumbra-se dos autos que: - a beneficiária foi abandonada pelo seu marido!; - a beneficiária foi declarada interdita, sendo nomeado como (outrora) tutor, o Sr. EE. , Director do Centro de Dia, onde a beneficiária se encontra internada; - os IRMÃOS da beneficiária (aqui requerentes), requereram a substituição de acompanhamento e almejam que fosse nomeado como acompanhante o irmão BB. ; - os IRMÃOS residem no ….. do País e a residência dos irmãos da requerida ao Centro de Dia  ........., onde se encontra a beneficiária a residir, dista cerca de 406,00 Km de distância; - A distância verificada entre o Centro de Dia ......... e as residências dos irmãos da beneficiária impede os irmãos desta de a visitar e conviver com frequência com a sua irmã e de saber mais informação acerca do seu estado de saúde; - Os irmãos da beneficiária pretendiam que a irmã, aqui beneficiária fosse transferida para um Centro de Dia mais próximo das suas residências, nomeadamente para uma freguesia……, concelho……; - o actual acompanhante da beneficiária, Sr EE. , possui mais de 80 anos de idade e não conhece a requerida, não tendo qualquer relação com a mesma.

B. De facto, o Tribunal a quo indeferiu a substituição do acompanhante, porquanto os relatórios sociais elaborados pela Segurança Social, relatam que o requerente BB. reside em França, não pretendendo voltar a Portugal definitivamente.

C. Na verdade, o teor dos relatórios sociais não correspondem de todo à verdade dos factos.

D. De facto, a vontade dos irmãos é que a requerida se encontra num Lar próximo das suas residências para poder visitá-la e privar de maneira frequente, desenvolvendo relações fraternas muito estreitas. 

E. Nada permite presumir que uma pessoa totalmente indiferente em relação ao beneficiário, como é o Director do Centro de Dia, possa substituir minimamente os irmãos da beneficiária na prestação dos cuidados e estreitar relações fraternas.           

F.  É certo que o Director se encontrará com frequência no Centro de Dia, mas as suas funções não são nem técnicas nem clínicas, são de administração da instituição em si, pelo que podem não requerer contacto com os clientes da instituição. Acresce que essa nomeação envolve uma despersonalização ou desumanização da função que só deve ser assumida em último caso, não estando disponível nenhuma alternativa melhor.

G. Essa nomeação deve ser sempre a última solução a equacionar, solução que só deve ser levada em conta quando se esgotar a possibilidade de nomear alguém do círculo pessoal e familiar do acompanhado e a escolha não tem obrigatoriamente de se fazer com estranhos, sem ligação pessoal e afectiva à acompanhada.

H. Por conseguinte, com todo o devido respeito por opinião diversa, entendemos que a decisão de indeferir a substituição do requerente BB. deve ser revogada por não estarem preenchidos os requisitos necessários para uma nomeação tão afastada das relações familiares e pessoais do acompanhado e tão impessoal.           

I. Para tanto, os requerentes arrolaram duas testemunhas, na qual foi indeferido pelo Tribunal.

J. Por outra banda, os requerentes entendem que foram relatados nos relatórios sociais, factos que apenas entendem por mero lapso(!) da Sr.ª Técnica, que originou uma deturpação da realidade dos factos.

K. Neste prisma, entendem a recorrente que o Tribunal a quo deveria convocar os requerentes e testemunhas, para prestarem declarações, para uma boa Decisão da causa».

L. Assim sendo, deverá ser deferida a substituição do acompanhante, Sr EE., pelo acompanhante/irmão da requerida, Sr BB. , nos termos do artigo 138º e seguintes da Lei 49/2019;

M. Ou caso assim não se entenda, deverá ser designada data para audição das testemunhas requeridas.

SUBSIDIARIAMENTE, caso não seja julgado procedente a substituição do acompanhante, requer-se aos Sapiens Conselheiros que os requerentes sejam absolvidos da taxa sancionatória:

N. Os requerentes foram condenados no pagamento de uma taxa sancionatória no valor de 6 UC´s.

O. Como já referido os requerentes entendem que foram relatados nos relatórios sociais, factos que apenas entendem por mero lapso(!) da Sr.ª Técnica, que originou uma deturpação da realidade dos factos.

P. Como se dá nota no acórdão deste Supremo Tribunal de 05-09-2019, proferido no processo n.º 222/18.8YUSTR.L1-A.S1 – 5.ª Secção, a taxa sancionatória excepcional prevista no citado artigo 531º do CPC «corresponde à que estava já em vigor no art. 447º B do anterior CPC, aditado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 2 de Fevereiro, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais, e em cujo preâmbulo se esclarecia tratar-se de “um mecanismo de penalização dos intervenientes processuais que, por motivos dilatórios, “bloqueiam” os tribunais com recursos e requerimentos manifestamente infundados. Para estes casos, o juiz do processo poderá fixar uma taxa sancionatória especial com carácter penalizador”.           

 Q. Assim, deverá o processado revelar a presença de pretensões formuladas por um sujeito processual que sejam manifestamente infundadas, abusivas e reveladoras de violação do dever de diligência que dêem azo a assinalável actividade processual.

R. Como igualmente se acentua no acórdão deste Supremo Tribunal. de 26-06 2019, proferido no processo n.º 566/12.2PCCBR.C2.S1 – 3.ª Secção, «esta taxa sancionatória excepcional como a própria designação indica, não tem natureza tributária (como a tem a taxa de justiça), mas sim sancionatória, o que significa que ela se destina a punir uma conduta processual censurável ou reprovável.

S. No caso em lide, não foi utilizado nenhum meio processual anómalo ou abusivo.

T. Os requerentes, irmãos da beneficiária, apenas requereram a substituição do beneficiário.

U. A condenação numa taxa sancionatória excepcional só se justificaria no caso de o acto praticado poder ser qualificado como inusitado, abusivo ou imprudente, o que – no caso dos autos – não sucede. Independentemente da valia dos argumentos aí condensados.

V. O requerimento de substituição de acompanhante (substituição de um terceiro [Director do Centro de Dia] por um irmão), apresenta-se como um meio que a lei contempla, não constituindo, perante o seu texto e contexto, nenhuma anomalia, nem uma atitude perversa ou abusiva.

W. Consequentemente, salvo opinião contrária, não tem justificação a condenação dos requerentes, irmãos da beneficiária, em taxa sancionatória excepcional.

X. Pelo que, decidindo como decidiu, o Douto Acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 140º e 143º do CC., 891º e 531º do CPC, e art. 10º do Reg. Custas Processuais, entre outros artigos.


NESTES TERMOS e nos demais de Direito, deve o presente recurso         ser julgado              procedente           e provado, e, em    consequência, deverá ser revogado o Douto Acórdão        recorrido, substituindo-o por outro, que determine o prosseguimento dos autos, tudo conforme supra explanado, ou caso assim não se entenda, serem os recorrente absolvidos da taxa sancionatória excepcional no valor de 6 UC´s».

O Ministério Público apresentou contra-alegações, concluindo “que deve negar-se provimento ao presente recurso, confirmando-se o douto acórdão recorrido, já que o mesmo foi proferido respeitando e aplicando estritamente as normas legais pertinentes aos factos patentes nos autos”.

6. Nos termos do artigo 671º, nº 3, do CPC, “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”. Assim, havendo um voto de vencida, não se formou o impedimento da dupla conformidade.

Importa, contudo, indagar a questão prévia da admissibilidade do recurso de revista, à luz do artigo 988.º, n.º 2, do CPC, na medida em que o artigo 891.º, n.º 1, do CPC manda aplicar ao processo de acompanhamento de maior, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária (artigos 986.º a 988.º do CPC). Como afirma Abrantes Geraldes (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Aldina, Coimbra, 2019, p. 439) “(…) haverá de ajuizar de forma casuística sobre o cabimento e âmbito do recurso de revista das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária, em função dos respetivos fundamentos de impugnação, e não com base na mera qualificação abstrata da resolução tomada segundo critérios de conveniência e de oportunidade”. Ora, no caso vertente, não está em causa a reapreciação de critérios de conveniência ou de oportunidade, mas o critério normativo que preside à escolha do acompanhante, nos termos do artigo 143.º do Código Civil, bem como a invocação de falsidade dos relatórios sociais, a não audição pela técnica da segurança social da recorrente e o indeferimento do requerimento de audição das testemunhas arroladas pelos requerentes, questões que se colocam a montante da própria decisão relativa à substituição do acompanhante. Assim, de acordo com o juízo casuístico que determina a admissibilidade, ou não, do recurso de revista em matéria de jurisdição voluntária, é de admitir o recurso.

Todavia, não podemos conhecer a segunda questão suscitada pela recorrente – a condenação dos requerentes ao pagamento da taxa sancionatória no valor de 6 UCs – pois, nos termos do artigo 27.º, n.º 6, do Regulamento das Custas Processuais, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que, apesar de esta decisão admitir sempre recurso, a garantia de recurso é limitada a um grau, por paralelismo ao que a lei processual estabelece para a condenação de quem litiga de má fé (cf. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 23-06-2016, proc. n.º 1927/11; Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, Almedina, Coimbra, 2019, p. 432-433).

7. Sabido que o objeto do recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir é, assim, a do (in)deferimento da substituição do acompanhante.

Cumpre apreciar e decidir.

 

II – Fundamentação de facto

Resultam dos autos os seguintes elementos de facto, enumerados pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com relevo para a decisão:

1- Na sentença que decretou a interdição de AA., foi dado como provado o seguinte:

«a) AA. nasceu em …. de 1945, filha de ……….. e de………..

b) Em 2013, sofreu um acidente vascular cerebral grave, surgido na sequência de pelo menos três outros.

c) Em virtude desse AVCs padece de uma doença arterial generalizada, de cardiopatia isquémica e meningite, de tetraplegia e afasia global.

d) Apresenta um quadro de demência vascular, avaliado medicamente como significativo e permanente.

e) padece de grave deterioração cognitiva, que a impede de governar a sua pessoa e os seus bens.

f) O seu estado de saúde é irreversível desde o ano de 2013.

g) Já não se alimenta sem auxílio.

h) Não consegue tratar da sua higiene por si própria.

i) Não consegue comunicar de forma perceptível.

j) Vivia com o seu marido, FF.

k) O seu marido não zelava por ela, nem cuidava das suas necessidades básicas, mesmo interpelado para tanto pelas assistentes sociais.

l) Foi diligenciado pelos Serviços da segurança Social o internamento de AA. no Centro de Dia…….

m) Recebe, actualmente, uma pensão de 600,00, a qual é gerida pela Direcção Técnica desse Lar».

2 – Na sequência do requerimento feito pelos irmãos de AA., foram realizados inquéritos sociais tendo sido elaborado relatório, com base nas entrevistas feitas àqueles, do qual consta que:

a) «Quanto ao requerente CC.“Tem residência habitual em França, onde possui habitação própria” que “tal como o seu irmão BB., passa algum tempo em Portugal, cerca de seis meses por ano, referindo não estar nos seus planos a curto prazo o regresso a Portugal definitivamente. Tal decisão prende-se com o facto de estar bem inserido na sociedade francesa, usufruindo de benefícios para os quais contribuiu durante toda a sua vida profissional” e “não avançou com a inscrição e AA., na ERPI por se tratar de uma vaga particular, sendo que dificilmente a sua irmã com os seus rendimentos poderá suportar o pagamento da mensalidade”.

b) Quanto ao BB. “geralmente, não passa muito tempo em Portugal, apenas dois ou três meses por ano” e que “a curto prazo, não tem a intenção de voltar a Portugal definitivamente” e “Questionado sobre a possibilidade de a sua irmã AA. integrar uma vaga num estabelecimento residencial para idosos (ERPI), nomeadamente no Lar……., respondeu que nada sabe do assunto, uma vez que essa foi a decisão do seu irmão CC.”».

II – Fundamentação de direito

I – Substituição do acompanhante        

1. Está em causa, no recurso de revista, um pedido de substituição da pessoa que desempenha a função de acompanhante, em relação a AA., nascida em …… de 1945, declarada interdita, por sentença proferida em 14 de março de 2018, por padecer de um quadro de demência, de etiologia vascular, de caráter crónico e irreversível, que a incapacita de reger a sua pessoa e bens.

Antes da interdição definitiva foi requerida pelo Ministério Público a interdição provisória urgente da requerida, a qual veio a ser decretada, em 12-08-2014, ao abrigo do disposto no artigo 900.º do CPC e 142.º do Código Civil, porque, conforme consta facto k), o seu marido não zelava por ela, nem cuidava das suas necessidades básicas, mesmo interpelado para tanto pelas assistentes sociais, justificando-se “a interdição provisória urgente da requerida, a fim de prover de imediato à prestação de cuidados de saúde adequados à sua doença, bem como à prestação de cuidados essenciais quanto à higiene, alimentação, hidratação e vestuário”. Em consequência, o tribunal nomeou à requerida, como curador provisório, o Diretor do Centro de Dia ........., EE., ordenando que a requerida fosse conduzida e desse entrada nesse Centro de imediato.

Na sentença de interdição definitiva, o tribunal, por não existir pessoa da família em condições de exercer a tutela, nomeou como tutor, nos termos do artigo 1962.º, n.º 1, do Código Civil, o Diretor do Lar onde se encontrava internada a pessoa declarada interdita, tendo declarado que, por falta de elementos, não existia Conselho de Família (1962.º, n.º 2, do Código Civil).  

2. Com a lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, foram revogados os institutos da interdição e inabilitação e, em sua substituição, foi introduzido o instituto do maior acompanhado. A necessidade de alteração legislativa resultou de imperativos constitucionais e de obrigações internacionais do Estado Português após adesão à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em Nova Iorque em 30 de março de 2007 e ao respetivo Protocolo Adicional.

O novo regime do Código Civil pretende ser a realização infraconstitucional das liberdades e direitos das pessoas portadoras de deficiência com vista a encontrar soluções individualizadas, que ultrapassem a rigidez da interdição e da inabilitação, garantindo à pessoa acompanhada a sua autodeterminação, e promovendo, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente, de acordo com o princípio da máxima preservação da capacidade do sujeito.

Nos termos do artigo 26.º, n.º 4 e 8, da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, às interdições decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos ao acompanhante poderes gerais de representação (n.º 4); os tutores e curadores nomeados antes da entrada em vigor da presente lei passam a acompanhantes, aplicando-se-lhes o regime adotado por esta lei (n.º 7).

Entende a recorrente, irmã da pessoa declarada interdita, que a figura do acompanhante deve ser um membro da família próxima da pessoa acompanhada, e que as instâncias, indeferindo a substituição do diretor da instituição por um irmão da acompanhada, mantendo assim, na posição de acompanhante, uma pessoa estranha à família, que desempenha funções de administração na instituição e que não tem com a acompanhada qualquer relação pessoal ou familiar, não respeitam o critério da prevalência das relações familiares, que deve presidir a estas decisões. Pede, assim, a recorrente, que seja revogado o acórdão recorrido e nomeado, em substituição do diretor da instituição, o seu irmão, BB. , a fim de que a irmã dos requerentes seja colocada numa instituição perto da residência destes, no Norte do país, para que os irmãos a possam visitar.

No termos do artigo 140.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 49/2018, aplicável ao caso dos autos, “O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença” (n.º 1); “A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam”. A intervenção do Estado é subsidiária, prevalecendo a organização privada do cuidado, e devendo ser reconhecido à pessoa acompanhada o poder para autorregular a sua proteção e escolher o seu representante.

Segundo o artigo 143.º, n.º 1, do Código Civil, “O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente”. No caso dos autos, uma vez que a pessoa acompanhada, por razões de saúde e de deficiência, resultantes dos AVCs por ela sofridos, não está em condições de manifestar a sua vontade e de escolher o acompanhante, o acompanhamento é deferido, por força do artigo 143.º, n.º 2, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, indicando a lei uma lista de pessoas que podem ser designadas como acompanhantes: a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto; b) Ao unido de facto; c) A qualquer dos pais; d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado; e) Aos filhos maiores; f) A qualquer dos avós; g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado; h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação; i) A outra pessoa idónea. A lei prevê, ainda, no n.º 3 do citado preceito que podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um.

Em caso de omissão de escolha ou de não concordância judicial, a lei enumera pessoas que, em princípio, mantêm relacionamento afetivo com a pessoa acompanhada, por força de vínculo conjugal, de união de facto ou relação familiar de parentesco, mantendo-se, contudo, uma válvula de escape para o caso de não haver soluções dentro da família: a escolha de pessoa idónea.

Tal designação cabe ao tribunal, de acordo com o critério do imperioso interesse do beneficiário, que poderá ou não confirmar a escolha do próprio acompanhado ou do seu representante legal. O conceito de “imperioso interesse do beneficiário” é um conceito indeterminado, que se reporta aos direitos fundamentais da pessoa, nomeadamente, aos seus direitos à solidariedade e ao apoio, bem como à ampliação da sua autonomia. O acompanhante deve estar em condições de exercer um conjunto de poderes-deveres de cuidado e diligência, dirigidos a promover, nos termos do artigo 146.º, n.º 1, do Código Civil, o bem-estar e a recuperação do acompanhado, na concreta situação considerada.
Dispõe ainda o n.º 2 do mesmo preceito que o acompanhante mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada.

3. Segundo a argumentação da recorrente, deve prevalecer a nomeação de um membro da família sobre a nomeação de uma pessoa estranha à família, pelo que o diretor da instituição deve ser substituído pelo irmão da acompanhada indicado pelos requerentes. Com efeito, de acordo com os cânones hermenêuticos de interpretação da lei, que definem como ponto de partida o elemento gramatical ou literal do texto, observando a ordem das pessoas enumeradas pelo artigo 143.º do Código Civil, a lei confere primazia para o exercício desta função de acompanhante ao cônjuge, ao unido de facto, ou a outros familiares unidos por laços de parentesco, sejam laços de filiação entre pais e filhos ou outros vínculos de parentesco. Contudo, a prevalência dos familiares da pessoa acompanhada não se reporta, nem ao mero vínculo conjugal-formal, nem à relação familiar estritamente biológica e jurídica, devendo esses vínculos ser acompanhados de laços afetivos atuais entre os membros de uma família, de auxílio e de assistência na doença, em suma, da assunção de responsabilidades pela pessoa dependente. Com o aumento da esperança média de vida e das doenças degenerativas provocadas pelo envelhecimento, assume um papel essencial na sociedade a solidariedade intergeracional e entre irmãos. A família não pode ser conceitualizada, quando está em causa o exercício dos deveres de cuidado inerentes ao cargo de acompanhante de pessoa a residir em instituição, como um mero conjunto de laços biológicos ou formais, reconhecidos pelo direito. A noção de família, como resulta da conjugação do artigo 143.º, n.º 2, com o artigo 146.º do Código Civil, deve conter elementos de proximidade afetiva, auxílio, responsabilidade e, pelo menos, interesse pela definição do projeto de vida da pessoa acompanhada, pelo seu bem-estar e recuperação, assim como disponibilidade para a visitar.

Ora, os irmãos da requerida propõem para substituir o diretor da instituição onde a requerida se encontra internada desde 2014, um irmão, BB., emigrante em França, que, segundo a matéria de facto, elaborada com base no relatório social, apenas se desloca a Portugal nas férias e que não planeia regressar definitivamente a Portugal, mostrando não saber em que instituição pretendem os seus irmãos internar a irmã sujeita ao regime de acompanhamento:

Com efeito, fixou-se a seguinte factualidade:   

“b) Quanto ao BB.“geralmente, não passa muito tempo em Portugal, apenas dois ou três meses por ano” e que “a curto prazo, não tem a intenção de voltar a Portugal definitivamente” e “Questionado sobre a possibilidade de a sua irmã AA. integrar uma vaga num estabelecimento residencial para idosos (ERPI), nomeadamente no Lar……., respondeu que nada sabe do assunto, uma vez que essa foi a decisão do seu irmão CC.”.

Por sua vez, o irmão CC.  declara, à técnica da Segurança Social que elaborou o relatório, que “não avançou com a inscrição de AA., na ERPI por se tratar de uma vaga particular, sendo que dificilmente a sua irmã com os seus rendimentos poderá suportar o pagamento da mensalidade”.

Afirma a decisão do tribunal de 1.ª instância, que, conforme consta do auto das declarações do acompanhante, prestadas no âmbito do seu juramento, nos últimos três anos, a única pessoa que visitou a beneficiária foi a irmã, agora recorrente, cerca de duas ou três vezes, não tendo os outros dois irmãos, que residem em França, alguma vez visitado a irmã institucionalizada no Centro de Dia …... Sabe-se também que, residindo a recorrente em Barcelos, o Centro de Dia dista cerca de 400 km da sua residência. E que, nas palavras do seu irmão, transcritas no relatório social, a recorrente não tem condições económicas para suportar o pagamento de uma Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI) em….. Decorre do Relatório Social que os irmãos, emigrantes em França, não só não mostraram interesse na escolha de uma instituição, em….., para transferir a irmã, como também não se mostraram disponíveis para custear o pagamento do lar, tendo a técnica da segurança social afirmado, tal como consta da decisão do tribunal de 1.ª instância, que “BB., durante a entrevista, mostrou-se algo apreensivo e pouco receptivo a prestar informação mais detalhada acerca das suas condições socio-familiares”.

Resulta, pois, com manifesta evidência, que BB., o irmão proposto para assumir a função de acompanhante, não apresenta condições para assegurar de forma eficiente e permanente o acompanhamento de que a irmã, AA., necessita. Não só pela distância geográfica da sua residência, em França, onde passa a maior parte do tempo, mas, sobretudo, pela falta de interesse e de relação afetiva atual com a irmã, não se sabendo há quantos anos não a visita.

4. Quanto à questão da omissão da audição da recorrente, irmã da acompanhada, pela Segurança Social, pensamos que, de facto, esta audição devia ter ocorrido para que a análise da família fosse completa, tendo em conta que a recorrente visitou a irmã e pode estar genuinamente interessada em ter uma relação de proximidade com esta, que só seria plenamente potenciada com a deslocação da irmã para uma instituição no Norte do país, perto da sua residência, dados os seus parcos rendimentos para suportar deslocações frequentes a……, localizado a cerca de 400 Km de Barcelos, onde reside.

Todavia, esta omissão não traduz preterição de formalidade essencial, dado que não foi a irmã a pessoa indicada para ser acompanhante. Por outro lado, os interesses da beneficiária estão acima dos interesses dos irmãos e podem não coincidir com os interesses destes, por mais legítimos que sejam.

No juízo de ponderação entre valores contrastantes, inerente a uma decisão judicial, tem de se ter em conta a circunstância de a mudança de instituição representar um risco para o interesse da beneficiária e para o seu bem-estar físico e psíquico. Como refere a decisão do tribunal de 1.ª instância, «Dito de outra forma, AA. está acamada, não reconhece o mundo ou as pessoas que a rodeiam, não comunica, nem entende – assim, o benefício de permanecer na Instituição onde foi acolhida desde o momento em que necessitou de cuidados especializados, na qual é já conhecida, estando todo o pessoal que aí presta funções, necessariamente, a par das suas especificidades, não encontra qualquer contraponto no suposto benefício que teria com alegadas visitas futuras, sempre pontuais, dos seus irmãos, que com ela não convivem há anos, deslocada, para isso, para outra Instituição e local do país» (sublinhado nosso). Constata-se pois, que, no Centro de Dia ......, onde vive há cerca de seis anos, a acompanhada já é conhecida das pessoas que dela cuidam, as quais, por força da continuidade dos cuidados prestados e do contacto mantido ao longo do tempo, terão uma consciência mais apurada das suas necessidades, gostos, formas de comunicação e significados desta, estando, por isso, em melhores condições de prover às suas necessidades, do que os/as cuidadores/as de outro lar. Esta continuidade é particularmente importante uma vez que a acompanhada padece de afasia, tendo, portanto, dificuldades na linguagem. Acresce que, apesar da gravidade dos problemas de saúde que apresenta, tem, como qualquer pessoa, hábitos, amizades e afetos no local onde vive há cerca de seis anos, cuja rutura é suscetível de provocar, nas pessoas idosas, um agravamento da saúde e diminuição do bem-estar psíquico.

5. Relativamente à invocada falsidade do relatório social, que foi elaborado com base nas declarações dos irmãos, a recorrente não especifica as razões dessa alegada falsidade, sendo que, tratando-se de matéria de livre apreciação da prova, de qualquer modo, não pode este Supremo Tribunal reponderar o valor probatório destes relatórios.

6. Quanto ao indeferimento, pelo tribunal de 1.ª instância, da audição das testemunhas arroladas pelos requerentes, estes deviam ter invocado uma nulidade processual ou interposto recurso dessa decisão. Nesta fase do processo, o eventual vício está sanado e não pode ser ordenada a baixa do processo e a produção da prova testemunhal requerida, por tal solução se encontrar fora dos poderes deste Supremo Tribunal de Justiça, sendo antes uma função do tribunal recorrido, ao abrigo do artigo 662.º, n.º 2, do CPC, que, contudo, só a podia exercer, até oficiosamente, se entendesse tal medida como indispensável para a solução jurídica do caso.

Ora, o Tribunal da Relação entendeu, manifestamente, ter no processo elementos de facto suficientemente claros para decidir, afirmando o seguinte:

 «Ora importa lembrar que a beneficiária AA após um AVC grave, ficou totalmente incapacitada, necessitando de terceira pessoa que dela cuidasse ao nível da alimentação e da higiene, tarefas que não conseguia realizar sozinha. O marido deixava-a totalmente ao abandono. Nenhum familiar contactou o hospital onde a AA. ficou abandonada, após a alta médica, e foram as autoridades oficiais competentes, designadamente a Segurança Social, que providenciaram pelo ingresso da beneficiária na instituição onde atualmente se encontra. Na falta de qualquer outro familiar a quem pudesse ser entregue a função de tutor, para exercer esse cargo foi nomeado pelo Tribunal o Sr. Director do Lar onde a beneficiária estava internada e onde permanece até hoje. Da sentença que decretou a interdição de AA. consta o seguinte: “Conselho de Família: sem elementos passíveis de o compor”. É bem patente a ausência e alheamento dos membros da família relativamente ao destino da AA., pelo que não se afigura que qualquer dos irmãos, designadamente, o BB., tenha com a mesma uma relação próxima de forma a garantir que, de futuro, pretenda com esta “privar de maneira frequente, desenvolvendo relações fraternas muito estreitas”. Especialmente nas condições presentes em que não consegue comunicar de forma percetível.

(…)

Ou seja, na prática, os Requerentes pretendem que o actual acompanhante seja substituído por um irmão que, independentemente ou não de já viver a tempo inteiro em Portugal, não apresenta a mínima capacidade de zelar pelos interesses e bem-estar da sua irmã, pois que não diligenciou sequer por uma vaga numa instituição especializada onde a mesma pudesse ser devidamente assistida, para onde eventualmente pudesse ser transferida do local onde se encontra.

Ora, pressuposto da substituição do acompanhante seria, como se depreende do requerimento dos irmãos da Beneficiária, a transferência da mesma para um ERPI situado na área de residência daqueles. Sendo inviável essa transferência, sempre ficaria prejudicada a pretensão dos Requerentes».

7. A função do Supremo Tribunal de Justiça está restringida à aplicação do regime jurídico que julgue adequado aos factos fixados pelo tribunal recorrido (artigo 682.º, n.º 1, do CPC), não podendo, salvo as situações excecionais previstas nos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 3, do CPC, alterar a matéria de facto.

O Supremo Tribunal de Justiça pode, ainda, exercer uma censura indireta – ou tácita – verificando o não uso pela Relação dos poderes de alteração ou de anulação da decisão de facto, e mandando ampliá-la para que constitua base suficiente para a decisão de direito ou se proceda à eliminação de contradições impeditivas da solução jurídica.  Contudo, a ampliação da matéria de facto, com o reenvio do processo ao tribunal recorrido, não é um poder discricionário e só pode ser utilizado, se tal se revelar indispensável para uma justa aplicação do direito, indispensabilidade que, no contexto do caso dos autos, pelos motivos expostos, não se verifica, por dispor já o processo de prova suficiente para determinar o interesse da beneficiária da medida de acompanhamento.

   

Em consequência, confirma-se o indeferimento da substituição do acompanhante de AA..

  

III – Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de dezembro de 2020

Maria Clara Sottomayor

Alexandre Reis

Pedro de Lima Gonçalves

Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade dos Juízes Conselheiros Alexandre Reis (1.º Adjunto) e Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).

Maria Clara Sottomayor – (Relatora)