Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DO REGO | ||
Descritores: | CAMINHO PÚBLICO ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA ÓNUS DA PROVA PRETENSÃO PROCESSUAL CONVOLAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 01/30/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 343.º, N.ºS 1 E 2. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 13/3/08, PROCESSO N.º 08A542; -DE 5/11/09, PROCESSO N.º 308/1999.C1.S1; -DE 9/2/12, PROCESSO N.º 1007/03.1TBL.SD.P1.S1. -*- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR Nº 2/2010. | ||
Sumário : | 1. Não é possível, na fase de recurso, reconfigurar ou requalificar juridicamente o tipo de acção proposta, convolando do pedido de reivindicação de certo imóvel, expressamente formulado pelo autor, para uma acção negatória da existência de determinado caminho público, atravessando o prédio reivindicado, por tal envolver lesão do princípio da confiança processual, ao implicar uma inversão do ónus da prova ( art. 343º, nº1, do CC) com que as partes não podiam razoavelmente contar – e sendo certo que , em tal situação, a via do pedido de reivindicação se não mostra funcionalmente inadequada à obtenção de solução materialmente adequada do litígio que opõe as partes. 2. Numa acção de reivindicação, reconhecido o direito de propriedade do autor sobre o prédio reivindicado, é ao réu que incumbe alegar e provar a existência de ónus reais limitativos das normais faculdades do proprietário pleno, funcionando como factos impeditivos , limitativos ou restritivos dos normais poderes de gozo e fruição do proprietário ( sujeitos por isso à regra do art. 342º, nº2, do CC) – no caso, a existência das características de dominialidade pública em certa passagem existente no prédio em litígio, decorrente de, através dela, serem satisfeitos interesses públicos com algum grau de relevância.
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA demandou, em acção com processo comum ordinário, o Município do Sabugal, invocando a ilegítima ocupação por esta autarquia de parte de um prédio rústico (“R........”) cuja propriedade reivindica, no quadro – invocado pelo R. – da beneficiação de um “caminho público”- negando a existência desse caminho e formulando os pedidos de: Findo o julgamento, foi proferida sentença a julgar parcialmente improcedente a acção, já que – condenando-se embora o R. a reconhecer a A. como proprietária do imóvel reivindicado - se absolveu este dos demais pedidos formulados, por se entender que o espaço reivindicado constituía um caminho público. Inconformada, apelou a A., impugnando, desde logo, a decisão proferida em sede de matéria de facto. A Relação, após ter apreciado tal impugnação, exercendo sobre a factualidade dada como provada o duplo grau de jurisdição – alterando em pontos relevantes a factualidade provada em 1ª instância – concedeu provimento ao recurso, proferindo a seguinte decisão: A) Condena-se o R. Município do Sabugal a reconhecer a A. AA como proprietária de todo o prédio rústico identificado na alínea a) dos factos provados, incluindo o espaço actualmente ocupado pelo caminho indicado em m) do mesmo rol de factos; B) Condena-se o mesmo R. a pagar à A., a título de indemnização, a quantia de €6.000,00, acrescendo a esta juros já vencidos e a vencer, calculados à chamada taxa civil e contados desde a data da citação do R. no foro administrativo (v. aviso anexo a fls. 85), tudo até integral pagamento. Tal decisão suporta-se na seguinte fundamentação essencial: 3. Para revogar a sentença apelada, a Relação percorreu a seguinte linha argumentativa, abordando, desde logo, a questão da repartição do ónus da prova entre os litigantes: A questão fulcral aqui discutida a propósito da matéria de facto refere-se à caracterização do caminho ou da simples passagem beneficiado(a) (isto no sentido de arranjado para melhor desempenhar a função de caminho tida em vista) pelo R., nos termos que originaram a configuração deste caminho ou passagem que vem indicada na alínea m) dos factos, enquanto caminho público, como defende o R. e viria a ser aceite pelo Tribunal a quo na Sentença. Lembramos que essa questão passou, na dinâmica do julgamento ora apelado, pelas respostas negativas aos quesitos 3, 9 e 10 e, no que respeita à matéria de facto positivamente fixada, pelas respostas aos quesitos 6 e 7 (que agregadamente originaram a alínea t) dos factos) e, principalmente, pelas respostas aos quesitos 23 e 24 (que originaram, respectivamente, as alíneas ii) e jj) dos factos). A respeito da caracterização do caminho como público, importa sublinhar um elemento central da dinâmica argumentativa desta acção, sendo que é dessa caracterização que emergirá a correcta alocação do ónus da prova (do ónus da prova da natureza do caminho indicado em m) dos factos como caminho público[1]). Referimo-nos à estrutura profunda da presente acção, enquanto verdadeira acção negatória[2] da A. reportada à existência (maxime, à negação da existência) de um caminho público afirmada pelo R. (o que se confirmou plenamente[3] com a contestação deste, v. item 1.1. supra, cfr. fls. 88, artigo 13º dessa contestação), sendo tal circunstância adiantada pela A., como argumento justificativo da reivindicação, logo no articulado inicial (cfr. os respectivos artigos 24º, 25º e 27º a fls. 174/175). É certo que o pedido formulado pela A. foi tipicamente reivindicatório, mas, todavia, para quem se atém à realidade e não à aparência das coisas, a estruturação deste pedido por referência à parcela ou espaço da propriedade da A. ocupada pelo caminho, conjugada com a negação de qualquer dominialidade pública sobre esse espaço e, enfim, com a posterior defesa do R., assente na existência de um caminho público, todos estes elementos conjugados, dizíamos, tornam claro o carácter à partida negatório da acção intentada pela A. relativamente à inexistência desse caminho público. Vale esta constatação – rectius, vale esta caracterização da dinâmica argumentativa da acção – enquanto alocação do ónus da prova da existência do caminho público atravessando o prédio da A. ao R. (não à A.), sendo que, em função disto, a regra de decisão que se formará no caso de um non liquet probatório[4] traduzir-se-á na não prova da existência desse caminho, afirmado na sua existência pelo Município R., nos termos do artigo 343º, nº 1 do Código Civil (CC)[5]. Aliás, à mesma conclusão e resultado – alocação do ónus da prova ao R. e decisão contra este face a um non liquet – chegaremos com base na consideração da afirmação pelo R. da existência do caminho como público, enquanto excepção (facto extintivo do direito transmitido à A. traduzido na dominialidade pública), desta feita por referência ao artigo 342º, nº 2 do CC. Assim, encarando o teor do quesito 3, respondido negativamente pela primeira instância, no qual se pergunta, fundamentalmente, se o caminho público não existia (pergunta-se, portanto, o que é que não existia), deparamo-nos, desde logo, com uma quesitação cuja estrutura lógica consideramos errada, na medida em que assenta numa formulação negativa (pergunta-se o que é que não existia) e que acaba por reconduzir o ónus da prova, inadequadamente como antes indicámos, a quem disse que o caminho não existia: a A. Trata-se, pois, de um quesito imprestável, que convocaria a probatio diabolica de um facto negativo para o seio desta acção e que sempre assentaria numa incorrecta alocação do ónus da prova. Foi correcta, portanto, e desde já se confirma, a formulação de uma resposta negativa ao dito quesito 3, enquanto forma de o julgador de facto expressar a inexistência dessa asserção negativa. É o que aqui, neste recurso, se afirma: a inexistência desse quesito 3 e logo a sua não consideração por este Tribunal da Relação. A questão da existência do caminho público atravessando o prédio da A., desta feita afirmada pela positiva nos quesitos 23 e 24, caminho que com essa natureza é invocado pelo Município R., prende-se, assim, fundamentalmente, com esses dois quesitos, cujas respostas irrestritamente positivas originaram as alíneas ii) e jj) do elenco fáctico: “[h]á mais de 40, 50, 60 anos que no prédio identificado em a), existe um caminho, com as dimensões e características referidas em m), que se destina ao uso directo e imediato do público” e, “[d]esde sempre que [esse] caminho […] visou a satisfação de interesses colectivos, nomeadamente acesso a prédios a montante e a jusante do prédio identificado em a)”. Existe na formulação destes quesitos, mais expressivamente no segundo deles (no quesito 24), uma inadequada essência conclusiva (v. o que antes dissemos na nota 15 supra) traduzida na substituição dos elementos que poderiam alicerçar a qualificação do caminho como público, que, portanto, permitiriam decidir a acção no sentido visado pelo Município R., logo pela conclusão da verificação dessa dominialidade no quadro da afirmação, sem base fáctica real, de satisfazer esse caminho “[…] interesses colectivos, nomeadamente acesso a prédios a montante e a jusante do prédio [da A]”. Acaso o Tribunal entende que o acesso a prédios vizinhos do da A. pelos respectivos proprietários configura um “interesse colectivo”, esquecendo que para isso existem as servidões prediais, não a dominialidade pública? Se é este o entendimento do Tribunal – e aparentemente será – deveria tê-lo explicitado devidamente resolvendo o problema interpretativo que esse mesmo entendimento gera, como já de seguida veremos, face ao teor dos artigos 1383º e 1384º do CC. Embora a alegação da R. não permitisse em rigor uma quesitação muito mais precisa dos elementos caracterizadores da dominialidade pública do caminho, haveria aqui, seguramente, espaço para uma estruturação interrogativa diferente daquela que originou os mencionados quesitos, mesmo que isso passasse pela actuação dos mecanismos previstos no artigo 264º, nº 3 do CPC e, em julgamento, do artigo 650º, nº 2, alínea f) do CPC. Seja como for, face aos concretos quesitos formulados e respondidos, trata-se de determinar se a prova produzida suporta a asserção de que um caminho alegadamente existente de antanho no prédio da A. assumiu ao longo do tempo a natureza de meio de satisfação de interesses públicos com um grau qualificado de relevância, como é próprio dos caminhos públicos cuja dominialidade decorra de uma afectação que não tenha revestido a natureza de um acto formal e que, em função da ausência deste tipo de acto, tenha sido induzida por um persistente uso das populações referido a esses mesmos interesses públicos. Vale, quanto a este elemento, a caracterização de um caminho como público no quadro da abolição dos atravessadouros pelos artigos 1383º e 1384º do Código Civil de 1967[6], tendo presente que a excepção estabelecida no artigo 1384º, na sua intencionalidade projectiva, só subtrai à abolição dos atravessadouros as situações de uso imemorial de trilhos e passagens rurais reportadas a um acesso que comungue das mesmas características teleológicas – chamemos-lhe assim para nos referirmos à mensagem normativa contida no artigo 1384º do CC, ao seu espírito –, de satisfação de um relevante interesse púbico (não de um interesse privado mesmo que plurisubjectivo). Com efeito, se são reconhecidos – logo não se consideram extintos, como decorreria à partida do artigo 1383º do CC[7] – os atravessadouros com posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, o “salto” para a dominialidade pública, rectius a afirmação desta dominialidade, relativamente a outros atravessadouros que não se dirijam a ponte ou fonte (é manifestamente o caso do caminho aqui em causa) terá de assentar na persistência da cobertura teleológica da norma, expressa na presença de um relevante interesse público na manutenção daquele encargo de passagem sobre prédio alheio, que constitui a essência da excepção estabelecida no artigo 1384º. É que, como salientam Pires de Lima e Antunes Varela, anotando este artigo 1384º e expressando a racionalidade do preceito, “[a]s pontes ou fontes a que se dirige o atravessadouro devem ser de manifesta utilidade pública […]”[8]. Ora, se assim é – e estamos convictos que não pode deixar de assim ser –, falta-nos neste caso a explicitação de quais os interesses colectivos servidos por esta passagem, antes da beneficiação (interesses que já antes da beneficiação a referiam a um interesse público[9]), e que esse propalado “interesse colectivo” corresponda, entre outros (não identificados na alínea jj) dos factos), “nomeadamente” como diz o Tribunal a quo, ao acesso a prédios a montante e a jusante do prédio da A. Com efeito, não se vê como o acesso a estes prédios pode configurar, em si mesmo e sem mais dados que aqui não foram fornecidos ou pesquisados, uma manifesta utilidade pública, que esteja para além da utilidade, por grande que ela seja, dos particulares, muitos ou poucos, que circunstancialmente precisem de aceder a esses outros prédios. Esqueceu o Tribunal de primeira instância que esse tipo de acesso, mesmo ocorrendo há mais de 60 anos e mesmo que correspondesse a um “uso directo e imediato do público”, traduzido em passar sobre o prédio da A.[10], sempre configuraria, sem mais elementos, um uso tributário de uma servidão de passagem e nunca de uma dominialidade pública exercida sobre essa via. Isto, sem a demonstração – e aqui não ocorreu, como veremos, essa demonstração – dos requisitos inerentes à dominialidade. Com efeito – e recorremos de novo ao que indicam Pires de Lima e Antunes Varela (desta feita anotando o artigo 1383º do CC): Neste caso, a Câmara Municipal do Sabugal, ora R. e Apelada, não só não indicou elementos dos quais pudéssemos extrair, para posterior exploração temática no julgamento, a presença dessa dominialidade e, como seria de esperar, também não provou essa circunstância à partida ausente do respectivo argumentário. É assim que a afirmação, pelo Tribunal do Sabugal, de se tratar de um caminho público o espaço reivindicado pela A., pela simples referência às alíneas ii) e jj) dos factos (e nem isso – o que delas consta –, como veremos, está provado nesses exactos termos), nos aparece, reflexamente, como um erro de valoração dos factos disponíveis e, em resultado desse erro, como um incorrecto julgamento da causa, nos termos em que a mesma foi colocada ao Tribunal. 2.2.2.2. Esta questão – os diversos modos de aquisição da dominialidade no quadro da afirmação da existência de um caminho público – foi desenvolvidamente tratada, muito recentemente, na jurisprudência deste Tribunal (1ª Secção Cível), através do Acórdão de 26/06/2012 (Barateiro Martins), proferido no processo nº 465/03.9TBLRA.C1, ainda inédito (escrevemos em 28 de Junho) e cujo entendimento comungamos inteiramente e seguiremos em muitos pontos da presente exposição. Interessa recordar a este propósito, caracterizando o modelo interpretativo que possibilitaria construir a dominialidade de um caminho sem acto de afectação expresso à utilidade pública, que o STJ proferiu, em 19/04/1989, um Assento (e a decisão recorrida aludiu a tal incidência no seu texto), o qual valeria agora, desde a reforma de 1995, como jurisprudência fixada[12], declarando “[serem] públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público” (Assento nº 7/89; Solano Viana)[13]. A controvérsia gerada em torno deste pronunciamento (em última análise poderíamos vê-lo como contra legem, por referência aos artigos 1383º e 1384º do CC), viria a originar um posterior pronunciamento contextualizador – exautorador, em nossa opinião – desse Assento, pelo próprio STJ, através do Acórdão de 10/11/1993 (Martins da Costa)[14], cujo sumário na base do ITIJ aqui transcrevemos: “I - O Assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à utilidade pública ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. II - Quando assim não aconteça, e se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, os caminhos devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele Assento e que está prevista no artigo 1383º do Código Civil”[15]. É este o pronunciamento que em nosso entender passou a valer como precedente persuasivo, substituindo o anterior entendimento do STJ. Assim, a sempre necessária aquisição ritualmente relevante de carácter dominial de um determinado caminho, enquanto pressuposto da existência de um caminho público (dimensão do problema aqui colocado que foi totalmente ignorada na primeira instância), implica a presença de um dos seguintes elementos (e seguimos a caracterização desta questão que é comum na nossa Doutrina):
Assim, a indicada reinterpretação do Assento de 1989 pelo Acórdão de 1993, ao reconduzir o primeiro pronunciamento a um domínio de compatibilidade com a globalidade do ordenamento jurídico (rectius, com os artigos 1383º e 1384º do CC) – pronunciamento este que exautorou e substituiu o de 1989, passando ele a valer como precedente persuasivo em substituição daquele[17] –, assenta esta reinterpretação, dizíamos, na ideia de que o acto expresso de afectação a uma concreta utilidade pública, facilmente reconhecível pela sua própria natureza, pode ser suprido através da prova de um uso imemorial, absolutamente enraizado na prática ancestral daquela população, desde que esse uso – mas só se esse uso –, com essa projecção temporal, seja referido a uma evidente utilidade pública: seja referenciado à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. Estes interesses, todavia, carecem de ser provados por quem afirma esta constituição algo sui generis de dominialidade, têm de ser demonstrados, enfim, por quem afirma estar-se perante um caminho público. Ora, é esta prova que aqui, entende-o este Tribunal da Relação valorando toda a prova produzida no decurso do processo, a interessada Câmara Municipal do Sabugal não logrou alcançar, mesmo que entendêssemos – e logo isso é particularmente duvidoso – que os factos integrantes dessa utilidade pública à qual se referiria o uso do caminho desde tempos imemoriais teriam sido adequadamente alegados (para além da afirmação de estar em causa um “caminho público”). Como já antes sublinhámos na nota 24 deste texto, algumas testemunhas, caso de EE e de FF (a primeira tem 87 anos de idade e a segunda 66), sendo ambas testemunhas do rol da A., aludiram a uma prática antiga (mas que sempre projectaram à sua experiência vivida; não seria, portanto, propriamente um uso imemorial) de passar algumas vezes sobre um trilho que coincidiria, segundo o contra-interrogatório do Mandatário do R., com o espaço integrante do prédio da A. Todavia, além dessa circunstância ter sido sempre referida em termos espacialmente muito imprecisos (que não tornam evidente uma colocação dessa passagem, o dito “caminho da V....... ”, exactamente sobre o prédio da A., facto que ambas as testemunhas negaram[18]), nenhuma destas, e nenhuma das outras testemunhas que se referiram à existência de um caminho[19], caracterizou qualquer utilidade desta passagem que não se reduzisse à facilitação do acesso a outros prédios circundantes do da A. Ora, esta alegada utilidade, na falta de outros elementos de referenciação[20], apenas configurará a utilidade (privada), instrumentalmente limitada – iura in re aliena –, própria de uma servidão de passagem e não o tipo de utilidade (colectiva) inerente ao que poderemos qualificar como utilidade pública decorrente de um uso reiterado. O problema que se colocou com o caminho aqui em causa (com o caminho com as características indicadas na alínea m) dos factos[21]) resultou – isto na valoração por este Tribunal da Relação de toda a prova –, como expressivamente relatou a testemunha GG, o Presidente da Junta de Freguesia de Alfaiate (e foi confirmado pela testemunha HH), da necessidade de realizar um caminho no quadro do programa comunitário ao qual concorreu a Autarquia, sendo que esta testemunha (GG.) terá “perguntado” a várias pessoas por onde passaria um caminho habitualmente usado naquela zona, por ter a tal respeito “algumas dúvidas”, decidindo “mandar avançar as máquinas”, com base em indicações que reconheceu serem algo vagas[22], escudando-se na carta militar de fls. 294, esquecendo que se tratava de determinar a existência de um “caminho público” e que essa carta militar, como se esclareceu sem dúvida alguma a fls. 344/345, não identifica caminhos públicos, identifica vias de passagem existentes no terreno, com a configuração de caminhos e que tanto podem ser caminhos públicos como servidões prediais em benefício de determinados prédios ou, tão-só, passagens aparentes das quais existem vestígios estáveis (permanentes) no terreno (v. nota 24, supra)[23]. Porém, foi com esta base muito pouco sólida (como expressivamente indicou no julgamento o Senhor Juiz à testemunha GG) que o Município R. se “apossou”, percebeu-se agora que por indicação (precipitada) do Presidente da Junta de Alfaiate, de terreno pertencente à A. para concretização de uma via rural com as características indicadas na alínea m) dos factos, sendo que o entendimento de que aí existia um caminho público, de antanho, só assentou nessa escassíssima base. O Tribunal a quo não dispunha, assim, de elementos que lhe permitissem afirmar – qual conclusão sem premissas – que algum caminho ou passagem que existisse sobre o prédio da A. assumia a natureza de um caminho público, no qual a R. pudesse, sem mais, realizar obras, por estar esse espaço subtraído à propriedade da A. e afecto a uma utilidade pública (e é disso que aqui se trata, de saber se existia um caminho público antes dessas obras). E, seguidamente, ponderando o relevo a atribuir à alteração que introduziu em pontos decisivos da matéria de facto, considerou a Relação: Resulta dos antecedentes itens uma significativa recomposição do elenco dos factos – procede substancialmente, pois, essa dimensão do recurso da A. – e, consequentemente, a necessidade de julgar, em substituição da primeira instância, a acção, no sentido da procedência da reivindicação e de alguns dos pedidos indemnizatórios. Assim, a procedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio rústico identificado em a) dos factos deve incluir, conforme resultava do articulado inicial e decorre da indemonstração do direito invocado pelo R., o espaço ocupado pelo caminho indicado em m) do mesmo rol de factos, com a consequente entrega à A. deste espaço (artigo 1311º, nº 1 do CC). No que tange aos pedidos indemnizatórios, lembramos aqui que estes, assentando numa imputação delitual decorrente de violação do direito de propriedade da A. (artigo 483º, nº 1 do CC) visavam o ressarcimento de danos patrimoniais (que a A. avaliou em €51,417,14) e de danos não patrimoniais (estes avaliados em €18.000,00). Quanto aos primeiros – aos danos patrimoniais –, sendo certo que o ónus da prova da ocorrência dos mesmos incumbia à A., deparamo-nos com a falta de caracterização de prejuízos concretos para além dos estragos na rede de vedação do prédio, cuja reparação importará em €2.000,00 (v. a alínea cc) dos factos recomposta no âmbito do julgamento deste recurso, nos termos indicados no item 2.2.2.3. supra)[24]. Relativamente aos danos não patrimoniais (artigo 496º, nº 1 do CC), estando caracterizados elementos que suportam, numa apreciação objectiva, a existência e ressarcibilidade desta dimensão do dano global da A. (v. as alíneas dd), ee), ff) e gg) dos factos), entende este Tribunal quantificar este tipo de dano, recorrendo a uma avaliação equitativa e equilibrada da situação (artigo 496º, nº 3 do CC), em €4.000,00. São estes os valores indemnizatórios a fixar (correspondem a um total de €6.000,00) no quadro da procedência global da acção, decorrente do atendimento do recurso da A. 4. Inconformado com este sentido decisório, o R. / Município do Sabugal interpôs a presente revista que encerra com as seguintes conclusões que – como é sabido – lhe delimitam o objecto: A) Na situação em análise, em extrema síntese, a Autora alega, como fundamento da presente acção, que o Réu ocupa uma faixa de terreno, que é parte integrante do prédio daquela. B) De acordo com a Sentença resultou provado «há mais de 40, 50, 60 anos que no prédio identificado em A) existe um caminho, com as dimensões e características referidas em M), que se destina ao uso directo e imediato do público»; C) Matéria de facto alterada pelo Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de «há mais de 60 anos que no prédio identificado em A) existia uma passagem assinalada no solo que, depois de beneficiada pela Câmara Municipal do Sabugal passou a ter as características referidas em m), passagem esta que era utilizada pelos proprietários de terrenos colindantes com o da A. Para acesso a esses terrenos». D) A matéria de facto assim configurada remete-nos, salvo melhor opinião, para -inconclusivo - as figuras da servidão ou do caminho de consortes, em qualquer caso não confundíveis com a do caminho público. E) Não vemos como, salvo o devido respeito. Na verdade, exactamente como no caso que ora nos ocupa, quando uma das partes pretenda demonstrar que determinada parcela de terreno do seu prédio se encontra usurpada, quando haja debate sobre a propriedade de certa faixa de terreno e sobre os títulos em que se baseia, discutindo-se o título de aquisição, em vez da sua relevância em relação ao prédio, tratando-se de um conflito de títulos e não de um conflito entre prédios, a acção correspondente é a acção de reivindicação. F) E não a acção negatória, como dispõe o Acórdão colocado em crise pela presente Revista. G) Consabido, na acção de reivindicação discute-se uma questão de domínio, estando em causa o próprio título de aquisição. H) Assim, quando se pretenda obter o reconhecimento da propriedade sobre qualquer terreno (ou parcela do mesmo) e este está na titularidade de outra pessoa, com desrespeito dos respectivos títulos e posse, impõe-se a reivindicação. I) Com efeito, na presente acção, a Autora pede que o Réu seja condenado a reconhecer o direito de propriedade daquela sobre prédio que lhe pertence, e que está a ser, na óptica da Autora, ilegitimamente, ocupada pelo Réu. J) Ou seja, porque está em causa divergência sobre a propriedade, não pode o conflito ser resolvido, através da via da acção negatória, pois esta, pura e simplesmente, não tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinado prédio - como a via da acção de reivindicação. K) Falece pois, salvo o devido respeito, a conclusão do Acórdão que sustenta a inversão do ónus da prova nos termos do n.° 1 do artigo 343.° do Código Civil. L) Bem sendo certo, esta argumentação é suficiente para, salvo melhor opinião, advogar a manutenção da matéria de facto tal como configurada pelo Tribunal de primeira instância. M) Embora, importa precisar, a lei estabelece limites ao conhecimento da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça. N) Opinião comum, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado; O) Excepcionalmente, porém, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça pode apreciar o erro na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova. P) Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta declarou provados factos sem produção da prova por força de lei especial indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova. Q) Ora, in casu, sem mais, sempre salvo o devido respeito, não pode, colher a propalada "inversão" do ónus da prova nos termos da citada disposição legal. Nestes termos e nos mais de Direito, com douto suprimento de V. Exas., deve o Acórdão colocado em crise pela presente Revista ser revogado, com as legais consequências, 5. Para bem compreender as questões que integram o objecto do presente recurso de revista, importa atentar cuidadosamente na ratio decidendi do acórdão recorrido. Efectivamente, neste começa por se tentar definir a natureza substancial da acção proposta, concluindo-se que ela assume – apesar de formalmente construída como sendo de reivindicação - a fisionomia típica de uma acção negatória, destinada a demonstrar a inexistência de um caminho público a atravessar a propriedade da A. : e, a ser assim, é evidente que desta qualificação do tipo de acção proposta sempre decorreria a incidência sobre o R. do ónus probatório quanto à existência do caminho público por ele afirmado – e cuja pretensa existência estivera na base da actuação lesiva do direito de propriedade da A. – nos termos previstos no art. 343º, nº1, do CC. Não se esgotou, porém, nesta via argumentativa a fundamentação que levou à revogação da sentença apelada: na verdade, como se refere a fls. 675, à mesma conclusão e resultado – alocação do ónus da prova ao R. e decisão contra este face a um non liquet – chegaremos com base na consideração da afirmação pelo R. da existência do caminho como público, enquanto excepção (facto extintivo do direito transmitido à A. traduzido na dominialidade pública), desta feita por referência ao artigo 342º, nº 2 do CC. Ou seja: mesmo que se perspectivasse a acção proposta como sendo de reivindicação do prédio, sempre recairia sobre o Município demandado o ónus de provar que a propriedade plena do imóvel em litígio – reconhecida de forma incontestada na acção - se encontrava onerada ou limitada em consequência da existência de um caminho público sobre uma parte do prédio, envolvendo tal reconhecimento a demonstração pelo R. da existência de um contra direito, verdadeiro ónus real limitativo da propriedade plena, decorrente da existência em concreto das típicas características da dominialidade pública na passagem ou caminho existente ( assentes, desde logo, face à orientação jurisprudencial reiterada e uniforme, na destinação desse caminho ou passagem a relevantes finalidades de satisfação de um interesse público). Estamos, deste modo, confrontados – no que respeita à repartição do ónus probatório - com uma dupla fundamentação alternativa no acórdão recorrido, fazendo pesar sobre o R. o ónus probatório das características da dominialidade do caminho ou passagem sobre o prédio da A. ou através da norma constante do nº1 do art. 343º ( caso se requalifique a acção como de simples apreciação negativa) ou do preceituado no art. 342º, nº2, caso se entenda que estamos perante acção de reivindicação, funcionando a dominialidade do caminho ou passagem como verdadeiro contra direito limitativo da plena propriedade, isto é, como facto impeditivo do gozo e fruição de todas as faculdades inerentes à propriedade plena da A. sobre a totalidade da área do prédio reivindicado. Finalmente, cumpre ainda realçar que as decisivas alterações introduzidas pela Relação no quadro factual, no exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, obviamente insindicáveis no âmbito da presente revista, acabaram por destruir irremediavelmente os pressupostos em que assentara a tese da dominialidade pública do caminho ou passagem, seguida na 1ª instância, ao fixar que tal trilho, efectivamente existente no prédio reivindicado pela A., apenas era utilizado (há décadas) para passagem dos proprietários de terrenos colindantes com o da A. e para acesso a estes – afastando, deste modo, irremediavelmente a conclusão de que na base de tal passagem estaria uma satisfação de relevantes interesses públicos. Sucede que, na sua alegação, o R. Município se limita a pôr em causa o primeiro fundamento em que assentou o acórdão recorrido – ou seja , o acerto da qualificação da acção como negatória, sustentando que, pelo contrário, ela teria de ser perspectivada antes como de reivindicação, questionando por isso a aplicação da norma constante do nº 1 do art. 343º do CC, enquanto consagradora de uma inversão do ónus probatório. Será de considerar procedente, quanto a este ponto, a tese da entidade recorrente? Note-se que o que está fundamentalmente em causa é a possibilidade de o Tribunal proceder a uma requalificação da pretensão processual formulada pelo A., convolando daquela que, em termos formais e literais, foi requerida, para a que retrataria a verdadeira fisionomia da tutela jurídica realmente pretendida, em termos substanciais, pelo A. ( questão que é, de algum modo, paralela à que se tem colocado em sede de alteração da qualificação jurídica da pretensão material deduzida, convolando da erroneamente peticionada para a materialmente adequada à satisfação do interesse que o demandante visava realmente tutelar; ou à questão da admissibilidade da requalificação jurídica do meio impugnatório erradamente desencadeado pelo requerente ou impugnante, corrigindo o Tribunal a deficiente configuração jurídica delineada pela parte e convolando para o legalmente adequado à situação processual existente – cfr. , por exemplo, o decidido no. Ac. de 5/11/09, proferido pelo STJ no P. 308/1999.C1.S1 ou no Ac. Uniformizador nº 2/2010. À semelhança do que temos entendido a propósito desses lugares paralelos, não vemos, à partida, qualquer obstáculo intransponível a que o Tribunal possa, também aqui, operar uma requalificação da forma de tutela judiciária pretendida, convolando da erroneamente requerida, em termos formais, pelo A. para a que se configura como materialmente adequada à peculiar fisionomia do litígio, desde que se mostrem respeitadas duas condições essenciais: - em primeiro lugar, que a pretensão processual formulada se mostre, face ao desenho legal, materialmente inadequada e imprestável para a obtenção da forma de tutela judiciária que, em termos substanciais, o demandante visava alcançar – mostrando-se tal operação de reconfiguração ou requalificação jurídica do tipo de providência requerida ainda compatível com a vontade conjectural do A., a quem cabe, por força do princípio dispositivo, delinear a pretensão processual que formula, definindo o tipo de providência jurisdicional pretendida, sem que o Tribunal se deva, em princípio, imiscuir nessa definição e na estratégia processual que lhe subjaz; - em segundo lugar, que tal operação de reconfiguração ou requalificação jurídica do tipo de providência requerida – determinada, no caso dos autos, apenas na fase de recurso - se mostre compatível com o princípio da confiança processual, ínsito na regra constitucional do processo equitativo – de modo a não provocar uma intempestiva e surpreendente alteração tardia das regras que a parte teve como fundadamente aplicáveis à tramitação da causa, tal como a mesma tinha sido formalmente delineada pelo A. Ora, considera-se que, no caso dos autos, nenhuma destas condições essenciais para tornar legítima a convolação de um pedido que formalmente é construído como de reivindicação para uma acção negatória da existência de certo ónus sobre o prédio cuja propriedade se pretende ver reconhecida se verificam. Em primeiro lugar, o objectivo pretendido pela parte pode, no caso, ser alcançado pela via do pedido de reivindicação – ou seja, representa esta acção uma via possível para obter o reconhecimento da propriedade plena e a eliminação do ónus que decorreria da existência do caminho público impugnado – sem embargo de tal objectivo também poder ser alcançado pela via da acção negatória; é que, não sendo a via procedimental da acção de reivindicação objectivamente inadequada, imprestável ou ilegal para a consecução do fim em vista, a opção por esta ou pela via da propositura de acção negatória prende-se, em última análise, inteiramente com a definição de uma estratégia processual do demandante, matéria em que o tribunal se não deve imiscuir. Em segundo lugar, a reconfiguração ou requalificação jurídica -efectuada na fase de recurso – acaba por ter um efeito superveniente relevante quanto à aplicação das normas que regem acerca da repartição do ónus da prova, conduzindo a que – depois de julgada a acção – se fosse levado a considerar aplicável uma norma com que as partes não poderiam razoavelmente contar, face ao modo como tinha sido construída a acção ( sem que o juiz, no momento liminar próprio, o tivesse posto minimamente em causa): ou seja, as partes alegaram, requereram e produziram prova partindo do pressuposto que se moviam no âmbito de uma acção de reivindicação, não podendo ( depois de julgada tal acção em 1ª instância) serem confrontadas com a mudança de natureza desta para a de uma típica acção negatória, envolvendo esta inovatória qualificação jurídica da pretensão processual formulada relevantes alterações quanto às regras do direito probatório material sobre o ónus da prova ( conduzindo, no caso, a surpreendente aplicação do nº1 do art. 343º do CC) e inclusivamente à reconfiguração da função atribuída aos articulados já eventualmente apresentados( veja-se o art. 502º, nº2, do CPC). .E, assim sendo, sempre seria de excluir a aplicação à presente acção da regra constante do nº1 do art.343º do CC. 6. Porém, o reconhecer-se razão ao recorrente quanto a este ponto – mantendo-se, por isso, a qualificação da acção proposta como sendo de reivindicação – não conduz a resultado diverso do alcançado pela Relação no acórdão recorrido, agora com base no outro fundamento alternativo da procedência da apelação : incidir , em qualquer caso, sobre o demandado o ónus de alegar e provar a existência de um específico ónus real sobre o prédio cuja propriedade se reconheceu ao autor, limitativo dos normais e típicos poderes inerentes à propriedade plena. No caso dos autos, este ónus restritivo do gozo e fruição da propriedade plena que se começou por reconhecer à A. consubstanciava-se na existência de um caminho publico a atravessar o prédio reivindicado, com as consequentes e inerentes limitações quanto ao exercício, na sua plenitude, dos direitos do proprietário do imóvel – cabendo naturalmente ao R. /município demonstrar as características da dominialidade de tal passagem, por tal se traduzir, afinal, na invocação de um contra direito, restritivo dos típicos poderes do proprietário - e que, como facto impeditivo ou limitativo da plenitude destes, carece de ser alegado e provado pelo R , nos termos do nº2 do art. 342º do CC. Ora, percorrendo a matéria de facto provada – após exercício sobre esta do duplo grau de jurisdição pela Relação, em termos insindicáveis pelo STJ, por a alteração do quadro factual se basear apenas na reponderação de meios probatórios sujeitos à livre apreciação das instâncias – é evidente que se não podem ter por demonstradas as características da dominialidade pública do caminho ou passagem que se considerou existir no prédio reivindicado, já que se não provou que tal passagem visasse satisfazer interesses públicos com um adequado grau de relevância ( cfr. os Acs. do STJ de 13/3/08 ( p. 08A542) e de 9/2/12 ( P. 1007/03.1TBL.SD.P1.S1). 7. Nestes termos e pelo fundamento apontado confirma-se a decisão contida no acórdão recorrido. Custas pela entidade recorrente. Lisboa, 30 de Janeiro de 2013 Lopes do Rego (Relator) Orlando Afonso Távora Victor ______________________________ I - Nas acções em que só esteja em causa a simples apreciação negativa de um direito de que o réu se tenha arrogado, o autor só tem de alegar e provar esse arrogo e os factos que demonstram o seu interesse em agir, cabendo ao réu a alegação e prova dos factos constitutivos do direito de que se arroga. II - Na acção em que também esteja em causa um pedido de condenação, para a procedência deste o autor tem que provar o seu direito e que ele foi violado]. I – Constitui elemento característico das acções de simples apreciação negativa – artigo 4º, nº 2, al. a), CPC –, a sua sujeição, no que tange ao ónus da prova, ao regime do artigo 343º, nº 1, do CC., competindo nelas a quem ocupe a posição de Réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga. II – A improcedência de uma acção de simples apreciação negativa envolve o reconhecimento da existência do direito que o R. se arroga, o qual fica definitivamente estabelecido em face da parte contrária. Artigo 1383º Consideram-se abolidos os atravessadouros, por mais antigos que sejam, desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões.(Abolição dos atravessadoros) Artigo 1384º São, porém, reconhecidos os atravessadouros com posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas destinadas a utilização ou aproveitamento de uma ou outra, bem como os admitidos em legislação especial. (Atravessadouros reconhecidos) [8] Código Civil…, cit. , p. 283. [9] O que exclui o (novo) interesse público “descoberto” pela Autarquia em 2003, ad hoc, relativamente às verbas previstas no “Quadro Comunitário de Apoio” então vigente, e que levou à referida beneficiação, pelo R. e pela Junta de Freguesia de Alfaiate. É que para satisfação desse (outro) interesse (corresponde ele ao que consta da alínea g) do elenco fáctico) existia – só existe no Direito português – o instituto da expropriação por utilidade pública. [10] E isso face à prova testemunhal é até pouco claro, havendo nesta afirmações díspares, apontando num e noutro sentido (existiram testemunhas, caso de EE de FF, que referiram vagamente que se lembravam de passar naquele local há muito). Só poderíamos desambiguar algo esta questão, dada a inexpressividade da prova testemunhal, através da carta militar de fls. 294. Esta, todavia – e este aspecto foi porventura erradamente interpretado pelo Tribunal a quo –, não demonstra minimamente, conforme esclareceu inequivocamente o Instituto Geográfico do Exército a fls. 344/345, que o caminho referenciado na carta militar nº 227 de 1998, admitindo ser o agora em causa, correspondesse a um caminho público. Fala-se ali em “caminho carreteiro” para descrever as suas características no quadro da utilidade (militar) visada por essa carta: identificar a existência de um caminho que permite o trânsito de carros, guiando a execução de operações militares, nada esclarecendo esta carta quanto à dominialidade do caminho (contrariamente ao que referiram diversas testemunhas do R., designadamente o Presidente da Junta de Alfaiates, GG e o Secretário da mesma Junta, Francisco Pelicano). [11] Código Civil anotado, Vol. III, cit., p. 282. [12] Valeria, dizemos nós, empregando intencionalmente o condicional, admitindo que, posteriormente, o verdadeiro significado desse segundo Acórdão de 10/11/1993 não se tenha traduzido numa verdadeira exautoração do Assento de 1989 e que, portanto, este último possa manter algum espaço de aplicação. [13] Está este publicado no BMJ, 386, pp. 121/125 e disponível (texto integral) no sítio do ITIJ no endereço: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ace51cb6f7da9271802568fc00397c87. [14] Publicado no BMJ, 431, pp. 300/308, na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, tomo III/1993, pp. 135/138 e sumariado no sítio do ITIJ no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e9e2fa86b74f46b8802568fc003a6699. [15] A discussão em torno desta questão, no quadro destes dois pronunciamentos do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no plano subjacente a este segundo Acórdão de 1993, está reflectida na anotação de M. Henrique Mesquita ao Acórdão do STJ de 15/06/2000 (Miranda Gusmão), na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 134º, nº 3933, pp. 366/371 e Ano 135º, nº 3934, pp. 62/64. [16] Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 9ª ed., Coimbra, 1980, p. 921.
[19] Caso do Presidente e do Secretário da Junta de Freguesia de Alfaiate, respectivamente GG e HH. Note-se que outras testemunhas, com um conhecimento mais recente mas anterior à chamada beneficiação do caminho empreendida pela R., negaram a existência de qualquer caminho com as características indicadas por esta sobre o prédio da A. Referimo-nos à testemunha Jorge Serafim Reis Santos, engenheiro responsável pela execução do projecto de florestação do prédio da A., que referiu um conhecimento deste anterior à execução pelo R. do caminho aqui discutido. [20] Não excluímos, numa perspectiva abstracta, que um encurtamento de distâncias que seja muito expressivo (várias dezenas de quilómetros), para uma população muito significativa e em deslocações muito comuns no dia a dia desta, possa ser caracterizado como uma utilidade pública. De qualquer forma, não foi esse o sentido da prova aqui produzida. [21] Que são, e tão-só, as características introduzidas pelo R. no quadro do programa identificado nas alíneas e) a l) dos factos e não correspondem (nenhuma testemunha o afirmou) às características de qualquer passagem existente desde sempre (se alguma passagem existiu era de características muito distintas das agora introduzidas). [22] Foi o que a testemunha disse durante o interrogatório pelo Senhor Juiz que fixou os factos (que não foi o mesmo que redigiu a Sentença). [23] Aliás, não resolve qualquer carta militar questões de natureza jurídica, esgota-se na função de mapa e, como tal, limita-se a fornecer indicações geográficas, fundamentalmente, para efeito de operações militares – é esse o sentido de um “caminho carreteiro”: permite a passagem de carros (v. a caracterização da “Legenda” da Carta Militar de Portugal em: http://pt.scribd.com/doc/14761187/Legenda-Carta-Militar-IGOE). [24] Note-se que os valores indicados em aa) e bb) dos factos referem-se aos montantes gastos pela A. em todo o prédio, não existindo qualquer indicação de correspondência, no caso do valor da alínea aa), a estragos resultantes dos trabalhos efectuados pelo R. no prédio da A. Tudo se resume, pois, em sede de danos patrimoniais, à reparação da rede. |