Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5705/12.0TBMTS.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
ATROPELAMENTO
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
CULPA EXCLUSIVA
PEÃO
CONDUTOR
SEGURADORA
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CULPA DO LESADO
INFRACÇÃO ESTRADAL
INFRAÇÃO ESTRADAL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 01/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE PELO RISCO / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
-Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandes, Cadernos de Direito Privado, nº 34, p. 3 e ss. e 17;
- Maria da Graça Trigo, Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Volume II, Universidade Católica Editora, Lisboa 2015, p. 485 e ss.;
- Brandão Proença, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, p. 814 e ss.;
- Calvão da Silva, RLJ, ano 134.º, p. 115 e ss. ; ano 137, p. 60 e 62;
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 503.º, Nº 1, 505.º E 570.º
Jurisprudência Nacional:

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 21-01-2006, PROCESSO N.º 3941/05;
- DE 31-01-2006, AZEVEDO RAMOS, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 04-10-2007, SANTOS BERNARDINO, IN RLJ 137º, P. 35 E SS., WWW.DGSI.PT;
- DE 18-04-2006, SEBASTIÃO PÓVOAS, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 06-11-2008, SALVADOR DA COSTA, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-11-2009, PROCESSO N.º 3660/04;
- DE 03-12-2009, BETTENCOURT FARIA, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 25-11-2010, PROCESSO N.º 12175/09;
- DE 17-05-2012, PROCESSO N.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 01-06-2017, PROCESSO N.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Jurisprudência Internacional:

ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):

- PROCESSO DE REENVIO PREJUDICIAL N.º C-409/09, DE 09-06-2011, IN HTTP://EUR-LEX.EUROPA.EU/LEXURISERV;
- PROCESSO DE REENVIO PREJUDICIAL N.º C-229/10, J.O. DE 17-7-10;
- PROCESSO DE REENVIO PREJUDICIAL N.º C-13/11, J.O. DE 26-3-11.
Sumário :
I - A questão da concorrência entre a culpa do lesado (arts. 505º e 570º do CC) - ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado - e a responsabilidade por riscos próprios do veículo (art. 503º, nº 1, do CC) constitui uma das mais complexas e controversas da jurisprudência civilista nacional dos últimos anos, circunstância para a qual contribui o facto de a mesma questão se apresentar de modos distintos em razão do tipo de situação litigiosa subjacente, ainda que com um núcleo essencialmente comum.

II - Em tese geral, perfilha-se o entendimento de que o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura.

III - Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa.

IV - Num caso como o dos autos em que ficou provado que o acidente foi causado pela conduta gravemente culposa do A. lesado – pessoa maior e imputável, que enquanto peão, atravessou uma via com diversas faixas de trânsito, não utilizando a passadeira, situada a 24,5 metros de distância, e provando-se que os semáforos se encontravam verdes para a via onde circulava o veículo automóvel que o atropelou, sem que tenha sido feita prova de qualquer infracção das regras do Código da Estrada por parte do seu condutor –, a indemnização deve ser totalmente excluída.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. AA instaurou a presente acção declarativa contra BB - Companhia de Seguros, S.A. (actualmente CC - Companhia de Seguros, S.A.), pedindo a condenação da R. a pagar-lhe:

a) A quantia de € 40.789,76, já liquidada até à presente data;

b) A quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, a título de danos materiais, patrimoniais e morais;

c) Tudo acrescido de juros à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Alega para o efeito que, no dia 31/12/2011, pelas 10.50 horas, na Estrada Exterior da Circunvalação, em Matosinhos, ocorreu um acidente no qual foram intervenientes o A. e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-...-SN, conduzido pelo proprietário DD, o qual havia transferido a responsabilidade civil emergente de acidente de viação para a R. através da apólice nº 0045….01. Acidente que imputa a culpa do condutor do veículo SN. Em consequência do embate, o A. sofreu várias lesões de que resultaram danos que discrimina. 

      A R. contestou, imputando ao A. a responsabilidade pela ocorrência do acidente e impugnando os danos por ele invocados.

Na pendência da acção, o A. veio ampliar o pedido. Neste contexto, à luz do sofrimento físico suportado, conducente à amputação do membro inferior esquerdo e a todo o desenvolvimento subsequente, considera justificar-se a valoração dos danos não patrimoniais, até à data, em mais € 90.000,00 do que o peticionado inicialmente.

Conclui, pedindo a condenação da R. no pagamento do montante de mais € 90.000,00, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a notificação do requerimento de ampliação do pedido até efectivo e integral pagamento.

Notificada, a R. respondeu, impugnando a factualidade referente aos danos invocados pelo A.

Por sentença de fls. 668 a acção foi julgada totalmente improcedente e, em consequência, foi a R. absolvida do pedido.

Inconformado, o A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de fls. 847 foi modificada a decisão relativa à matéria de facto e, a final, foi proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação e confirma-se a sentença recorrida.


2. Veio o A. interpor recurso, por via de revista excepcional, para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

1) Vem o presente recurso interposto do Douto Acórdão proferido pelo Meritíssimo Tribunal a quo que julgou a apelação totalmente improcedente, confirmando a sentença impugnada.

[excluem-se as conclusões da revista excepcional]

II - DO OBJECTO DO RECURSO:

13) Vem o presente recurso interposto do Douto Acórdão proferido pelo Meritíssimo Tribunal "a quo" que, negando provimento à apelação deduzida, manteve o decidido na 1ªinstância.

14) Salvo o devido respeito, o Recorrente não pode concordar com os fundamentos que sustentam o douto acórdão recorrido.

15) Sendo que o âmbito do presente recurso se cinge à apreciação de uma questão:

"Se, à luz do artigo 505° do CC, a simples culpa ou a mera contribuição do lesado para a produção do dano exclui a responsabilidade pelo risco contemplada no artigo 503° do CC."

COM EFEITO

16) Constitui facto incontornável nos presentes autos a presente acção se estriba na responsabilidade civil extracontratual por danos causados em acidente de viação.

17) Afigura-se igualmente indubitável que do mesmo resultaram elevados danos patrimoniais e não patrimoniais para o Recorrente.

18) Igualmente assente está o facto de que a Seguradora recorrida não assumiu a responsabilidade pelo sinistro, alegando a culpa exclusiva do peão, ora Recorrente.

19) Tendo visto o Recorrente a sua pretensão e versão dos factos ser-lhe negada fruto da factualidade apurada em sede de audiência de julgamento e ulteriormente confirmada pelo Tribunal da Relação.

20) A questão que importa apurar é saber se o facto de ter sido apurada a culpa exclusiva do peão, atento os factos dados como provados, fica excluída a responsabilidade objectiva ou pelo risco do condutor do veículo.

21) Salvo o devido respeito por diversa opinião, cremos que a resposta a conferir a tal questão, ante o concreto circunstancialismo dos autos, há que ser negativa.

22) A este propósito e por facilidade, permitimo-nos recordar o raciocínio expendido nos doutos Acórdãos-fundamento, e que tão bem espelham a tese por nós propugnada, e de onde se destacam os seguintes trechos:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007, proferido no âmbito do Processo n.°1710:

De acordo com a jurisprudência e a doutrina tradicionais, inspiradas no ensinamento de Antunes Varela, em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505° do CO - maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado - exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade: a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado.

Esta corrente doutrinal e jurisprudencial, conglobando na dimensão exoneratória do art. 505°, e tratando da mesma forma, situações as mais díspares - nas quais se englobam comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por medo ou reacção instintiva, factos das crianças e dos inimputáveis, comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, etc. - e uniformizando as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados, conduz, muitas vezes, a resultados chocantes.

Mostra-se também insensível ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário, do âmbito da responsabilidade pelo risco, e da expressa consagração da hipótese da concorrência entre o risco da actividade do agente e um facto culposo do lesado, que tem tido tradução em recentes diplomas legais, que exigem, como circunstância exoneratória, a culpa exclusiva do lesado, bem como à filosofia que dimana do regime estabelecido no Cód. do Trabalho para a infortunística laboral. O texto do art. 505° do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco do veículo.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/06/2012, proferido no âmbito do Processo n.°100/10.9YFLSB:

O direito comunitário, apresentando-se como garante de uma maior protecção dos lesados (alargando o âmbito da responsabilidade pelo risco veio em várias directivas – consagrar a protecção dos interesses dos sinistrados, vítimas de acidentes de viação, numa sociedade como a nossa em que o excesso de veículos (estacionados ou em circulação) criou desequilíbrios ambientais limitou o espaço pietonal e aumentou potencialmente a sinistralidade.

Embora a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos seja, em princípio, da competência dos Estados-membros impõe-se uma interpretação actualista das regras relativas à responsabilidade pelo risco, na consideração do binómio risco dos veículos/fragilidade dos demais utentes das vias públicas.

As disposições das directivas comunitárias em matéria de responsabilidade civil e seguro automóvel obrigatório nomeadamente da Directiva n.° 2005/14/CE de 11-05 devem estar presentes em sede de interpretação do direito nacional e nas soluções a dar na aplicação desse direito, razão pela qual não é compatível - com o direito comunitário - uma interpretação do art. 505.° do CC da qual resulte que a simples culpa ou mera contribuição do lesado para a consecução do dano exclua a responsabilidade pelo risco, prevista no art. 503.° do CC.

23) Salvo o devido respeito por diverso entendimento, é forçoso concluir que o Mmo. Tribunal a quo, arredou a possibilidade da aplicação a tese actualista - Concorrência entre risco e facto do lesado.

24) Acresce ainda que, não podemos deixar de salientar que dos factos adquiridos, por provados, para as decisões, evidenciam uma situação que atina com uma concorrência de culpas entre o condutor do veículo e o facto do lesado.

25) Assim, temos por demais evidente que no caso sub judice, a absolvição da R. Seguradora não encontra arrimo nos artigos 503°, 505° e 570° do CC.

26) São, pois, estas, entre outras, as normas violadas pela decisão aqui posta em crise.

27) O que se deixa alegado, para todos os devidos efeitos legais, nomeadamente para revogação, do douto acórdão recorrido, nos termos supra expostos.


A Recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

1. Pretende o recorrente a alteração do decidido por entender existir erro na interpretação dos artigos 503.°, 505.° e 570.°, do Código Civil.

2. Defende que se impõe nos presentes autos cumular a culpa do lesado com o risco do próprio veículo, consequentemente visa atribuir parte da responsabilidade pelo eclosão do acidente ao condutor do veículo seguro na recorrida.

3. Dando a sentença recorrida como provado que o embate ocorreu em plena faixa de rodagem por onde circulava o veículo automóvel seguro na recorrida, por ter o autor realizado a travessia da faixa de rodagem fora passadeira de peões sita a cerca de 24,5 metros antes do local do embate, logo verifica-se que a conduta do recorrente é violadora do disposto no artigo 101.° do Código da Estrada.

4. Tendo o acidente sido unicamente devido a atuação culposa exclusiva do lesado, a responsabilidade pelo risco deve considerar-se excluída nos termos do artigo 505.° do Código Civil.

5. Alguém que segue apeado, realiza a travessia da faixa de rodagem fora da passadeira de peões sita a cerca de 24.5 metros antes do local do embate, considerando o sentido nascente/poente sem atentar, como devia, nas mais elementares regras de segurança, assume uma posição de autocolocação em perigo, mediante a assunção dos riscos próprios dessa travessia objetivamente contravencional, temerária e com especial aptidão para a produção de acidentes

6. O conhecimento da exposição voluntária do peão ao mesmo perigo, conjugada com a possibilidade de ocorrer o facto danoso, verificada que esteja a adequação causal entre este pressuposto e o dano, exclui a responsabilidade objectiva do condutor do veículo seguro.

7. Em condições normais não era minimamente previsível ao condutor do veículo seguro que segue a sua marcha em obediência à sinalização semafórica existente ser confrontado com um peão em plena faixa de rodagem e a 24,5 metros da passadeira.

8. Foi por isso o comportamento do peão que foi a circunstância causal determinante do acidente, não tendo o risco próprio do veículo contribuído para a sua ocorrência.

9. «O artigo 505.° do Código Civil que se refere à exclusão da responsabilidade quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, coloca a questão no âmbito do nexo de causalidade e não em termos de culpa.

À luz do artigo 505° do Código Civil a intervenção causal do lesado no acidente exclui, em regra, a responsabilidade pelo risco, não havendo lugar a concorrência de culpa e responsabilidade objetiva pelo risco, com exceção dos casos em que a culpa do lesado é de tal forma leve que a pode impor.» (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de janeiro de 2014, processo n.° 215/13TBCVLC1, sendo relator MARIA INÊS MOURA).

10. «Se, na dinâmica do acidente, se apurar a culpa exclusiva do lesado, o artigo 505° do Código Civil exclui, de forma taxativa, a possibilidade de concorrência entre o risco e a culpa.» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de setembro de 2014, processo n.° 121/10.1TBPTLG1.P1, sendo relator GABRIEL CATARINO).

11. Mesmo para os defensores da tese da concorrência entre o risco do veículo e facto do lesado a responsabilidade objetiva do detentor do veículo é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

12. «Nos acidentes de viação, mais do que a violação frontal de uma regra de trânsito, importa essencialmente determinar o processo causal da verificação do acidente, ou seja, a conduta concreta de cada um dos intervenientes e a influência dela na sua produção» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de janeiro de 1991, BMJ n.° 403, pág. 477 apud Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de julho de 2008, processo 0834104, sendo relator FERNANDO BATISTA).

13. No caso em apreciação no presente recurso essa causalidade adequada entre a conduta temerária do recorrente e o acidente parece evidente, porquanto não tomou o peão as mínimas precauções antes de atravessar a faixa de rodagem, "realizou a travessia da faixa de rodagem fora da passadeira de peões sita a cerca de 24,5 metros" e sem atentar no facto de o semáforo se apresentar verde para os veículos que circulavam no sentido nascente/poente, de tal forma que o condutor do veículo seguro "apenas se apercebeu do Autor quando o mesmo está sensivelmente no meio da via e em movimento", pelo que lhe foi impossível evitar o acidente.

14. Impõe-se realçar que não estamos perante um dos casos em que o acidente é originado pela vítima, mas sem que se lhe possa assacar culpa (porque é inimputável em razão de anomalia psíquica ou da idade), pois nem a vítima era menor de idade nem inimputável por qualquer outra situação, mas deparamos com uma conduta de uma pessoa adulta, no pleno uso das suas faculdades mentais, que incorreu em violação grave de regras estradais, de forma a mostrar-se única causadora do acidente e suas nefastas consequências.

15. A situação descrita nestes autos é assim bem diferente daquelas que deram origem à prolação dos acórdãos fundamento do presente recurso de revista excecional que envolvem acidentes de viação com menores de 6 e de 9 anos de idade, diferente deverá ser também a solução adotada por verificar-se ter sido o comportamento culposo da vítima o único a dar causa ao seu atropelamento.

16. Pelo que não merece censura a sentença recorrida, improcedendo totalmente as conclusões apresentadas pelo recorrente.


3. Por acórdão da formação a que alude o nº 3, do art. 673º, do Código de Processo Civil, o recurso foi admitido como revista excepcional.

         Cumpre decidir.


4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção da Relação):

1.1. No dia 31.12.2011, pelas 10:50 horas, na Estrada Exterior da Circunvalação, Matosinhos, ocorreu um embate, no qual foram intervenientes o Autor, e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-...-SN, propriedade de DD e por ele conduzido.

1.2. Mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0045….01, DD havia transferido para a Ré a responsabilidade civil decorrente de danos causados a terceiros pelo veículo ...-...-SN.

1.3. No espaço circundante ao local do embate existe um cruzamento formado pela Estrada da Circunvalação (Interior e Exterior), do lado norte pela Rua Nova do Seixo e do lado sul pela Rua Monte dos Burgos, cujo trânsito é regulado por semáforos.

1.4. Antes do cruzamento, atento o sentido nascente/poente em que se faz o trânsito de veículos, a Estrada Exterior da Circunvalação forma uma recta de, no mínimo, 30 metros até aos semáforos, com inclinação descendente.

1.5. Antes dos semáforos a via abre-se em 3 faixas de rodagem, as duas da direita para o trânsito que pretende seguir em frente e a terceira para virar à esquerda.

1.6. Os semáforos funcionam da seguinte forma:

a) Considerando, em primeiro lugar, os semáforos que regulam o trânsito no sentido nascente/poente em que seguia o veículo ...-...-SN, quando estes emitem luz verde o que regula o trânsito da terceira faixa de rodagem, que apenas permite a mudança de direcção à esquerda, emite luz vermelha;

b) Nesta situação, os semáforos da Rua Nova do Seixo e da Rua de Monte dos Burgos também emitem luz vermelha;

c) De seguida, o semáforo das primeiras duas filas de trânsito, no sentido nascente/poente, passa a emitir luz vermelha, e o da faixa da esquerda passa a emitir luz verde, mantendo-se a luz vermelha nos da Rua Nova do Seixo e da Rua Monte dos Burgos;

d) Quando o semáforo da Estrada Exterior da Circunvalação passa a emitir luz vermelha para as três filas de trânsito, os semáforos da Rua Nova do Seixo e da Rua Monte dos Burgos passam a emitir luz verde.

1.7. A Estrada Exterior da Circunvalação, depois do cruzamento descrito em 1.3. e em direcção a poente, possui duas faixas de rodagem no sentido nascente/poente.

1.8. Cada uma das duas faixas de rodagem referidas em 1.7. possui a largura de 3,20 metros, num total de 6,40 metros.

1.9. O Autor iniciou a travessia da Estrada Exterior da Circunvalação, da direita para a esquerda, depois do cruzamento descrito em 1.3., atento o sentido nascente/poente.

1.10. Quando o Autor já tinha atravessado a primeira faixa de rodagem e pelo menos metade da segunda, é embatido pelo veículo ...-...-SN.

1.11. No momento em que ocorre o embate os semáforos da Rua Nova do Seixo e da Rua Monte dos Burgos emitiam luz vermelha, tendo passado a emitir luz verde segundos após o embate.

1.12. Entre a luz vermelha do semáforo das duas primeiras filas de trânsito da Estrada Exterior da Circunvalação, sentido nascente/poente, e a luz verde dos semáforos da Rua Nova do Seixo e da Rua Monte dos Burgos, existe a luz verde para os veículos da terceira fila de trânsito da Estrada Exterior da Circunvalação que muda de direcção à esquerda.

1.13. Os semáforos, no momento do embate, estavam a funcionar em pleno.

1.14. No local do embate, a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora, indicada por sinalização vertical.

1.15. Trata-se de uma via ladeada de casas, lojas, restaurantes, paragens de autocarros e com grande movimento de pessoas.

1.16. A visibilidade do condutor do veículo ...-...-SN para o local onde o Autor efectuou a travessia é de, pelo menos, 70 metros, já que se trata de uma recta com inclinação descendente e sem qualquer obstáculo.

1.17. O condutor do veículo conhecia bem o local onde se deu o sinistro.

1.18. O condutor do veículo conhecia o carreiro de terra existente no local onde muitas pessoas atravessam.

1.19. Como consequência do embate, o Autor foi conduzido ao Hospital de …, no Porto, onde lhe foi diagnosticado:

- Traumatismo craneo-encefálico;

- Traumatismo torácico; e,

- Fratura exposta dos ossos da perna esquerda.

1.20. Durante o internamento foi-lhe diagnosticado:

- Fratura exposta médiodiafisária da perna esquerda (grau II) com cianose e arrefecimento do pé. Edema marcado da perna. Provável síndrome de compartimento da perna;

- Ausência de lesões traumáticas dos órgãos maciços intra-abdominais. Sem líquido livre;

- Rx da grade costal: dos 2Q - 4Q arcos costais à esquerda. Discreto enfisema subcutâneo. Em pneumotórax inequívoco. Assimetria dos campos pulmonares, com opacidade global à esquerda. Discreto enfisema subcutâneo. Assimetria dos campos pulmonares, com opacidade global à esquerda;

- TAC cerebral: hemorragia subaracnoideia em sulcos corticais fronto-parietais esquerdos e frontais direitos com indicação por neurocirurgia para vigilância do estado de consciência e repetição de TC cerebral.

1.21. Realizou:

- Tratamento cirúrgico por ortopedia da fractura dos ossos da perna esquerda, com realização de fasciotomas; e,

- Tratamento de ferimentos da face.

1.22. Teve como intercorrências:

- Agitação psicomotora controlada apenas com perfusão de midazolam, com alteração do estado de consciência com desorientação no tempo e no espaço por períodos escassos de orientação, pouco colaborante; e,

- Infecção respiratória.

1.23. Repetiu TC cerebral em 01.01.2012 que mostrou hemorragia em reabsorção.

1.24. Em 11.01.2012 realizou Angio TAC torácico que revelou:

- Derrame pleural bilateral, mínimo à direita e de pequeno volume à esquerda;

- Ausência de pneumotórax, bilateralmente;

- Fractura do 2Q ao 6Q arcos costais anteriores à esquerda, algumas das quais cominutivas e com desalinhamento dos topos, com hematomas associados;

- Ateletasias subsegmentares basais à esquerda;

1.25. Em 11.04.2012 teve alta hospitalar.

1.26. Após a alta hospitalar continuou impossibilitado de se locomover pelos seus próprios meios.

1.27. Não conseguia manter-se de pé sem a ajuda de terceiros, pois não conseguia apoiar o pé esquerdo no chão.

1.28. O Autor realizou fisioterapia nos serviços clínicos da Ré.

1.29. Após a alta hospitalar, o Autor foi para casa da filha, único familiar que tinha em Portugal com condições para o acolher.

1.30. Esteve acamado, não conseguindo locomover-se pelos próprios meios, nem tratar de si próprio, pelo que necessitou da assistência de terceira pessoa, já que a filha trabalha fora de casa.

1.31. Após Agosto de 2012, o Autor recorreu à assistência de terceira pessoa, no que despendeu, durante 6 meses, 6,00€/hora X 4 horas diárias. 1.30.

1.32. O Autor despendeu, até à data da petição:

- em medicamentos - 49,76€;

- em fraldas para a incontinência (no mínimo duas por dia) -165,00€;

- em táxi para deslocações ao hospital - 885,00€; e,

- numa cama articulada que teve de comprar para maior mobilidade - 520,00€.

1.33. Com o embate, ficaram inutilizados os seguintes bens do Autor: - uns óculos - 200,00€;

- roupas - 100,00€; e,

- um telemóvel – 100,00 €.

1.34. Após a data da petição, o Autor teve despesas medicamentosas e gastos com fraldas.

1.35. O Autor é de nacionalidade ….

1.36. À data do embate encontrava-se em Portugal a passar as datas festivas do Natal e Ano Novo com a filha.

1.37. Saiu do … no dia 7 de Dezembro de 2011 e tinha viagem de regresso marcada para o dia 4 de Janeiro de 2012.

1.38. Como não pôde regressar, perdeu o valor da respectiva passagem.

1.39. No …, o Autor é proprietário de um terreno onde cultivava café, milho, cana-de-açúcar e verduras.

1.40. Dessa produção retirava a quantia média anual líquida de cerca de 2.000 reais, correspondentes a 800,00 €.

1.41. Não tem ninguém no … que cultive o seu terreno.

1.42. O Autor explorava um estabelecimento comercial de restauração, onde pagava de renda a quantia mensal de 400 reais, equivalente a 160,00€.

1.43. Apesar de ter o estabelecimento fechado desde a data em que veio para Portugal, e sendo que tencionava voltar no dia 4 de Janeiro de 2012, continua a pagar a renda, não tendo qualquer benefício.

1.44. Com a exploração do estabelecimento comercial, o Autor auferia uma quantia média mensal líquida não concretamente apurada mas não inferior a 160,00€.

1.45. O Autor recebia, a título de pensão de reforma, a quantia mensal líquida de 473,35 reais, o que corresponde a cerca de 189,00€.

1.46. O Autor nasceu a 03.02.1940.

1.47. O Autor, até ao embate, era um homem saudável que se bastava a si próprio.

1.48. O Autor sofreu por estar longe da sua casa e ter paradas as suas actividades profissionais.

1.49. A sua recuperação física foi lenta e dolorosa.

1.50. Foi submetido a intervenção cirúrgica em que lhe foi colocado material de osteossíntese.

1.51. O Autor, pelo menos após 17 de Agosto de 2012, foi assistido nos serviços clínicos da Ré.

1.52. Em virtude das lesões sofridas, ficará com sequelas irreversíveis.

1.53. As sequelas com que o Autor ficou causam-lhe desgosto e angústia, quer pela sensação de diminuição física, quer por, em virtude da sua idade e do défice funcional com que ficou, ver dificultada a possibilidade de voltar a desenvolver as actividades que mantinha, nomeadamente na exploração do estabelecimento comercial e na agricultura.

1.54. No dia, hora e local referidos em 1.1., o condutor do veículo ...-...-SN circulava na via da esquerda da Estrada Exterior da Circunvalação, no sentido nascente-poente. 

1.55. Circulava a uma velocidade não inferior a 40 Kms/hora.

1.56. O embate ocorre após o entroncamento formado pela Estrada Exterior da Circunvalação e a Rua Nova do Seixo, cerca de 4,5 metros após o início do separador central da Estrada da Circunvalação.

1.57. No momento em que ocorre o embate, o Autor havia percorrido pelo menos metade da via da esquerda da faixa de rodagem da Estrada Exterior da Circunvalação, atento o sentido nascente/poente.

1.58 O Autor realizou a travessia da faixa de rodagem fora da passadeira de peões sita cerca de 24,5 metros antes do local do embate, considerando o sentido nascente/poente, junto aos semáforos a que se alude em 1.6., a).

1.59. O condutor do veículo ...-...-SN apenas se apercebeu da presença do Autor quando o mesmo está sensivelmente no meio da via e em movimento.

1.60. Tendo o Autor fracturado o maxilar e a prótese que possuía, na sequência do embate, em 28.09.2012, colocou uma prótese com 14 dentes no maxilar inferior e superior.

1.61. Em 21.01.2013, foi detectada pseudartrose infectada de longa duração na perna esquerda, tendo sido dada autorização para amputação.

1.62. Na sequência do que se refere em 1.59., foi o Autor submetido a duas intervenções cirúrgicas, uma para tratamento de pseudartrose da diáfise da tíbia e outra para amputação da perna esquerda.

1.63. O Autor colocou uma prótese na perna esquerda em Abril de 2013.

1.64. Por diversas vezes até à amputação da perna, devido às dores que sofria e ao estado geral de irritabilidade, o Autor caiu da sua cama.

1.65. Pelo menos até regressar ao …, o Autor chorava frequentemente e tinha dificuldade em dormir.

1.66. O Autor sente desgosto pela perda da sua perna e por saber que está privado de um membro locomotor.

1.67. O Autor sente-se angustiado e preocupado com o futuro, demonstrando revolta interior.

1.68. Com o uso da prótese, o Autor sente-se desfigurado.

1.69. Para se locomover recorre à ajuda de canadianas.

1.70. O Autor sente vergonha, o que lhe traz sofrimento.

1.71. O Autor, antes da amputação da perna, tinha dores permanentes que nem a medicação retirava.

1.72. O Autor sente dores na perna.

1.73. Em Portugal, a sua vida resumia-se às idas à fisioterapia e a permanecer em casa, sentado ou deitado.

1.74. O Autor ficou com um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 32 pontos.

1.75. De acordo com o último exame clínico realizado, a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 24.09.2013, sendo de 363 dias o défice funcional temporário total e de 271 dias o défice funcional temporário parcial, com um quantum doloris de grau 6 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

1.77. O Autor regressou ao … no dia 11.11.2014.


Foram dados como não provados os seguintes factos:

2.1. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1.1., o peão, ora Autor, iniciou a travessia da Estrada Exterior da Circunvalação, tal como se refere em 1.9., depois de se certificar que do lado nascente não circulava qualquer veículo, já que os semáforos estavam vermelhos para as duas primeiras filas de trânsito e verde para a terceira, a que só permite a mudança de direcção à esquerda.

2.2. O veículo ...-...-SN passou os semáforos quando estes emitiam, há muito tempo, luz vermelha.

2.3. O veículo ...-...-SN circulava a uma velocidade superior a 50 e 90 km/h.

2.4. O Autor irá ser submetido a intervenção cirúrgica para lhe ser colocada uma prótese no ombro esquerdo, o que o impossibilita de se apoiar em canadianas.

2.5. O condutor do veículo ...-...-SN travou.


5. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas conclusões do mesmo. Assim, no presente recurso está em causa a seguinte questão:

- Concorrência entre a culpa do lesado e a responsabilidade por riscos próprios do veículo.


6. A questão objecto do presente recurso constitui uma das mais complexas e controversas da jurisprudência civilista nacional dos últimos anos, circunstância para a qual contribui o facto de a mesma questão se apresentar de modos distintos em razão do tipo de situação litigiosa subjacente, ainda que com um núcleo essencialmente comum. Na sua apreciação teremos em conta a distinção entre este núcleo comum e as especificidades das diversas situações litigiosas apreciadas pela jurisprudência deste Supremo Tribunal. Antecipadamente se adianta entender-se que a situação litigiosa dos autos não encontra paralelismo directo com algumas situações já julgadas, designadamente com aquelas em que o lesado é um peão inimputável, ou, em que o lesado, sendo ou não imputável, é um ciclista, ou em que se verificam outras particularidades susceptíveis de alterar o enquadramento jurídico do caso.

Importa, pois, começar por caracterizar a situação concreta dos autos com base nos seguintes factos provados relevantes:


1.1. No dia 31.12.2011, pelas 10:50 horas, na Estrada Exterior da Circunvalação, Matosinhos, ocorreu um embate, no qual foram intervenientes o Autor, e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-...-SN, propriedade de DD e por ele conduzido.

1.7. A Estrada Exterior da Circunvalação, depois do cruzamento descrito em 1.3. e em direcção a poente, possui duas faixas de rodagem no sentido nascente/poente.

1.8. Cada uma das duas faixas de rodagem referidas em 1.7. possui a largura de 3,20 metros, num total de 6,40 metros.

1.9. O Autor iniciou a travessia da Estrada Exterior da Circunvalação, da direita para a esquerda, depois do cruzamento descrito em 1.3., atento o sentido nascente/poente.

1.10. Quando o Autor já tinha atravessado a primeira faixa de rodagem e pelo menos metade da segunda, é embatido pelo veículo ...-...-SN.

1.11. No momento em que ocorre o embate os semáforos da Rua Nova do Seixo e da Rua Monte dos Burgos emitiam luz vermelha, tendo passado a emitir luz verde segundos após o embate.

1.12. Entre a luz vermelha do semáforo das duas primeiras filas de trânsito da Estrada Exterior da Circunvalação, sentido nascente/poente, e a luz verde dos semáforos da Rua Nova do Seixo e da Rua Monte dos Burgos, existe a luz verde para os veículos da terceira fila de trânsito da Estrada Exterior da Circunvalação que muda de direcção à esquerda.

1.13. Os semáforos, no momento do embate, estavam a funcionar em pleno.

1.14. No local do embate, a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora, indicada por sinalização vertical.

1.15. Trata-se de uma via ladeada de casas, lojas, restaurantes, paragens de autocarros e com grande movimento de pessoas.

1.16. A visibilidade do condutor do veículo ...-...-SN para o local onde o Autor efectuou a travessia é de, pelo menos, 70 metros, já que se trata de uma recta com inclinação descendente e sem qualquer obstáculo.

1.17.O condutor do veículo conhecia bem o local onde se deu o sinistro.

1.18.O condutor do veículo conhecia o carreiro de terra existente no local onde muitas pessoas atravessam.

1.46. O Autor nasceu a 03.02.1940.

1.54. No dia, hora e local referidos em 1.1., o condutor do veículo ...-...-SN circulava na via da esquerda da Estrada Exterior da Circunvalação, no sentido nascente-poente

1.55. Circulava a uma velocidade não inferior a 40 Kms/hora.

1.56. O embate ocorre após o entroncamento formado pela Estrada Exterior da Circunvalação e a Rua Nova do Seixo, cerca de 4,5 metros após o início do separador central da Estrada da Circunvalação.

1.57. No momento em que ocorre o embate, o Autor havia percorrido pelo menos metade da via da esquerda da faixa de rodagem da Estrada Exterior da Circunvalação, atento o sentido nascente/poente.

1.58 O Autor realizou a travessia da faixa de rodagem fora da passadeira de peões sita cerca de 24,5 metros antes do local do embate, considerando o sentido nascente/poente, junto aos semáforos a que se alude em 1.6., a).

1.59. O condutor do veículo ...-...-SN apenas se apercebeu da presença do Autor quando o mesmo está sensivelmente no meio da via e em movimento.


         Verifica-se, deste modo, que:

- O A. lesado é pessoa maior e imputável (uma vez que não foi alegada nem provada qualquer causa de inimputabilidade);

- Participou no acidente com a qualidade de peão;

- A sua conduta, ao atravessar uma via com diversas faixas de trânsito, não utilizando a passadeira, situada a 24,5 metros de distância, e provando-se que os semáforos se encontravam verdes para a via onde circulava o veículo ...-...-SN, constitui uma grave violação das normas do Código da Estrada (cfr. art. 101º);

- Não tendo sido feita prova de qualquer infracção de regras do Código da Estrada pelo condutor do veículo ...-...-SN, este não actuou de forma ilícita e culposa.


Conclui-se estarmos perante uma situação em que o acidente foi causado pela conduta gravemente culposa do A. lesado.

Por si só, esta conclusão não nos dispensa de equacionar os termos em que, presentemente, deve ser ponderada a problemática da concorrência entre os riscos próprios do veículo e a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado). Para o efeito, recorremos à explanação feita no recente acórdão deste Supremo Tribunal, de 01/06/2017 (proc. nº 1112/15.1T8VCT.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt), o qual, por sua vez, recupera o teor do acórdão, também deste Supremo Tribunal, de 17/05/2012 (proc. nº 1272/04.7TBGDM.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt), que aqui se transcreve:


“4. Segundo a tese que podemos qualificar de “clássica”, assumida pela doutrina e jurisprudência maioritárias, o art. 505º do CC coloca um mero problema de causalidade.  

Tendo como pano de fundo situações de responsabilidade objectiva inerente à direcção efectiva de veículos automóveis, nos termos do nº 1 do art. 503º do CC, resulta da letra daquele normativo que essa responsabilidade é afastada sempre que o acidente seja “imputável” (no sentido de “devido”) ao próprio lesado ou a terceiro ou a caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Conforme aquela tese, basta que seja quebrado o nexo de causalidade entre o sinistro e os riscos próprios do veículo por qualquer comportamento (ainda que não culposo) do lesado ou de terceiro, ou devido a caso de força maior, para que fique liminarmente afastada a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo eventualmente transferida para a Seguradora.  

Trata-se da solução que obtém uma impressiva adesão na jurisprudência deste Supremo, bastando referir, a título meramente exemplificativo e com prevalência de arestos mais recentes, os Acs. do STJ, de 21-1-06 (Revista nº 3941/05 - AFONSO CORREIA), de 31-1-06 (www.dgsi.pt - AZEVEDO RAMOS), de 18-4-06 (www.dgsi.pt - SEBASTIÃO PÓVOAS), de 6-11-08 (www.dgsi.pt - SALVADOR da COSTA) ou de 25-11-10 (Revista nº 12175/09 - GONÇALO SILVANO).  

A leitura destes e de outros arestos, assim como a análise da doutrina maioritária, revela a multiplicidade de argumentos que têm sido empregues na defesa desta solução.

Para além do relevo atribuído ao elemento literal, assume particular significado a ponderação da necessidade de não agravar excessivamente a posição do proprietário ou do detentor do veículo em situações em que este não foi mais do que um elemento acidental, mas sem efectiva contribuição para a ocorrência do sinistro causado por factores estranhos ao seu funcionamento.


5. Esta solução tem sido posta em crise por uma parte da doutrina mais recente.

Com argumentação diversa, passou a defender-se uma solução alternativa que se traduz na admissibilidade daquela concorrência, desde que o sinistro ainda tenha uma conexão relevante com os riscos próprios do veículo, isto é, desde que o acidente não seja de imputar exclusivamente a factores externos integrados na órbita do lesado, de terceiro ou de casos de força maior estranhos ao veículo.

Entre os defensores desta tese destacam-se BRANDÃO PROENÇA, em A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, págs. 814 e segs.,[2] e CALVÃO da SILVA, RLJ 134º, págs. 115 e segs.  

Para o efeito, defendem a extracção do art. 505º do CC de um sentido que o torne compatível com o art. 570º, com o argumento de que só assim fará sentido a alusão que naquele preceito é feita ao disposto no nº 1 do art. 503º, norma que regula inequivocamente uma situação de responsabilidade objectiva do proprietário do veículo.  

É também feito apelo à necessidade de ajustamento das soluções legais às circunstâncias actuais, designadamente ao risco rodoviário, bem diverso daquele que era perceptível aquando da aprovação do Código Civil, de modo a implicar a concessão de maior protecção aos lesados que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade, como ocorre com os peões ou com os ciclistas.  

Ajustamento que também decorreria do facto de se ter generalizado o sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que vem assumindo cada vez mais uma função ressarcitiva de danos, com subvalorização de outros aspectos em que inclui a contribuição do lesado ou de terceiros para a sua ocorrência.  

Pressupõe-se ainda que o direito interno deve ser interpretado por forma a não colocar em causa o regime que dimana das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel, considerando que estas implicam uma efectiva tutela dos interessados em situação mais desprotegida, o que colidiria com uma interpretação do regime da responsabilidade civil que desconsidere os riscos próprios do veículo que também tenham interferido na ocorrência do sinistro.  

Atalhando caminho, CALVÃO da SILVA conclui, a este respeito, que “a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro …” (RLJ 134º/115). E ainda que em comentário posterior ao Ac. do STJ, de 4-10-07, tenha tecido considerações que o levam a admitir a responsabilização do detentor do veículo noutras situações, “na base de uma apreciação individual no caso específico pelo julgador” (RLJ 137º/60), assevera que “só havendo prova certa e segura do facto da vítima ou de terceiro (ou de força maior) como causa única e exclusiva do acidente é que não haverá lugar a concurso do risco próprio do veículo como facto do lesado” (pág. 62).  

Ao nível jurisprudencial, esta foi a solução admitida no Ac. do STJ, de 4-10-07 (www.dgsi.pt - SANTOS BERNARDINO), publicado e comentado na RLJ 137º, págs. 35 e segs., no qual se assumiu, de forma precursora em termos jurisprudenciais, que “o texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro …”.   

Entendimento também expresso, ainda que de modo condicionado, nos Acs. do STJ, de 3-12-09 (www.dgsi.pt - BETTENCOURT FARIA),[3] ou de 12-11-09 (Revista nº 3660/04 - CARDOSO ALBUQUERQUE).

[…]


6. Mas para além das referidas teses, ainda se encontra espaço para a discussão de uma terceira via no sentido da responsabilização da seguradora independentemente da exclusividade da imputação do acidente ao lesado.  

Sendo colocada de lege ferenda por BRANDÃO PROENÇA, o maior relevo da sua discussão advém do facto de ter servido de mote à apresentação ao Tribunal de Justiça de processos de reenvio prejudicial cujo resultado poderia interferir na resposta.  

Aquela solução pressupunha a verificação de uma situação de desconformidade entre o direito nacional regulador da responsabilidade civil automóvel e o regime que dimana das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel.  

A correspondente interrogação foi formulada ao Tribunal de Justiça por alguns Tribunais nacionais, dando origem aos processos de reenvio prejudicial “C-409/09”, “C-229/10” (J.O. de 17-7-10) e “C-13/11” (J.O. de 26-3-11), nos quais se inquiria se a necessidade de tutelar as vítimas de acidentes de viação prosseguida pelas referidas Directivas Europeias deveria levar à desconsideração da sua contribuição para os danos, à semelhança do que, relativamente a passageiros transportados em veículos, já fora declarado nos acórdãos “Candolin” e “Farrell”.   

A resposta que foi dada resolve liminarmente a questão.

O Tribunal de Justiça, no âmbito do “Proc. C-409/09”, proferiu o Acórdão datado de 9-6-11, no qual concluiu que as Directivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel “devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano” ().http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ

Para chegar a uma tal conclusão asseverou que “a legislação nacional (portuguesa) aplicável no âmbito do litígio no processo principal só afasta a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente, num contexto como o do presente processo (morte de um menor de tenra idade que tripulava uma bicicleta e que circulava em contramão, tendo embatido num veículo automóvel sem qualquer culpa do respectivo condutor), quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima”.  

Ou seja, partindo do pressuposto de que o direito nacional contém uma solução que admite a concorrência entre a culpa do lesado e o risco do condutor (solução que, como se disse, apenas é sustentada ao abrigo da segunda tese anteriormente enunciada), o Tribunal de Justiça afirmou ser compatível com o Direito Comunitário uma solução em que a responsabilidade da seguradora seja excluída quando o sinistro seja exclusivamente imputável à vítima (…).

Na verdade, embora o art. 1º-A da 4ª Directiva sobre seguro de responsabilidade civil automóvel imponha a adopção de legislação que, no âmbito do seguro obrigatório, assegure “a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor”, acrescenta que a regulação do direito de indemnização é feita “de acordo com o direito civil nacional ”.

Por outro lado, não foi reflectida na redacção final da Directiva Europeia uma proposta mais arrojada que existia no sentido da defesa dos indivíduos mais vulneráveis, como os peões e ciclistas, que implicava a cobertura do seguro obrigatório dos respectivos danos não patrimoniais suportados por esses lesados independentemente da responsabilidade do condutor do veículo.

A propósito do desfecho do referido reenvio prejudicial, ALESSANDRA SILVEIRA e SOPHIE PEREZ FERNANDES, nos Cadernos de Direito Privado, nº 34, págs. 3 e segs., em artigo intitulado “O seguro automóvel. Considerações sobre a posição do TJUE em sede de reenvio prejudicial”, referem que “estávamos à espera de uma resposta mais contundente do Tribunal de Justiça da União Europeia que censurasse, sem recuos e nitidamente, a hipótese de exclusão de indemnização em casos semelhantes ao do processo principal, a fim de esclarecer as dúvidas do juiz nacional que lhe pediu ajuda e proteger peões e ciclistas vítimas de acidentes, sobretudo menores de tenra idade, sem discernimento suficiente para a percepção do risco” (pág. 17).  

Esta terceira via pressupunha, pois, a existência de normas da União Europeia que directamente se sobrepusessem ao direito interno (emergente de Regulamento ou impostas por efeito directo de Directivas) ou que determinassem uma interpretação conforme com solução ditada pelo direito comunitário, o que não ocorre com a questão sub judice.  

Por conseguinte, posto que de lege ferenda se possa justificar uma solução que amplie a protecção conferida aos lesados em situação de maior vulnerabilidade (à semelhança do que já se operou noutros ordenamentos jurídicos), o certo é que, no plano do direito constituído, não se mostra viável uma solução que admita a concorrência entre a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo (e respectiva seguradora) e a contribuição exclusiva do lesado para a ocorrência do dano.” [negritos e sublinhado nossos]


      Em síntese, e continuando a acompanhar as palavras do acórdão deste Supremo Tribunal, de 01/06/2017:


No nosso entendimento, o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional : ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto, para o resultado danoso.

Esta conclusão é, em última análise, imposta pelo princípio fundamental da adequação e da proporcionalidade – que naturalmente tenderá a inviabilizar a total e sistemática desresponsabilização do detentor do veículo causador do acidente, nos casos em que foi muito intensa a contribuição para o resultado danoso de riscos agravados da circulação do veículo e diminuta a relevância da falta imputável ao lesado, cometida com culpa leve ou com escassa relevância causal para a produção ou agravamento das lesões por ele próprio sofridas.

E, por outro lado, afigura-se que esta posição é a que melhor se adequa à jurisprudência definida pelo TJUE, na sequência dos pedidos de reenvio atrás referidos, ao permitir que o regime de Direito interno em vigor suportasse o confronto com as normas e princípios de Direito Comunitário, por entender que a legislação em vigor não tem por efeito, no caso de a vítima ter contribuído para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito.

É, pois, este juízo de adequação e proporcionalidade que os Tribunais devem formular, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável a comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um relevante risco da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente…”.

(negritos nossos)


7. Assim, procurando aplicar as orientações supra expostas ao caso sub judice, verifica-se que, tendo sido provado que o acidente foi causado pela conduta gravemente culposa do A. lesado – pessoa maior e imputável, com a qualidade de peão –, o juízo de adequação e proporcionalidade leva a excluir a responsabilidade do detentor efectivo do veículo pelos riscos próprios do mesmo; e portanto, a excluir a responsabilidade da R. seguradora para quem tal responsabilidade foi transferida.

Sem prejuízo de, de iure constituendo, ser admissível que o regime do art. 505º do Código Civil venha a ser alterado, no sentido de se atribuir relevância à causação dos danos em lugar da causação do acidente, assim como sem prejuízo de poderem vir a ser introduzidas no nosso ordenamento jurídico soluções que protejam de forma plena e automática as vítimas estradais tidas como especialmente vulneráveis em função da idade e da situação de incapacidade (cfr., a este respeito, a síntese da relatora do presente acórdão em “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação”, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 485 e segs.), entende-se que, no plano do direito constituído, que este Tribunal deve aplicar:

(i) Se impõe, em tese geral, a admissibilidade da concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) pelas razões expostas no ponto anterior do presente acórdão;

(ii) Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado;

(iii) Implica sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa;

(iv) Num caso como o dos autos em que ficou provado que o acidente foi causado pela conduta gravemente culposa do A. lesado, pessoa maior e imputável, a indemnização deve ser totalmente excluída.


8. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 11 de Janeiro de 2018


Maria da Graça Trigo (Relator)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho