Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5130/20.0T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
TRATOR AGRÍCOLA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
SEGURO OBRIGATÓRIO
CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL
VEÍCULO AUTOMÓVEL
RISCO
LICENÇA DE CONDUÇÃO
MEIO DE TRANSPORTE
CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 03/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Constitui um acidente de viação todo o acidente envolvendo veículos terrestres com capacidade de circulação autónoma, no que se inclui tractores agrícolas ou industriais, desde que não sejam utilizados em funções exclusivamente agrícolas ou industriais e, no momento do acidente, se encontrem a desempenhar a função de locomoção – transporte.

II. O Decreto-lei nº 291/2007 de 21 de Agosto (que transpôs para a ordem jurídica interna as Directivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho e a Directiva nº 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio), estipula, no seu artº 4, nº1, a obrigatoriedade de celebração de um seguro de responsabilidade civil que cubra os riscos próprios da circulação de veículos automóveis, para os quais seja exigida uma licença de condução.

III. O conceito de veículo em circulação, a que alude o artº 3, nº1 da Directiva 72/166/CEE, de 24.04, foi objecto de interpretação pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em jurisprudência obrigatória para os Tribunais nacionais (ut artºs 2, 4, nº3, 5, nº1 e 19, nº3, do TUE), no sentido de abranger “qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo (Acórdão VNUCK), excluindo deste conceito “uma situação em que um tractor agrícola esteve envolvido num acidente quando a sua função principal, no momento em que este acidente ocorreu, não consistia em servir de meio de transporte, mas em gerar, como máquina de trabalho, a força motriz necessária para accionar a bomba de um pulverizador de herbicida" (Acórdão Rodrigues de Andrade).

IV. A Directiva nº 2009/103/CE, de 16 de Setembro de 2009, manteve a definição de veículo constante daquela Directiva (“qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser accionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via férrea, bem como os reboques, ainda que não atrelados” – artº 1º, nº1), e a obrigatoriedade de constituição de um seguro de responsabilidade civil que cobrisse os riscos decorrentes da circulação de veículos.

V. Um tractor agrícola, por ser necessária a obtenção de uma licença habilitadora da sua condução, integra o conceito de veículo terrestre a motor (de propulsão a gasóleo, com dois eixos e quatro rodas), para efeitos do disposto no artº 4 nº1 do D.L. 291/2007 e 1º nº1 da Directiva 2009/103/CE (obrigação de segurar).

VI. Porém, devem considerar-se excluídos do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, os eventos danosos que decorram dos riscos próprios da laboração de uma alfaia agrícola a ele acoplada, por via do disposto no nº4 do artº 4 do D.L. 291/2007 e 3º § 1 da Directiva 2009/103/CE.

VII. Resultando o evento danoso do funcionamento de uma fresa acoplada a um tractor agrícola, que atingiu a vítima quando esta se encontrava entre a roda traseira desse tractor e a fresa, consistindo a função do tractor, nesse momento, em gerar, através do seu motor, a força motriz necessária à laboração desta alfaia agrícola para semear um campo de milho, deve considerar-se excluído do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, por não se integrar nos riscos próprios do veículo, mas antes nos riscos próprios de laboração agrícola.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO

AA e BB, intentaram a presente ação contra Seguradoras Unidas, S.A., peticionando a sua condenação a pagar aos autores a quanta de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos por si e pela sua falecida mãe, CC, quantia essa acrescida de juros à taxa legal, contados desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento, bem como no pagamento das custas e encargos com o processo.

Para fundamentarem o seu pedido alegam que o falecimento de sua mãe ocorreu na sequência de um acidente com um tractor munido de uma fresa mecânica que, por culpa do condutor deste tractor, foi posta em funcionamento quando a vítima se encontrava entre a roda traseira do tractor e a fresa, causando-lhe a morte.


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Contestou a R., por excepção, alegando que o acidente em causa constitui acidente de laboração, por essa via excluído, bem como os respectivos danos, das garantias do contrato de seguro titulado pela apólice nº ...37 e ainda a preterição de litisconsórcio necessário no que se reporta à indemnização pelo dano morte.

Impugnou, ainda, os factos relativos ao acidente, cuja culpa imputa à vítima, bem como os danos invocados.

Foi proferido despacho saneador, identificando-se o objeto do litígio, enunciando-se os temas da prova e admitindo-se a prova apresentada pelas partes, após o que teve lugar a audiência final, sendo proferida sentença na qual o Juiz a quo, considerando incluir-se este acidente nos riscos decorrentes da circulação do veículo, decidiu

1- Condeno a Ré Seguradoras Unidas, S.A. a pagar à autora AA, a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a títulos de danos não patrimoniais, quantias essas acrescidas dos juros legais contados desde a presente data e até efetivo e integral pagamento.

2 - Condeno a Ré Seguradoras Unidas, S.A. a pagar ao autor BB, a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a títulos de danos não patrimoniais, quantias essas acrescidas dos juros legais contados desde a presente data e até efetivo e integral pagamento.

3- Condeno a Ré Seguradoras Unidas, S.A. a pagar aos autores AA e BB a quantia de 20.000,00 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima CC e a quantia de € 70.000 (setenta mil euros) pela perda do direito à vida da vítima CC, quantias essas acrescidas dos juros legais contados desde a presente data e até efetivo e integral pagamento.

4 - Custas da ação a cargo dos autores e Ré, na proporção do respetivo decaimento.”


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Não conformada com esta decisão, a Ré SEGURADORAS UNIDAS, S.A., interpôs recurso de apelação, vindo a Relação de Coimbra, em acórdão, a “julgar procedente o recurso interposto pela R. Seguradora, revogando a decisão recorrida e absolvendo a apelante do pedido formulado”.

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Por sua vez inconformados, vêm os Autores AA E BB interpor   Recurso   de   Revista   para   o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando alegações que rematam com as seguintes


CONCLUSÕES

1. Não existem dúvidas de que o acidente dos autos foi causado por um veículo para efeitos da Directiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro, e para efeitos do RSORCA (Regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, sucessivamente alterado), sendo irrelevante de qual das suas partes componentes proveio o dano;

2. Constituindo assim um veículo para o qual existe obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, nos termos impostos pelo DL nº 291/2007, de 21/08 (RSORCA), e conforme resulta designadamente do disposto no art. 4º, nº 1 daquele diploma legal (cfr. ponto 1.25 dos Factos Provados);

3. O acidente descrito nos autos constitui um acidente de circulação, que se integra no âmbito da designada “circulação de veículos” e que desencadeia a responsabilidade prevista nos arts. 3º, parágrafo 1º da Directiva, 4º, nº 1 e 11º, nº 1 do RSORCA (já que a vítima era uma passageira que dele descarregava bens acabados de transportar), e não um acidente de laboração resultante da utilização de um veículo em funções meramente agrícolas ou industriais e que exclui aquela responsabilidade nos termos do art. 4º, nº 4 do RSORCA (o referido tractor ainda não tinha iniciado a pretendida operação de sementeira, pois a vítima nem sequer teve tempo para retirar de cima da fresa a referida saca de milho, não existindo assim um acidente de laboração);

4. Perante os factos dos autos, é imperioso concluir que o acidente ocorre no contexto da utilização principal do veículo na sua função habitual de meio de transporte ou de circulação (a passageira tinha acabado de descer do tractor e preparava-se para descarregar a saca de milho transportada na fresa quando foi colhida por esta), qualificando-se o mesmo como acidente de circulação e convocando-se a responsabilidade da seguradora Ré/Recorrida;

5. Não se podendo olvidar também que o tractor desempenhava igualmente a função de transporte da própria fresa, que lhe estava acoplada, uma vez que esta não é suscetível de circular de forma autónoma e independente (constituindo para o efeito uma peça integrante do próprio tractor);

6. Se dúvidas houvesse, bastaria recordar a factualidade (abundante) dada como provada nos pontos 1.1, 1.2, 1.3, 1.4, 1.5, 1.6, 1.9, 1.10, 1.11, 1.12, 1.13, 1.23, 1.24, 1.25, 1.26, 1.27, 1.28, 1.29, 1.35 da Fundamentação de Facto, toda ela demonstrativa de que no momento do acidente o veículo em causa estava sobretudo ou também a desempenhar a sua função de meio de transporte (a passageira tinha acabado de descer do tractor e estava a descarregar do tractor/fresa a saca de milho);

7. Estamos, pois, perante um dano sofrido numa situação que é uma "etapa natural e necessária" da utilização do veículo na sua função de meio de transporte - numa palavra, para a circulação;

8. Pois conforme afirmado repetidamente pelo TJUE, a circulação compreende toda a utilização do veículo na sua função normal como meio de transporte. Por sua vez, a função de meio de transporte do veículo abrange o momento em que este está parado e mesmo com o motor desligado. Esta função abrange situações e condutas instrumentais face ao momento em que o veículo se encontra efectivamente em movimento, e que configuram "etapas naturais e necessárias" da sua utilização como meio de transporte. Sendo que o próprio Tribunal expressamente alarga o conceito de circulação aos casos de carga e descarga de bens a transportar ou que acabam de ser transportados no veículo (ac. Baltic Insurance Company, n.º 36);

9) Estas conclusões não se alteram pelo facto de a parte do veículo causadora do dano ser a alfaia agrícola instalada no seu reboque. Como o TJUE afirmou no processo Línea Directa Aseguradora e reafirmou no processo Bueno Ruiz, não há que apurar qual das peças do veículo provocou o acidente ou as funções que esta peça desempenha. O princípio da protecção das vítimas implica que o acidente esteja coberto em qualquer caso;

10) Ou quanto muito deve-se concluir que o acidente ocorre no contexto de duas utilizações concorrentes do veículo, ou seja, na sua função habitual de meio de transporte ou de circulação e na sua função de instrumento de laboração;

11) No plano dos factos, não há porque concluir que uma destas utilizações é a utilização principal; as duas concorrem no acidente, uma por parte da vítima e outra pela parte do lesante. Como tal, mostra-se arbitrário concluir que a utilização principal é a que corresponde à actividade de laboração, e, mobilizando a jurisprudência Rodrigues de Andrade, recusar a cobertura;

12. E no plano do Direito, perante duas utilizações concorrentes do veículo para funções diversas, ao tempo do acidente, o princípio da protecção das vítimas consagrado no direito europeu determina que se dê prevalência à função de meio de transporte ou de circulação, ou seja, à qualificação do acidente como acidente de circulação;

13. Tal entendimento está de acordo com a última evolução da legislação europeia e jurisprudência do TJUE posterior a 2017, designadamente da proferida nos acórdãos Baltic Insurance Company, Línea Directa Aseguradora, Bueno Ruiz, entre outros;

14. A jurisprudência Rodrigues de Andrade tão-pouco contraria estas conclusões. No processo Rodrigues de Andrade, o veículo encontrava-se imobilizado e a funcionar como máquina de laboração agrícola, tendo atingido terceiros que tão-pouco utilizavam o veículo como meio de transporte. Não havia aí dúvidas de que a utilização absolutamente principal do veículo, senão mesmo sua utilização exclusiva, era como instrumento de laboração;

15. Embora a Directiva 2021/2118, que altera a Directiva vigente em matéria de seguro de responsabilidade civil automóvel, não tenha ainda sido transposta para o ordenamento interno, cabe dizer que os seus termos amparam as considerações precedentes, tendo aditado ao art. 1.º da Directiva o novo ponto 1-A;

16. Ademais, deve frisar-se que o art. 4.º, n.º 4, do RSORCA, que retira certas utilizações dos veículos do perímetro da cobertura obrigatória, apenas vale quando "os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais";

17. Sendo que a norma vai mais longe do que a jurisprudência Rodrigues de Andrade na protecção das vítimas, já que apenas prevê a exclusão de veículos utilizados em funções exclusivamente - meramente - laborais (agrícolas ou industriais), e não principalmente laborais. Esta protecção reforçada que o ordenamento nacional confere às vítimas é perfeitamente legítima, já que a Directiva não pretende estabelecer um patamar máximo de protecção das vítimas de todos acidentes que envolvam veículos;

18. Ou seja, o Direito positivo português prevê legitimamente uma protecção reforçada das vítimas a este respeito, prevendo que o acidente apenas não qualifica como acidente de circulação quando os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais (art. 4.º, n.º 4, RSORCA);

19. Para além de que, tal entendimento é igualmente o único que respeita e salvaguarda a vertente social do seguro obrigatório automóvel e que evita criar graves distorções entre lesados, em garantia do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no art. 13º, nº 1 da CRP;

20) Há pois que concluir que o acidente não foi causado por um veículo utilizado a título principal em funções de laboração, e muito menos utilizado meramente em funções agrícolas, mas sim por um veículo utilizado a título principal em funções de meio de transporte; pelo que o acidente ocorrido qualifica como acidente de circulação, coberto peloseguro automóvel;

21. Acresce que, do doc. 5 da contestação, pág. 3, da Ré/Recorrida, denominado de Condições Particulares da Apólice ...37, Seguro Automóvel, resulta além do mais que a cobertura de Responsabilidade Civil Obrigatória do Contrato produzirá igualmente efeitos em relação à unidade (reboque) que no momento do sinistro se encontre atrelada ao veículo, querendo isto significar que as partes contratantes do seguro em causa quiseram e sabiam desde a formação e início de vigência desse contrato de seguro que a cobertura de Responsabilidade Civil Obrigatória produziria igualmente efeitos em relação à unidade que no momento do sinistro se encontrasse atrelada ao veículo seguro, incluindo qualquer alfaia (fresa ou outra) que a ele estivesse atrelada;

22. Ou seja, desde o início daquele contrato de seguro que o proprietário do veículo/tomador do seguro ficou consciente que tal cobertura abrangia as unidades rebocadas/atreladas/acopladas ao tractor, protegendo assim os riscos que pudessem advir da utilização dessas unidades, e designadamente da fresa, o que sempre o fez sentir seguro em relação a si próprio e a terceiros, e por isso nunca se preocupou em contratar qualquer outro tipo de seguro que garantisse os mesmos riscos;

23. Sendo que a Ré/Recorrida faz agora autêntica tábua rasa dessa Condição Particular, renegando o acordado com o tomador de seguro, o que muito se lamenta e configura até uma actuação temerária senão mesmo muito próxima da má fé;

24. O tribunal recorrido foca-se exclusivamente no elemento do accionamento da alfaia agrícola/fresa, esquecendo erradamente a utilização do veículo na sua função habitual de meio de transporte;

25. Ao ter decidido que o acidente dos autos constitui um típico acidente de laboração de máquina agrícola, excluído da cobertura do seguro contratado, e consequentemente absolvido a Ré/Recorrida do pedido, o acórdão recorrido realizou uma incorrecta apreciação/interpretação dos factos da causa, tendo feito uma má aplicação do Direito com a violação das normas legais e constitucionais aplicáveis;

26. Designadamente, foram violadas as normas dos arts. art. 3º, 1º parágrafo da Directiva 2009/103/CE, art. 4º, nº 1 do RSORCA, art. 4º, nº 4 do RSORCA, art. 11º, nº 1 do RSORCA, e art. 13º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa;

27. Realizando também o atropelo do princípio da protecção das vítimas consagrado no direito e jurisprudência europeus;

28. E ignorando de igual modo a jurisprudência mais recente do TJUE, designadamente da proferida nos acórdãos Balde Insurance Company, Línea Directa Aseguradora, Bueno Ruiz, entre outros, sendo que a justiça não é nem pode ser estática, devendo acompanhar a evolução da vida em sociedade e dar uma protecção cada vez mais alargada às vítimas inocentes ou indefesas;

29) Em razão do que, deve o acórdão recorrido ser revogado, devendo ser substituído por outro que considere o acidente dos autos como acidente de circulação, e como tal incluído no âmbito da cobertura do seguro automóvel de responsabilidade civil contratado, e por isso condenando a Ré/Recorrida no pagamento aos Autores/Recorrentes do montante fixado pela douta sentença da primeira instância, repristinando-se assim esta douta decisão, realizando-se assim plenamente o Direito e fazendo-se inteira e merecida justiça no caso concreto.


TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEL QUE V. EXAS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVE CONCEDER-SE INTEIRO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE O ACÓRDÃO RECORRIDO E REPRISTINANDO-SE A DOUTA DECISÃO DA PRIMEIRA INSTÂNCIA, CONDENANDO-SE A RÉ/RECORRIDA NO PAGAMENTO DA
INDEMNIZAÇÃO ALI FIXADA AOS AUTORES/RECORRENTES, TUDO COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS E EFEITOS LEGAIS.

ASSIM DE FAZENDO A MELHOR E COSTUMADA JUSTIÇA.


A Ré seguradora apresentou contra-alegações, pugnado pela improcedência do recurso.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO


Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir consistem em saber:

§ Se o acidente descrito nos autos se integra no âmbito da “circulação de veículos” [e que desencadeia a responsabilidade prevista nos arts. 3º, parágrafo 1º da Directiva (Diretiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009) e 4º, nº 1, do RSORCA (Regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, sucessivamente alterado)], ou, pelo contrário, se constitui um “acidente de laboração”, não abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel;

§ Se a Ré/Recorrida fez “tábua rasa” da Condição Particular constante da pág. 3 do doc. 5 da contestação da Ré/Recorrida, denominado Condições Particulares da Apólice ...37, Seguro Automóvel, aludida no ponto 1.13 dos factos provados, sob a epígrafe INCLUSÃO DO SERVIÇO DE REBOQUE (ATRELADO), e da sua eventual relevância para os autos.

§ Da alegada violação, pela decisão recorrida, do artº 13º, nº1, da CRP (princípio da igualdade).


III – FUNDAMENTAÇÃO


III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (na 1ª instância, sem impugnação em recurso):


(Da petição inicial)

1.1. No dia 14/05/2019, pelas 08h:40m, no Lugar ..., ..., ..., União de Freguesias ..., ... e ..., concelho ..., ocorreu um acidente, em que foi interveniente um trator, com a matrícula ..-OD-.., conduzido por DD, e do qual veio a resultar a morte de CC, esposa do condutor, tendo sido elaborada a participação de acidente de viação.

1.2. Na referida data e hora, DD conduzia o identificado trator, onde seguia também a infeliz vítima, CC, mãe dos Autores, dirigindo-se ambos para um terreno agrícola para aí semear milho.

1.3. Ao chegar ao terreno em questão e local do acidente, o condutor parou a marcha e CC desceu do trator com o propósito de retirar de cima da fresa a saca de milho ali transportada para sementeira, a qual se encontrava amarrada com uma corda à fresa.

1.4. Com esse intuito, a infeliz vítima colocou-se entre a roda traseira esquerda do trator e a fresa.

1.5. O condutor sabia que a saca de milho era transportada na fresa, tal como sabia que a infeliz vítima tinha intenção de retirar a saca da fresa, sabendo ainda que, para retirar a saca, a vítima tinha que se aproximar da traseira do trator e da fresa.

1.6. Em ato contínuo à descida da infeliz vítima e à aproximação desta da fresa, o condutor ligou a fresa e arrancou com o trator, tendo a infeliz vítima sido apanhada pela fresa quando esta começou a funcionar, o que lhe causou ferimentos e lesões graves.

1.7. Lesões essas que, não obstante todos os tratamentos médicos prestados logo no local por equipa do INEM ... e posteriormente nos Hospitais ..., para onde a infeliz vítima foi transportada de helicóptero, foram causa direta e adequada da sua morte no dia seguinte, 15 de Maio de 2019.

1.8. Realizada autópsia médico-legal à infeliz vítima, concluiu o Perito do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciência Forenses, I.P., que a morte se deveu a lesões traumáticas abdómino-pélvicas e do membro inferior direito, sendo que tal quadro constitui causa adequada de morte, as quais denotam, haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido devidas ao mecanismo descrito na informação.

1.9. Antes de ligar a fresa e arrancar, não cuidou o condutor, DD, de olhar para trás para verificar se a infeliz vítima já tinha retirado a saca de milho, e bem assim, se já tinha saído de junto da traseira do trator e de junto da fresa.

1.10. Apesar de ter a obrigação e a possibilidade de o fazer, o condutor ligou a fresa sem cuidar de saber se a vítima já tinha retirado a saca de milho e se já tinha saído de junto da traseira do trator e de junto da fresa.

1.11. O condutor, que tinha a direção, controlo e comando efetivos do trator e da fresa, não adotou o cuidado e atenção necessários, e que lhe eram exigíveis, para evitar o trágico acidente.

1.12. O condutor não podia ter ligado a fresa sem que antes se tivesse assegurado que a vítima tivesse saído de junto da traseira do trator e de junto da fresa, tanto mais que o condutor bem sabia que a fresa tem lâminas com forte e rápida rotação e que, por isso, constitui um mecanismo perigoso.

1.13. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo com a matrícula ..-OD-.. encontrava-se transferida para a Ré, através de contrato de seguro com a apólice n.º ...37.

1.14. À data do acidente a infeliz vítima, CC, tinha 65 anos de idade, era uma pessoa saudável, ativa e trabalhadora, sem qualquer limitação física ou mental, que encarava a vida de forma positiva e alegre.

1.15. Apesar de não exercer atividade profissional, cuidava da sua casa, de todos os afazeres domésticos. bem como da criação de animais e do amanho das terras agrícolas, nas quais cultivava produtos hortícolas e frutícolas para consumo doméstico da família.

1.16. Os Autores mantinham uma relação familiar próxima e profícua com a sua mãe, a infeliz vítima, existindo entre mãe e filhos laços de verdadeiro amor, respeito, amizade e
proximidade, convivendo assiduamente e ajudando-se reciprocamente na resolução dos seus problemas, sempre partilhando os momentos mais importantes das suas vidas.

1.17. Mesmo após os Autores terem casado e formado família, a mãe continuou a ser o pilar de toda a família, a base e sempre conselheira de ambos os filhos.

1.18. A trágica, inesperada e repentina morte de uma mãe constituiu uma perda irreparável, que causou aos Autores enorme choque e uma dor, desgosto, tristeza e angústia permanentes, que os marcarão para sempre.

1.19.   Na sequência do acidente, a vítima CC sofreu graves lesões traumáticas abdómino-pélvicas e do membro inferior direito, tendo sido helitransportada para os Hospitais ..., onde foi intervencionada cirurgicamente, vindo a falecer no dia seguinte à ocorrência dos factos, em consequência das lesões sofridas

1.20.  Durante mais de 24 horas, a infeliz vítima esteve em pleno sofrimento físico e psicológico, viveu momentos de pânico e horror, horas a fio com intensa dor e sofrimento.


(Da contestação)

1.21. O acidente em causa nos presentes autos ocorreu num terreno agrícola, estando uma alfaia agrícola (fresa) acoplada ao trator agrícola e quando a fresa e o trator estavam em funcionamento.

1.22. As lâminas da fresa, em movimento rotativo, colheram a infeliz CC, provocando-lhe as descritas lesões.

1.23. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...37, DD, na qualidade de proprietário e tomador do seguro, transferiu para a ré (na altura denominada de Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.) a responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergente da circulação do trator agrícola da marca New Holland, modelo H, de matrícula ..-OD-.. (adiante abreviadamente designado por OD).

1.24. O contrato teve o seu início às 00h00m do dia 9 de Novembro de 2015 e encontrava-se em vigor à data do acidente, ou seja, em 14 de Maio de 2019.

1.25. O OD é um trator agrícola, sendo dotado de um motor de propulsão a gasóleo, com dois eixos e quatro rodas.

1.26. Cerca das 8h30m do referido dia 14 de maio de 2019, DD, conduzindo o OD, dirigiu-se a um terreno agrícola propriedade de um seu cunhado, onde, com o consentimento e autorização deste, pretendia semear milho.

1.27. Levava para o efeito, acoplada ao OD, uma fresa, desligada e levantada.

1.28. Sobre a fresa ia um saco de milho.

1.29.    Juntamente com o condutor do OD e transportada no trator, seguia a infeliz vítima, CC, sua mulher, com vista a auxiliar na tarefa.

1.30.    Para aceder ao terreno agrícola referenciado, localizado no meio de outros terrenos particulares, o condutor do OD utilizou um caminho de serventia.

1.31. Quando chegou ao terreno agrícola, o condutor do OD imobilizou o trator, sempre com a fresa levantada e desligada.

1.32. Após, ligou a fresa, colocou-a a funcionar e baixou-a para o terreno, o que fez através de um mecanismo próprio ligado ao OD e com o OD imobilizado.

1.33. A fresa em causa era dotada de lâminas que funcionavam de forma rotativa e que, com ela ligada, passaram a estar em movimento.

1.34. Entre a fresa e a parte traseira do OD existia um espaço não superior a um metro.

1.35. Imediatamente antes dessa altura, a infeliz CC desceu do OD e colocou-se entre a roda traseira esquerda do trator e a fresa para retirar o saco de milho, sendo colhida pelas lâminas da fresa quando esta começou a funcionar.

1.36. O acidente em causa nos presentes autos ocorreu quando o OD estava a iniciar a sua utilizado na sua função agrícola.

1.37. A fresa que se encontrava acoplada ao OD, da marca Galucho, modelo FN, com 1,70 metros de largura, era constituída por um conjunto de 8 grupos de facas rotativas, 4 do lado esquerdo e 4 do lado direito; cada um daqueles 8 grupos possuía 4 facas, totalizando assim 32 facas no total.

1.38. Com a fresa ligada, o movimento das facas processa-se em rotação.


2. Factos Não provados

2.1. Que, para semear o milho, era necessário, na data dos factos, desbastar o terreno onde ocorreu o acidente.

2.2. Que a vítima, por descuido, se tenha aproximado demasiado da fresa e que esta, na altura, estivesse já a trabalhar.

2.3. Que, na altura em que a infeliz CC foi colhida pelas lâminas da fresa, o condutor do OD, com o trator imobilizado, havia momentos antes iniciado o trabalho de limpeza do terreno com vista a proceder à sementeira de milho.

2.4. Que quando a fresa se encontrava baixada e já em funcionamento a infeliz CC, apesar de para ela ser bem visível o funcionamento daquelas facas, se tenha posicionado entre a roda traseira do lado esquerdo do OD e a dita fresa.

2.5. Que o condutor do OD nada pudesse ter feito para evitar o acidente.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO


A questão central desta revista consiste, como dito supra, em saber se o acidente descrito nos autos se integra no âmbito da “circulação de veículos” [e que desencadeia a responsabilidade prevista nos arts. 3º, parágrafo 1º da Directiva (Diretiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009[1]) e 4º, nº 1, do RSORCA (Regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, sucessivamente alterado[2])], ou, pelo contrário, se constitui um “acidente de laboração”, não abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Dito de outra forma, importa saber se o acórdão recorrido padece de erro de direito ao ter considerado que o acidente descrito nos autos se mostra excluído do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel porquanto o veículo causador do acidente foi utilizado em funções meramente/exclusivamente agrícolas ou industriais, preenchendo-se o art. 4.º, n.º 4, do RSORCA; devendo antes ser considerado um acidente de circulação, no âmbito da designada “circulação de veículos”, nos termos dos citados normativos.


Sustentam os recorrentes que o acidente descrito nos autos integra um acidente de circulação, nos termos do art. 3.º, parágrafo 1.º, da Directiva (Diretiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009), e art. 4.º, n.º 1, do RSORCA, porquanto a vítima estava a ser transportada pelo tractor, e quando desceu do tractor e se preparava para retirar uma saca de milho que estava na fresa acoplada ao tractor, colocando-se entre a roda traseira esquerda do trator e a fresa, o seu condutor ligou a fresa e arrancou com o tractor, colhendo a vítima. Seria após este momento que a vítima e o condutor do veículo iriam proceder à sementeira de milho. Pelo que considera que o veículo causador do acidente não foi utilizado em funções meramente/exclusivamente agrícolas ou industriais, ut art. 4.º, n.º 4, do RSORCA.


O entendimento do acórdão recorrido foi (no essencial) o seguinte:

«(…) Dos referidos normativos resulta que o tractor em causa, sendo um veículo terrestre dotado de um motor de propulsão a gasóleo, com dois eixos e quatro rodas (facto 1.25), exigindo para a sua condução um título específico, integra o conceito de veículo, para efeitos do disposto no artº 4 nº1 do D.L. 291/2007, sujeito assim, à obrigação de celebração de seguro de responsabilidade civil automóvel[3].

Seguro que se mostra celebrado conforme resulta do ponto 1.23, abrangendo este seguro conforme alegam os recorridos e consta das condições particulares desta apólice, a “unidade (reboque) que no momento do sinistro se encontre atrelado ao veículo seguro.” No entanto, não basta que este tractor e reboque a ele atrelado, integre o conceito de veículo, para o dano em causa se encontrar abrangido pela cobertura do seguro obrigatório. Exercendo o tractor também uma função agrícola ou industrial, é necessário que o acidente tenha resultado dos riscos próprios decorrentes da circulação deste veículo e não da sua utilização apenas nessa função agrícola ou industrial, excluídos estes pelo nº 4 do artº 4 do D.L. 291/2007.

O conceito de “circulação de veículos” constante deste diploma, que no essencial é conforme à definição do artº 3 nº1 da Directiva 2009/163/CE, terá de ser interpretado de acordo com a jurisprudência que a este respeito foi firmada pelos Tribunais Judiciais da União Europeia.

(…)

A norma constante do artº 4 nº1 do D.L. 291/2007, apela ao conceito de "circulação de veículo”, tal como ele é definido nas Directivas que visou transpor, afastando o seu nº4 do âmbito deste seguro os casos em que o acidente resulta, não da circulação, mas exclusivamente da utilização do veículo numa função agrícola ou industrial.

O Tribunal de Justiça da União Europeia, a respeito da Directiva 72/166/CEE (mas visando preceito idêntico ao da Directiva 2009/163/CE), veio esclarecer, em sede de reenvio prejudicial, o que entende por “circulação de veículos”. No seu Acórdão VNUK, de 04.09.2014, Proc. C-162/139, o Tribunal de Justiça concluiu que "O art. 3.º n.º 1 da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «circulação de veículos» nele previsto abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo.” No caso objecto deste Acórdão, o acidente ocorrera durante o acondicionamento de fardos de feno no celeiro de uma quinta, quando um trator com reboque, ao fazer marcha-atrás para colocar o reboque nesse celeiro, embateu no escadote em cima do qual se encontrava Vnuk, provocando a queda deste. A pretensão de Vnuk fora julgada improcedente pelo tribunal de recurso, com o fundamento de que que a apólice de seguro automóvel obrigatório cobre o prejuízo resultante da utilização de um trator como meio de transporte, mas não o prejuízo resultante da utilização do trator como máquina ou engenho de tracção. O TJUE considerou, neste Acórdão, que pode ser abrangida pelo conceito de circulação de veículo, “a manobra de um tractor com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro, como aconteceu no processo principal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar." No Acórdão Rodrigues de Andrade, de 28.11.2017, Proc. C-514/16, proferido na sequência de reenvio prejudicial do Tribunal da Relação de Guimarães, estava em causa acidente ocorrido com um tractor que, naquele momento, se encontrava imobilizado num caminho de terra de uma exploração agrícola e cujo motor estava em funcionamento para acionar a bomba que servia para a pulverização de herbicida, tendo ocorrido um deslizamento de terras, que arrastou o tractor e causou a morte por esmagamento de uma trabalhadora. Neste caso, o TJUE, após reafirmar que “o conceito de «circulação de veículos» não pode ser deixado à apreciação de cada Estado-Membro, mas constitui um conceito autónomo do direito da União, que deve ser interpretado de maneira uniforme”, veio esclarecer que, no que se refere a veículos que também se destinam a ser utilizados, em certas circunstâncias, como máquinas de trabalho, importa determinar se, quando ocorreu o acidente no qual tal veículo esteve envolvido, esse veículo estava a ser usado principalmente como meio de transporte, caso em que esta utilização é suscetível de estar abrangida pelo conceito de «circulação de veículos, na aceção da diretiva, ou como máquina de trabalho, caso em que não é suscetível de estar abrangida por este conceito”. Assim, veio o TJUE firmar jurisprudência no sentido de que: "O art. 3.º n.º 1 da Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que não está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», referido nesta disposição, uma situação em que um tractor agrícola esteve envolvido num acidente quando a sua função principal, no momento em que este acidente ocorreu, não consistia em servir de meio de transporte, mas em gerar, como máquina de trabalho, a força motriz necessária para accionar a bomba de um pulverizador de herbicida."

A este respeito, esclarece ainda o aludido Acórdão que o facto de o tractor se encontrar imobilizado no momento em que o acidente ocorreu não exclui, por si só, que a utilização deste veículo, nesse momento possa estar abrangida pela sua função de meio de transporte e que a questão de saber se o seu motor estava ou não em funcionamento no momento em que o acidente ocorreu não é determinante a este respeito.

Assim, o que importa determinar, conforme resulta do comunicado de imprensa nº 124/2017 do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 28 de Novembro de 201710, “no que se refere a veículos que também se destinam a ser utilizados, em certas circunstâncias, como máquinas de trabalho”, é se “quando ocorreu o acidente no qual tal veículo esteve envolvido, esse veículo estava a ser usado principalmente como meio de transporte, caso em que esta utilização é suscetível de estar abrangida pelo conceito de «circulação de veículos, na aceção da diretiva, ou como máquina de trabalho, caso em que não é suscetível de estar abrangida por este conceito.”

Nesta medida e conforme decorre deste acórdão, só deverão ser considerados abrangidos pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil os danos causados por veículos que também são utilizados como máquinas agrícolas ou industriais quando, no momento do acidente, estes se encontrarem a ser utilizados principalmente como meio de transporte, excluindo assim do âmbito deste seguro, cfr. resulta do nº4 do artº 4 do D.L. 291/2007, os danos ocorridos quando sejam utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais[4].

Volvendo ao caso em apreço, a morte da mãe dos AA., ocorreu ao ser atingida pelas lâminas da fresa acoplada a um tractor, no momento em que esta se encontrava entre a roda traseira do tractor e a fresa, com a intenção de dela retirar um saco contendo sementes e, no momento em que o condutor do tractor, imobilizando-o num campo agrícola, após ligar e baixar a fresa, iniciava a função a que se destinava a referida fresa - semear o terreno em causa. É o que decorre dos pontos 1.2 a 1.6 e 1.21. a 1.36 dos factos provados.

Quer isto dizer que o aludido tractor, no momento em que ocorreu o acidente não se encontrava a ser usado na sua função de veículo de transporte mas exclusivamente na sua função agrícola, resultando os danos do accionamento de uma alfaia agrícola a ele acoplada e não dos riscos inerentes à circulação do veículo. Os danos decorreram do perigo resultante, como se refere a respeito de caso muito semelhante, objecto do Ac. do STJ de 05/04/22[5] citado pelo recorrente, “de um evento de laboração ou exploração da máquina, no âmbito de actuação das suas funções específicas e do seu funcionamento próprio, ainda que na dependência da circulação devida ao tractor associado e promotor dessas funcionalidades.”

Dito de outra forma, naquela ocasião, a função do tractor consistia em gerar, através do seu motor, a força motriz necessária à laboração de uma alfaia agrícola, a fresa a ele acoplada, com o único fim de semear um campo agrícola, assumindo-se como um complemento instrumental e acessório (enquanto reboque e sua força motriz) para a função mecânica da fresa a ele atrelada, se concretizar.

A imobilização do veículo no campo para onde se dirigia para lavrar, o baixar da fresa e a colocação em funcionamento desta fresa, que veio a atingir a falecida mãe dos AA., separam o momento em que este veículo deixou de estar em circulação (utilizado como meio de transporte, incluindo da fresa a ele acoplada) e passou a ser utilizado como um complemento essencial e necessário à laboração desta máquina agrícola, ainda que com necessária locomoção, sendo esta máquina que veio a atingir a A.

Para o efeito é irrelevante que o motor do tractor se encontrasse em funcionamento e que o seu condutor, naquela ocasião, tenha arrancado com o tractor, uma vez que este se assume como dependente e condicionada à função da fresa, que visava concretizar.

Assim tem sido igualmente considerado na jurisprudência nacional, mormente na citada pelos recorridos, ao contrário do, por estes, defendido.».


Já a sentença, cuja repristinação é pedida pelos autores/recorrentes, entendeu, interpretando os mesmos normativos e citando os mesmos Acórdãos do TJUE (Vnuk e Rodrigues de Andrade), que atendendo ao local, o tipo de trator e as circunstâncias referidas do acidente em causa, o acidente dos presentes autos e os danos dele decorrentes estão cobertos pelo contrato de seguro titulado pela apólice nº ...37, por eles respondendo a ré.


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Assim se vê que os normativos cuja interpretação se impõe são os constantes do art. 4.º, n.º 1 e 4, do DL n.º 291/2007, de 21-08:

1 – Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.

(…)

4 – A obrigação referida no número um não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais.

A interpretação destes normativos – que resultaram da transposição da 5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel, Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – deverá obedecer, quer à legislação comunitária transposta, quer à interpretação que o TJUE tem efectuado quanto a esta legislação comunitária.

A Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009 procedeu à codificação das 5 directivas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, sendo que, para o que ora releva, devemos interpretar o seu art. 3.º, 1.º parágrafo (Cada Estado-Membro, sem prejuízo do artigo 5.º, adopta todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro - destaque nosso). Sendo que a interpretação nacional destes normativos comunitários deverá ter em consideração a interpretação que o TJUE tem feito acerca dos mesmos.

Esta harmonização de interpretações, através do TJUE, acaba por ser uma necessidade, porquanto cada Estado membro procedeu à transposição destas directivas, com diferentes traduções, o que por vezes pode levar a diferentes soluções jurídicas, apesar de resultarem da aplicação da mesma legislação europeia. Mas visando estas Directivas a consagração dos princípios da livre circulação de pessoas e igualdade de tratamento de todos os cidadãos no espaço da União Europeia, é imperioso que a sua interpretação seja tendencialmente uniforme entre os Estados membros, pelo que as decisões do TJUE são a forma primacial de garantir a referida harmonização e, como tal, assegurar o cumprimento dos princípios que as referidas Directivas visam.


O D.L. nº 291/2007 de 21 de Agosto, à semelhança do que já ocorria no âmbito do D.L. 522/85 de 31/12 (cfr. artº 1º), estipula a obrigatoriedade de celebração de um seguro que cubra os riscos decorrentes da circulação de veículos automóveis de forma a conferir, como decorre do seu preâmbulo, um elevado e completo “sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação”, baseado em dois pilares essenciais: o pilar-seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e o pilar-FGA, para os casos em que esta obrigação não seja cumprida, ou seja desconhecida a pessoa do responsável civil.

Nesta medida, por forma a garantir a protecção dos lesados por acidentes de viação, o artº 4 do referido diploma legal impôs, como dito acima, a obrigação para todas as pessoas que possam ser civilmente responsáveis pela reparação de danos corporais, ou materiais, causados a terceiros por um veículo terrestre a motor, para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, de contratação de um seguro que cubra os riscos da circulação desse veículo, sem o qual o referido veículo não poderá circular.

No entanto, porque a exigência de seguro obrigatório se aplica apenas aos veículos em circulação, o nº4 deste preceito exclui do âmbito deste seguro obrigatório, as “situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais”, caso em que não se podem considerar como estando em circulação, mas antes em laboração.


Como refere o ac. recorrido, o conceito de veículo terrestre, objecto da obrigação de seguro imposta pelo D.L. 291/2007, resulta das normas ínsitas no Código da Estrada, sendo que, no que tange aos tractores, temos o  seu art. 108.º, que distingue o tractor agrícola ou florestal da máquina agrícola ou florestal, definindo o primeiro como "o veículo com motor de propulsão, de dois ou mais eixos, cuja função principal reside na potência de tracção, especialmente concebido para ser utilizado com reboques, alfaias ou outras máquinas destinadas a utilização agrícola ou florestal", e o segundo como "o veículo com motor de propulsão, de dois ou mais eixos, destinado exclusivamente à execução de trabalhos agrícolas ou florestais, que só excepcionalmente transita na via pública.".

A necessidade de uma licença que habilite o seu titular à sua condução, resulta do disposto no artº 7 nº1 do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo DL 138/2012 (na redacção do D.L. 40/2016 de 29 de Julho).

Mais especifica o n° 2, deste artº 7, que “para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por «trator agrícola ou florestal» o veículo com motor de propulsão dotado de rodas ou lagartas, com o mínimo de dois eixos, cuja função essencial resida na potência de tração, especialmente concebido para puxar, empurrar, suportar ou acionar alfaias, máquinas ou reboques destinados a utilizações agrícolas ou florestais e cuja utilização no transporte rodoviário ou a tração por estrada de veículos utilizados no transporte de pessoas ou mercadorias seja apenas acessória.” (destaque nosso).


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Face ao referido, logo ressalta à evidência que o tractor em causa nos autos, sendo um veículo terrestre dotado de um motor de propulsão a gasóleo, com dois eixos e quatro rodas (facto 1.25), exigindo para a sua condução um título específico, integra o conceito de veículo, para efeitos do disposto no artº 4 nº1 do D.L. 291/2007, sujeito, assim, à obrigação de celebração de seguro de responsabilidade civil automóvel.


E esse seguro foi feito, como emerge do ponto 1.23 dos factos provados, o qual (conforme consta das condições particulares da apólice), abrange a “unidade (reboque) que no momento do sinistro se encontre atrelado ao veículo seguro”.


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Assente, portanto, que o tractor e o reboque atrelado preenche o conceito de veículo – e que foi efectuado o pertinente seguro (de responsabilidade civil automóvel) – , o que importa, agora, saber, é se os danos cujo ressarcimento ora é peticionado se encontram cobertos por esse seguro obrigatório.

Para tal, o que importa aferir é se o acidente resultou dos riscos próprios decorrentes da circulação deste veículo e não da sua utilização apenas na função agrícola ou industrial que o tractor também desempenha, excluídos estes pelo nº 4 do artº 4 do D.L. 291/2007.


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Ora, o conceito de “circulação de veículos constante do D.L. 291/2007 (artº 4º) – que no essencial é conforme à definição do artº 3 nº1 da Directiva 2009/163/CE – não pode, como vimos, deixar de ser interpretado conforme a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Assim sendo e para o que ora releva, são assaz e particularmente relevantes os seguintes acórdãos do TJUE:

- Ac. Vnuk, de 04-09-2014, proc. n.º C-162/13[6], que estabeleceu que o art. 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24-04-1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de detido esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «circulação de veículos» nele previsto abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo. Pode assim ser abrangida pelo referido conceito a manobra de um trator com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro, como aconteceu no processo principal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. (destaque nosso);

- Ac. Rodrigues de Andrade, de 28-11-2017, proc. n.º C-514/16[7], que estabeleceu que o art. 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24-04-1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que não está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», referida nesta disposição, uma situação em que um trator agrícola esteve envolvido num acidente quando a sua função principal, no momento em que este acidente ocorreu, não consistia em servir de meio de transporte, mas em gerar, como máquina de trabalho, a força motriz necessária para acionar a bomba de um pulverizador de herbicida.

Este acórdão, apesar de não constar do seu sumário, esclareceu, ainda, o seguinte, com relevância para os presentes autos:

- de acordo com o art. 3.º, n.º 1, da Primeira Diretiva, cada Estado‑Membro, sem prejuízo da aplicação do art. 4.º desta diretiva, adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro; (…)

- decorre da evolução da regulamentação da União em matéria de seguro obrigatório que este objetivo de proteção das vítimas de acidentes causados por esses veículos foi constantemente prosseguido e reforçado pelo legislador da União (v., neste sentido, acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk, C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.os 52 a 55). (…)

- no que se refere a veículos que, como o trator em causa, se destinam, além da sua utilização habitual como meio de transporte, a ser utilizados, em certas circunstâncias, como máquinas de trabalho, importa determinar se, quando ocorreu o acidente no qual tal veículo esteve envolvido, esse veículo estava a ser usado principalmente como meio de transporte, caso em que esta utilização é suscetível de estar abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», na aceção do art. 3.º, n.º 1, da Primeira Diretiva, ou como máquina de trabalho, caso em que a utilização em causa não é suscetível de estar abrangida por este mesmo conceito. (destaques nossos).


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Ora, é precisamente esta a questão que se impõe responder para solucionar o caso dos autos: se, quando ocorreu o sinistro, o tractor (um veículo que também se destina a ser utilizado, em determinadas circunstâncias, como máquina de trabalho), estava a ser usado principalmente como meio de transporte (caso em que esta utilização é susceptível de estar abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», na acepção do art. 3.º, n.º 1, da Primeira Directiva), ou como máquina de trabalho (caso em que a utilização em causa não é suscetível de estar abrangida por este conceito).

A fim de melhor perceber se o acidente descrito nos autos pode ou não ser enquadrado no conceito de circulação de veículos ou antes como máquina de trabalho, nos termos dos arts. 3.º, n.º 1, da Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16-09-2009 e 4.º, n.ºs 1 e 4, do RSORCA, cremos dever, igualmente, destacar o ac. do STJ de 17-12-2015, Revista n.º 312/11.8TBRGR.L1.S1[8], relatado por ABRANTES GERALDES, no qual, com o auxílio da referida jurisprudência do TJUE (em concreto, aplicando apenas o acórdão Vnuk, pois o acórdão é anterior ao ac. Rodrigues de Andrade), se entendeu que não integrava o conceito de “acidente de circulação de veículos” a morte de um indivíduo nas seguintes circunstâncias: na ocasião em que um tractor agrícola, que tinha acoplada na traseira uma picadora, se encontrava imobilizado e com o motor em funcionamento num terreno agrícola, a vítima foi colhida pela picadora em rotação por se ter colocado entre esta e o rodado traseiro do tractor.

Salientamos a actualidade e conformidade deste aresto com o Ac. Rodrigues de Andrade, que interpretou o conceito de circulação de veículo de modo convergente com o decidido naquele acórdão, apesar da sua anterioridade.

Foi, assim, entendido nesse aresto do Supremo que o tractor agrícola com a picadora acoplada não se encontrava a ser utilizado na sua função habitual, porquanto o tractor, com a picadora acoplada, estava num terreno agrícola, (…) para realização de trabalhos agrícolas, mas no momento em que ocorreu o acidente encontrava-se imobilizado, inexistindo qualquer elemento de conexão entre o tractor e os riscos de circulação ou de utilização do mesmo.

ARNALDO COSTA OLIVEIRA[9], explica que o art. 4 do RSORCA excluiu do âmbito do risco que justifica a obrigação de seguro automóvel, seja os acidentes causados por veículos para cuja condução não seja necessário um título específico (caso, v.g., das cadeiras de rodas), seja os acidentes causados nas “situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais” (respectivamente, nºs 1 e 4 ).

E, em seguida, acrescenta que, v.g., relativamente a um acidente causado por uma ceifeira-debulhadora, tanto pode estar incluída como excluída da garantia do seguro de responsabilidade civil obrigatório automóvel, nas seguintes situações:

a) Se o mesmo se regista estando o veículo em locomoção:

a’) devendo-se a locomoção à circulação da máquina na via pública - deve o lesado ser ressarcido nos termos do SORCA;

a’’) devendo-se a locomoção a operação de ceifa-debulha em terreno agrícola - deve o lesado ser ressarcido em termos de outro sistema de protecção dos lesados de responsabilidade civil, maxime ao abrigo de apólice de responsabilidade civil de exploração agro-industrial;

b) se o mesmo se regista estando o veículo parado:

b’) se na via pública (local alheio à sua função agrícola) – deve o lesado ser ressarcido nos termos do SORCA;

b’’) se em terreno agrícola – deve o lesado ser ressarcido em termos de outro sistema de protecção dos lesados de responsabilidade civil, maxime ao abrigo de apólice de responsabilidade civil de exploração agro-industrial[10].

Nota-se que em sentido semelhante ao ora explicitado pelo legislador português, a cobertura pelo SORCA em Espanha depende de o acidente de viação de base ser, respectivamente, um “hecho de la circulación” ou “fait de la circulation”.

Adoptando a exclusão dos acidentes causados por veículos terrestres a motor em uso de função meramente agrícola ou industrial, pode ver-se as leis Belga, Espanhola[11] e Francesa (na Bélgica é conclusão extraída pela jurisprudência do requisito de participação na circulação da parte do veículo objecto do SO[12]).


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Ainda no que tange à jurisprudência do STJ, para além daquele ac. de 17-12-2015 e do Ac. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05.04.2022 (RICARDO COSTA), referido no acórdão recorrido[13] – podendo bem dizer-se que nos presentes autos, tal como neste último aresto do STJ, “(…) os danos do Autor nenhuma conexão têm com os riscos específicos do trator nem com a circulação deste, mas com especiais riscos da laboração da máquina agrícola altamente perigosa e traiçoeira (...))” –  podem citar-se vários arestos nos quais o Supremo Tribunal de Justiça já laborou sobre estes normativos. E ainda que proferidos no âmbito do DL n.º 522/85, de 31-12, não tendo ainda considerado as Directivas e a jurisprudência do TJUE, servem estes arestos para compreender o labor jurisprudencial sobre o conceito de circulação, uma vez que o art. 1.º daquele diploma já previa a exclusão das máquinas agrícolas e estipulava o seguinte: 1 - Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semireboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade. 2 – A obrigação referida no número anterior não se aplica aos responsáveis pela circulação dos veículos de caminho de ferro, bem como das máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula.

Assim:

- Ac. do STJ de 08-05-2013, Revista n.º 254/08.4TBODM.E1.S[14] (Fonseca Ramos):

 I - Um tractor é um veículo de circulação terrestre e, embora operando em local não aberto à circulação – ocorrendo o acidente num contexto de realização de trabalhos agrícolas, numa propriedade particular –, não deve ser excluído o risco próprio que potencia como unidade circulante, não sendo de afastar o regime jurídico constante do art. 503.º, n.º 1, do CC, que consagra a responsabilidade objectiva, ou pelo risco. II - Mesmo que assim não fosse, sempre se poderia considerar que os tractoristas, na qualidade de comissários dos donos dos veículos, agiram com culpa, já que, ao executarem os trabalhos num dia de calor (32º graus centígrados), operando com máquinas que não estavam munidas de dispositivos de retenção de faúlhas e tapa-chamas nos tubos de escape ou chaminés, nem dispondo de extintores, violaram o DL n.º 156/2004, de 30-06, vigente à data dos factos. (…);

- Ac. do STJ de 12-09-2013, Revista n.º 630/2001.P1.S1[15] (Maria Clara Sottomayor):

 I - Um tractor agrícola com reboque de matrícula não identificada está incluído no conceito legal de “veículo em circulação” sujeito ao regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. II - Tendo o tractor agrícola, na altura do embate, descido por um terreno em declive, sem que o condutor conseguisse controlar o veículo, os danos causados pelo acidente estão abrangidos pelos riscos da actividade viária cobertos pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, respondendo o FGA pelo pagamento das indemnizações aos lesados, ao abrigo do art. 21.º do DL n.º 522/85, de 31-12, uma vez que o tractor agrícola não possuía seguro válido e eficaz.;

- Ac. do STJ de 01-07-2010, Revista n.º 719/2002.G1.S1[16] (Ferreira de Sousa):

 I - O tractor, desde que sujeito a matrícula, está vinculado a seguro obrigatório (art. 1.º do DL n.º 522/85, de 31-12). II - Um tractor agrícola é um veículo automóvel (art. 100.º do CEst). III - A definição de acidente de viação, para efeitos da sua abrangência pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel deve buscar-se no conceito de circulação, usado pelo art. 1.º do DL n.º 522/85. IV - A exigência de circulação tem de ser entendida em termos hábeis, uma vez que pode não traduzir a ideia de que o veículo tem de estar em movimento para a activação do seguro, certo como é poder um veículo, mesmo parado, dar origem a responsabilidade por acidente de viação. V - Para que um acidente possa ser qualificado como de viação terá o mesmo de estar ligado à actividade viária ou à função circulante do veículo, visto que o estabelecimento do seguro de responsabilidade civil se deveu à necessidade sentida de garantir aos lesados uma indemnização pelos danos sofridos em consequência dos riscos próprios e específicos que a actividade de circulação de veículos comporta. VI - Revelando os factos provados que: A estava a trabalhar num campo pertencente a B, procedendo ao corte do milho que aí havia cultivado, utilizando para o efeito o seu tractor agrícola, a que fora acoplada uma máquina de ensilar, seguindo C atrás do tractor com a tarefa de cortar os pés de milho que a ensiladeira não ceifava; a certa altura, o condutor do tractor efectuou uma manobra de marcha-atrás a fim de desencravar a máquina de ensilar, sem prévio sinal e verificação de alguém se encontrar no trajecto de recuo; C, que estava a cerca de 2-3 metros do veículo, foi colhido pelo reboque que o derrubou, passando-lhe por cima; deve concluir-se que o sinistro ocorreu quando o tractor circulava, se bem que em movimento relacionado com a tarefa de ensilagem de milho que vinha efectuando. VII - Porém, os danos infligidos a C não foram causados pelo tractor no cumprimento específico e estrito dessa funcionalidade agrícola do veículo, ou seja, não são de imputar directamente à laboração deste, à actividade que lhe é própria, mas verificaram-se tais danos no decurso de um acto de circulação automóvel. VIII - Consequentemente, o sinistro em causa resultou dos riscos próprios e inerentes do tractor como unidade circulante, pelo que é de qualificar como acidente de viação e, por isso, sujeito às regras do seguro obrigatório.;

- Ac. do STJ de 12-03-2009, Revista n.º 288/09[17] (Salreta Pereira):

 I - Provado que no dia 24.08.2002, cerca das l6h30m, o tractor agrícola com a matrícula HU tinha acoplada uma máquina de silar milho; que o A. caiu para o tabuleiro da máquina de silagem, na parte dos rolos e das lâminas e ficou com o seu braço preso na máquina de silar; que os rolos e lâminas, quando se encontravam a trabalhar, puxaram o braço e toda a parte esquerda do corpo do A, decepando-lhe o braço esquerdo, estes factos são sobejamente elucidativos de que o acidente dos autos nada teve a ver com os riscos inerentes à circulação dos veículos seguros, tractor e reboque agrícolas, mas antes porque o acidente sofrido pelo A. se ficou a dever aos riscos próprios do funcionamento da máquina de silagem e não aos criados pela circulação do tractor. II - O facto de o tractor transportar a máquina para os pontos onde era necessária a respectiva laboração e de lhe fornecer a energia para o seu funcionamento não permite concluir que o acidente se ficou a dever aos riscos próprios da circulação do mesmo, mas, antes que se deve aos riscos próprios do funcionamento da máquina de silagem. III - A situação em julgamento não tem semelhanças com aquelas em que os nossos Tribunais Superiores consideraram existir responsabilidade civil da seguradora, apesar de os tractores e atrelados seguros não circularem na via pública ou se encontrarem a executar tarefas específicas, para que se encontram vocacionados, como carregar ou descarregar madeira, espalhar brita, lavrar, etc., porque nesses casos, os acidentes ocorridos ficaram a dever-se aos riscos próprios da utilização do tractor. IV - Não se encontrando o acidente dos autos coberto pelo contrato de seguro titulado pela apólice, a acção tinha que improceder.; 

- Ac. do STJ de 24-11-2009, Revista n.º 637/05.1TBVVD.S1[18] (Cardoso de Albuquerque):

 I - Os tractores agrícolas não são veículos adequados ao transporte de passageiros, visto não disporem senão de um único assento destinado exclusivamente ao condutor. II - Essa circunstância apenas implica que as pessoas que em tais veículos sejam transportadas o fazem em contravenção às disposições legais e regulamentares que proíbem esse transporte. III - O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel cobre o risco das lesões corporais sofridas no acidente pelo autor, sentado sobre o guarda-lamas esquerdo de um tractor agrícola. IV - Apesar de ter ficado provado que o autor, ao postar-se em cima do guarda-lamas da roda traseira do tractor, sabia estar ele mesmo sujeito a cair, o que eventualmente importaria num comportamento culposo da sua parte, não existe fundamento para se concluir por uma repartição de culpas entre o condutor do tractor e o sinistrado, em função do posicionamento deste no veículo em que se transportava e que aquele, tacitamente, consentiu, se a sua queda e subsequentes ferimentos se deram apenas em virtude do acidente, por repentino desequilíbrio e capotamento do tractor. (…);

- Ac. do STJ de 13-03-2008, Revista n.º 612/08[19] (Oliveira Rocha):

 I - Uma enfardadeira, transitando atrelada a um veículo tractor, constitui uma unidade circulante. II - Para que um acidente provocado por um veículo automóvel ou por uma qualquer unidade circulante possa ser qualificado de acidente de viação, exige-se sempre que o veículo tenha sido causa, directa ou indirecta, do evento, ou seja, que resulte da função que lhe é própria (a função de veículo circulante). III - Revelando os factos provados que, no momento do acidente, o tractor rebocava uma máquina agrícola do tipo enfardadeira e, quando efectuava a manobra de enfardamento com a referida máquina, o seu condutor não reparou que, nas proximidades do tractor, se encontrava uma menor de 13 anos de idade, a ver os trabalhos a ser realizados, acabando por colhê-la quando esta, ao desviar-se do veículo, caiu sobre o veio de ligação/transmissão desse tractor à máquina que rebocava, deve entender-se que o condutor em causa desenvolvia uma actividade reconhecidamente perigosa para qualquer pessoa que permanecesse junto do local onde estava a ser levada a cabo essa tarefa e, muito mais, tratando-se de crianças. (…);

- Ac. do STJ de 13-11-2008, Revista n.º 3300/08[20] (Ferreira de Sousa):

 I - É de viação - porque abrangido pelos riscos próprios do veículo - o acidente no qual interveio um tractor agrícola com reboque acoplado no seguinte circunstancialismo: o tractor em causa foi conduzido a uma propriedade privada com o objectivo de carregar e transportar alguns toros de madeira e parou em local de declive acentuado, sem que o seu condutor o deixasse devidamente travado; quando o atrelado se encontrava com cerca de metade da sua carga normal, o veículo deu um solavanco, iniciando a sua marcha descontrolada, vindo a colher o autor, fracturando-lhe a perna esquerda. (…).

Ora, da análise desta jurisprudência se vê que, apesar de ter existido alguma flutuação, o entendimento, à luz daquele diploma legal, também assentava na circunstância de apurar se o acidente tinha ocorrido devido aos riscos próprios da circulação do veículo ou antes tinha lugar graças aos riscos próprios da laboração agrícola/industrial, o que pode bem ser considerado, também, um critério norteador à presente decisão.


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Assim sendo, e regressando aos autos, temos que o veículo tractor onde a vítima tinha sido transportada, tinha iniciado a sua laboração enquanto máquina agrícola, pois resultou provado que a vítima desceu do tractor e se colocou entre a roda traseira esquerda e a fresa, a fim de retirar uma saca de milho de cima da fresa. A vítima foi colhida já depois de o condutor do tractor ter baixado a fresa para o terreno e colocado o tractor em funcionamento, arrancando com ele, iniciando a sua laboração como máquina agrícola – cfr. factos 1.3 a 1.6, 1.32, 1.35 e 1.36.

O que aqui releva, tal como o que foi determinante na citada jurisprudência do TJUE e STJ, é apurar qual a principal utilização do veículo causador do acidente no momento do acidente.

Ora, como dito, os factos provados mostram que o tractor se encontrava em movimento, num terreno agrícola, estando acoplada uma fresa, a iniciar a laboração da actividade agrícola.

Não se olvida que o tractor serviu de meio de transporte, de locomoção, da vítima, momentos antes do infortúnio. Mas, quando o acidente ocorreu, num terreno agrícola e não numa via pública ou particular, a função principal do tractor era a laboração agrícola e não um mero veículo em locomoção ou meio de transporte, conforme bem explica o acórdão recorrido, fazendo uma interpretação que se nos afigura em perfeita sintonia ou conformidade com o Direito Europeu e a Jurisprudência do TJUE.

Não estamos, no caso dos autos, perante a produção do perigo ou risco próprio inerente (enquanto unidade circulante autónoma) à condução (ou utilização) de um «veículo de circulação terrestre»[21].

Nem a máquina agrícola (a fresa) se comportou e comporta como veículo no desempenho funcional com que foi utilizada[22], desempenho esse ao qual se imputa o facto de concretização do perigo que veio a produzir os danos. Nem o veículo tractor a que se associa tem predomínio sobre a função principal da actividade da máquina, à qual se deveu o facto lesivo, assumindo-se, ao invés, como um complemento instrumental e acessório (enquanto reboque e sua força motriz) para a função mecânica da “fresa” (que se encontra a transitar atrelada) se concretizar.


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Dizem os recorrentes que “a decisão recorrida não acompanhou a evolução mais recente que sobre tal matéria tem surgido na jurisprudência do TJUE, designadamente na posterior a 2017, e também na jurisprudência nacional”.

Sem razão, porém: a jurisprudência do TJUE citada e seguida na decisão recorrida está perfeitamente actualizada, pois se não conhecem decisões posteriores que a contrariem, no que aqui importa: da noção de “acidente de circulação”, face à noção de “acidente de laboração”.


Trazem, é certo, os Recorrentes à colação alguns outros acs. do TJUE.

Porém, como dito, em nada alteram o essencial da posição que a Relação seguiu com recurso aos Acs. do mesmo Tribunal que cita.

Assim:

- ac. Vnuk: o TJUE considerou que ocorre um acidente de circulação desde que o veículo seja utilizado em conformidade com a sua função habitual. No caso, considerou-se que estava compreendida na função habitual do veículo, e que configurava um acidente de circulação, a hipótese em que um tractor, que se encontrava a fazer uma apanha de feno numa quinta, embateu com o seu reboque numa escada durante uma manobra de marcha-atrás, que tinha o propósito de colocar esse reboque dentro de um celeiro.

-  Ac. Núñez Torreiro: estava em causa um acidente ocorrido com um veículo militar, num terreno cujo acesso era interdito a qualquer veículo não militar e numa zona deste terreno que não era apta para a circulação de veículos de rodas. Considerou-se que o acidente configurava um acidente de circulação, uma vez que o veículo era utilizado como meio de transporte no momento em que capotou.

- Ac. Baltic Insurance Company: em causa, saber se a circulação de veículos abrange uma situação em que o passageiro de um veículo estacionado num parque de estacionamento, ao abrir a porta desse veículo, bate e danifica o veículo que estava estacionado ao seu lado. O TJUE considerou que sim.

- Ac. Línea Directa Aseguradora: em causa, saber se o conceito de "circulação de veículos" abrange a situação em que um veículo estacionado numa garagem privada de um imóvel começou a arder e provocou um incêndio, que teve origem no circuito elétrico desse veículo e causou danos a esse imóvel, mesmo quando o referido veículo estivesse parado há mais de 24 horas no momento em que ocorreu o incêndio. O Tribunal respondeu afirmativamente.

- Ac. Línea Directa Aseguradora: em causa, decidir se ainda se enquadra no conceito de circulação de veículos a situação em que derrame de óleo proveniente de um veículo que tenha realizado manobras ou estacionado numa garagem privada propicia a queda de um peão. O Tribunal considerou que sim (reiterou que o conceito de circulação de veículos não está limitado às situações de circulação na via pública, abrangendo qualquer utilização deste na sua função habitual, que é a de meio de transporte. Considerou ainda que o facto de o veículo se encontrar imobilizado, e com o motor desligado, ao tempo do acidente não exclui a sua utilização como meio de transporte).


Ora, o que se constata da leitura destes arestos é que todos eles vão, precisamente, no sentido inverso daquele que os autores/recorrentes lhes pretendem assacar, em nada – mesmo nada – alterando os entendimentos vertidos na jurisprudência do Tribunal de Justiça citada no acórdão recorrido!

Efectivamente, em todas essas decisões se discute o que integra, ou não, o conceito de circulação de veículos para efeitos da cobertura de seguro de responsabilidade civil automóvel. E o entendimento sufragado não foge daquele que foi seguido pelos Acs. do TJUE citados no Ac. recorrido.

E o caso em discussão nestes autos não deixa, a nosso ver, margem para dúvidas quanto à utilização que era dada ao veículo na altura do acidente: função agrícola, integrando os riscos próprios de laboração agrícola.


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Assim, e voltando a citar o acórdão recorrido, conclui-se que:

- A norma constante do artº 4 nº1 do D.L. 291/2007, apela ao conceito de "circulação de veículo”, tal como ele é definido nas Directivas que visou transpor, afastando o seu nº4 do âmbito deste seguro os casos em que o acidente resulta, não da circulação, mas exclusivamente da utilização do veículo numa função agrícola ou industrial.

- Resultando o evento danoso do funcionamento de uma fresa acoplada a um tractor agrícola, que atingiu a vítima quando esta se encontrava entre a roda traseira desse  tractor e a fresa, consistindo a função do tractor, nesse momento, em gerar, através do seu motor, aforçamotriznecessáriaàlaboraçãodestaalfaiaagrícolaparasemearumcampodemilho, deve considerar-se excluído do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, por não se integrar nos riscos próprios do veículo, mas antes nos riscos próprios de laboração agrícola.


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Não é aqui espúrio – bem pelo contrário – chamar à colação a Directiva (UE) 2021/2118[23] do Parlamento Europeu e do Conselho 24-11-2021, que altera a Directiva 2009/103/CE relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade e que ainda não foi transposta para o direito interno português.

Esta Directiva altera a 5.ª Directiva e, em nosso entender, conflui no entendimento aqui seguido, pois esclarece que a circulação de veículo é qualquer utilização de um veículo que esteja em conformidade com a função habitual desse veículo enquanto meio de transporte aquando do acidente, independentemente das características do veículo e independentemente do terreno em que o veículo automóvel seja utilizado, e quer se encontre estacionado ou em movimento - alteração ao art. 1.º da Directiva de 2009.

No Considerando 5) refere-se, a propósito: Em decisões recentes do Tribunal de Justiça da União Europeia, nomeadamente nos acórdãos Vnuk, Rodrigues de Andrade e Torreiro, o Tribunal de Justiça clarificou o significado do conceito de «circulação de veículos». Em especial, o Tribunal de Justiça esclareceu que os veículos automóveis se destinam habitualmente a servir de meio de transporte, independentemente das características do veículo, e esclareceu que a circulação desses veículos abrange qualquer utilização de um veículo consistente com a sua função habitual como meio de transporte, independentemente do terreno em que o veículo automóvel seja utilizado e quer se encontre estacionado ou em movimento. A Diretiva 2009/103/CE não é aplicável se, no momento do acidente, a função habitual desse veículo não for «a utilização como meio de transporte». Poderá ser esse o caso se o veículo não estiver a ser utilizado na aceção do artigo 3.º, primeiro parágrafo, dessa diretiva, uma vez que a sua função normal é, por exemplo, «a utilização como fonte de energia industrial ou agrícola». Por motivos de segurança jurídica, convém repercutir essa jurisprudência na Diretiva 2009/103/CE através da introdução da definição do conceito de «circulação de um veículo» - destaques nossos.


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Temos, assim e em suma, que a primeira questão suscitada pelos Recorrentes não pode proceder: o acidente descrito nos autos não se integra no âmbito da “circulação de veículos” [como tal, não desencadeando a responsabilidade prevista nos arts. 3º, parágrafo 1º da Directiva (Diretiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009) e 4º, nº 1, do RSORCA (Regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, sucessivamente alterado], antes constitui um “acidente de laboração”, não abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Assim se concorda com o Acórdão recorrido, quando remata:

«…. a morte da mãe dos AA., ocorreu ao ser atingida pelas lâminas da fresa acoplada a um tractor, no momento em que esta se encontrava entre a roda traseira do tractor e a fresa, com a intenção de dela retirar um saco contendo sementes e, no momento em que o condutor do tractor, imobilizando-o num campo agrícola, após ligar e baixar a fresa, iniciava a função a que se destinava a referida fresa - semear o terreno em causa. É o que decorre dos pontos 1.2 a 1.6 e 1.21. a 1.36 dos factos provados.

Quer isto dizer que o aludido tractor, no momento em que ocorreu o acidente não se encontrava a ser usado na sua função de veículo de transporte mas exclusivamente na sua função agrícola, resultando os danos do accionamento de uma alfaia agrícola a ele acoplada e não dos riscos inerentes à circulação do veículo. Os danos decorreram do perigo resultante – como se refere a respeito de caso muito semelhante, objecto do Ac. do STJ de 05/04/22[24],   citado pelo recorrente – de um evento de laboração ou exploração da máquina, no âmbito de actuação das suas funções específicas e do seu funcionamento próprio, ainda que na dependência da circulação devida ao tractor associado e promotor dessas funcionalidades.”

Dito de outra forma, naquela ocasião, a função do tractor consistia em gerar, através do seu motor, a força motriz necessária à laboração de uma alfaia agrícola, a fresa a ele acoplada, com o único fim de semear um campo agrícola, assumindo-se como um complemento instrumental e acessório (enquanto reboque e sua força motriz) para a função mecânica da fresa a ele atrelada, se concretizar.

A imobilização do veículo no campo para onde se dirigia para lavrar, o baixar da fresa e a colocação em funcionamento desta fresa, que veio a atingir a falecida mãe dos AA., separam o momento em que este veículo deixou de estar em circulação (utilizado como meio de transporte, incluindo da fresa a ele acoplada) e passou a ser utilizado como um complemento essencial e necessário à laboração desta máquina agrícola, ainda que com necessária locomoção, sendo esta máquina que veio a atingir a A.

Para o efeito é irrelevante que o motor do tractor se encontrasse em funcionamento e que o seu condutor, naquela ocasião, tenha arrancado com o tractor, uma vez que este se assume como dependente e condicionada à função da fresa, que visava concretizar.

Assim tem sido igualmente considerado na jurisprudência nacional, mormente na citada pelos recorridos, ao contrário do, por estes, defendido.

(…).

Esta noção de acidente decorrente da circulação de veículos, é igualmente seguida na doutrina (…).

Atenta esta noção, tendo ocorrido a morte da vítima, pela acção da fresa acoplada ao tractor que, nessa ocasião era utilizado como complemento instrumental e acessório (enquanto reboque e sua força motriz) para a função mecânica da fresa a ele atrelada, com o único fim de semear o terreno agrícola, tem de se entender que esta acidente não tem qualquer relação com os riscos próprios da circulação deste tractor, mas antes com os riscos decorrentes da actividade agrícola (e perigosa, conforme refere o apelante, questão que não é, no entanto, objecto deste recurso).

Conclui-se, assim, pela exclusão deste acidente do âmbito do seguro obrigatório, por via do disposto no artº 4 nº4 do D.L. 291/2007, por este decorrer não da circulação do veículo, inexistindo qualquer elemento de conexão com os riscos de circulação ou de utilização do mesmo, mas exclusivamente dos riscos associados ao funcionamento da fresa a ele acoplada e na sua função agrícola, constituindo um típico acidente de laboração de máquina agrícola.»[25] - destaques nossos.


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§ Relativamente à questão suscitada pelos Recorrentes, de aferir se a Ré/Recorrida fez “tábua rasa” da Condição Particular constante da pág. 3 do doc. 5 da contestação da Ré/Recorrida, denominado Condições Particulares da Apólice ...37, Seguro Automóvel, aludida no ponto 1.13 dos factos provados, sob a epígrafe INCLUSÃO DO SERVIÇO DE REBOQUE (ATRELADO), e da sua eventual relevância para os autos, é manifesta a sua falta de razão.


É verdade, na página 3 do doc. 5 da contestação da Ré/Recorrida, denominado Condições Particulares da Apólice ...37, Seguro Automóvel, sob a epígrafe INCLUSÃO DO SERVIÇO DE REBOQUE (ATRELADO), consta, efectivamente, o seguinte: “De acordo com a presente Cláusula Particular, a cobertura de Responsabilidade Civil Obrigatória deste Contrato produzirá igualmente efeitos em relação à unidade (reboque) que no momento do sinistro se encontre atrelado ao veículo seguro.

Se o contrato garantir alguma das Coberturas Facultativas previstas na cláusula 39ª das Condições Gerais, estas só serão extensivas às unidades rebocadas quando tal seja especificamente expresso nas Condições Particulares.

Quando o atrelado for um reboque sem matrícula e com peso bruto até 300kg, a cobertura de Responsabilidade Civil Obrigatória deste Contrato produzirá igualmente efeitos, mesmo quando a unidade (reboque) se encontre estacionada e desatrelada do veículo seguro.”.


Porém, tal em nada altera o desfecho aqui tomado quanto ao mérito da revista.

Com efeito, não se questiona que a cobertura de Responsabilidade Civil Obrigatória deste Contrato produzirá igualmente efeitos em relação à unidade (reboque) que no momento do sinistro se encontre atrelado ao veículo seguro.

Dito de outra forma: não se nega que as partes contratantes do seguro em causa quiseram e sabiam, desde a formação e início de vigência desse contrato de seguro, que a cobertura de Responsabilidade Civil Obrigatória produziria igualmente efeitos em relação à unidade que no momento do sinistro se encontrasse atrelada ao veículo seguro.

O que se questiona, sim, é, apenas e só, a natureza do acidente e a sua cobertura pelo celebrado seguro obrigatório de responsabilidade civil:  aferir se o acidente dos autos se integra no âmbito da “circulação de veículos” ou, ao invés, se constitui um “acidente de laboração”, sendo que neste último caso não se encontra abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Portanto, relativamente ao aludido ponto levantado pelos recorrentes, não se pode dizer que o ac. recorrido fez “tábua rasa” da Condição Particular constante da pág. 3 do doc. 5 da contestação da Ré/Recorrida, denominando Condições Particulares da Apólice ...37, Seguro Automóvel.

De forma alguma a olvidou.

Diz-se, com efeito, no acórdão:

”Dos referidos normativos resulta que o tractor em causa, sendo um veículo terrestre dotado de um motor de propulsão a gasóleo, com dois eixos e quatro rodas (facto 1.25), exigindo para a sua condução um título específico, integra o conceito de veículo, para efeitos do disposto no artº 4 nº1 do D.L. 291/2007, sujeito assim, à obrigação de celebração de seguro de responsabilidade civil automóvel.[26].

Seguro que se mostra celebrado conforme resulta do ponto 1.23, abrangendo este seguro conforme alegam os recorridos e consta das condições particulares desta apólice, a “unidade (reboque) que no momento do sinistro se encontre atrelado ao veículo seguro.”

No entanto, não basta que este tractor e reboque a ele atrelado, integre o conceito de veículo, para o dano em causa se encontrar abrangido pela cobertura do seguro obrigatório. Exercendo o tractor também uma função agrícola ou industrial, é necessário que o acidente tenha resultado dos riscos próprios decorrentes da circulação deste veículo e não da sua utilização apenas nessa função agrícola ou industrial, excluídos estes pelo nº 4 do artº 4 do D.L. 291/2007” – destaque nosso.


Ou seja, parece evidente que a alegação vertida pelos autores/recorrentes decorre de um erro de interpretação, porquanto aquela cobertura, integrada num seguro de responsabilidade civil automóvel, só garante o risco se o sinistro constituir acidente de viação. O que não é o caso.


§ Da alegada violação, pela decisão recorrida, do artº 13º, nº1, da CRP (princípio da igualdade) – e, outrossim, o princípio da protecção das vítimas.

Não se vislumbra qualquer ofensa do apontado princípio da nossa Lei Fundamental.

Dizem os Recorrentes que o entendimento de que o acidente em causa e os danos produzidos pelo mesmo não estão cobertos pelo seguro contratado por se entender que o veículo, aquando do acidente, era exclusivamente utilizado na sua função de máquina agrícola, viola a legítima expectativa dos terceiros lesados por acidentes desta natureza (com tractores, sem ou com reboques) de verem sempre as suas indemnizações asseguradas, seja por via do funcionamento do seguro obrigatório da viatura, seja, na ausência desse seguro, através do Fundo de Garantia Automóvel.

Não vemos onde.

O princípio da igualdade encontra-se acolhido pelo artigo 13.º da Constituição que, no seu n.º 1, dispõe, genericamente, terem todos os cidadãos a mesma dignidade social, sendo iguais perante a lei, especificando o n.º 2, por sua vez, que «[n]inguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social».

Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global, o princípio da igualdade vincula diretamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional[27], o que, no dizer do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90 (publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 12.09.1990), resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da «[…] atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade direta, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição) […]».

Segundo a generalidade da doutrina[28] e a jurisprudência do Tribunal Constitucional[29], o princípio postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais. Inversamente, o princípio proíbe o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais.


No entanto, como é salientado por JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS[30] e tem sido jurisprudência consistente do TC, “a problemática do controlo do respeito pelo princípio da igualdade não pode ser dissociada do princípio fundamental da separação dos poderes (…). O controlo da igualdade deve ser um controlo meramente negativo, não sendo legítimo aos tribunais invocar o princípio da igualdade para orientar em concreto a opção por um ou outro critério valorativo. Como refere o Tribunal Constitucional, a propósito do controlo da atividade legislativa, a prevalência da igualdade como valor supremo do ordenamento tem de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica (Ac. n.º 231/94). O princípio da igualdade não tolhe, pois, a liberdade de conformação do legislador ou a margem de livre decisão administrativa no sentido do tratamento desigual de situações materialmente desiguais, permitindo tão somente, enquanto norma de controlo, a consideração como ilegítima de uma medida consagradora de soluções desiguais se e apenas na medida em que não se descortinar qualquer fundamento material para a distinção” – destaques nossos.


Sendo assim, não se vislumbra que a opção seguida no ac. recorrido e aqui reiterada viole, por qualquer forma, aquele princípio ínsito na nossa Lei Constitucional: o critério valorativo que foi seguido não assentou ou consubstanciou eventual tratamento desigual de situações que mereçam ou justifiquem tratamento igual.


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E não vemos que a interpretação seguida consubstancie uma violação, ilegítima, do princípio da protecção das vítimas de acidentes de viação.

Essa “vítimas” estão protegidas pela lei, nacional e europeia. Simplesmente, na apreciação da factualidade assente nos autos, considerou-se que os autores (aqui “vítimas”) não mereciam “protecção” ao abrigo do seguro de responsabilidade civil obrigatório celebrado, pelas razões amplamente explanadas neste acórdão, que, naturalmente, nos dispensamos de percutir.


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Atento todo o explanado, a revista dos Autores terá de improceder.

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IV. DECISÃO 

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.


Custas da revista a cargo dos Recorrentes.


Lisboa, 16 de março de 2023


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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[1] Dispõe o cit. art. 3.º da Directiva, com a epígrafe "Obrigação de segurar veículos":

"Cada Estado-Membro, sem prejuízo do artigo 5.º, adopta todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. [...]".

[2] Artigo 4º esse que dispõe:

1 - Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.

4 - A obrigação referida no número um não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais.
[3] Neste sentido vide Ac. do TRE de 11/01/2018, proferido no proc. nº 187/13.2TBMRA.E1, de que foi relator Mário Branco Coelho, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Aliás tal entendimento, veio a ser expressamente consagrado na Directiva (UE) 2021/2118 que, na sequência dos Acórdãos do TJUE acima citados, veio introduzir um artº 1-A à Directiva 2009/163/CE no qual se especifica o que se deve entender por circulação de veículos: “qualquer utilização de um veículo que esteja em conformidade com a função habitual desse veículo enquanto meio de transporte aquando do acidente, independentemente das características do veículo e independentemente do terreno em que o veículo automóvel seja utilizado, e quer se encontre estacionado ou em movimento.”
[5] Proferido no proc. nº 3130/16.3T8AVR.P1.S1 (Ricardo Costa), disponível in www.dgsi.pt.
[6] Texto integral disponível em
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:62013CJ0162.
[7] Texto integral disponível em
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62016CJ0514.
[8] Texto integral disponível em
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c09ab540533af02580257f33005ec304?OpenDocument.
[9] In O Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Almedina, Setembro de 2008, pág. 52.
[10] Este autor faz (em nota de rodapé), ainda, a seguinte distinção/esclarecimento: no caso de a locomoção em terreno agrícola se dever, não à operação de ceifa-debulha, mas ao transporte (de alguém ou de algo) alheio à ceifa-debulha, deve então o acidente ter-se por coberto, por relevar a função locomoção, embora em local onde, em princípio, relevará a função agrícola/industrial”. E conclui que se o acidente com tal máquina ocorre estando parada em terreno agrícola, não está coberto pelo SORCA.
[11] Espanha, com interesse, pode ver-se, a Revista Esañola de Seguros, 2005 (Jul.-Dic.), nºs 123-124, vol. I (nºs dedicados à publicação dos trabalhos do Congresso “La Ley de Contrato de Seguro, 25 años después”), págs. 571 ss.
[12] Cfr. P. COLLE, Les contrats d`Assurrance Réglementés, Bruxelles (Bruyant), 1998, pág. 127, com referência de jurisprudência francesa da Cour Cassation Francesa).
[13] Assim sumariado:

I - A utilização de uma máquina agrícola “capinadeira”, ainda que atrelada a um tractor para a sua locomoção, consiste em «actividade perigosa» para efeitos de aplicação do regime predisposto pelo art. 493.º, n.º 2, do CC, sempre que os danos produzidos se devem em exclusivo ao perigo típico (que deveria ter sido antecipado e neutralizado pela tomada de acções preventivas adequadas e necessárias por um utilizador diligente) resultante de um “evento de laboração ou exploração” da máquina, no âmbito de actuação das suas funções específicas e funcionamento próprio, ainda que na dependência da circulação devida ao tractor associado e promotor dessas funcionalidades.

II - Se os danos produzidos não se geraram na esfera de perigo (e seus riscos próprios de concretização) de um “evento de locomoção ou de circulação” do veículo a que a máquina agrícola se encontra atrelada, não se verifica a produção do perigo ou risco próprio inerente (enquanto unidade circulante autónoma) à condução (ou utilização) de um «veículo de circulação terrestre» que implicasse a aplicação do regime do art. 503.º do CC (com indemnização de danos em conexão com os riscos específicos de um meio de circulação ou transporte terrestre como tal): (i) nem a máquina agrícola se comportou e comporta como veículo no desempenho funcional com que foi utilizada, ao qual se imputa o facto de concretização do perigo que veio a produzir os danos; (ii) nem o veículo tractor a que se associa tem predomínio sobre a função principal da actividade da máquina, à qual se deveu o facto lesivo, antes se assume como um complemento instrumental e acessório (enquanto reboque e sua força motriz)para a função mecânica da “capinadeira” se concretizarestá dsponível em www.dgsi.pt  (os destaques são nossos).
[14] Texto integral disponível em PDF.
[15] Texto integral disponível em PDF.
[16] Texto integral disponível em PDF.
[17] Texto integral disponível em PDF.
[18] Texto integral disponível em PDF.
[19] Texto integral a solicitar à Biblioteca caso o Senhor Conselheiro o entenda relevante.
[20] Texto integral a solicitar à Biblioteca caso o Senhor Conselheiro o entenda relevante.
[21] Ver os já citados Acs. do STJ de 8/5/2013, processo n.º 254/08.4TBODM.E1.S1 (Fonseca Ramos) e de 17/12/2015, processo n.º 312/11.8TBRGR.L1.S1 (Abrantes Geraldes), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[22] Ver RAÚL GUICHARD, “Artigo 503º”, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das obrigações em geral, coord.: JOSÉ BRANDÃO PROENÇA, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 403.
[23] Texto integral disponível em
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32021L2118&from=PT.
[24] Proferido no proc. nº 3130/16.3T8AVR.P1.S1, de que foi relator Ricardo Costa, disponível in www.dgsi.pt
[25] Cita o acórdão recorrido, ainda, jurisprudência vária, do Supremo e das Relações, que, pela pertinência, aqui se insere:

- Ac. da Relação do Porto de 10/03/2015 (Proc. nº   1533/12.1TBGRD.C1 - in www.dgsi.pt): decidiu-se estar abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, um acidente provocado por um tractor industrial (uma empilhadora), consistente no atropelamento de um peão quando a máquina executava uma manobra de marcha-atrás, no espaço exterior circundante de um armazém, local onde se realizavam operações de carga e de descarga e que é considerado via pública,, precisamente por este acidente ocorrer com veículo utilizado na sua função de meio de transporte, ainda que sobrepondo-se ou concorrendo com a sua utilização industrial, uma vez que a “ exclusão do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel de máquinas utilizadas em funções meramente industriais ou agrícolas, exclusão decorrente do art. 4o, n.°4 do DL 291/2007, (...) só subtrai ao sistema de seguro obrigatório automóvel as utilizações daquelas máquinas “apenas” (meramente) ligas ao próprio uso industrial (ou agrícola), em si mesmo, que não apresentem qualquer margem de sobreposição com utilizações próprias da circulação de viaturas”;

- Ac. do TRP de 07/05/2018 (proc. nº 440/16.3T8FLG.P1 - in www.dgsi.pt): considerou-se que não integra o conceito de acidente de circulação de veículos, quando um trator se encontra imobilizado, servindo o seu motor, na circunstância, apenas para fazer laborar o guincho acoplado à traseira daquele na sua habitual e exclusiva função de deslocação de troncos de madeira.”;

- Ac. do TRG de 15/02/18 (proc. nº 535/14.8TBPTL.G1 - in www.dgsi.pt): defendeu-se que estando as máquinas industriais ou agrícolas sujeitas ao regime do seguro automóvel obrigatório e ao seguro obrigatório de laboração, a “delimitação das garantias conferidas pelos dois seguros obrigatórios (…) passa pela distinção sobre se, no momento do acidente, a máquina se encontrava exclusivamente a desempenhar a sua atividade funcional que lhe é inerente enquanto máquina agrícola (caso em que o acidente é de laboração e atua a garantia do seguro obrigatório de laboração) ou se também ou exclusivamente se encontrava a desempenhar a sua função de locomoção -transporte (caso em que o acidente é de viação e atua a garantia do contrato de seguro obrigatório automóvel).”;

- Ac. do TRG de 17/01/19 (proc. nº 1341/16.0T8VRL.G1 – in www.dgsi.pt): enquadrou no seguro obrigatório de responsabilidade civil, um acidente ocorrido quando um tractor agrícola com reboque se encontrava em circulação, transportando uvas de uma propriedade particular para uma empresa vinícola, quando capotou causando graves ferimentos nos passageiros transportados no reboque, havendo conexão entre o acidente e a sua utilização como meio de transporte.

- Ac. do STJ 03-05-01 (proc. 613/01 - Oliveira Barros, in CJSTJ, tomo II, pág. 43): decidiu-se que se encontravam incluídos no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel os acidentes que tenham relação “com os perigos que a utilização de um veículo automóvel comporte”, excluindo deste âmbito um acidente “que nada teve a ver com o veículo, ou com a unidade circulante (veículo-tractor), mas antes com o funcionamento de uma máquina agrícola (uma trituradora corta-forragens) atrelada ao veículo (tractor)”, inexistindo nexo causal entre o evento e os riscos próprios do veículo enquanto tal, ou seja, “com os especiais perigos que a sua função efectivamente comporte (…) antes e apenas, com o risco especificamente inerente ao funcionamento da máquina agrícola em questão (…) na função mecânica que lhe - e só a ela- é própria.”;

-  Ac. do STJ de 17/12/15 (já acima citado - proc. nº 312/11.8TBRGR.L1.S1, de que foi relator Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt) que, partindo da interpretação firmada pelo TJUE no Ac. C-162/2013, considerou que “Não integra o conceito de “acidente de circulação de veículos” a morte de um indivíduo nas seguintes circunstâncias: na ocasião em que um tractor agrícola, que tinha acoplada na traseira uma picadora, se encontrava imobilizado e com o motor em funcionamento num terreno agrícola, a vítima foi colhida pela picadora em rotação por se ter colocado entre esta e o rodado traseiro do tractor”.

[26] Neste sentido vide Ac. do TRE de 11/01/2018, proferido no proc. nº 187/13.2TBMRA.E1, de que foi relator Mário Branco Coelho, disponível in www.dgsi.pt
[27] Cfr. GOMES CANOTILHO /VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, págs. 129 e130.
[28] Cfr. JORGE MIRANDA, in O Regime dos Direitos, Liberdades e Garantias, AA.VV., Estudos Sobre a Constituição, volume iii, Coimbra, Almedina, 1979, pág. 50.

[29] Cfr., entre tantos outros, e além do já citado acórdão nº 186/90, os Acórdãos n.os 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93 e 335/94, publicados no referido jornal oficial, 1.ª série, de 03.03.1988, e 2.ª Série, de 12.09.1990, 30.07.1993, 06.10.1993, 19.01.1994 e 30.08.1994, respetivamente.
[30] Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, 2ª ed., Wolters Kluber e Coimbra Editora, pág.723.