Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7007/16.4T8PRT.P1-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
CULPA DO LESADO
ATROPELAMENTO
PEÃO
CULPA EXCLUSIVA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 10/19/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O confronto causal do acidente é de molde a concluir que o acidente/atropelamento sendo de atribuir exclusivamente à actuação culposa da vítima/A, não permite que se pondere, para a sua eclosão, de um risco qualificado inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, uma vez que a potencialidade de perigo que, mesmo numa circunstância mais propícia a sinistro automóvel – atropelamento de peão que atravessa a estrada –, comporta a sua circulação, foi alheia ao sinistro. Naquelas circunstâncias de tempo e modo, não se pode considerar ter ocorrido a concorrência de um risco causalmente adequado, porque sem a gravidade suficiente, para promover o resultado danoso, sofrido assim por imputação culposa e exclusiva a cargo da vítima.”

II. Olhando para os contornos do presente processo, e fazendo um juízo de adequação e proporcionalidade, à luz da interpretação actualista do regime conjugado do art.º 505.º e 570.º do CC, nos termos do qual o mesmo deve ser lido “como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional: ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se, à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto para o resultado danoso”, não conseguimos aqui encontrar os elementos característicos dos riscos próprio do veículo DT na vertente de circulação agravada ou de imputação ao peão de um comportamento sem culpa ou com culpa levíssima, à luz  dos factos provados relativos às condições do local, tempo, modo e comportamento dos envolvidos no acidente.

III. Não se encontra na situação específica do A. um elemento indicador da necessidade de protecção acrescida da vítima mais frágil que muitas vezes tem conduzido a reduzir a imputação do comportamento do peão como causa do acidente, porquanto era já adulto (o autor nasceu a ... de ...... de 1948) e nada fazia suspeitar do seu estado de saúde e psíquico para realizar a travessia com os necessários cuidados que esta impõe a qualquer peão (factos provados afirmam que era pessoa saudável), a que acresce o facto de ter beneficiado da protecção indemnizatória conferida pelo regime dos acidentes de trabalho, tendo já recebido a indemnização indicada nos factos provados.

IV. Nas circunstâncias dos presentes autos, foi a conduta do A. que determinou exclusivamente o evento lesivo, sem prejuízo de os danos sofridos serem de gravidade superior por estar envolvido um veículo automóvel que o atropelou, não podendo o mesmo beneficiar do regime da responsabilidade objectiva.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório

1. AA intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “Companhia de Seguros Tranquilidade, S. A.”.

Alegou o autor, em súmula, na petição inicial, que foi interveniente em acidente de viação causado por culpa exclusiva do condutor de veículo automóvel segurado pela ré.

Invoca que, em consequência de tal acidente, sofreu extensos danos patrimoniais e não patrimoniais, para cuja compensação entende adequada a quantia global de € 183 105,24.

Conclui pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia global de € 183 105,24, acrescida de juros de mora contados, à taxa legal, desde a citação e até integral reembolso.


2. Citada, a ré apresentou contestação, na qual, em súmula, começa por reconhecer a verificação do acidente invocado na petição inicial, bem como a celebração do contrato de seguro aí referido.

Afirma, no entanto, ter sido o autor o único responsável pela verificação do acidente e dos danos a ele consequentes.

Invoca que o sinistro em causa assumiu simultaneamente natureza de acidente de viação e de trabalho, tendo o autor recebido já indemnização pelos danos que sofreu a abrigo da legislação laboral, quantias que não são cumuláveis com os valores pelo autor reclamados no âmbito destes autos a título de dano patrimonial.

Impugna, por desconhecimento, a verificação e extensão dos danos que o autor afirma ter sofrido.

Conclui pedindo a improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido.


3. Foi dado cumprimento ao disposto no nº 2 do artigo 1º do Decreto-lei nº 59/89, de 22 de Fevereiro.

A audiência prévia foi dispensada.

Foi proferido despacho saneador, não tendo sido apresentado recurso.

Procedeu-se à fixação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova, não tendo sido apresentada qualquer reclamação.

Constatando-se a incapacidade do autor para por si só estar em juízo (cfr. fls. 762), procedeu-se à nomeação de curador provisório (cfr. fls. 774, 791 e 792).

A ré apresentou o articulado superveniente que consta de fls. 803 e ss., no qual, em súmula, afirma que, no âmbito do processo de trabalho nº .../13, o aqui autor e a “Ageas Portugal – Companhia de Seguros, SA”, celebraram acordo relativo aos danos sofridos pelo autor na sequência do acidente em causa nos autos, na sequência tendo o aqui autor recebido, à data de 30 de Agosto de 2018, a quantia global de € 99 297,86, valor que, afirma, não é cumulável com a indemnização pelo autor peticionada no âmbito destes autos.

Ouvido o autor, foi admitido o articulado superveniente apresentado (cfr. fls. 851).

Instruída a causa, realizou-se a audiência de julgamento.

De seguida, foi proferida a seguinte sentença:

“pelo exposto, julgo a presente acção totalmente improcedente, e, em consequência, absolvo na integra a Companhia de Seguros Tranquilidade SA, da totalidade do pedido contra si formulado pelo autor AA”


4. Desta decisão o Recorrente veio interpor apelação, conhecida pelo TR… e que culminou com a seguinte decisão:

“(…) acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:

- o Recurso interposto pelo Autor/Recorrente totalmente improcedente e, em consequência, decide-se manter integralmente a sentença recorrida.”


5. Novamente inconformado o A. interpôs recurso de revista excepcional, alegando motivos que justificam a admissão do recurso por esta via, não obstante reconhecer existir dupla conformidade decisória entre a sentença e o acórdão. O recorrido contra-alegou no sentido da inadmissibilidade da revista pela via excepcional.


6. O Meritíssimo Desembargador Relator mandou subir os autos ao STJ para decisão, nos termos da lei, fundamentando a decisão nos seguintes termos:

“Considerando a fundamentação apresentada pelo Recorrente no sentido do enquadramento do recurso na situação prevista no art. 672º, nº 1, al. b) do CPC (revista excepcional – “estejam em causa interesses de particular relevância social”), e tendo em conta que a verificação dos pressupostos referidos no citado nº 1 do art. 672º do CPC compete ao STJ, de acordo com o nº 3 do mesmo preceito legal, admite-se liminarmente o Recurso, por estar em tempo e o Recorrente ter legitimidade, que é de Revista (excepcional), sobe em separado (art. 675º, nº 2 do CPC) e tem efeito meramente devolutivo (art. 676º do CPC).”


7. Distribuídos os autos neste STJ e porque incumbe ao relator verificar os requisitos gerais de admissibilidade da revista e a dupla conformidade decisória (art.º 652.º), foi realizada essa análise, concluindo-se no sentido de nada obstar à admissão geral da revista, não obstante a dupla conforme, remetendo-se os autos à formação a que alude o art.º 672.º, para efeitos de decisão sobre a admissão da revista excepcional.


8. A formação a que alude o art.º 672.º do CPC veio a admitir a revista excepcional por acórdão de Setembro de 2021.


9. Nas conclusões da revista, constam as seguintes conclusões:

a) o que se discute in casu integra o conceito de interesse de particular relevância social, atendendo aos contornos particulares e à projecção dos seus efeitos no mundo jurídico.

b) o presente recurso de revista interposto é admissível nos termos do art.º 672º nº 1 b) do Código de Processo Civil.

c) O tema em apreço reveste-se de extrema importância social e importância jurídica, porquanto resulta dos autos que o Recorrente foi vítima de um acidente de viação e ficou com uma incapacidade de 88 pontos.

d) A discussão da culpa in casu, impõe que o cidadão que se serve da justiça tem de ver esgotadas todas possibilidades de recorrer até às últimas instâncias de forma a aferir o direito, ou não, a uma indemnização.

e) da factualidade não resulta que o acidente se deveu a culpa exclusiva do Recorrente, da mesma decorre que o acidente tem como causa os riscos próprios de circulação automóvel.

f) comportamento do lesado, aqui Recorrente, não consubstanciou um comportamento apto a quebrar o nexo de causalidade entre os riscos do veículo e os danos por este sofridos.

g) não se pode determinar que culpa do acidente se possa imputar a uma atuação temerária do peão, desde logo porque, a existência da curva à direita e a presença do veiculo funerário foram aptos a impedir a visão do Recorrente, que iniciou a travessia da via, na convicção que o fazia em segurança, aliás nem tão pouco se provou que o mesmo tenha atravessado a via sem primeiramente olhar para a sua esquerda e direita – cfr. alínea d) dos factos não provados.

h) os danos, resultantes do acidente, apresentam nexo de causalidade, com os riscos inerentes à circulação automóvel, e como tal implica uma decisão no sentido de responsabilização pela totalidade dos danos causados ao lesado nos termos do artigo 500.º e 504.º do Código Civil.

i) O Recorrente não violou qualquer estipulação do artigo 101.º do Código da estrada, e como tal, o acidente dos autos emergiu dos riscos inerentes à circulação automóvel.

j) Impõe-se, portanto, reconhecer a responsabilidade objetiva do veículo DT, que deu causa adequada aos danos sofridos pelo Recorrente e, consequentemente tem a Recorrida de ser condenada a pagar-lhe os danos sofridos no acidente.

k) Por outro lado, sempre seria de aplicar a concorrência da culpa com o risco, porquanto a conduta do Recorrente não consubstancia culpa exclusiva que afastasse a aplicação do artigo 570.º n.º 1 do Código Civil.

Impõe-se, portanto, a revogação do Acórdão recorrido, substituindo-se por uma decisão que condene a Recorrida no pagamento de uma indemnização ao Recorrente, ainda que, subtraída da sua quota de responsabilidade na produção do acidente,

Assim se fazendo a costumada Justiça.


10. Colhidos os vistos por via eletrónica, por via do cumprimento do disposto no art.º 657.º, n.º 2 do CPC, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

De facto

11. Das instâncias vieram dados como provados os seguintes factos:

1 - No dia … de Maio de 2013, o autor, que na data exercia actividade laboral numa agência …, recebeu ordens para se deslocar a uma residência e tratar das formalidades próprias de um …., na sequência pelas 14h00m deslocando-se ao ... da rua ......, ...., ... [artigos 1º a 3º da petição inicial; artigo 21º da contestação].

2 - No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar circulava o veículo ligeiro de mercadorias da marca “.....”, modelo “.....”, matrícula ..-..-DT, conduzido por BB, no sentido de marcha rua ..... – rua ..... [artigos 4º e 5º da petição inicial; artigo 3º da contestação].

3 - A rua ....., ......, ......, na zona do sinistro, é constituída por 2 hemi-faixas de rodagem, cada uma destinada a um sentido de marcha, possui 5,80m de largura, tem ligeira inclinação ascendente (atento o sentido de marcha do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT), e em alguns locais tem passeios destinados à circulação de peões [artigos 6º e 7º da petição inicial; artigos 6º a 9º da contestação].

4 - No momento do sinistro era de dia, o tempo estava seco, e o pavimento da rua ...., em asfalto, encontrava-se em bom estado de conservação, sendo de 50 km/h o limite máximo da velocidade instantânea permitido no local [artigos 8º a 11º da petição inicial; matéria aceite nos artigos 7º e 10º da contestação].

5 - No local do sinistro, e nos 50 metros mais próximos, não existem passadeiras destinadas à travessia de peões [artigo 12º da petição inicial; matéria não impugnada na contestação].

6 - Na zona do sinistro a rua ..... descreve uma muito ligeira curva à direita, atento o sentido de marcha do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT, permitindo avistar a faixa de rodagem numa extensão superior a 60 metros [artigo 18º da petição inicial; artigo 7º da contestação].

7 - No dia, hora e local acima referidos, próximo da berma direita da hemi-faixa direita da rua .... (atento o sentido de marcha rua ..... – rua .....), encontrava-se imobilizado o veículo da agência funerária, da marca “......”, modelo “......”, tendo ligados os sinais luminosos intermitentes [artigo 13º da petição inicial; artigos 11º e 12º da contestação].

8 - O autor, que seguia como passageiro na frente do veículo da funerária, obedecendo às ordens do seu patrão, condutor daquele veículo, saiu deste e contornou-o pela parte frontal [artigo 14º da petição inicial; matéria aceite no artigo 21º da contestação]…

9 - Após o que iniciou a travessia da rua ...... para se deslocar a uma moradia existente a cerca de 10 metros, no lado oposto dessa rua .... [artigo 15º da petição inicial; artigo 13º da contestação].

10 - O veículo da agência funerária, da marca “......”, modelo “......”, possui 1,875 metros de altura, 1,906 metros de largura e cerca de 5 metros de comprimento, sendo na altura utilizado pela sua proprietária para transporte dos seus funcionários e de urnas funerárias [artigos 14º e 15º da contestação].

11 - O veículo automóvel de matrícula ..-..-DT, ao contornar o veículo da funerária imobilizado junto à berma, para prosseguir a marcha em direcção à rua da .....,

colheu o autor, atropelando-o [artigo 16º da petição inicial; artigos 16º e 19º da contestação].

12 - No momento em que o veículo automóvel de matrícula ..-..-DT se encontrava praticamente a par do veículo da funerária imobilizado junto à berma, o autor surge na frente daquele, a ocupar a zona da faixa de rodagem por onde circulava o dito veículo, procurando realizar a travessia da rua ..... da direita para a esquerda, na diagonal, atento o sentido de marcha do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT [artigos 20º e 21º da contestação]…

13- … Instante em que o condutor do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT de imediato accionou os órgãos de travagem da viatura [artigo 27º da contestação]…

14 - … Imobilizando-se ao fim de uma travagem de pelo menos 7,30 metros [artigo 31º da contestação]…

15 - Antes do embate o veículo automóvel de matrícula ..-..-DT circulava a cerca de 35 km/h [artigo 4º da contestação; matéria antecipadamente impugnada no 16º da petição inicial].

16 - Na zona onde ocorreu o atropelamento, o lado direito da rua ........., ......, ...... (atento o sentido de marcha do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT), não dispunha de passeio para peões, sendo limitado por várias propriedades não muradas invadidas de vegetação selvagem, densa, alta e com mais de 2 metros de altura, até à berma da estrada [artigo 8º da contestação].

17 - Na zona onde ocorreu o atropelamento, o lado esquerdo da rua ..., ......, ...... (atento o sentido de marcha do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT), é limitado por um passeio destinado ao trânsito de peões [artigo 9º da contestação;].

18 - No momento em que o veículo automóvel de matrícula ..-..-DT contornou veículo da funerária imobilizado junto à berma, nenhuma outra viatura circulava na faixa de rodagem, naquela zona [artigo 17º da contestação].

19 - O embate ocorreu entre o autor e sensivelmente o meio da parte frontal do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT [artigo 28º da contestação].

20 - Na sequência do atropelamento o autor traumatismo crânio-encefálico, e traumatismos de menor gravidade nos membros inferiores, tendo ficado inconsciente [artigos 19º e 20º da petição inicial; matéria expressamente impugnada nos artigos 65º a 67º da contestação].

21 - Após ser transportado para o serviço de urgência do centro hospitalar ......, onde foi assistido, aí ficou internado na unidade de cuidados intensivos de neurocríticos, e, posteriormente, no serviço de neurologia [artigos 21º, 22º e 43º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

22 - Em meados de Junho de 2013 foi transferido para o “Hospital ......”, sendo acompanhado nos serviços de neurologia e psiquiatria [artigos 23º e 43º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

23 - Esteve em situação de incapacidade temporária absoluta entre … de Maio de 2013 e … de Julho de 2013, e entre 02 de Setembro e 05 de Setembro de 2013, e teve alta hospitalar a 19 de Outubro de 2013, com proposta de valor de IPP de 100% [artigo 24º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

24 - De 14 de Junho a 17 de Junho de 2013 foram observadas graves sequelas do traumatismo que o autor sofreu, como síndrome depressivo e queixas do foro abdominal, abdómen mole e depressível, e recusa alimentar [artigo 25º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

25 - Em consequência das sequelas que apresenta, o autor passou a ter necessidade do auxílio de terceira pessoa para as actividades da vida diária – higiene pessoal, vestir, despir e acompanhamento na via pública [artigos 26º, 40º, 42º e 60º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

26 - Actualmente, o autor movimenta-se com extrema dificuldade, sempre amparado, dando sinais de que terá tendência para acamar [artigo 61º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

27 - Em consequência das sequelas que apresenta, o autor mostra-se totalmente incapacitado para o exercício de qualquer actividade profissional [artigos 38º, 39º, 53º a 56º, 75º a 81º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

28 - O autor encontra-se reformado desde a data do acidente [artigo 27º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

29 - Em Dezembro de 2014 o autor sofreu enfarte agudo do miocárdio [artigo 28º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

30 - O atropelamento sofrido pelo autor foi considerado acidente de trabalho, tendo a propósito corrido termos processo junto do tribunal de trabalho sob o nº .../13, no âmbito do qual foi arbitrada ao autor pensão anual vitalícia no valor de € 9 513,20, bem como prestação mensal suplementar de assistência de terceira pessoa, no valor mensal de € 461,14, e ainda subsídio para realização de obras de adaptação do domicílio do autor, no valor de € 5 5323,70 [artigos 30º a 34º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

31 - O autor nasceu a ... de ...... de 1948 [artigo 49º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

32 - A … de Maio de 2013 o autor trabalhava como empregado de agência funerária [artigo 50º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação]…

33 - …Auferindo o salário mensal de € 750,00, 14 vezes por ano, acrescido, a título de subsídio de alimentação, do valor diário de € 5,75, em cada 22 dias úteis do mês, 11 meses por ano [artigos 38º e 52º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

34 - Antes do atropelamento o autor era pessoa saudável, robusta, dinâmica e bem-disposta [artigo 57º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

35 - Em consequência do atropelamento, e dos tratamentos a que teve de ser submetido, o autor sentiu dores intensas [artigos 79º e 71º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

36 - As sequelas que o autor apresenta, em resultado do atropelamento, determinam-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 88 pontos [artigo 74º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

37 - O referido em 21-, 22- e 25- a 27- causou ao autor, e causa, sofrimento, angústia e frustração [artigos 27º e 82º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

38 - À data do atropelamento, o autor era casado, casamento que mantém [artigos 84º e 85º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

39 - Até ao acidente, o autor e a sua esposa formavam um casal feliz, cooperando entre si e conjuntamente cuidando dos seus netos [artigos 94º a 97º, 99º a 102º e 105º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

40 - Actualmente, o autor procura o isolamento, deixou de colaborar no dia-a-dia da sua família, e frequentemente mantém discussões com a sua esposa [artigos 89º, 98º e 104º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

41 - Actualmente, o autor sente-se diminuído, tendo perdido a vontade de se relacionar sexualmente com a sua esposa [artigos 87º a 91º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação].

42 - Na sequência do processo de trabalho nº .../13, a “Ageas Portugal – Companhia de Seguros, SA”, procedeu ao pagamento das seguintes quantias, calculadas a 30 de Novembro de 2019, a título de indemnização pelos danos sofridos em consequência do atropelamento em causa nos autos:

a. € 4 082,21, a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta;

b. € 5 533,70, a título de subsídio de elevada incapacidade;

c. € 5 533,70, a título de subsídio para realização de obras de adaptação no domicílio;

d. € 105 798,46, a título de pensões [artigos 69º a 72º da contestação; artigos 4º a 6º do articulado superveniente apresentado a fls. 803 e ss.].

12. Das instâncias vieram dados como não provados os seguintes factos:

a - no momento do sinistro o veículo automóvel de matrícula ..-..-DT seguisse a velocidade “consideravelmente” superior a 50 km/h [artigo 16º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 4º da contestação];

b - no momento em que se aproximou da retaguarda do veículo da agência funerária, o condutor do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT tenha abrandado a sua marcha e accionado o “pisca” do lado esquerdo [artigo 16º da contestação;];

c - no momento em que o veículo automóvel de matrícula ..-..-DT contornou veículo da funerária imobilizado junto à berma, no local não circulasse qualquer peão [artigo 18º da contestação;];

d - o autor tenha iniciado a travessia da rua ......... sem olhar para a sua esquerda ou para a sua direita [artigo 22º da contestação];

e - o autor tenha iniciado a travessia da rua ......... a correr [artigos 23º e 24º da contestação];

f - o atropelamento do autor tenha ocorrido no momento em que o veículo automóvel de matrícula ..-..-DT se encontrava quase parado [artigo 29º da contestação];

g - o ponto do embate entre o corpo do autor e o veículo automóvel de matrícula ..-..-DT, por referência à rua ......... tenha ficado situado precisamente à frente do referido veículo, no momento em que se imobilizou [artigo 30º da contestação];

h - na altura do sinistro o autor exalasse intenso cheiro a álcool [artigo 32º da contestação];

i - após o acidente, o autor tenha por várias vezes tentado o suicídio [artigo 29º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 65º da contestação]”.

De Direito

13. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

No presente recurso as questões que se colocam são as seguintes:

a) Saber se a causa do acidente foi a conduta do A. ou se resulta dos riscos próprios de circulação automóvel, ou de ambas;

b) Saber se se pode aplicar o regime da concorrência da culpa com o risco próprio da circulação automóvel, para efeitos de repartição da responsabilidade.

14. Porque a temática suscitada na presente revista tem sido já abordada por diversos arestos deste STJ, optou-se por operar o enquadramento normativo da questão suscitada no recurso através da citação dessa jurisprudência.

14.1 Assim, como se disse no Acórdão do STJ relativo ao processo 15385/15.6T8LRS.L1.S1, de 17/10/2019, disponível em www.dgsi.pt

(início de transcrição, com selecção de texto relevante, da responsabilidade da relatora)

“Não sofre dúvidas que a lei distingue, no campo mais geral da responsabilidade extracontratual, entre responsabilidade civil por factos ilícitos - art.º 483 e seguintes do Código Civil - e responsabilidade pelo risco - artºs. 499° a 510° do mesmo diploma - sem prejuízo de, na regulamentação desta, fazer frequentes apelos à culpa, como acontece nos artºs. 500° n.º 3, 503 n.º 3, e 506° todos do Código Civil, e de mandar cumprir, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos art.º 499° do Código Civil.

A responsabilidade por factos ilícitos, com base na culpa, é a regra, na medida em que só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei - art.º 483° n.º 2 do Código Civil - .

Aqui, reiteramos, é ao lesado que incumbe provar todos os pressupostos fixados no n.º 1 do art.º 483° do Código Civil, designadamente, a culpa, salvo quando haja presunção legal de culpa - art.º 487° n.º 1 do Código Civil - pois é sabido que quem tem a seu favor presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz - art.º 350° n.º 1 do Código Civil - .

Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso - art.º 487° n.º 2 do Código Civil - .

O elemento básico da responsabilidade é o facto do agente - um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana - pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia da ilicitude, o requisito da culpa e a obrigação de reparar o dano nos termos em que a lei a impõe, neste sentido, Antunes Varela, in, Das Obrigações em Geral, I, 9ª edição, página 545, mas, fundamental na responsabilidade por factos ilícitos, por culpa, além da ilicitude (elemento objectivo, o autor agiu objectivamente mal), é essencial concluir que a conduta do lesante se pode considerar reprovável, censurável.

Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo, neste sentido, Antunes Varela, in, Das Obrigações em Geral, I, 9ª edição, página 582.

Culpa efectiva, provada, e culpa presumida são uma e a mesma coisa, designadamente para afastar a indemnização devida pela responsabilidade pelo risco, pois, as presunções, enquanto “ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” (art.º 349° do Código Civil) - podem resultar tanto da lei (art.º 350º do Código Civil) como das regras da experiência e da vida do julgador (art.º 351º do Código Civil), reconhecendo-se que a prova da inobservância de leis ou regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando a concreta comprovação da falta de diligência.”

(…)

“A responsabilidade civil, no domínio dos acidentes de viação, conforme supra já adiantamos, não se esgota com a verificação do dolo ou culpa dos intervenientes, pois que ela é objectiva no caso de risco.

Estatui o art.º 499º do Código Civil que “são extensivas aos casos de responsabilidade pelo risco, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos”.

Nota dominante da responsabilidade pelo risco, temo-la no facto de a lei prescindir daquele elemento subjectivo, da culpa.

O fundamento da responsabilidade não reside agora no propósito de um acto culposo, mas sim no controle de um risco, ou talvez, com maior rigor, no controle de potenciais danos, aliado ao princípio da justiça distributiva, segundo a qual quem tiver o lucro ou em todo o caso, o beneficio de uma certa coisa, deve suportar os correspondentes encargos - ubi commodum ibi incommodum - .

Estabelece o direito substantivo civil que responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário – art.º 503º, n.º 1, do Código Civil - donde cabe ao proprietário a direcção efectiva do veículo, que o vê a circular no seu próprio interesse, gozando de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição do veículo.”

(…)

“A responsabilidade pelo risco, no caso de veículo de circulação terrestre, como se demonstra nos autos, repercutir-se-ia na esfera jurídica da Ré/Seguradora por força do contrato de seguro que cobre os riscos inerentes à circulação do veículo (…).

Assim, prima facie reconhecer-se-ia a responsabilidade pelo risco.

Importa, todavia, encarar o caso sub iudice (responsabilidade objectiva, nos termos previstos no art.º 503º do Código Civil) com especial enfoque na questão da eventual exclusão dessa responsabilidade.

Estatui o art.º 505º do Código Civil “Sem prejuízo do disposto no artigo 570º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”

Desvalorizando o elemento literal que decorre do preceito consignado, entendia-se que não era legalmente admissível o concurso do risco do lesante com a culpa do lesado, invocando, para o efeito o regime jurídico decorrente do n.º 2 do art.º 570º do Código Civil, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, in, Código Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Actualizada, Reimpressão, Coimbra Editora, Fevereiro de 2011, páginas 517 e 518, anotação 1 ao artigo 505º do Código Civil.

Este entendimento teve apoio jurisprudencial até ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 2007 (Processo n.º 07B1710), in, www.dgsi.pt que, por maioria, sustentou que o artigo “505º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.

Entretanto esta questão atinente ao concurso do risco do responsável com a culpa do lesado gerou um reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia pedindo que se pronunciasse sobre a interpretação a dar à 3ª Directiva Automóvel - art.1º-A - e se ela se opõe ao segmento do direito nacional interpretado no sentido de impedir assim que concorresse com a culpa do menor a responsabilidade pelo risco por parte do veículo ligeiro, tendo, a propósito, sido proferido Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 9 de Junho de 2011 (a merecer comentários de Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandes, in, Cadernos de Direito Privado, nº 34, Abril/Junho 2011, páginas 3 a 19, outrossim, como sequela do aludido reenvio foi proferido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 2012 (Processo n.º 100/10.9YFLSB, in, www.dgsi.pt), em cujo dispositivo se enunciou: “A Directiva 72/166/CEE do Conselho de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título de seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.)”

Assim, está actualmente firmada no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação não mecânica do art.º 505º do Código Civil no sentido de que não implica “uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura. Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa”, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2018 (Processo n.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1) e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2017 (Processo n.º 511/14.0T8GRD.D1.S1), in, www.dgsi.pt., além de outros relacionados por, Hugo Luz dos Santos e de Leong Cheng Hang, in, Revista de Direito Civil, Ano II, número 2, página 507, nota 23, O Acórdão de 14/01/14: Concurso entre o risco do veículo e a culpa do lesado? Um passo atrás no padrão de jusfundamentalidade do Direito da União Europeia?. (…)”

(fim de citação)


14.2. Revertendo ao caso sub iudice, o tribunal recorrido entendeu que:

“Conforme decorre do exposto, no caso concreto, tendo sido efectuada análise da dinâmica do acidente de viação, por forma a confirmar aquela que foi realizada pelo Tribunal Recorrido (atribuindo ao peão – ao Autor - culpa exclusiva na sua ocorrência), não existem dúvidas que a responsabilidade civil da Ré se mostra afastada.

Nessa medida, o invocado preceito legal, em princípio, não tem campo de aplicação, já que tal responsabilidade pelo risco (art. 503º do CC) se mostra excluída pela afirmada culpa do lesado, atento o disposto no art. 505º do CC. É certo que existe Jurisprudência (e doutrina)7 que admite a existência de concurso da responsabilidade por risco com a culpa do lesado (cfr. arts. 503º, 505º e 570º do CC)8.

No entanto, mesmo no âmbito desta corrente jurisprudencial, defende-se que competirá “ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente” ( v. Ac. do STJ, de 01.06.2017, já citado).

Ora, mesmo que se admitisse esta tese, a verdade é que, no caso concreto, o atropelamento do Autor se deveu, de uma forma exclusiva, à forma negligente e desatenta com que inopinadamente iniciou a travessia da via de trânsito onde ocorreu o atropelamento, não se podendo imputar ao condutor do veículo atropelante qualquer violação do direito estradal.

Assim, daquela factualidade pode-se retirar que foi o Autor que efectuou a travessia da faixa de rodagem de uma forma com que o condutor do veículo DT não poderia contar (nem qualquer outro condutor colocado naquelas mesmas circunstâncias), ou seja, de uma forma absolutamente imprevisível, o que impossibilitou que o referido condutor, mesmo à velocidade reduzida a que seguia, pudesse ter conseguido evitar o embate com o Autor.

Nesta medida, ao actuar desta forma, o Autor violou o disposto no art. 101º do CE, artigo que lhe impunha a regra de, antes de proceder à travessia da faixa de rodagem, se dever certificar previamente de que o podia fazer sem perigo de acidente (nº 1).

Aliás, e na apreciação do condutor do veículo segurado na Ré não se pode deixar de considerar que não se pode fazer qualquer censura à sua condução, já que, conforme se vem referindo na Jurisprudência, “... não é previsível para um condutor , cumprindo as regras de trânsito, que um peão lhe surja de repente pela via onde transite ... “ (ac. do RE de 25.7.85, in BMJ 351, pág. 473 ), sendo certo que “... a lei não exige que o condutor conte, em regra, com a conduta negligente de outrem ... “ (ac. do STJ de 4.4.78, in BMJ 276 , pág. 193), ou, como aquele outro Acórdão refere, “... não se pode exigir de um condutor uma previsibilidade para além do que é normal ... “.

Isto é, não era exigível ao condutor do veículo DT que, nas circunstâncias apuradas, previsse que um peão iria proceder à travessia da faixa de rodagem, da forma imprevidente como o Autor a efectuou.

Assim, não pode haver dúvidas que o acidente se deveu a culpa exclusiva do peão atropelado, e que, assim, não pode por ele ser responsabilizada a Ré, já que esta responde na exacta medida em que o seu segurado responde.

Logo, importa concluir que o atropelamento do Autor, não só se deveu à conduta dele próprio, como se deveu exclusivamente a essa sua conduta.

Fica, por isso, mesmo no âmbito das referidas novas posições, excluído o concurso de culpa (sua, e não leve) com a responsabilidade (pelo risco) do condutor do veículo atropelante (potencialmente existente).

Nesta conformidade, qualquer que seja a posição que se adopte quanto à interpretação do disposto nos arts. 505º e 570º do CC, sempre a conclusão seria a de considerar que não era possível a responsabilização da Ré (e do condutor do veículo DT).

Pelo exposto, importa concluir que nem por essa via a pretensão do Autor podia ser acolhida, atenta a matéria de facto considerada como provada – como, aliás, também, bem decidiu o tribunal recorrido, pronunciando-se de uma forma fundamentada sobre esta possibilidade de concorrência entre a responsabilidade pelo risco e a culpa do lesado.”

(fim de citação)


14.3. Diz o autor que não violou qualquer disposição legal e que não se provou que não olhou para a esquerda e para a direita antes de atravessar.


Vejamos.

O tribunal recorrido entendeu que o A. violou uma disposição legal do código da estrada: “O art. 101º do CE, artigo que lhe impunha a regra de, antes de proceder à travessia da faixa de rodagem, se dever certificar previamente de que o podia fazer sem perigo de acidente (nº 1).”

É certo que o A. tinha o direito de atravessar a estrada e que não havendo passadeira a menos de 50 metros (facto provado) podia fazê-lo fora dela, mas já não o podia fazer sem os devidos cuidados, nomeadamente, tendo em conta as circunstâncias da via e os veículos que aí se encontravam a circular ou parados.

Tendo saído do veículo funerário – que se apresenta com dimensões superiores aos veículos ligeiros – que estava parado na berma, e tendo-se posicionado na sua parte da frente, devia admitir a possibilidade de não ser facilmente visível na sua pessoa por quem estivesse a circular nas mesmas circunstâncias em que estava o proprietário do DT, porque a dimensão do veículo funerário acabaria por o tornar menos visível ou até totalmente escondido. Não é assim de excluir que a prudência se impunha: não atravessar pela parte da frente da carrinha parada, ou fazendo-o, parar e espreitar para a esquerda e direita antes de iniciar a travessia.

O A. diz que não foi dado como provado que não espreitou para a esquerda e direita (alínea d) dos factos não provados - o autor tenha iniciado a travessia da rua ......... sem olhar para a sua esquerda ou para a sua direita), mas a falta de prova desse elemento fáctico – quer na vertente positiva da formulação, quer na negativa, só pode ser-lhe assacada, porquanto constituiria uma defesa contra a sua eventual responsabilidade na travessia temerária. E na falta de prova de tais factos, os mesmos podem relevar para efeito de contra ele serem usados, por força do regime da distribuição do ónus da prova – em caso de dúvida sobre se olhou ou não para a esquerda e para a direita antes de atravessar a estrada, deve a falta de prova ser utilizada contra quem dela beneficiava, in casu, contra o A., pois a ter-se por demonstrado que olhou para os dois lados poder-se-ia assumir que teria tido uma atitude mais conforme com a prudência exigida a quem atravessa uma via com trânsito.

Não é ainda irrelevante o facto de se ter dado como provado que o condutor do DT circulava a 35 km/hora, numa via em que lhe era permitido circular a 50 km/hora. Tal velocidade indicia que circulava com cuidado, até porque contornava a carrinha funerária parada na berma. Estando a carrinha com os piscas ligados – conforme factos provados – o condutor do DT podia assumir que a mesma representava um risco potencial para a circulação.

Já o mesmo não se pode indicar relativamente a algum peão que, posicionado na frente da indicada carrinha, iniciasse a travessia da estrada.

O que quer dizer que em termos de causalidade naturalística foi a travessia do A. a situação que despoletou o atropelamento, sem que se possa, no caso concreto, indicar que o condutor do DT foi, de alguma forma, responsável pelo embate que o ocasionou.

A nosso ver, nas circunstâncias do tempo, hora, via e circunstâncias do acidente, não é possível afirmar que o condutor do DT, pela sua conduta, tenha sido o causador do atropelamento, nem a título de negligência ou imprevidência ou falta de cuidado.


14.4. Essas circunstâncias são as seguintes:

a) Características da via e circunstâncias temporais e espaciais, a partir dos factos provados:

3 - A rua ...., ......, ......, na zona do sinistro, é constituída por 2 hemi-faixas de rodagem, cada uma destinada a um sentido de marcha, possui 5,80m de largura, tem ligeira inclinação ascendente (atento o sentido de marcha do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT), e em alguns locais tem passeios destinados à circulação de peões [artigos 6º e 7º da petição inicial; artigos 6º a 9º da contestação].

4 - No momento do sinistro era de dia, o tempo estava seco, e o pavimento da rua ..., em asfalto, encontrava-se em bom estado de conservação, sendo de 50 km/h o limite máximo da velocidade instantânea permitido no local [artigos 8º a 11º da petição inicial; matéria aceite nos artigos 7º e 10º da contestação].

5 - No local do sinistro, e nos 50 metros mais próximos, não existem passadeiras destinadas à travessia de peões [artigo 12º da petição inicial; matéria não impugnada na contestação].

6 - Na zona do sinistro a rua ... descreve uma muito ligeira curva à direita, atento o sentido de marcha do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT, permitindo avistar a faixa de rodagem numa extensão superior a 60 metros [artigo 18º da petição inicial; artigo 7º da contestação].

7 - No dia, hora e local acima referidos, próximo da berma direita da hemi-faixa direita da rua ......... (atento o sentido de marcha rua ..... – rua .....), encontrava-se imobilizado o veículo da agência funerária, da marca “......”, modelo “......”, tendo ligados os sinais luminosos intermitentes [artigo 13º da petição inicial; artigos 11º e 12º da contestação].

10 - O veículo da agência funerária, da marca “......”, modelo “......”, possui 1,875 metros de altura, 1,906 metros de largura e cerca de 5 metros de comprimento, sendo na altura utilizado pela sua proprietária para transporte dos seus funcionários e de urnas funerárias [artigos 14º e 15º da contestação].

11 - O veículo automóvel de matrícula ..-..-DT, ao contornar o veículo da funerária imobilizado junto à berma, para prosseguir a marcha em direcção à rua da .....,

colheu o autor, atropelando-o [artigo 16º da petição inicial; artigos 16º e 19º da contestação].

12 - No momento em que o veículo automóvel de matrícula ..-..-DT se encontrava praticamente a par do veículo da funerária imobilizado junto à berma, o autor surge na frente daquele, a ocupar a zona da faixa de rodagem por onde circulava o dito veículo, procurando realizar a travessia da rua ......... da direita para a esquerda, na diagonal, atento o sentido de marcha do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT [artigos 20º e 21º da contestação]…

13 - … Instante em que o condutor do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT de imediato accionou os órgãos de travagem da viatura [artigo 27º da contestação]…

14 - … Imobilizando-se ao fim de uma travagem de pelo menos 7,30 metros [artigo 31º da contestação]…

15 - Antes do embate o veículo automóvel de matrícula ..-..-DT circulava a cerca de 35 km/h [artigo 4º da contestação; matéria antecipadamente impugnada no 16º da petição inicial].

18 - No momento em que o veículo automóvel de matrícula ..-..-DT contornou veículo da funerária imobilizado junto à berma, nenhuma outra viatura circulava na faixa de rodagem, naquela zona [artigo 17º da contestação].

19 - O embate ocorreu entre o autor e sensivelmente o meio da parte frontal do veículo automóvel de matrícula ..-..-DT [artigo 28º da contestação].

b) Comportamento do A., desde que saiu do lugar do lugar da frente da carrinha funerária, até que foi colhido pelo condutor do DT, a partir dos factos provados:

8 - O autor, que seguia como passageiro na frente do veículo da funerária, obedecendo às ordens do seu patrão, condutor daquele veículo, saiu deste e contornou-o pela parte frontal [artigo 14º da petição inicial; matéria aceite no artigo 21º da contestação]…

9 - … Após o que iniciou a travessia da rua ......... para se deslocar a uma moradia existente a cerca de 10 metros, no lado oposto dessa rua ......... [artigo 15º da petição inicial; artigo 13º da contestação].


15. Quanto a saber se, nas circunstâncias do presente caso, se pode admitir que se repartam responsabilidades entre A. e Ré – na vertente de responsabilidade com culpa do primeiro e responsabilidade objectiva do segundo, transferida para a sua seguradora – importa esclarecer em que medida se pode, ou não defender, estarmos perante um risco próprio do veículo DT, que conduza a ter-se-por correcta a concorrência de causas para a produção do acidente e respectivos danos, mesmo que se venha admitindo que um dos riscos próprios da circulação automóvel é o atropelamento de pessoas.

E para se fazer essa análise importa, antes de mais, traçar as linhas gerais que, na actualidade jurisprudencial e doutrinal, marcam os contornos da responsabilidade objectiva na sua ligação com a responsabilidade por facto ilícito e culposo, nomeadamente na ligação entre o regime dos art.º 503.º e ss e 570.º do CC.


15.1. No Acórdão do STJ relativo ao processo 4883/17.7T8GMR.G1.S1, de 13/04/2021, consta o seguinte sumário, que procura sintetizar as ideias fundamentais com base nas quais este STJ tem admitido poder ocorrer concorrência de responsabilidade com culpa e responsabilidade objectiva:

“I - Em matéria de responsabilidade pelos danos resultantes de acidente causados por veículos de circulação terrestre (art. 503.º, n.º 1, do CC), a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505.º do CC, nomeadamente ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado, exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo causador do acidente no círculo tutelado dos «riscos próprios do veículo», tendo em conta que esse comportamento interrompe o nexo de causalidade que, em relação ao dano, representa o risco do veículo.

II - O art. 505.º do CC admite, nomeadamente em face da salvaguarda do prescrito no art. 570.º do CC., o concurso da imputação do acidente ao lesado com o risco próprio do veículo, a fim de se repartirem quotas de responsabilidade, desde que: (i) o risco especial de circulação seja um risco agravado de funcionamento deficiente e/ou imprevidente da máquina ou das especificidades de perigo da circulação em concreto, que justifique e torne plausível, numa lógica equilibrada e racional do regime legal para tutela do lesado, especialmente quanto este apenas evidencia uma negligência de reduzida censurabilidade (culpa leve ou levíssima) e de diminuta relevância causal para a produção ou agravamento dos danos sofridos pelo próprio, uma comparticipação da parte lesante que responde independentemente de culpa; (ii) haja uma contribuição desse risco do veículo para a ocorrência do sinistro gerador dos danos, mobilizando-se um juízo de adequação e proporcionalidade atendendo à intensidade desses riscos próprios da circulação do veículo e à sua concreta relevância causal para o acidente.
III - Verificando-se um comportamento da vítima que, na conjugação da ilicitude decorrente da violação de regras estradais e da falta da diligência objectiva exigível na circulação automóvel, merecedor de juízo de censura a título de culpa, se revele a causa exclusiva do acidente/colisão e dos danos resultantes, por isso sendo-lhe unicamente imputável a produção do acidente, fica excluída a responsabilidade objectiva do condutor/veículo lesante, acolhida no art. 503.º, n.º 1, por aplicação do art. 505.º do CC.”


Estas premissas são explicitadas, no que releva para a transposição para o recurso em análise, nos seguintes termos:

(citação)

O mesmo art. 505º, 1, do CCiv. – que, sublinhe-se, não compreende necessariamente a ponderação da culpa do agente lesado, mas não a pode desconsiderar se se demonstra –, salvaguarda de todo o modo a aplicação do art. 570º, desde logo para os que casos em há culpa do lesado e/ou do terceiro em concurso com a culpa do lesante: «1 – Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.» Assim, se há culpa exclusiva do sujeito (condutor) lesado, nomeadamente por inobservância das regras do Código da Estrada aplicáveis e exigíveis na circulação do veículo, sem qualquer contribuição causalmente adequada dos riscos próprios do veículo, a exclusão de responsabilidade não precisa de recorrer à habilitação legal do art. 570º, 1; ao invés, se o acidente tiver simultaneamente como causa um facto culposo do condutor (que excede o risco pressuposto art. 503º, 1, do CCiv. e o abrange na ilicitude do art. 483º, 1, do CCiv.) e um facto culposo da vítima lesada, cabe ao tribunal recorrer ao art. 570º, 1, para aferir os termos da indemnização em face desse concurso de responsabilidades culposas[11].

Essa remissão (e sua explicação interpretativa) para o art. 570º, 1, do CCiv. foi usada como um dos motes para a consolidação de uma interpretação – que ganhou foros de actualista ou progressista, com crescente incorporação na jurisprudência do STJ – que, em superação da interpretação tradicional [12], legitima o concurso da imputação do acidente a facto (culposo ou não) do lesado e do risco inerente ao veículo automóvel: submete-se a repartição da responsabilidade por ambos os intervenientes e a sucessiva quantificação da indemnização de acordo com a ponderação prevista no art. 570.º do CC, sempre que o sinistro releve uma conexão causal com os riscos próprios do veículo, de modo que, portanto, o acidente não seja de imputar exclusivamente a factores relativos à esfera de conduta do lesado, de terceiro ou de situações de forma maior. Essa visão – relembre-se – foi inaugurada pelos estudos de ADRIANO VAZ SERRA, antes e depois do CCiv. de 1966, acentuando inclusivamente a diferenciação de culpas do lesado [13], aceite pioneiramente e a título principal pelo “leading case” exposto no Ac. do STJ de 4/10/2007 [14] e deveras estimulada pela legislação da União Europeia em sede de harmonização da disciplina do seguro de responsabilidade civil automóvel (em nome da protecção das vítimas de acidentes de viação) [15].

Um dos seus principais defensores, antes e depois do propugnado pelo aresto precursor de 2007, foi JOÃO CALVÃO DA SILVA [16], que destacou o – absolutamente determinante – valor internormativo dessa referência inicial do art. 505º para o art. 570º do CCiv.:

“A ressalva do art. 570º feita na 1.ª parte do art. 505.º é para aplicar à responsabilidade fixada no n.º 1 do art. 503.º; a responsabilidade fixada no n.º 1 do art. 503.º é a responsabilidade objectiva; logo, a concorrência entre a culpa do lesado (art. 570.º) e o risco da utilização do veículo (art. 503.º) resulta do disposto no art. 505.º, que só exclui a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável (leia-se, unicamente devido, com ou sem culpa), ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (leia-se, exclusivamente) de causa de força maior. E a parte final do art. 505.º, a só poder ser lida “quando resulte única e exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo” – caso em que os danos não são provenientes dos riscos próprios do veículo e seu condutor (art. 503.º, n.º 1, in fine), porquanto a força maior será causa externa, imprevisível e inevitável –, favorece e impõe reforçadamente a interpretação de a responsabilidade fixada no n.º 1 do art. 503.º apenas ser excluída quando o acidente for unicamente imputável ao próprio lesado ou a terceiro. Mais: não faz sentido interpretar a 1.ª parte do art. 505.º (“sem prejuízo do disposto no artigo 570.º”) como aplicável “havendo culpas de ambas as partes”, pois a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503º não assenta na culpa do detentor do veículo e o concurso da conduta culposa do detentor/condutor com um facto culposo do lesado está previsto directamente no art. 570.º. Pelo que, em face de um art. 505.º sem a ressalva inicial (“sem prejuízo do disposto no artigo 570.º”), o caso de concorrência entre facto ilícito do detentor/condutor do veículo e facto culposo do lesado não deixaria de ser regido seguramente pela disposição do art. 570.º”, “permitindo ao juiz sopesar suas gravidades [do risco próprio do veículo] e contributos causais e assim moldar o na e o quantum respondeatur”;

“Vale por isto por dizer que (…) a aplicação do art. 570.º decorre directamente do art. 505.º e não do facto de a situação da concorrência entre risco do veículo e culpa do lesado ser análoga ou paralela à prevista no art. 570.º. Numa palavra conclusiva, o art. 505.º deve ser lido assim:

Sem prejuízo do disposto no art. 570.º (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, “a fortiori”, sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”. [17]

Perante estas duas compreensões essenciais da articulação do art. 505º com o art. 570º do CCiv., seja qual for a melhor opção interpretativa, o certo é que o julgamento a fazer no caso dos autos permanecerá invariável. Com efeito, é pressuposto da última das construções – que afasta a pura e simples exoneração de responsabilidade objectiva do art. 505º – a existência de situações em que a própria circulação automóvel, mesmo com obediência e cumprimento das regras estradais, cria um risco especial de acidente (entroncamentos com estradas de intenso movimento, proximidade de curvas fechadas, manobras de entrada ou saída de parques ou propriedades de veículos de grandes dimensões, circulação destes veículos em estradas com largura inferior a 6 metros, etc.), uma vez que tais situações podem contribuir tanto ou mais para o acidente (e respectivos danos) que a falta de atenção ou o relativo excesso de velocidade ou outra infracção imputável ao lesado, nomeadamente se também condutor de veículo que intervém no acidente [18]. Mesmo assim, esse risco especial não pode ser apenas e só o que resulta da colocação nessas circunstâncias físicas, geográficas e mecânicas de um veículo como máquina em circulação. Terá que ser um risco agravado, para além da força cinética do veículo, traduzido em funcionamento deficiente e/ou imprevidente da máquina (por ex., a falta repentina dos travões, o rebentamento de um pneu) ou em especificidades de perigo da circulação/utilização em concreto (por ex., um piso escorregadio ou oleoso, o súbito aparecimento de um obstáculo na estrada) [19], que justifique e torne plausível – numa lógica equilibrada e racional do regime legal para tutela do lesado, especialmente quanto este apenas evidencia uma negligência de reduzida censurabilidade (culpa leve ou levíssima) [20] e de diminuta relevância da sua eficiência causal para a produção ou agravamento dos danos sofridos pelo próprio – uma comparticipação (ou concausalidade) da parte lesante, condutora/detentora do veículo, que responde independentemente de culpa [21]. E que haja uma contribuição comprovada e cabal desse risco causalmente adequado do veículo para a ocorrência do sinistro gerador dos danos a indemnizar, a fim de se apurar as respectivas quotas de responsabilidade. Ou seja, “desde que o acidente apresente ainda uma conexão significativa com os riscos próprios do veículo”, valorando-se, “em cada situação concreta, se a actividade geradora de risco foi, ainda que minimamente, causa adequada do dano”, através de factos do qual resulte um “efectivo aporte de risco adveniente da circulação daquela viatura na via pública”, sem que baste a alusão à “aptidão típica de um automóvel para a criação de riscos” [22]. Se assim é, cabe ao julgador “formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando (…) a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente”, e, por outro lado, “valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática”, que obvie a “um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente” [23].

(fim de citação)


A mesma linha de orientação tem sido seguida noutros processos judiciais resolvidos pelo STJ, com aplicação da orientação apenas a variar em função dos contornos dos casos concretos, ao que se deduz da interpretação dos acórdãos, nomeadamente dos seguintes:

- acórdão do STJ de 11/01/2018, relativo ao processo 5705/12.0TBMTS.P1.S1 http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/31205eca47a9ab858025821800513a4a?OpenDocument


- acórdão do STJ de 24/09/2020, relativo ao processo 9/14.7T8CPV.P2.S1 - http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f31d6a947da3eee8802586260000baca?OpenDocument


15.2. Olhando para os contornos do presente processo, e fazendo um juízo de adequação e proporcionalidade, à luz da interpretação actualista do regime conjugado do art.º 505.º e 570.º do CC, nos termos do qual o mesmo deve ser lido “como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional: ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se, à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto para o resultado danoso”, não conseguimos aqui encontrar os elementos característicos dos riscos próprio do veículo DT na vertente de circulação agravada ou de imputação ao peão de um comportamento sem culpa ou com culpa levíssima, pelo que voltamos aqui a insistir nos factos provados relativos às condições do local, tempo, modo e comportamento dos envolvidos no acidente, supra reproduzidos.

Também não encontramos no A. um elemento indicador da necessidade de protecção acrescida da vítima mais frágil que muitas vezes tem conduzido a reduzir a imputação do comportamento do peão como causa do acidente, porquanto era já adulto (o autor nasceu a ... de ...... de 1948) e nada fazia suspeitar do seu estado de saúde e psíquico para realizar a travessia com os necessários cuidados que esta impõe a qualquer peão (factos provados afirmam que era pessoa saudável), a que acresce o facto de ter beneficiado da protecção indemnizatória conferida pelo regime dos acidentes de trabalho, tendo já recebido a indemnização indicada nos factos provados.

Nas circunstâncias dos presentes autos, foi a conduta do A. que determinou exclusivamente o evento lesivo, sem prejuízo de os danos sofridos serem de gravidade superior por estar envolvido um veículo automóvel que o atropelou, não podendo o mesmo beneficiar do regime da responsabilidade objectiva.


Para usar a palavras do acórdão que temos estado a citar, com as necessárias adaptações, poder-se-ia dizer:

“O confronto causal do acidente é de molde a concluir que o acidente/atropelamento sendo de atribuir exclusivamente à actuação culposa da vítima/A, não permite que se pondere, para a sua eclosão, de um risco qualificado inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, uma vez que a potencialidade de perigo que, mesmo numa circunstância mais propícia a sinistro automóvel – atropelamento de peão que atravessa a estrada –, comporta a sua circulação, foi alheia ao sinistro. Naquelas circunstâncias de tempo e modo, não se pode considerar ter ocorrido a concorrência de um risco causalmente adequado, porque sem a gravidade suficiente, para promover o resultado danoso, sofrido assim por imputação culposa e exclusiva a cargo da vítima.”


15.3. Quer isto dizer que a situação dos autos é diversa das situações em que o STJ tem admitido que o risco de circulação automóvel por si só envolve a aplicação do regime da responsabilidade objectiva, como parece ter sucedido no acórdão do STJ de 24/09/2020, relativo ao processo 9/14.7T8CPV.P2.S1, por se entender que a protecção do peão que circulava na berma de uma estrada não era de molde a excluir a causalidade normativa da responsabilidade objectiva, e no qual consta a seguinte síntese:

“VII. Num embate de uma viatura automóvel, que circulava sem qualquer violação das regras estradais, num peão, acto contínuo a este ter passado a circular pela extremidade direita da faixa de rodagem sem previamente se assegurar que o podia fazer sem perigo, a responsabilidade pelo acidente deve ser imputada em 60% à culpa do peão e em 40% ao risco de circulação do veículo”.


III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, é negada a revista.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 19 de Outubro de 2021


Fátima Gomes (relatora)

Fernando Samões

Maria João Vaz Tomé