Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
312/11.8TBRGR.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
CONCEITO DE “CIRCULAÇÃO DE VEÍCULOS”
TRACTOR AGRÍCOLA
ALFAIA AGRÍCOLA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL.
DIREITO COMUNITÁRIO - RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL.
Doutrina:
- Albuquerque Matos, “O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”, BFDUC, vol. LXXVII, p. 399 e ss.; em Estudos Dedicados ao prof. Doutor J. Almeida e Costa, p. 609.
- Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandez, “Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito”, revista Julgar Online, em www.asjp.pt ; “O porteiro e a lei. A propósito da possibilidade de interposição de recurso do despacho de reenvio prejudicial á luz do direito da União Europeia”, revista Julgar, n.º 14, p. 113 e ss..
- Arnaldo Costa Oliveira, O Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, p. 52.
- Cunha Rodrigues e Moitinho de Almeida, Revista do C.E.J., n.º 7, p. 35 e ss..
- Maria José Rangel Mesquita, “Comentário ao Acórdão do S.T.J. de 13-3-07”, Cadernos de Direito Privado, n.º 25, p. 24 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 493.º, 503.º.
DEC. LEI N.º 291/07, DE 21-8: - ARTIGOS 4.º, 64.º, N.º1.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA 2009/103/ CE: - ARTIGO 7.º.
DIRECTIVA 2009/93/CE: - ARTIGOS 1.º, 3.º, N.º1, 4.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 10/03/2015, SUMÁRIO PUBLICADO NA COLETÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA (E TAMBÉM ACESSÍVEL ATRAVÉS DE WWW.DGSI.PT, MAS COM OUTRO SUMÁRIO).

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
-DE 09/03/2006, CJ, TOMO II, P. 26.

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 03/05/2001, CJSTJ, TOMO II, P. 43;
-DE 07/11/2006, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 23/11/2006, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 13/03/2008, CJSTJ, TOMO I, P. 175;
-DE 30/10/2008, EM WWW.DGSI.PT (E CJSTJ, TOMO III, P. 104);
-DE 25/03/2010, NA CJSTJ, TOMO I, P. 166;
-DE 17/06/2010, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 25/10/2012, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 07/02/2013, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 08/05/2013, EM WWW.DGSI.PT .
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):
-DE 4-9-2014 (NO ÂMBITO DO REENVIO PREJUDICIAL Nº C-162/13).
Sumário :
1. Conforme a interpretação firmada pelo Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 4-9-2014 (no âmbito do reenvio prejudicial nº C-162/13), o conceito de “circulação de veículos”, previsto no art. 3º, nº 1, da Primeira Directiva Automóvel, “abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade” com a sua “função habitual”, incluindo, em concreto, “a manobra de um tractor com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro”. 

2. Uma interpretação semelhante vem sendo assumida pela jurisprudência nacional, maxime pelo Supremo Tribunal de Justiça, considerando-se abarcados pelo regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel acidentes em que intervêm tractores ou mesmo máquinas agrícolas ou industriais, determinando riscos causalmente ligados ao funcionamento do veículo enquanto tal.

3. Não integra o conceito de “acidente de circulação de veículos” a morte de um indivíduo nas seguintes circunstâncias: na ocasião em que um tractor agrícola, que tinha acoplada na traseira uma picadora, se encontrava imobilizado e com o motor em funcionamento num terreno agrícola, a vítima foi colhida pela picadora em rotação por se ter colocado entre esta e o rodado traseiro do tractor.

4. Ainda que se tratasse de acidente coberto pelo seguro de responsabilidade civil automóvel, a Seguradora apenas responderia na medida em que o respectivo segurado fosse responsável pelo sinistro, o que não ocorre no caso referido, sendo o acidente de imputar exclusivamente ao sinistrado.

Decisão Texto Integral:

I - AA, por si e em representação de seus filhos menores BB, CC e DD, intentaram contra EE - Sucursal em Portugal, acção declarativa, pedindo a condenação da R. a pagar-lhes as seguintes quantias: aos AA., enquanto únicos e universais herdeiros do falecido FF, € 160.000,00 a título do dano morte; à A. AA € 105.490,50 por danos patrimoniais e € 100.000,00 por danos não patrimoniais; à A. BB € 50.000,00 por danos morais; ao A. DD € 50.000,00 por danos morais; e ao A. CC € 50.000,00 por danos morais e € 39.904,77 por danos patrimoniais.

Alegaram factos que implicam a responsabilidade civil do proprietário de um tractor que vitimou FF, marido e pai dos AA., a qual foi transferida contratualmente para a R. através de contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

A R. contestou e pugnou pela improcedência da acção, alegando que o contrato de seguro não abarcava o acidente dos autos.

Os AA. replicaram e, para efeitos de dedução subsidiária do pedido, pediram a intervenção principal de GG e HH, respectivamente proprietário e condutor do tractor.

Os intervenientes GG e HH contestaram, rebatendo os argumentos da R. EE no que concerne à sua responsabilidade, impugnando também os factos alegados pelos AA.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença que decidiu:

- Absolver da instância os RR. GG e HH da instância em razão da sua ilegitimidade;

- Condenar a R. EE a pagar:

a) Aos AA. AA, BB, CC e DD, o montante de € 75.000,00 a título de indemnização pelo dano-morte (€ 60.000,00) e danos não patrimoniais do falecido (€ 15.000,00);

b) Aos AA. AA, BB e CC, o montante de € 209.400,00 por lucros cessantes;

c) À A. AA o montante de € 1.390,50 pelas despesas de funeral;

d) À A. AA o montante de € 50.000,00 apor danos morais próprios;

e) A cada um dos AA. BB, CC e DD o montante de € 35.000,00 por danos morais próprios;

f) Aos montantes acrescem os juros legais contados a partir do trânsito desta sentença altura em que se fixa a obrigação e até integral pagamento.

A R. apelou e a Relação revogou a sentença, absolvendo-a de todos os pedidos.

Os AA. interpuseram recurso de revista em que suscitam essencialmente as seguintes questões:

a) O contrato de seguro abarca o acidente dos autos, uma vez que tanto abarca acidentes de viação como de trabalho provocados pelo veículo automóvel na sua função habitual;

b) A R. Seguradora não informou o tomador do seguro da necessidade de outorgar seguro que cobrisse os danos emergentes do funcionamento do tractor no exercício da sua actividade;

c) O condutor do tractor tinha o dever de desligar o motor da rotativa ligada à picadora, tendo actuado negligentemente e causando com o seu comportamento a morte do sinistrado;

d) Sempre haveria responsabilidade pelo risco, atenta a perigosidade inerente a um veículo parado num plano inclinado, com o motor em funcionamento e a picadora em rotação.

Houve contra-alegações dos intervenientes.

Cumpre decidir.


II – Factos provados:

1. No dia 9-6-10, por volta das 17h 50m, num terreno agrícola sito no …, Lomba de S. Pedro, Ribeira Grande, ocorreu um acidente.

2. Nesse dia, FF, marido da A. AA e pai dos restantes AA., trabalhava no referido terreno de sacho em apoio a um tractor agrícola com picadora.

3. O tractor, matrícula ...-...-..., marca Massey Fergusson, propriedade de II, era conduzido por HH.

4. A certa altura, quando efectuava os trabalhos referidos em 2., HH parou o tractor no terreno, com o motor e a picadora a trabalhar, mas com o travão de mão accionado, fazendo-o num sentido ascendente para conversar com um conhecido que se postara à sua esquerda, sempre atendendo ao seu sentido de marcha, e a cerca de 5 a 6 m de FF que sachava do lado direito atento o sentido de marcha do tractor, mas mais para baixo, tendo por referência a traseira do veículo.

5. Durante aquela conversa, FF dirigiu-se para o lado direito do tractor, atento o sentido em que este estava parado, postou-se entre a roda traseira desse lado e uma das aberturas da picadora, tendo sido colhido pelas respectivas lâminas e "engolido" e triturado, sofrendo lesões tais que lhe determinaram a morte.

6. O tractor é dotado de uma cabine fechada e a picadora é totalmente vedada pela parte de trás e pelas laterais.

7. Ao ser colhido pelas lâminas da picadora, FF, e em razão de por isso se aperceber que daí lhe adviria a morte, experienciou momentos de pânico, medo e angústia, bem como de dores lancinantes.

8. O falecido FF havia contratado os serviços do tractor …-IC-…, a fim de tal máquina lavrar o terreno onde se verificou o acidente.

9. O proprietário do tractor transferiu para a R., por contrato de seguro válido à data do acidente, apólice nº …54, a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da circulação daquele seu veículo.

10. A R., quando contratou com o dono do tractor o contrato de seguro, não alertou o segurado para a exclusão dos riscos de laboração, bem como da obrigatoriedade de tal seguro.

11. Nas condições gerais e particulares do contrato de seguro consta uma cláusula, com a Epígrafe 806, sob a epígrafe "Exclusão dos Riscos de Laboração", na qual pode ler-se:

"... não ficando em caso algum, cobertos os danos a terceiros causados pelo veículo seguro, bem como os danos sofridos pelo próprio veículo, desde que tais prejuízos sejam consequência dos trabalhos próprios e específicos da sua laboração ...".

12. Nas condições particulares pode ler-se, entre parêntesis (aplicáveis segundo a indicação inserta na apólice) “da apólice constam identificadas as seguintes condições especiais e particulares 001, 002, 004, 010, 015, 021, 800, 822”.

13. A cláus. preliminar n° 1 das Condições Gerais, parte I, estabelece:

"Entre a EE Companhia de Seguros SA e o tomador do seguro mencionado nas condições particulares estabelece-se um contrato de seguro que se regula pelas presentes Condições Gerais e pelas Condições Particulares e ainda se contratadas, pelas Condições Especiais".

E no n° 3 desta cláusula diz-se o seguinte:

"As Condições Especiais prevêem a cobertura de outros riscos e ou garantias além dos previstos nas presentes Condições Gerais e carecem de ser especificadamente identificadas nas condições particulares".

14. O n° 2, al. a), da Cláus. 2ª, dispõe que:

"O presente contrato garante até aos limites e nas condições nele estabelecidas a responsabilidade civil do tomador do seguro ... bem como dos seus legítimos detentores e condutores pelos danos corporais e materiais causados a terceiros".

15. A cláus. 37ª dispõe sobre o seguro automóvel facultativo e estabelece que:

"O Seguro Automóvel Facultativo rege-se pelo disposto nas Condições Particulares e nas Condições Especiais contratadas, bem como pelo disposto nas presentes Condições Gerais do Seguro Automóvel Facultativo – Parte II - e, no que não estiver especificamente regulado, pelas Condições Gerais do Seguro de Responsabilidade Civil Obrigatório - Parte I.

16. A cláus. 39ª, sob a epígrafe Cobertura Facultativa, dispõe que:

"Mediante convenção expressa e o pagamento do respectivo sobre prémio, o âmbito do presente contrato pode ser alargado, nos termos das correspondentes Condições Especiais, os seguintes riscos:

- Responsabilidade Civil Facultativa ...".

17. A cobertura de Responsabilidade Civil Facultativa encontra-se identificada nas Condições Especiais sob o n° 001.

18. Da apólice junta aos autos, sob a expressão "Condições Especiais e Particulares", consta, além de outros, o seguinte nº 001.

19. A cláus. 41ª, dispondo sobre as exclusões gerais aplicáveis a esta cobertura, estabelece no seu n° 1, al. g), que:

"Além das exclusões previstas no Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil - Parte - e nas exclusões próprias de cada Condição Especial, ficam também excluídos os:

...

g) Sinistros ocorridos em serviço diferente e de maior risco do que aquele que estiver contratado nas condições particulares".

20. AA estava grávida do terceiro filho do casal, CC, que viria a nascer após a morte do progenitor FF.

21. FF era agricultor e nessa qualidade, cerca de duas vezes em cada semana trabalhava para terceiros, auferindo o rendimento diário de € 35,00, comercializando ainda batata que produzia nas suas próprias terras e vendendo anualmente entre 1.000 e 1.500 sacas de 20 Kg à razão de 7 a € 9 cada, e bem assim providenciava daquelas suas terras (dele ou arrendadas), para consumo doméstico, variados legumes, que, fossem comprados fora, implicariam um dispêndio de cerca de € 50,00.

22. FF era um jovem adulto alegre, bem-disposto e brincalhão, cheio de vida e saúde e sempre pronto a ajudar quem dele precisava, designadamente, a esposa e os filhos, além de um excelente trabalhador, dedicado e consciencioso.

23. Era um amante da vida, da família e estimado por todos quanto com ele privavam, principalmente pelos seus muitos amigos; era um marido dedicado, companheiro e amigo e um pai extremoso e sempre presente.

24. Os AA., antes alegres e esperançosos, agora choram e vivem tristes pela morte do marido, pai e amigo muito querido.

25. A A. AA perdeu a alegria de viver.

26. Nos filhos BB e DD jamais se apaga da memória a imagem do pai dócil, e estes e o filho CC costumam ainda hoje perguntar pelo progenitor.

27. A A. despendeu com o funeral de FF a quantia de € 1.390,50.


III – Decidindo:

1. A Relação revogou a sentença recorrida com dois fundamentos:

a) Por um lado, pelo facto de o seguro de responsabilidade civil automóvel que fora outorgado relativamente ao tractor agrícola não abarcar o sinistro que ocorreu na ocasião em que efectuava trabalhos agrícolas, numa propriedade privada;

b) Por outro, pelo facto de nenhuma culpa poder ser assacada ao condutor do tractor, uma vez que acidente é exclusivamente imputável ao sinistrado.


A recorrente impugnou tal acórdão, suscitando essencialmente as seguintes questões que neste recurso devem ser respondidas:

a) O contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel abarca o acidente dos autos, uma vez que o tractor agrícola, a que estava acoplada a trituradora, desempenhava a sua função habitual na ocasião em que ocorreu o sinistro?

b) A R. seguradora é responsável por não ter informado o tomador do seguro da necessidade de outorgar seguro que cobrisse os danos emergentes do funcionamento do tractor no exercício da sua actividade?

c) A seguradora responde pelos danos, uma vez que o condutor do tractor agiu com culpa, na medida em que tinha o dever de desligar o motor ligado à picadora, sendo o seu comportamento causal da morte do sinistrado;

d) Responsabilidade que advém ainda da perigosidade do conjunto (tractor e picadora), atento o facto de que, apesar de o tractor estar imobilizado, continuava com o motor em funcionamento e accionando a picadora?


2. Nos termos do art. 4º, nº 1, do Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, “toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques … deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei”. O nº 4 exclui do regime do seguro obrigatório os veículos que sejam “utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais”.

Tais preceitos integram a maior parte das situações, mas não deixam de suscitar algumas dúvidas marginais. Na verdade, a variedade de casos e de circunstâncias é sempre mais complexa do que os conceitos usados pelo legislador para proceder à regulação antecipada dos eventos.

Inscrevendo-se os referidos preceitos num diploma elaborado com o objectivo de transpor para o direito nacional Directivas da União Europeia, é mister que da transposição e da posterior aplicação dentro de cada Estado-Membro resultem soluções idênticas que façam jus aos princípios da livre circulação de pessoas e bens e da igualdade de tratamento de todos os cidadãos no espaço da União Europeia subjacentes ao sistema garantístico previsto para os “acidentes de viação”.

O certo é que, embora exista unicidade quanto ao objectivo final projectado pelas sucessivas Directivas, a prática vem revelando que tal finalidade não tem sido inteiramente conseguida, ora por razões de ordem linguística ou conceptual, logo evidenciadas nas traduções para cada uma das múltiplas línguas oficiais, ora pela diversidade de regimes de responsabilidade civil que vigoram no espaço da União.

Muitos exemplos poderiam ser dados, mas, para o que agora interessa, as dificuldades revelam-se essencialmente na delimitação dos conceitos de “veículo automóvel”, de “circulação de veículos” ou de “acidente de viação” que surgem nas Directivas (na tradução portuguesa) e no Dec. Lei nº 291/07.


3. A este respeito é incontornável a leitura do Ac. do Trib. de Justiça da União Europeia (TJUE), de 4-9-14, 3ª Secção, proferido no âmbito do reenvio prejudicial nº C-162/13 (http://curia.europa.eu/juris...) que visou clarificar uma dúvida suscitada em torno do conceito de “circulação de veículos”, mais concretamente se o regime do seguro de responsabilidade civil automóvel abarcaria ou não a utilização de um tractor agrícola no terreiro de uma quinta, numa ocasião em que realizava uma manobra para colocar o respectivo reboque num celeiro.

Refere-se no aludido acórdão que os conceitos como “acidente”, “sinistro”, “circulação” ou “utilização de veículos”, “devem ser interpretadas de modo autónomo e uniforme em toda a UE, tendo em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objectivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra”. Depois de assinalar alguns segmentos de diversas Directivas, concluiu que um tractor com reboque ainda se inscreve na categoria de “veículos” a que, em abstracto, se destina o seguro obrigatório de responsabilidade civil.

Nesta sede, ponderou que o facto de o tractor ser utilizado como máquina agrícola não interfere naquela inclusão, desde que, ao abrigo do art. 4º da 1ª Directiva, essa espécie de veículos não tenha sido excluída pelo respectivo Estado-Membro, sendo que no que concerne a Portugal a exclusão restringe-se aos veículos referidos no art. 4º, nº 2, do Dec. Lei nº 291/07, nos termos do qual estão isentos do regime do seguro automóvel as “máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula” (“agriculture machines not subject to matriculation”, em http://ec.europa.eu/finance/insurance/docs/motor/list-exempt-5th- dir_en.pdf).

Ora, o concreto veículo que interveio no sinistro a que os autos se reportam não se encontra excluído do regime do seguro obrigatório. Malgrado tratar-se de um tractor agrícola, dispunha de matrícula (à semelhança da generalidade dos veículos automóveis) e tinha capacidade para circular de forma semelhante aos demais veículos automóveis.

A inclusão no referido regime sempre derivaria, aliás, do facto de o proprietário do tractor agrícola ter celebrado com a R. Seguradora um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil visando transferir a sua responsabilidade civil decorrente da sua utilização ou circulação.

Aliás, no caso concreto, a apreciação da responsabilidade imputada à R. Seguradora não está dependente da inclusão ou não do tractor na categoria de “veículo automóvel” (definido como tal no art. 1º da Directiva 2009/93/CE, com a concretização constante do art. 4º do Dec. lei nº 291/07), antes do facto de o sinistro constituir ou não um acidente de “circulação do veículo” cujos riscos a R. assumira por via do contrato.


4. O art. 7º da Directiva 2009/103/ CE, na tradução portuguesa, diz o seguinte:

Cada Estado-membro toma as medidas adequadas para que qualquer veículo … só possa circular no seu território se os riscos que resultam da circulação do referido veículo se encontrarem cobertos … por um contrato de seguro, efectuado de acordo com as condições fixadas por dada legislação nacional para o seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos” (sublinhado nosso).

Na tradução da Directiva para as diversas línguas nacionais foram adoptadas formulações não inteiramente coincidentes. Nuns casos, optou-se pela expressão ampla de “utilização” (v.g. Eslovénia ou Finlândia), enquanto noutros se recorreu a uma mais genérica, com exclusiva referência à obrigatoriedade de seguro “para” veículos (v.g. Alemanha, Dinamarca). Já na versão portuguesa (e também espanhola) foi adoptada a expressão “circulação de veículos”, apontando essencialmente para um contexto de circulação.

Essa opção transmitiu-se ao diploma que procedeu à sua transposição para o direito nacional. Com efeito, o conceito de “circulação de veículos automóveis” foi adoptado no art. 1º do Dec. Lei nº 291/07 para assinalar o objectivo de concretizar a transposição de Directivas “relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis”.

A insistência no verbo “circular” ou no acto de “circulação” volta a surgir no art. 4º, nºs 1 e 3, por oposição ao que consta do nº 4, nos termos do qual a obrigação de seguro não se aplica a veículos “utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais” (cfr. ainda o art. 6º, nº 3). Aquela formulação também assoma nos arts. 5º, nºs 1 e 3, 10º, nº 2, 48º, nº 1, als. a), b) e c), 54º, nº 3, 55º, nº 1, al. b), 76º, nº 1, al. d), art. 80º, nº 1, ou 85º, nº 1.

Mas logo no art. 27º, nº 1, al. h), se optou pela equiparação entre o acto de “utilização” e o de “condução de veículos”.

A opção pela “utilização” detecta-se ainda no art. 7º, nºs 1 e 2, 8º, nº 1, 30º, nº 1, 70º, nº 2, 71º, nº 2, 72º, 73º, 74º, nº 1, e 77º, nºs 1, 4 e 5. Já a “condução” consta designadamente dos arts. 27º, nº 1, al. h), e 55º, nº 3, e noutros preceitos que se referem especificamente ao “condutor”.

Estes e outros preceitos demonstram que Portugal, à semelhança do que ocorreu noutros Estados, embora tenha cumprido a obrigação de proceder à transposição das Directivas, não alcançou a desejável uniformização terminológica ou conceptual quer internamente, quer por referência a outros ordenamentos jurídicos, abrindo o campo a uma certa diferenciação do conteúdo formal que é susceptível de se repercutir na resolução de litígios.


5. Para enfrentar este risco potenciador do tratamento desigual de situações idênticas tem sido afirmado pelo TJUE, em jurisprudência constante, que a diversidade linguística porventura verificada nos diplomas de transposição de Directivas (ou mesmo nas traduções) não pode servir para legitimar resultados diversos dentro da União Europeia ou mesmo em cada Estado integrante que contrariem, por um lado, a livre circulação de pessoas e de bens e, por outro lado, o princípio da igualdade cuja violação seria potenciada por interpretações casuísticas em função das idiossincrasias de cada Estado Membro.

Para evitar esse resultado, propugna-se no citado acórdão do TJUE, de 4-9-2014, que, “em caso de divergência entre as diferentes versões linguísticas de um texto da União, a disposição em questão deve ser interpretada em função da sistemática geral e da finalidade da regulamentação de que constitui elemento”.

O mesmo aresto aponta ainda para a prevalência de um sentido que cumpra, para além do objectivo inicial das Directivas de liberalização da circulação de pessoas e bens, aquele que vem ganhando terreno na área de protecção das vítimas de acidentes causados por um veículo automóvel, contribuindo para que seja garantido que “as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido”.

É, aliás, este último objectivo que vem assumindo maior relevo nas Directivas do seguro automóvel mais recentes (neste sentido cfr. Maria José Rangel Mesquita, no comentário ao Ac. do STJ, de 13-3-07, nos Cadernos de Direito Privado, nº 25, págs. 24 e segs.), o que permite concluir - como concluiu o TJUE - que o conceito de “acidentes de circulação” também abarca os sinistros decorrentes da “utilização de veículos”.

Foi basicamente a partir de tais premissas que o TJUE concluiu no mencionado acórdão que o conceito de “circulação de veículos” adoptado nas Directivas (maxime no art. 3º, nº 1, da Primeira Directiva) “abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo”, podendo, assim, “ser abrangida pelo referido conceito a manobra de um tractor com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro”.


6. Não se nega a importância deste precedente jurisprudencial qualificado, mas a verdade é que a jurisprudência nacional desde há muito vinha admitindo a inclusão no regime do seguro obrigatório não apenas dos acidentes com intervenção dos veículos automóveis a que é dada a comum utilização rodoviária, mas ainda de outros veículos com capacidade de circulação terrestre autónoma, designadamente tractores agrícolas ou industriais, retroescavadoras, bulldozers, cilindros de compactação, empilhadores, dumpers ou outras máquinas,[1] desde que, como se previne no nº 4 do art. 4º do Dec. Lei nº 291/07, não sejam utilizados em “funções meramente agrícolas ou industriais”.[2]-[3]

Tem sido regularmente assumido por este Supremo Tribunal que os acidentes relevantes para o efeito não são apenas os típicos acidentes de circulação rodoviária, mas todos os derivados da utilização de veículos automóveis na sua função habitual, ou seja, como meios de transporte ou de locomoção autónomos.

Esta noção foi muito bem explicitada no Ac. do STJ, de 3-5-01, CJSTJ, tomo II, pág. 43, onde se afirmou que para efeitos de inclusão no regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel relevam acidentes que “podem ocorrer tanto nas vias públicas como nas particulares e, até, em locais não destinados à circulação e que não é o facto de o veículo se encontrar parado que impede que como tal se considerem”, para logo acrescentar, no entanto, que se exige que “o veículo tenha sido causa directa ou indirecta do evento”, isto é, que o acidente tenha relação com os perigos que a sua utilização efectivamente comporte”.

Tal explicitação serviu, nesse caso, para afastar a aplicação do referido regime a um “acidente que nada teve a ver com o veículo, ou com a unidade circulante (veículo-tractor), mas antes com o funcionamento de uma máquina agrícola (uma trituradora corta-forragens) atrelada ao veículo (tractor)”.

A mesma ideia, ainda que com um resultado diverso, perpassa pelo Ac. do STJ, de 13-3-08, CJSTJ, tomo I, pág. 175, sobre um tractor, a que estava acoplada uma enfardadeira, sendo o acidente causalmente imputado ao veículo enquanto “unidade circulante”.

Mais recentemente, cabe destacar o Ac. de 7-2-13, em www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere que “um tractor industrial, ainda que sem matrícula, deve ser considerado incluído no conceito de veículo automóvel”, considerando-se “«em circulação» se, no movimento de transporte de lixo que estava a efectuar dentro duma serração, ocupou, com a pá da frente, pelo menos 2 metros, da faixa de rodagem duma estrada municipal”.

Neste aresto foi retomada a fundamentação que o mesmo relator já adoptara no Ac. de 30-10-08, em www.dgsi.pt (e CJSTJ, tomo III, pág. 104), para concluir que “está abrangido pelo regime seguro obrigatório automóvel o acidente no qual uma pessoa é atingida por uma peça que caiu duma máquina retroescavadora destinada à construção civil que seguia para um terreno onde iria ser usada na preparação do solo para construção duma casa”. Invocou ainda o Ac. do STJ, de 23-11-06, em www.dgsi.pt, onde se considerou que “está abrangido pelo seguro obrigatório um acidente em que uma máquina se desloca para trás e para a frente em terraplanagem de ampliação dum caminho público e, num desses movimentos, colhe um menor”.

Semelhante entendimento já fora assumido no Ac. do STJ, de 7-11-06, em www.dgsi.pt, asseverando a aplicabilidade do regime a uma situação que envolveu uma “retroescavadora que não se encontrava na sua função específica de escavação, antes transitava pela via pública, enquanto veículo circulante, com os riscos de circulação inerentes ao comum dos veículos terrestres a motor”. Isto “não obstante a máquina circulasse de um local de trabalho para outro local de trabalho, de uma margem para a outra do rio a fim de prosseguir os trabalhos de limpeza que acabara de concluir numa delas e tivesse de passar pelo local do acidente para aceder à outra margem, pois tal situação não se distingue de outra em que se termina um trabalho e se circula, pela via pública, até ao local onde se vai dar início a um novo trabalho ou se vai estacionar a máquina”.

Também no Ac. do STJ, de 25-10-12, em www.dgsi.pt, se considerou “acidente de viação aquele que envolveu uma pá escavadora que, não se encontrava na sua função específica de escavação, antes transitava, como veículo circulante, pela via pública”. Conclusão que não suscitou qualquer polémica no Ac. do STJ, de 31-10-06 (www.dgsi.pt), sobre um acidente que envolveu um cilindro de compactação nas mesmas circunstâncias.

No Ac. do STJ, de 8-5-13, em www.dgsi.pt, a qualificação de um tractor como veículo de circulação terrestre, actuando em local não aberto à circulação, em trabalhos agrícolas, foi feita no âmbito da definição da responsabilidade civil, nos termos e para efeitos do art. 503º do CC.

Pela sua especial pertinência e actualidade em face do caso concreto e da jurisprudência recente do Tribunal de Justiça cumpre assinalar o Ac. da Rel. de Coimbra, de 10-3-15, em cujo sumário publicado na Col. de Jurisp. (e também acessível através de www.dgsi.pt, mas com outro sumário), se refere que:

“1. O atropelamento de um peão quando uma empilhadora executava uma manobra de marcha atrás, no espaço exterior circundante de um armazém, onde se realizavam operações de carga e descarga e considerado via pública, deve considerar-se um acidente abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

2. O acórdão do TJUE, proferido em reenvio prejudicial, no caso Vnuk, de 4-9-14, ao considerar que o art. 3º, nº 1, da Directiva nº 72/166/CEE deve ser interpretado no sentido de que o conceito de "circulação de veículo", para efeito da obrigação de segurar, abrange qualquer utilização de um veículo, em conformidade com a sua função habitual, vincula os Tribunais de todos os Estados-Membros a adoptar uma interpretação idêntica, quando sejam confrontados com uma questão jurídica substancialmente similar, quanto à interpretação desse normativo da aludida Directiva.

3. A interpretação do direito nacional deve efectuar-se em conformidade com as Directivas, independentemente da sua transposição, funcionando como conformidade com as Directivas a interpretação destas pelo TJUE.

4. A exclusão do âmbito do seguro obrigatório prevista no nº 4, do art. 4º, do Dec. Lei nº 291/07, apenas opera em relação a máquinas industriais utilizadas exclusivamente para fins industriais ou agrícolas, em si mesmo e que não apresentem qualquer sobreposição com utilizações próprias da circulação de veículos que gerem a obrigação de segurar no domínio do seguro automóvel”.

Esta solução, também relativamente a uma empilhadora que circulava num espaço aberto ao público, já havia sido adoptada no Ac. do STJ, de 17-6-10 (www.dgsi.pt), para efeitos de qualificar um acidente como “acidente de viação”, nos termos do art. 503º do CC. Refere-se no respectivo sumário que “o acidente num armazém de mercadorias aberto ao público ocorrido com uma empilhadora, veículo de circulação terrestre, que, quando o seu condutor efectuava manobra de marcha atrás, atingiu o lesado no momento em este escolhia mercadoria exposta para venda, tal acidente subsume-se ao disposto no art. 503.º do CC”.

Ainda que atingindo o resultado oposto, foi esta a linha seguida no Ac. do STJ, de 25-3-10, na CJSTJ, tomo I, pág. 166, que considerou excluída do regime específico do seguro automóvel um “dumper” usado como máquina industrial de transporte de inertes num local não aberto ao trânsito (numa pedreira) e que provocou danos num veículo que se encontrava estacionado a aguardar que fossem depositados na respectiva caixa os inertes para posterior transporte para outro local.

Em tal aresto decidiu-se que:

“1. Um dumper é um veículo com motor de propulsão que eventualmente transita na via pública (desde que autorizado para o efeito - cfr. Portaria n.º 387/99, de 26-05) e, como tal, uma máquina, na definição do n.º 1 do art. 111.º do Cód. da Est..

2. Enquanto veículo automóvel e com possibilidade de transitar na via pública, a sua circulação está sujeita ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

3. Tendo o acidente sido causado durante e no exclusivo desempenho funcional do dumper, em local não aberto do trânsito automóvel, mas reservado aos veículos de serviço na obra, o acidente está relacionado com os riscos próprios do funcionamento do dumper, enquanto máquina industrial, e não com os riscos inerentes à sua circulação enquanto veículo automóvel, pelo que não está coberto pelo referido seguro automóvel, mas apenas pelo seguro de responsabilidade civil de exploração (ramo construção civil).


7. Na generalidade dos casos referidos estavam em causa acidentes com intervenção de veículos diversos daqueles que tipicamente circulam na via pública, mas que, no entanto, pelas suas características e pelo modo como estavam a ser concretamente utilizados, comportavam um risco semelhante ao que esteve na génese da legislação europeia e nacional em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Especialmente a partir da Directiva 2008/103/CE pode afirmar-se que a garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e, por inerência, a amplitude dos eventos susceptíveis de encontrar guarida em tal regime, é delimitada pelos casos em que algum veículo circula ou é usado na sua função de “locomoção-transporte”.

Assim o justifica Arnaldo Costa Oliveira, em O Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, pág. 52, quando, a respeito do regime ora vigente, refere que, por exemplo, uma ceifeira-debulhadora tanto pode estar abarcada como excluída da referida garantia.

Assim, acrescenta que:

a) “Se o acidente se regista estando o veículo em locomoção, devendo-se a locomoção à circulação da máquina na via pública, deve o lesado ser ressarcido nos termos do SORCA”;

b) Devendo-se “a locomoção a operação de ceifa-debulha em terreno agrícola, deve o lesado ser ressarcido em termos de outro sistema de protecção dos lesados de responsabilidade civil, maxime ao abrigo de apólice de responsabilidade civil de exploração agro-industrial”;

c) Já se “a locomoção em terreno agrícola se dever, não à operação de ceifa-debulha, mas ao transporte (de alguém ou de algo) alheio à ceifa-debulha, deve então o acidente ter-se por coberto, por relevar a função locomoção, embora em local onde, em princípio, relevará a função agrícola/industrial”. E conclui que se o acidente com tal máquina ocorre estando parada em terreno agrícola, não está coberto pelo SORCA.


8. A apreciação da responsabilidade da Seguradora deve resultar do confronto directo com a lei do seguro obrigatório e não com o teor do clausulado contratual. Estando em causa essencialmente a tutela de interesses de terceiros e não tanto os do tomador do seguro – ainda que estes não sejam de todo alheios a um sistema que visa a transferência da responsabilidade civil, desonerando o tomador do seguro e outros sujeitos com responsabilidade civil extracontratual – a inclusão ou a exclusão de sinistros (assim como a prévia obrigatoriedade ou não de transferência da responsabilidade) não deve ser apreciada em função do clausulado geral ou particular, antes do confronto entre a realidade e o modo como o legislador – comunitário e nacional – procurou a sua regulação abstracta através da formulação de preceitos legais que se sobrepõem aos interesses individualizados.

Por isso, não seria atribuído relevo a um clausulado contratual que, de forma directa ou indirecta, excluísse a responsabilidade da Seguradora se acaso o acidente pudesse ser legalmente qualificado como “acidente de circulação ou de utilização do veículo”.

A R. Seguradora funda a exclusão da sua responsabilidade no clausulado contratual (cláus. 806), uma vez que não ficariam, em caso algum, “cobertos os danos a terceiros causados pelo veículo seguro, bem como os danos sofridos pelo próprio veículo, desde que tais prejuízos sejam consequência dos trabalhos próprios e específicos da sua laboração ...".

Visando essa cláusula excluir da sua responsabilidade riscos inerentes a trabalhos de pura laboração (trabalhos agrícolas), ainda assim revelar-se-ia ineficaz se porventura a realidade nos demonstrasse a existência de uma situação geradora de riscos emergentes da utilização ou da circulação do tractor enquanto veículo automóvel (cfr. sobre esta matéria Albuquerque Matos, O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, no BFDUC, vol. LXXVII, págs. 399 e segs., e em Estudos Dedicados ao prof. Doutor J. Almeida e Costa, pág. 609).

Nem o facto de o tractor ter acoplada na sua traseira, com ligação ao veio do motor, um engenho – uma picadora - com fins agrícolas, seria, em si relevante para excluir a responsabilidade da Seguradora. Apesar de se tratar de uma alfaia com uso exclusivamente agrícola, estaria envolvida ainda pela cobertura dos riscos inerentes à circulação ou utilização do tractor enquanto veículo automóvel, se o acidente se desse com a intervenção directa de tal apetrecho numa ocasião em que por exemplo, o tractor estivesse na sua função de transporte-locomoção.

Por conseguinte, na medida em que o tractor fosse gerador de riscos derivados da circulação ou utilização enquanto veículo, isto é, na medida em que algum acidente com intervenção do tractor pudesse considerar-se “acidente de viação”, sendo a responsabilidade imputada ao segurado, nos termos e para efeitos do art. 64º, nº 1, do Dec. Lei nº 291/07, a Seguradora responderia directa e individualmente, por via da transferência do risco através do contrato de seguro obrigatório.


9. Um tractor agrícola, como o dos autos, com ou sem alfaias agrícolas apendiculares, como a picadora, é de considerar “veículo automóvel”, cujos riscos de circulação ou de utilização deveriam ser obrigatoriamente cobertos por contrato de seguro, como veio a ocorrer.

No entanto, o acidente dos autos não reúne as características de que depende o accionamento do seguro de responsabilidade civil automóvel, sendo a responsabilidade civil da R. Seguradora excluída não em função da natureza ou das características do tractor agrícola e da respectiva alfaia, mas do facto de não poder afirmar-se, sob qualquer perspectiva, que tenha ocorrido um acidente de viação, uma vez que, na ocasião em que ocorreu o sinistro, o tractor não estava a ser utilizado na sua função habitual.

O tractor, com a picadora acoplada, estava num terreno agrícola, a pedido do próprio sinistrado, para realização de trabalhos agrícolas, mas no momento em que ocorreu o acidente encontrava-se imobilizado, inexistindo qualquer elemento de conexão entre o tractor e os riscos de circulação ou de utilização do mesmo.

De uma forma que ultrapassa todas as dúvidas que porventura ainda poderiam suscitar-se a partir da interpretação que foi dada pelo Tribunal de Justiça ao conceito de “circulação ou de utilização de veículos”, constata-se que quando o sinistrado foi literalmente “engolido” pela picadora, o tractor nem sequer estava a circular ou a ser utilizado como tal: encontrava-se imobilizado e com o sistema de travagem accionado, e só a picadora acoplada estava em funcionamento, por não ter sido desligado o motor daquele.

O tractor cumpria a mera função de força motriz da picadora, sem que o acidente possa imputar-se aos riscos próprios do veículo como tal. Não existia qualquer ligação entre os riscos próprios do tractor, na sua função habitual, e o sinistro, ocorrendo este por um motivo não explicado, mas com ligação indirecta e muito distante relativamente ao funcionamento e à utilização do tractor enquanto tal.

Em suma, estamos verdadeiramente perante um típico sinistro de laboração e não em face de um sinistro de circulação ou de utilização típica do tractor, não se encontrando coberto nem pelo seguro de responsabilidade civil automóvel que o proprietário do tractor celebrara com a R., nem pelo regime de tal seguro constante do Dec. Lei nº 291/07, de 21-8.


10. Diz a recorrente que a Seguradora é responsável na medida em que não informou o tomador do seguro da necessidade de outorgar outro seguro que cobrisse os danos emergentes do funcionamento do tractor no exercício da sua actividade.

Trata-se de um argumento que, como é óbvio, não procede, pelo singelo motivo que qualquer pretensão sustentada num alegado dever de informação apenas pode ser invocada pelo tomador do seguro e não por terceiros.

Ademais, não se encontra na matéria de facto provada qualquer sustentação para a pretensão assente em tal fundamento.


11. Mas ainda que porventura o sinistro estivesse coberto pelo contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a Seguradora não poderia ser, em concreto, responsabilizada pelos danos.

O seguro de responsabilidade civil, como o enuncia a sua designação, transfere para a seguradora a responsabilidade civil extracontratual do tomador, ou seja, do proprietário do veículo ou de outro interessado com o específico dever de celebrar o contrato. É, pois, imprescindível a demonstração dos pressupostos da responsabilidade civil na esfera do segurado para que a Seguradora possa ser civilmente responsabilizada pelos danos causalmente imputados ao acidente.

Ora, sem curar de outros aspectos, não existe fundamento para imputar ao condutor do veículo um comportamento culposo causal do acidente. Pelo contrário, tudo indica que foi a infeliz vítima que, de modo e por razões que se desconhecem, se aproximou da picadora quando esta se encontrava em rotação, numa altura em que o tractor estava imobilizado.

É óbvio que, numa perspectiva puramente naturalística da causalidade, se acaso o condutor do tractor tivesse desligado o motor o acidente não teria ocorrido ou não teria ocorrido nos moldes em que sucedeu.

Mas o simples facto de um comportamento se encontrar na linha sequencial dos eventos que antecederem um sinistro não permite imputar ao agente a responsabilidade pelos danos que decorrem de tal comportamento, na medida em que não se antolha qualquer negligência na actuação do condutor, nem o facto de a picadora ter sido deixada a funcionar implica um nexo de causalidade adequada para o evento de todo imprevisto que veio a ocorrer.

O tractor encontrava-se parado e com os travões accionados. Por seu lado, a picadora era totalmente vedada pela parte de trás e pelas laterais, não representando qualquer risco para quem da mesma se aproximasse por esses lados.

O perigo de tal engenho situava-se na sua parte dianteira, pelo que as regras de diligência mínimas aconselhavam que qualquer outra pessoa evitasse colocar-se numa posição de risco, como a que ocorreu quando, sem motivo aparente, a vítima se introduziu no espaço situado entre o rodado traseiro direito tractor e a frente da picadora, sendo aí colhido pelas respectivas lâminas, num processo causal que não está perfeitamente esclarecido mas que, atentos os factos apurados, isenta de culpa o condutor do tractor e responsabiliza exclusivamente a vítima.

Por conseguinte, também por este motivo se pode concluir que a acção soçobraria.


12. Finalmente, alega a recorrente que a responsabilidade da Seguradora sempre adviria por via do risco inerente à utilização de uma coisa perigosa.

Também esta alegação se mostra prejudicada pela resposta dada à primeira questão. Ainda assim, não cremos que pudesse encontrar guarida no preceituado no art. 493º do CC, uma vez que, como já se disse, não se evidencia qualquer comportamento do condutor do tractor que possa qualificar-se como negligente.

Ainda que um tractor a que fora acoplada a picadora pudesse sair do quadro típico do veículo automóvel submetido às regras específicas do art. 503º, numa interpretação restritiva do Assento do STJ, de 21-11-79 (que excluiu do art. 493º, nº 2, do CC, os acidentes de circulação terrestre), o certo é que a matéria de facto revela que o acidente é causalmente imputável a um comportamento gravemente negligente do sinistrado, sem qualquer contribuição culposa e causal do condutor do tractor.


III – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas da revista e nas instâncias a cargo dos AA.

Notifique.

Lisboa, 17-12-15


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo

___________________


[1] O Ac. da Rel. de Évora, de 9-3-06, CJ, tomo II, pág. 26, reporta-se a um cilindro de compactação de betuminoso.
[2] Por isso e pelo facto de entretanto o TJUE já se ter debruçado sobre a mesma problemática, culminando num resultado que é muito semelhante ao que internamente vem sendo alcançado, não se verifica sequer a necessidade de despoletar o mecanismo do reenvio prejudicial previsto no art. 267º do Tratado da UE.
Desnecessidade que decorre ainda de outro factor que adiante será abordado ligado ao facto de o acidente ser exclusivamente imputável à conduta imprevidente do sinistrado, sem a menor comparticipação do condutor ou do proprietário do tractor e, por isso, sem a menor possibilidade de determinar a responsabilidade directa da R. Seguradora.

[3] Sobre os critérios que têm sido fixados pelo próprio TJUE para o efeito cfr. Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandez, na “Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito”, na revista Julgar Online, em www.asjp.pt, e no trabalho intitulado “O porteiro e a lei. A propósito da possibilidade de interposição de recurso do despacho de reenvio prejudicial á luz do direito da União Europeia”, na revista Julgar, nº 14, págs. 113 e segs., enunciando a pertinência, a novidade e a chamada teoria do “acto claro” a respeito da interpretação de normas da UE.

Cfr. ainda sobre a jurisprudência europeia em sede de seguro obrigatório, Cunha Rodrigues e Moitinho de Almeida, em trabalhos publicados na Revista do CEJ, nº 7, págs. 35 e segs.