Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1035/10.0TYLSB-B.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 03/02/2021
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DA REVISTA NORMAL. REMETE À FORMAÇÃO PARA APRECIAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS DA REVISTA EXCEPCIONAL.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Existe dupla conformidade decisória, que obsta à admissibilidade do recurso de revista normal e ao conhecimento do seu objecto, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC, do acórdão da Relação que confirma, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, se a Relação confirma os resultados decisórios alcançados sem desvio do caminho interpretativo-aplicativo da sentença recorrida, ainda que respondendo, com adição de fundamentos, ao acervo argumentativo do apelante, desde que tal pronúncia não se estribe em inovações que traduzam um enquadramento jurídico-normativo diverso daquele em que assentara a sentença proferida em 1.a instância.
II - O art. 671.º, n.º 2, do CPC proporciona a revista de «acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual», uma vez tendo sido proferidas essas decisões pela 1.a instância, nas previsões admitidas pelas als. a) e b) desse n.º 2. Tal implica que a fundamentação da impugnação recursiva em revista "continuada" que se estriba em "erro de julgamento", sem se fundar em qualquer das hipóteses legais, exclusivas e restritas, leva ao não conhecimento dessa pretensão recursiva.
III - A apreciação das nulidades decisórias do acórdão recorrido da Relação, nos termos dos arts. 615.º, n.º 4, («As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades»), e 666.º, n.º 1, aplicáveis por força do art. 679.º, sempre do CPC, implica a admissibilidade da revista, uma vez que são fundamentos acessórios do objecto recursivo alegado.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 1035/10.0TYLSB-B.L1.S1
Revista: Tribunal recorrido – Relação ……, …...ª Secção

Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO
1. Foi declarada a insolvência da sociedade «Capitalrent – Comércio e Aluguer de Equipamentos, Lda.», por sentença de 13/10/2010, transitada em julgado, e declarado aberto o respectivo incidente de qualificação de insolvência, com carácter pleno, tramitado por apenso (arts. 188º, 1, 132º, 188º, 8, CIRE). As Interessadas Credoras «Société Solem, S.A.» e «Société Haulotte Group» (requerente da insolvência nos autos principais) vieram apresentar alegações nos termos do artigo 188º, 1, do CIRE, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa e solicitando a afectação dos gerentes da insolvente AA, BB e CC.
O Senhor Administrador da Insolvência (AI) emitiu e juntou aos autos o seu parecer, de acordo com o previsto no art. 188º, 2, do CIRE, propondo a qualificação da insolvência como culposa com fundamento no facto de a insolvência ter sido fruto de um plano de transferência da actividade da insolvente para uma sociedade com o mesmo nome, a «Vendap Loc». Entre 2006 e 2008 a insolvente cedeu as participações sociais que detinha em empresas do grupo e adquiriu participações em sociedades insolventes ou sem atividade. As transmissões das participações sociais não apresentaram contrapartidas em termos de receitas registadas nas contas da insolvente. Apesar dessa transmissão, a insolvente manteve-se ou constituiu-se garante das sociedades em que detinha participações. A insolvente transmitiu os seus equipamentos, reduziu o seu ativo e cessou a sua atividade e, apesar de ter sido condenada em Julho e Setembro de 2008 no pagamento dos créditos das Interessadas Credoras, a insolvente não registou estas responsabilidades nas contas de 2008 e 2009. Tendo por base as contas sociais depositadas não se vislumbra para onde possa ter ido o produto das alienações. Indica como pessoas a serem afetadas os gerentes da insolvente AA, BB e CC.
Os autos foram com vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 188º, 3, do CIRE, pronunciando-se aquele no sentido da qualificação da insolvência como culposa, por força dos elementos carreados para os autos, designadamente a auditoria às “contas” da insolvente, resultando daí condutas susceptíveis de preencher as alíneas a), f) e h) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE. Indica como pessoas a serem afectadas os mesmos gerentes da insolvente.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 188º, 6, do CIRE, tendo a Insolvente sido notificada e os visados AA, BB e CC para se oporem, querendo. Os Requeridos BB e CC AA vieram deduzir oposição, assim como a insolvente. Após, as Interessadas Credoras responderam à oposição, arguindo a excepção dilatória de ilegitimidade da insolvente.

2. Foi proferido despacho saneador em 11/3/2019, onde se julgou improcedente a (invocada pelas Interessadas Credoras «Société Solem, S.A.» e «Société Haulotte Group») excepção dilatória de ilegitimidade passiva da devedora insolvente e fixou-se o objecto do litígio, os factos/temas assentes e os temas da prova. Proferiu-se ainda despacho sobre os requerimentos efectuados sobre a prova testemunhal e documental.
Em 18/3/2018, as Requerentes apresentaram requerimento para ser admitido o rol de testemunhas apresentado em 18/6/2014. Por sua vez, a Insolvente e AA apresentaram o requerimento de fls. 1246-v a 1249, concluindo, depois de requerer o aditamento de factos e alterações dos temas da prova, que fossem “deferidas as reclamações apresentadas e modificados, em consonância, os Temas da Prova enunciados no Despacho com a ref. CITIUS n° ……”.
Em 5/4/2019 foi proferido despacho sobre requerimento de aditamento ao rol de testemunhas (das Requerentes, como relatado).
A insolvente arguiu a nulidade de tal despacho por violação de “caso julgado formal” (art. 195º, 1, CPC, ex vi art. 17º do CIRE), em requerimento de 22/4/2019, na parte em que admitiu o rol de testemunhas apresentado pelas Interessadas na resposta à oposição.
Em 8/5/2019, foram proferidos despachos pelo juiz de 1.ª instância, em que:
(i) se decidiu a reclamação do despacho saneador feita pela insolvente quanto ao aditamento de novos factos e aos temas da prova, sendo indeferida nos seguintes termos conclusivos: “Não há assim que aditar qualquer facto ou tema da prova”;
(ii) se decidiu a aludida nulidade processual fundada no art. 195º, 1, do CPC, sendo igualmente indeferida.  

3. Foi realizada audiência final de discussão e julgamento em sessões de 31/5 e 12/9/2019.

4. Foi proferida sentença em 15/10/2019 pelo Juiz …. do Juízo de Comércio …. do Tribunal Judicial da Comarca …. (fls. 1273 e ss), decidindo:
 “Pelo exposto, qualifica-se como culposa a insolvência de Capitalrent – Comércio e Aluguer de Equipamentos, Lda. [por convocação e aplicação do art. 186º, 2, h), do CIRE], declarando afectado pela mesma o seu gerente AA.
Em consequência:
a) Declara-se a inibição, pelo período de três anos, a contar do trânsito em julgado desta decisão, de AA para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação provada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
b) Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA.
Não se declaram afectados os Requeridos BB e CC.”

5. Inconformados com os despachos proferidos em 8/5/2019 e com a sentença proferida em 15/10/2019, a Insolvente e AA interpuseram recursos de apelação para o Tribunal da Relação …..
Foi proferido acórdão em 20/2/2020, no qual se decidiu o impugnado quanto aos despachos recorridos – mantendo-se/confirmando tais despachos proferidos, com excepção da procedência quanto ao aditamento do facto assente n.º 16-A, pelo que “Quanto a essa matéria e nessa medida, fica prejudicada a impugnação do julgamento de facto efetuada pelos apelantes” –, julgou-se procedente a impugnação da matéria de facto (dando-se por assente o facto sob o n.º 16-B), improcedente a invocação da não qualificação como culposa da insolvente de acordo com o previsto no art. 186º, 2, h), do CIRE e, finalmente, improcedente a não aplicação ao gerente afectado da medida e duração de inibição a que alude o art. 189º, 2, c), do CIRE; também se decidiu não apreciar a inconstitucionalidade das interpretações extraídas dos arts. 186º, 2, h), e 189º, 2, do CIRE. Concluiu-se: “decide-se julgar improcedentes os recursos de apelação interpostos mantendo-se os despachos e sentença recorridos”.

6. Neste aresto, estabilizou-se a seguinte factualidade provada:

1. Em 30.07.2010, Société Haulotte Group requereu a declaração de insolvência de Capitalrent – Comércio e Aluguer de Equipamentos, Lda.
2. Capitalrent – Comércio e Aluguer de Equipamentos, Lda. foi declarada insolvente por sentença de 13.10.2010.
3. O Administrador da Insolvência reconheceu créditos no montante de 11.683.741,21 €, dos quais:
a) 4.682.392,17 € à Lage Laden B.V.;
b) 979.878,91 € à Société Haulotte Group;
c) 3.152.881,96 € à Société Solem, S.A..
4. A insolvente tinha como objeto social o aluguer de máquinas, equipamentos e transportes destinados à construção, instalação e montagem de empreendimentos industriais ou realização de obras públicas; comercialização e representação de máquinas e equipamentos, bem como a sua conservação, manutenção e conservação.
5. BB e CC foram nomeados gerentes da insolvente em 5.11.2004.
6. AA foi nomeado gerente da insolvente em 30.12.2005.
7. Pela Ap. …. de 8.01.2009 foi registada a cessação de funções de BB e CC por renúncia em 25.07.2008.
8. A insolvente depositou na conservatória do registo comercial as contas até ao exercício de 2009 inclusive.
9. No Balanço da requerente referente a 31.12.2006 consta:
a) O activo de 16.292.491,64 €;
b) O passivo de 8.045.835,01 €;
c) O capital próprio de 8.246.656,63 €;
d) O resultado líquido do período de - 250.185,11 €.
10. No Balanço da requerente referente a 31.12.2007 consta:
a) O activo de 8.319.996,35 €;
b) O passivo de 3.451.103,50 €;
c) O capital próprio de 4.868.892,85 €;
d) O resultado líquido do período de - 3.377.763,78 €.
11. No Balanço da Requerente referente a 31.12.2008 consta:
e) O ativo de 6.532.094,00 €;
f) O passivo de 1.913.907,05 €;
g) O capital próprio de 4.618.186,95 €;
h) O resultado líquido do período de - 250.185,95 €.
12. No Balanço da requerente referente a 31.12.2009 consta:
i) O ativo de 5.046.198,96 €;
j) O passivo de 577.701,28 €;
k) O capital próprio de 4.471.497,68 €;
l) O resultado líquido do período de – 146.689,27 €.
13. Por carta datada de 5.09.2005, a Lage Laden International, B.V. – Sucursal em …. interpelou a insolvente, na qualidade de fiadora da sociedade Plataformas de Madrid para, no prazo de 10 dias, pagar a quantia de 1.368.128,71 €.
14. Por sentença de 23.07.2008, proferida pelo Tribunal de Comércio  …, …., a insolvente, na qualidade de fiadora da sociedade Levap France, foi condenada a pagar, solidariamente com a sociedade Equifly – Comércio de Equipamentos, Lda., à Société Solem, S.A. a quantia de 204.305,53 €, acrescida dos juros legais a contar de 1.03.2006 (data da primeira interpelação).
15. Por sentença de 23.07.2008, proferida pelo Tribunal de Comércio ……, …, a insolvente, na qualidade de fiadora da sociedade Levap France, foi condenada a pagar, solidariamente com a sociedade Equifly – Comércio de Equipamentos, Lda., à Société Haulotte Group a quantia de 671.140,66 €, acrescida dos juros legais a contar de 1.03.2006.
16. Por sentença de 24.08.2008, proferida pelo Tribunal de Comércio …, …, a insolvente foi condenada, na qualidade de garante da sociedade Plataformas de Madrid, a pagar, solidariamente com esta e com a Equifly – Comércio de Equipamentos, Lda., à Société Soiem, S.A. a quantia de 2.045.285,59 €, acrescida dos juros legais a contar de 26.10.2006 (data do env:io da carta de notificação), e autorizada a proceder ao pagamento em 12 mensalidades iguais, sendo a primeira no prazo de um mês.
16-A. Por requerimento de 26 de maio de 2009, as requerentes intentaram ação executiva para cobrança desse montante contra a aqui devedora, cuja citação foi expedida em 23-03-2010 e realizada nesse ano. [Aditado pela Relação.]
16-B. Com referência a essa ação executiva o respetivo título executivo europeu foi emitido em 18 de março de 2009. [Aditado pela Relação.]
17. Nas contas dos exercícios de 2007 a 2009, os créditos da Lage Laden International, B.V. – Sucursal em …… e da Société Solem, S.A. identificados em 13 e 16 não contam reconhecidos no passivo da insolvente.
18. No anexo ao balanço e à demonstração de resultados dos exercícios de 2007 e 2008, consta indicado no ponto referente às responsabilidades da empresa por garantias prestadas a existência de garantias a favor da sociedade Plataformas de Madrid no montante de 47.748.927,00 €.
19. No anexo ao balanço e à demonstração de resultados do exercício de 2009, consta indicado no ponto referente às responsabilidades da empresa por garantias prestadas a existência de garantias a favor da sociedade Plataformas de Madrid nos montantes de 1.368.128,61 € (referente a contratos de plataforma de Lage Laden International, B.V.) e de 2.606.160,14 €.
20. Em 2007, havia indicação que a sociedade Plataformas de Madrid  estava em negociações com as suas credoras.
21. Em 2007, por as suas contas bancárias terem sido penhoradas, a insolvente efetuava parte dos pagamentos e recebimentos através de conta no Banco Comercial Português, S.A. em nome da sociedade Comgerap – Venda e Aluguer de Compressores e Geradores Lda.
22. Em 2007, os recebimentos eram registados primeiro na conta “Caixa” è depois transferidos para a conta “Bancos”.
23. Em 2007, o montante para os pagamentos era primeiro transferido da conta “Bancos” para a conta “Caixa” e só depois efetuado o pagamento.
24. Em setembro de 2005, a insolvente comunicou aos seus clientes que a atividade de aluguer de gruas, compressores e geradores passaria a ser efetuada pela sociedade Vendap Loc – Aluguer e Venda de Equipamentos, S.A.
25. A partir de setembro de 2005, a insolvente deixou de exercer a atividade prevista no seu objeto social, limitando-se à venda do seu ativo (equipamentos e participações sociais) e ao pagamento de dívidas.
           
Não provado:

a) Os equipamentos da insolvente tenham sido transmitidos sem recebimento de qualquer contrapartida.

b) Após 30.07.2007, a insolvente tenha constituído garantias a favor de sociedades de que já não era sócia.

c) Os Requeridos BB e CC se afastaram da gerência da insolvente em data anterior a 25.07.2008.

d) Até 25.07.2008, o Requerido AA foi gerente não executivo.

7. Novamente sem se resignar, a Insolvente e o Requerido AA vieram interpor recurso de revista para STJ, invocando oposição de julgados com o acórdão proferido pela Relação de Coimbra em 22/5/2012, para os efeitos de aplicação dos arts. 14º do CIRE, 629º, 2, d), e 671º, 2, a), do CPC; a relevância jurídica e especial e interesse social das questões recursivas à luz do art. 672º, 1, a) e b), do CPC, para efeitos de interposição a título subsidiário de revista excepcional; nulidade do acórdão recorrido à luz do art. 615º, 1, c), do CPC; erro de julgamento na decisão de indeferimento da reclamação contra a selecção dos temas da prova e de indeferimento da decisão de admissão do rol de testemunhas; erro de julgamento na decisão de manutenção da sentença de 1.ª instância, tanto quanto à qualificação da insolvência como culposa, assim como quanto à afectação e inibição do gerente AA.

Termos em que concluem: “(i) Deve ser admitido o presente recurso com fundamento em oposição de julgados ou, quando assim se não entenda, com fundamento na especial relevância jurídica da questão subjacente, ou ainda, por estarem em causa interesses de particular relevância social. ii) Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, a. Ser declarada a nulidade do Acórdão recorrido, por violação do disposto no artigo 615º, nº 1, al. c) do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 666º do mesmo diploma e do artigo 17º do CIRE, com todas as legais consequências. b. Ser revogado o Acórdão recorrido, na parte em que indeferiu o aditamento aos Temas da Prova de um tema denominado as reais causas da insolvência, abrangendo a matéria dos artigos 63º, 64º e 67º a 85º da Oposição, e substituído por outro que defira tal aditamento, de molde a que seja possível aos Recorrentes a produção de prova em sede de Audiência de Discussão e Julgamento sobre essa matéria, com todas as legais consequências; Caso assim se não entenda, sem conceder, c. Ser revogado o Acórdão recorrido, na parte em que manteve o despacho que admitiu o rol de testemunhas extemporaneamente apresentado pelas Requerentes, com todas as legais consequências. Caso assim se não entenda, sem conceder, d. Ser revogado o Acórdão recorrido, por violador do disposto nos artigos 186º, nº 1 e nº 2, al. h) e 189º, nº 2 do CIRE, na redacção anterior à Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, e dos artigos 1º, 2º e 20º, n.os 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, e substituído por outro que julgue a insolvência fortuita, sem afectação do Recorrente AA ou, quando assim se não entenda, sem conceder, que reduza a inibição aplicada nos termos da alínea c) do número 2 do artigo 189º do CIRE ao mínimo legalmente admissível.”

Os Recorrentes apresentaram nos autos a certidão, com nota de trânsito em julgado, do acórdão que fundamenta a oposição de julgados invocada no recurso (fls. 1488 e ss).

As alegações do Ministério Público constam de fls. 1507 e ss dos autos, pugnando pela negação de provimento ao recurso.

As Interessadas Credoras, já identificadas, apresentaram contra-alegações, que fazem fls. 1510 e ss, invocando a inadmissibilidade e impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso e, se conhecido em parte, ser julgado improcedente.

                    

8. Foi proferido despacho no âmbito da previsão do art. 655º, 1, ex vi art. do CPC, vistas as circunstâncias processuais que poderiam obstar ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal interposto a título principal, de acordo com os arts. 671º, 1 e 2, do CPC, depois de adequação processual, atento em particular o previsto no art. 671º, 3, do CPC.

Responderam os Recorrentes, pugnando pela admissibilidade do recurso ao abrigo do art. 14º, 1, do CIRE e, se assim não se entendesse, a sua apreciação ao abrigo das alíneas a), b) e c) do disposto no art. 672º, 1, do CPC, para efeitos de revista excepcional (sendo o último dos fundamentos obtido por convolação do art. 14º, 1, do CIRE no art. 672º, 1, c), do CPC).

9. A finalizar as alegações do seu recurso, os Recorrentes apresentaram as seguintes Conclusões:

“(…)

a) Da admissibilidade do presente recurso por contradição de julgados

Invoca-se como fundamento do presente recurso, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 14º, nº 1, in fine do CIRE e nos artigos 629º, nº 2, alínea d) e 671º, nº 2, alínea a), do CPC, ex vi artigo 17º do CIRE, a oposição de julgados entre o Acórdão recorrido e o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 22 de Maio de 2012, de que se junta cópia retirada de https://www.dgsi.pt como Documento nº 1 e dá por integralmente reproduzido, e de que foi já requerida passagem de certidão por requerimento que se junta como Documento nº 2 e dá por integralmente reproduzido, protestando juntar-se a certidão logo que a mesma seja entregue aos Recorrentes.

Ambas as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação o CIRE, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 185/2009, de 12/08 e versam sobre a mesma questão fundamental de direito: em particular, admissibilidade da ilisão da presunção contida na alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, no sentido da demonstração de que a mesma não foi culposa, ou que não conduziu à criação ou agravamento da situação de insolvência, ou, pelo menos, a sua interpretação com particular exigência – e que foram proferidas no domínio da mesma legislação.

O Acórdão-fundamento transitou já em julgado, não tendo sido proferida jurisprudência uniformizada por este Supremo Tribunal conforme com o Acórdão recorrido.

No caso sub judice se discute a correcção ou incorrecção da inclusão de um determinado passivo não na coluna do passivo do balanço mas, ainda, no anexo à demonstração de resultados, que igualmente integra as contas; no Acórdão-fundamento, estava-se também perante a alegada prática pelo visado uma irregularidade contabilística, consistente, in casu, na ausência de registo contabilístico de um aumento de capital registado, que se reputou fictício e, como tal, relevante para a compreensão da situação da sociedade.

No Acórdão a quo considerou-se, todavia, que essa irregularidade preenchia, inelutavelmente, a presunção da alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE e que, nesse cenário, estariam os Recorrentes absolutamente impedidos de qualquer demonstração no sentido de que essa irregularidade não tinha nem sido culposamente causada, nem contribuído, de todo, para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não se admitindo, sequer, uma particular exigência na aferição dos pressupostos de preenchimento daquela alínea.

Já no Acórdão-Fundamento, supra citado, sustentou-se que o caso da alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, pela sua natureza e propósito, justificaria a possibilidade de ilisão dessa presunção, ou no mínimo, a ponderação especialmente gravosa dos respectivos pressupostos.

b) Subsidiariamente, da admissibilidade do presente recurso atentos a relevância jurídica e o especial interesse social da questão sub judice

O Acórdão recorrido convoca (como convocava já a própria Sentença de Primeira Instância) um conjunto de questões complexas, interligadas entre si, e escassamente tratadas na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que têm, ademais, inequívoco relevo e interesse sociais.

Prendem-se tais questões com a aplicação do disposto no artigo 186º, nº 2, em particular a qualificação da alínea h) do CIRE enquanto presunção inilidível, insusceptível de prova em contrário quer no que concerne à culpa dos visados, quer quanto às consequências de tal actuação na criação ou agravamento da situação de insolvência (questão a que se aludiu já no capítulo anterior, e que aqui se dá por integralmente reproduzida),

10ª E, bem assim, a da determinação da aplicação, ipso facto, das sanções previstas no artigo 189º, nº 2, designadamente sem permitir nelas reflectir a aludida ausência de culpa ou consequências da actuação.

11ª Tais questões contendem fundamentalmente com um dos pilares do direito insolvencial, tal como configurado pelo Legislador – o da prevenção e sancionamento de actuações que contribuam para a insolvência, responsabilizando os respectivos agentes, por via da qualificação da insolvência, tendo natureza manifestamente complexa, considerando, em particular, a conciliação das aludidas presunções com o principio da culpa e o direito ao contraditório.

12ª As respectivas sanções aplicáveis não são, de todo, de somenos, podendo (à luz do direito anterior à Lei nº 16/2012, de 20/04, aplicável ao caso sub judice [Actualmente ainda mais gravoso, em virtude da possibilidade de responsabilização integral do património dos visados pelas dívidas da Insolvente.]) redundar na absoluta exclusão dos visados do comércio por um período até 10 anos.

13ª A análise e aplicação casuística de tais questões contende com todas as fases processuais do incidente de qualificação, reflectindo-se não só na apreciação jurisdicional do mérito contida na Sentença, como também no próprio momento de saneamento dos autos, v.g., materializando-se na exclusão, ou não, logo em sede de fixação dos Temas da Prova, da possibilidade de levar factos alegados a julgamento, com a inerente limitação dos respectivos direitos de defesa.

14ª É da maior relevância delimitar com segurança e precisão o conteúdo dos normativos em apreço, que têm abrangente e diária aplicação, com extensão a um sem-número de casos no comércio, quer a titulo repressivo (enquanto guia que deve reger a actuação empresarial, sob pena das consequências), quer a título punitivo (já em sede da conduta processual a envidar no decurso de um processo de insolvência).

15ª Tendo tais normas, em rigor, foros de universalidade, atenta a sua evidente extensão a todos os operadores económicos; em suma, a toda a tessitura empresarial, apresentando, pois, um interesse marcadamente comunitário, que não meramente individual ou casuístico.

16ª O objecto deste Recurso preenche o requisito vertido na alínea a) do artigo 672º, nº 1 do CPC, assumindo-se a apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça das questões que aqui lhe são submetidas, pela manifesta relevância jurídica que revestem, e pelo seu inequívoco interesse social, como absolutamente essencial a uma melhor compreensão e aplicação do Direito e devendo, pois, ser admitida por Vossas Excelências, Senhores Juízes Conselheiros, a presente Revista Excepcional, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 672º do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 17º do CIRE.

c) Da nulidade do Acórdão recorrido por contradição entre a fundamentação e a decisão

17ª Embora no corpo do Acórdão a quo (pontos 3 e 4) resulte clara a decisão proferida pelo Tribunal recorrido no sentido da procedência do recurso interposto pelos Recorrentes a respeito do aditamento à matéria assente de dois novos factos (16-A e 16-B), a final, concluiu o Tribunal da Relação ….. pela integral improcedência “dos recursos de apelação interpostos mantendo-se os despachos e sentença recorridos”.

18ª Tal dispositivo, manifestamente incongruente com os segmentos decisórios parcelares ínsitos nos aludidos pontos 3 e 4 do Acórdão, encerra evidente contradição, preenchendo, assim, o disposto no artigo 615º, nº 1, al. c) do CPC, ex vi do disposto no artigo 666º, nº 1 do mesmo diploma, que comina com nulidade tal contradição.

19ª Requer-se em consequência a Vossas Excelências, Senhores Juízes Conselheiros, se dignem conhecer e declarar a identificada nulidade, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, al. c), ex vi do artigo 666º, nº 1 do CPC, e no artigo 684º, nº 1 do mesmo diploma, suprindo-a, declarando em que sentido a decisão deve considerar-se modificada e conhecendo dos demais fundamentos do presente recurso.

d) Do erro de julgamento na decisão de indeferimento da reclamação contra a selecção da matéria assente e temas da prova

20ª Deveria o Tribunal a quo ter aditado ao elenco dos Temas da Prova um novo Tema, contendo os factos alegados pela Insolvente nos artigos 63º a 85º da sua Oposição (salvo o teor nos artigos 65º e 66º, caso viesse a proceder a reclamação a respeito da matéria assente), que integrava a impugnação motivada deduzida contra o Requerimento Inicial, e a sua prova, que os aqui Recorrentes tinham, e têm, direito a realizar, relevando para a demonstração de quais foram as efectivas circunstâncias que conduziram à insolvência, que não as alegadas pelas Requerentes.

21ª O actual artigo 596º do CPC mantém ínsita a exigência constante do artigo 511º, nº 1 do anterior CPC, que impõe que os Temas da Prova sejam seleccionados de acordo com as várias soluções plausíveis da causa, permitindo a amplitude na produção da prova, e não consignando, apenas, o eventual pré-juízo que o Tribunal tenha da configuração do litígio.

22ª No caso vertente, não era lícito cercear a prova daquela factualidade, que se afigurava relevante para integrar e contextualizar a conduta da Insolvente e dos seus gerentes no que diz respeito à actividade da sociedade a partir dos anos de 2005 e 2006, para determinar a possível interferência de causas prévias que tenham conduzido à insolvência naqueles anos e, em qualquer caso, e sem conceder, para determinar a medida da culpa do Gerente afectado pela qualificação.

23ª Ao decidir diversamente, fez o Tribunal a quo errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 596º do CPC, devendo ser por Vossas Excelências revogado nesta parte o Acórdão a quo e substituído por outro que admita o aditamento aos Temas da Prova de um tema denominado as reais causas da insolvência, que abranja a matéria dos artigos 63º, 64º e 67º a 85º da sua Oposição, de molde a que seja possível aos Recorrentes a produção de prova em sede de Audiência de Discussão e Julgamento sobre essa matéria, com todas as legais consequências.

e) Do erro de julgamento na decisão de admissão do rol de testemunhas constante da resposta à oposição

24ª Com assento no entendimento de que o momento próprio para indicação da prova pelos Requerentes da qualificação não seria o do requerimento que dá início ao incidente, mas o da resposta que aqueles entenderam oferecer à Oposição, julgou ainda o Venerando Tribunal a quo, em apreciação do recurso autónomo interposto da decisão que admitiu a alteração ao rol de testemunhas indicado pelas Requerentes do incidente em sede de resposta à Oposição, improcederem os argumentos dos Recorrentes no sentido da inadmissibilidade dessa alteração.

25ª Ainda que se admita a apresentação de rol de testemunhas na resposta à Oposição de um interessado que não tenha apresentado o Requerimento Inicial de qualificação da insolvência, porquanto esse é o primeiro momento de intervenção que tem nos autos, tal não deverá já suceder quando a resposta é apresentada pelo Requerente desse mesmo incidente, que nessa peça processual teve inteira oportunidade de alegar os factos que entendeu relevantes – e que balizam o incidente deduzido –, e indicar os pertinentes meios de prova.

26ª O sentido do disposto no artigo 25º, nº 2 do CIRE (e, por inerência, nos artigos 188º, nº 8 e 134º, nº 1 do mesmo diploma) não é, manifestamente, o de permitir a uma das partes usufruir de dois momentos para indicar prova, mas antes de um único momento, contemporâneo com o da respectiva alegação.

27ª Ao decidir diversamente fez o Tribunal a quo incorrecta aplicação do disposto no artigo 25º, nº 2 do CIRE e, bem assim, dos artigos 188º, nº 8 e 134º, nº 1 do CIRE, que para o mesmo remetem, impondo-se a revogação, por Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, da decisão recorrida nesta parte, substituindo-a por outra que revogue o despacho que admitiu o rol de testemunhas extemporaneamente apresentado pelas Requerentes e, em consequência, determine igualmente a revogação da Sentença de Primeira Instância e a baixa dos autos ao Tribunal de Comércio de ….., com todas as legais consequências.

Caso assim se não entenda, sem conceder,

f) Do erro de julgamento na decisão de manutenção da sentença a quo

28ª Não se encontram verificados os requisitos que determinariam o preenchimento in casu da hipótese normativa constante do artigo 186º, nº 2, al. h) do CIRE, que fundou exclusivamente a qualificação da insolvência como culposa, e que pressupõem um duplo e cumulativo critério: (i) a prática pelo gerente visado de um acto qualificado como irregularidade (contabilística); e que (ii) essa irregularidade prejudique, de forma relevante, a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

29ª Apesar da Sentença proferida pelo Tribunal …. em 2008 (cfr. facto provado 16 da Sentença), a Plataformas de Madrid, devedora originária, encontrava-se ainda em 2008 e 2009, tal como em 2007, a negociar o pagamento da dívida garantida pela Insolvente.

30ª A Sentença do Tribunal …. apenas recebeu o competente exequatur (através da emissão do Título Executivo Europeu) em 18 de Março de 2009, pelo que apenas foi reconhecida na nossa ordem jurídica, enquanto realidade susceptível de produzir efeitos patrimoniais na esfera da Insolvente - e, como tal, de ter relevo para efeitos de determinar a existência segura de um seu passivo - após a emissão do aludido título.

31ª A Insolvente foi citada para os termos da execução proposta com base nesse mesmo título executivo europeu somente no final de Março de 2010, data em que foi interpelada para pagar em 20 dias ou opor-se à Execução, e tomou conhecimento do reconhecimento daquela Sentença.

32ª O título executivo europeu não é uma mera facilidade com relevo único para efeitos de mais célere execução, como parece ter considerado o Venerando Tribunal a quo, mas uma verdadeira substituição do procedimento de exequatur, essencial ao reconhecimento de Sentença estrangeira na nossa ordem jurídica.

33ª Atentos os dados existentes à época que vêm de se enunciar, foi contemporaneamente ajuizado nessa elaboração, pelo Técnico Oficial de Contas respectivo, que não deveria haver alteração do critério até então praticado, designadamente nas contas de 2007, auditadas pela Deloitte (que nenhuma questão levantou a esse respeito), de reflectir essas responsabilidades no Anexo às demonstrações financeiras, não configurando tal opção qualquer irregularidade.

34ª Quando em 2010 a Insolvente foi citada para os termos da acção executiva em análise, reflectiu então tal realidade no passivo contingente, passando essas responsabilidades a figurar entre os passivos da sociedade.

35ª Ainda que se entendesse que a mera prolação da Sentença pelo Tribunal ...... (sem citação para qualquer acção executiva) era susceptível de determinar a alteração do critério de reconhecimento das responsabilidades, no que se não concede, não poderia em qualquer caso admitir-se que a mesma produzisse qualquer efeito em Portugal antes da emissão do título executivo europeu, que determinou o seu reconhecimento na ordem jurídica portuguesa, pelo que apenas nas contas relativas ao ano de 2009 haveria que proceder a esse reconhecimento.

36ª Não se aceita a qualificação como irregularidade da conduta assacada à Devedora, para efeitos de preenchimento do pressuposto da alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, na medida em que essa conduta consubstancia uma opção, com assento na discricionariedade técnica exercida por quem elabora as contas (o TOC), na forma de aplicação de uma norma contabilística, e não qualquer desaplicação do regime legal aplicável ou ocultação de responsabilidades.

37ª Mesmo que o Recorrente AA, enquanto Gerente, tivesse dúvidas sobre a bondade do critério adoptado a respeito do reconhecimento da responsabilidade em causa, não se crê que lhe fosse exigível sindicar – e contrariar! – tecnicamente o juízo da entidade competente para a elaboração das demonstrações contabilísticas da sociedade, pelo que nunca lhe poderia ser assacada a prática da aludida irregularidade, ainda que existente (no que se não concede).

38ª O conceito de prática subjacente à norma contida na alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE implica uma interferência consciente por um determinado sujeito na realidade contabilística expressada ou a expressar, no sentido de a modificar em sentido antijurídico, por contrário às normas contabilísticas aplicáveis.

39ª Se é verdade que, quanto à obrigação de manter contabilidade organizada, ou de não manter contabilidade fictícia ou dupla contabilidade, essa actuação será certamente imputável a um administrador ou gerente da sociedade, e se é verdade também que, quanto às irregularidades, será de responsabilizar o órgão de administração, caso as mesmas decorram de omissão de informação relevante, ou prestação de informação incorrecta, a quem elaborou as contas, num caso como o vertente, em que não há ocultação de qualquer das responsabilidades por garantias prestadas e a suposta irregularidade decorre de uma interpretação eminentemente técnica das normas que regem a elaboração de demonstrações contabilísticas sobre o ponto das contas em que devem ser incluídas, o administrador ou gerente não pode, nem deve, sobrepor-se ao juízo do especialista na matéria, a quem essa elaboração está cometida.

40ª A assim não ser, entendendo-se que ao gerente, por ser responsável pela apresentação das contas, lhe é, necessária e independentemente de prova, ou culpa, imputável toda e qualquer irregularidade, mesmo aquelas que não tem o poder de conhecer ou evitar, sem atender às circunstâncias concretas para aferir se, no caso, a prática da irregularidade lhe é atribuível, sempre estaríamos perante uma interpretação manifestamente inconstitucional do disposto no artigo 186º, nº 2, al. h) do CIRE, por violadora do princípio da culpa, da segurança jurídica e do direito à tutela jurisdicional efectiva, constantes dos artigos 1º, 2º e 20º, nos 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que aqui expressamente se argui, requerendo-se, em consequência, a desaplicação ao caso sub judice do disposto no artigo 186º, nº 2, al. h) do CIRE, na interpretação violadora da nossa Lei Fundamental.

41ª Não corresponde à realidade que a pretensa irregularidade tenha causado prejuízo relevante para qualquer compreensão da situação da empresa.

42ª Primeiramente, por inexistirem os supostos destinatários dessa compreensão (aqueles com quem a Devedora lidaria na sua actividade) uma vez que, como provado nos autos – cfr. facto provado nº 25), a Devedora não estava no comércio desde 2005.

43ª Por outro lado, a situação contabilística da sociedade não foi a causa da sua insolvência, querendo com isto dizer que a Devedora não foi declarada insolvente por ter um passivo superior ao activo – que não tinha, nem passaria a ter caso não tivesse sido cometida a suposta irregularidade, como aliás o Tribunal a quo assinala –, mas com base no critério do cash flow, i.e., por não conseguir cumprir com a totalidade das suas obrigações vencidas.

44ª O critério da relevância deve ser aferido, de forma restrita e rigorosa, em função da criação, ou não, de uma real lacuna de compreensão geradora de alterações nos comportamentos previsíveis daqueles que interagiam com a sociedade, no sentido da convicção quanto à sua solvência. O que, no caso, não sucedeu.

45ª O preenchimento das alíneas do número 2 do artigo 186º do CIRE deve, necessariamente, ser conciliado com o disposto no número 1, i.e., cumprindo aferir se a prática dos factos enunciados nas alíneas daquele primeiro número conduziu, efectivamente, ou não, ao agravamento ou criação da insolvência, e tomando em conta a ocorrência de causas alternativas, ou até efectivas, da situação de insolvência – as reais causas da insolvência.

46ª As reais causas da insolvência no caso vertente, tal como bem assinaladas pela Unidade Técnica  da Polícia Judiciária na perícia realizada às contas da Insolvente 2006-2009, “radicam na dimensão e persistência dos prejuízos sofridos a partir do ano de 2006, em consequência da redução do volume de negócios a valores insignificantes verificando-se uma quase paragem da sua actividade em 2006, ano em que o volume de negócios se quedou em cerca de cem mil euros, contrastando com os mais de dez milhões do ano anterior. […] A insolvência da sociedade “Capitalrent – Comércio e Aluguer de Equipamentos, Lda. tem como causas remotas as dificuldades financeiras sofridas em anos anteriores a 2006 e, como causas próximas e determinantes, a redução e posterior cessação total da actividade verificada a partir do final do ano de 2005 ou início de 2006.”

47ª Não foi a alegada irregularidade contabilística que agravou ou criou a situação de insolvência, ou que ocultou quaisquer condutas praticadas nesse período – 2008 e 2009 – que o pudessem ter feito, pelo que, interferindo uma causalidade própria e adequada – anterior – para a situação de insolvência, para mais fora do período relevante de 3 anos previsto no artigo 186º, nº 1 do CIRE, não se pode fazer derivar da mera verificação do pressuposto fáctico da alínea h) do nº 2 do artigo 186º (no que se não concede) a automática qualificação da insolvência como culposa.

48ª Mesmo quando se entende que a alínea h) do artigo 186º, nº 2 do CIRE consigna uma verdadeira presunção inilidível ou ficção legal, têm sido exigidos critérios particularmente apertados para a respectiva verificação, atento, exactamente, o carácter profundamente gravoso para os visados que o inerente automatismo gera, ou mesmo, em alternativa, defendendo a possibilidade de ilisão da presunção.

49ª No caso sub judice, a presunção inilidível ou a ficção legal prevista no artigo 186º, nº 2, al. h) do CIRE está impossibilitada de operar em virtude da relevância, nos termos do disposto no artigo 624º do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 17º do CIRE, da decisão penal absolutória corporizada no despacho de arquivamento proferido no âmbito do inquérito criminal às causas da presente insolvência, que faz, com justificado assento em prova relevante um juízo inequívoco de não verificação dos factos alegados no Requerimento Inicial de qualificação, nos Pareceres do Administrador da Insolvência e no Relatório elaborado pela Er........

50ª Não se encontra justificada a medida de inibição do Recorrente AA para o exercício do comércio, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de três anos a contar do trânsito em julgado da Sentença recorrida [O Recorrente foi ainda condenado na perda de quaisquer créditos reclamados ou a reclamar sobre a Insolvente; tal condenação, porém, não tem qualquer substrato, na medida em que o Recorrente não procedeu, nem procederá, a tal reclamação.], não fazendo tal decisão a menor consideração das circunstâncias concretas do caso, e da infracção pela qual se pretende fazer responder o visado, mormente atendendo à gravidade do comportamento da pessoa a inibir e à relevância desse comportamento na verificação/agravamento da situação de insolvência.

51ª É manifestamente inadmissível que, na justificação da medida de inibição, tenha o Tribunal a quo convocado realidades integralmente desconsideradas pelo Tribunal de Primeira Instância, fazendo ilegitimamente intervir na definição da medida da sanção circunstâncias que não determinaram a respectiva aplicação, e que, o que é mais, não correspondem à realidade.

52ª Considerando o carácter técnico da suposta irregularidade praticada e a (não) intervenção do Recorrente AA na sua apreciação e determinação, é manifesto que a este não pode ser imputada qualquer conduta, quanto mais culpa, nessa irregularidade.

53ª Ainda que praticada a referida irregularidade, o seu relevo sempre seria inexistente, considerando a completa ausência de giro comercial da Insolvente a essa data, e o facto de a mesma não produzir efeito no carácter positivo ou negativo das contas, não tendo causado qualquer prejuízo para a compreensão da respectiva situação financeira e contabilística.

54ª Mesmo numa moldura que presume uma insolvência culposa pela mera prova do facto, sem necessidade de demonstração – como o não foi! – de efectiva culpa do agente, não poderia, como é evidente, o douto Tribunal ter deixado de apreciar a alegada conduta deste último, e as consequências daí advenientes, concluindo que, sendo impossível, no actual quadro normativo, não aplicar a sanção, ou aplicá-la em valor inferior ao mínimo, deveria pelo menos reduzi-la ao limiar inferior dos dois anos.

Em todo o caso,

55ª O disposto no artigo 189º, nº 2 do CIRE, na redacção aplicável ao caso dos autos [E na actual, que no que aqui releva é idêntica.], padece de um grave vicio de inconstitucionalidade material, ao estabelecer, não só a obrigatoriedade, em caso de verificação da insolvência culposa, da aplicação de todas as sanções das alíneas subsequentes, sem deixar ao aplicador o devido espaço de ponderação da conduta do agente e das concretas necessidades do caso, mas também por criar molduras para essas sanções (em particular para a inibição do exercício de cargos sociais) cujo limite mínimo é, de per si, marcadamente elevado, não permitindo, igualmente, ao julgador movimentar-se num espaço em que, consideradas as circunstâncias acima referidas, entendesse que um período de meses, ou até de 1 ano – correspondente, v.g., a um exercício societário – seria suficiente.

56ª As citadas disposições violam, primacialmente, o princípio da culpa, da segurança jurídica e do direito à tutela jurisdicional efectiva, constantes dos artigos 1º, e 20º, nos 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, porquanto, não se ignorando que se se determinou que a insolvência é culposa, alguma culpa (real ou presumida…) se apurou, a medida efectiva dessa culpa (ou a sua efectiva inexistência, no caso), têm de ser tomadas em conta na medida da pena [À semelhança da distinção que em sede de direito penal, na tese propugnada pelo Professor Doutor Figueiredo Dias, se faz entre o dolo do tipo, da concreta actuação, e o dolo da culpa, atinente às circunstâncias psicológicas do agente, de contrariedade ou indiferença face às proibições jurídicas, que determinaram a respectiva vontade.], e, não havendo culpa, deverá ser admitido não aplicar qualquer pena, ou não as aplicar in totum, sob pena de degenerar o automatismo judiciário num insustentável gravame para o visado, que a nossa Lei Fundamental não consente, como sucedeu no caso concreto.

57ª Deveria, pois, no incidente sub judice ter sido concretamente desaplicada pelo Venerando Tribunal a quo a norma constante do artigo 189º, nº 2 do CIRE, não se impondo ao Recorrente AA a sanção de inibição para o exercício do comércio, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, ou, quando muito, impondo a sua redução para um período inferior aos dois anos legalmente fixados.

58ª Assim e em suma, ao decidir diversamente no Acórdão recorrido, fez o Tribunal da Relação …. errada interpretação e aplicação ao caso vertente do disposto nos artigos 186º, nº 1, nº 2, al. h) e 189º, nº 2 do CIRE, na redacção anterior à Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, violando ainda os artigos 1º, 2º e 20º, nos 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.

               

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir em conferência.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO

1. Da admissibilidade do recurso de revista normal interposta a título principal

1.1. Ao presente apenso de qualificação da insolvência aplicam-se as regras gerais sobre recursos, ex vi art. 17º do CIRE, o que se concluiu a contrario do art. 14º, 1, do CIRE, conforme é jurisprudência consensual desta 6.ª Secção do STJ[1]. Nesta medida, não se aplica o regime especial e atípico da revista admitida e estribada em conflito jurisprudencial pelo referido preceito do CIRE, invocado em primeira linha pelos Recorrentes – Conclusões 2.ª. a 7.ª, reiterado na Resposta ao despacho proferido e descrito sob 8. –, o que, consequencialmente, afasta a aplicação, por não ter associação ou complementação adjectivo-processual, da hipótese de recurso extraordinário do (também invocado) art. 629º, 2, d).

1.2. O afastamento desse regime do CIRE implica a submissão da impugnação recursiva para o STJ aos termos gerais, aplicando-se, para tanto, as regras do processo civil em sede de recursos, de acordo com a remissão operada pelo art. 17º do CIRE. O que dita a aplicação da disciplina da revista normal, a título principal, para a qual os Recorrentes concorrem com fundamentação – Conclusões 28.ª a 58.ª; 20.ª a 27.ª –, que justifica o aproveitamento processual adequado desses blocos de impugnação no interesse do Recorrente: arts. 6º, 2, 193º, 3, 547º, CPC; com referência aos arts. 671º, 1, 674º, 1, a), CPC, e 671º, 2 (este limitado, nas suas alíneas, quanto aos fundamentos recursivos na revista “continuada” de acórdãos da Relação que apreciam decisões interlocutórias processuais de 1.ª instância).

1.3. O art. 671º, 3, do CPC (aplicável por força do art. 17º, 1, do CIRE) determina a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância como obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal junto do STJ, em relação a todos os segmentos decisórios em que se verifica identidade de julgados sem voto de vencido com fundamentação (e enquadramento normativos) essencialmente coincidentes, tanto para as decisões recorríveis no âmbito do art. 671º, 1 (decisões da Relação sobre o mérito da causa ou que colocam termo ao processo), como, se for o caso, no âmbito do art. 671º, 2 (decisões da Relação sobre decisões interlocutórias com incidência processual tomadas pela 1.ª instância), do CPC[2]; ficam salvaguardadas, no entanto, por efeito da 1.ª parte do art. 671º, 3, as hipóteses extraordinárias em que o recurso é sempre admissível (art. 629º, 2, CPC).

1.4. Quanto às decisões do acórdão recorrido correspondentes aos despachos interlocutórios proferidos em 8/5/2019, delimitando-se a impugnação do Recorrente nas Conclusões 20.ª a 27.ª, verifica-se que:

– quanto à improcedência da apelação respeitante à arguição de nulidade do despacho de admissão de rol de testemunhas, a fundamentação do acórdão recorrido abrange um conjunto de ponderações jurídico-normativas diferenciadas, em especial à luz do CIRE (cfr. ponto 2. do cap. III, “Fundamentos de Direito”), que tornam a sua fundamentação substancialmente diferente em relação à fundamentação do despacho de 1.ª instância – sem “dupla conformidade” decisória nos termos do art. 671º, 3, do CPC;
– quanto à apreciação da apelação respeitante ao indeferimento da reclamação do despacho saneador sobre o aditamento de novos factos e temas da prova (exclusão e aditamento), o acórdão recorrido (cfr. ponto 3. do referido cap. III) decidiu julgar procedente a apelação na primeira das matérias (“Procede, pois, a reclamação, justificando-se alterar o despacho que apreciou a reclamação, dando por assente, sob o número 16-A da sentença recorrida, o seguinte facto: Por requerimento de 26 de maio de 2009, as requerentes intentaram ação executiva para cobrança desse montante contra a aqui devedora, cuja citação foi expedida em 23-03-2010 e realizada nesse ano.”) e improcedente a apelação na segunda das matérias decididas no despacho (quanto ao aditamento de “um novo Tema [da prova], contendo os factos alegados pela Insolvente nos arts. 63° a 85° da sua Oposição”), concluindo, “como referido no despacho do tribunal, “não há assim que aditar qualquer (...) tema da prova” – igualmente sem “dupla conformidade decisória” decisória à luz do critério legal do art. 671º, 3, do CPC, visto o despacho impugnado no seu todo.
Assim sendo, a impugnação em revista de tais decisões interlocutórias de natureza processual proferidas pela 1.ª instância e reapreciadas pela Relação (decisões interlocutórias “velhas”) segue, em exclusivo e de forma restrita, o regime de revista “continuada” contemplado no art. 671º, 2, do CPC – «Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista: a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;
b)
Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.»
Pois bem.
Analisadas as Conclusões do Recorrente, a revista das decisões emanadas da Relação quanto a esses despachos funda-se em “erro de julgamento” (do art. 596º do CPC, por um lado – Conclusão 23.ª – e dos arts. 25º, 2, 134º, 1, e 188º do CIRE – Conclusão 27.ª) e ignora como base recursiva qualquer das hipóteses previstas pelo art. 671º, 2 (com remissão, na respectiva al. a), para o art. 629º, 2).
Logo, não pode ser manifestamente ser conhecido, em revista normal, essa parcela do recurso, referida a tais Conclusões 20.ª a 27.ª.

1.5. Quanto à decisão relativa ao preenchimento do art. 186º, 2, h), do CIRE e decretamento da insolvência como culposa, uma análise atenta da fundamentação de ambas as instâncias, coincidentes na decisão, assegura que há coincidência essencial na apreciação da aplicação ao caso desse art. 186º, 2, h), do CIRE, sendo este o único parâmetro de qualificação da insolvência aceite pela 1ª instância.
De facto, o acórdão recorrido refere: “Ponderando a factualidade dada por provada e vertida nos números 16, 16 A e B — aditados por esta Relação — e 17, entendemos correta a subsunção feita na decisão recorrida, aderindo-se ao raciocínio aí exposto”; em consequência, transcreve-se a parcela relevante da sentença de 1.ª instância.
Depois, acrescenta-se, em resposta ao sustentado na apelação, que (sublinhado nosso):
– “Resulta do processo e não foi questionado pelos apelantes – cfr. o documento número 27 junto a fls. 545 a 563, a que se reporta o número 16 dos factos provados – que a insolvente, entre outras sociedades, foi demandada e citada nesse processo, não discutindo aqui a sua condenação, pelo que com a prolação dessa sentença e respetivo trânsito em julgado, consolidou-se a dívida, que se venceu, consubstanciando passivo da empresa insolvente, com origem em garantias que a sociedade havia prestado, produzindo, pois, efeitos patrimoniais na esfera da insolvente, ao contrário do que esta alega, nada obstando, por exemplo, à cobrança coerciva dessa dívida no Estado …... O título executivo europeu, criado pelo Regulamento (CE) n.º 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004 e substituído pelo Regulamento (CE) Nº 1869/2005 da Comissão de 16-11-2005, tem apenas em vista agilizar a execução, num Estado-Membro, de uma sentença proferida noutro Estado-Membro; isto é, uma decisão certificada como título executivo europeu será executada no Estado de execução “nas mesmas condições que uma decisão proferida” nesse mesmo Estado – cfr. o art. 20º, nº 1 do Regulamento e o referido considerando nº 8. Como se sabe, a exigibilidade da obrigação respeita ao vencimento da dívida, no sentido de que a obrigação só é exigível quando está vencida, independentemente dos específicos procedimentos atinentes à sua cobrança coerciva e, em sede de execução, dos requisitos da exequibilidade da sentença – cfr. o art. 704º e 713º do CPC. Assim, podemos concluir, como na decisão recorrida, que, relativamente aos exercícios de 2008 e 2009, tinha a insolvente que refletir a aludida dívida na sua contabilidade, de forma a transmitir a imagem correta e real da empresa no que respeita à sua situação económica e financeira.”;
– “A aferição da situação da empresa interessa, evidentemente, a todos os que se relacionam ou relacionaram com a mesma, em particular os seus credores, como é o caso, pelo que pouco importa que, em determinado período de tempo, por razões que escapam a terceiros, a sociedade deixe de exercer o seu objeto social. Quanto às “reais causas da insolvência”, não é matéria relevante para o processo nos moldes a que já se aludiu; declarada a insolvência, sem que se questione a mesma, não importa ao objeto destes autos de natureza incidental apurar das razões que estarão na sua base ou origem à exceção daqueles factos que, alegados pelos interessados/administrador da insolvência /Ministério Público, sejam suscetíveis de se reconduzir à tipologia prevista no art. 186º. Insiste-se, compete apenas aos apelados o ónus de prova dos factos que servem de base à presunção e, comprovados estes, saber se concorreram ou não outras causas para a verificação da situação de insolvência, ou o seu agravamento, é irrelevante: ainda que tal ocorresse, essa circunstância não obstaria à qualificação da insolvência como culposa.”;
– [quanto à não aplicação da presunção inilidível do art. 186º, 2, h), do CIRE] “Os apelantes reportam-se ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, no processo de inquérito nº 4406/14……., a que se reporta o documento junto a fls. 1226 a 1233 dos autos, em que foram constituídos arguidos, nomeadamente, AA, estando aí em investigação a prática do crime de insolvência dolosa p. e p. pelo art. 227º, nº 1 do Cód. Penal, tendo o Ministério Público determinado o arquivamento dos autos por despacho proferido em 18 de maio de 2018. Os apelantes pretendem, afinal, que se equipare esse despacho de arquivamento a uma “decisão penal absolutória”, para os efeitos a que alude o art. 624° do CPC, sem qualquer fundamento porquanto o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público no âmbito de processo de inquérito não tem o efeito preclusivo do caso julgado, o que no caso é particularmente evidente. Efetivamente, compulsando esse documento constata-se que o arquivamento foi determinado “ao abrigo do artigo 277º, nº 2, do Código de Processo Penal, sem prejuízo da sua reabertura, caso surjam novos elementos de prova que invalidem os fundamentos para este despacho – art. 279º, nº 1 do Código de Processo Penal. (…)”;
– [quanto à responsabilidade do gerente da sociedade insolvente] (…) “o gerente é responsável pela apresentação das contas da sociedade, assume com a aceitação do cargo de gestão que tem a competência e conhecimento para o exercício dessa função e deve exercê-la de acordo com o padrão da “diligência de um gestor criterioso e ordenado”, pelo que, estando provado, sem impugnação, que o apelante exerce a gerência desde 30-12-2005 e que nas contas de exercício de 2008 e 2009 o crédito da Societé Solem SA não consta reconhecido no passivo da insolvente - cfr. os números 6 e 17 dos factos provados -, devendo sê-lo, como se referiu, foi omitida informação que era devida, ao contrário do que os apelantes alegam, e não é admissível que o apelante AA possa escudar-se na intervenção de caráter técnico do TOC para assim afastar a sua responsabilidade pela omissão verificada. Mas não nos bastamos, como o tribunal de primeira instância não se bastou, com essa análise. Efetivamente, para preenchimento da citada alínea exigiu o legislador que a irregularidade verificada acarrete um “prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor”. (…) No caso, ponderou-se na decisão recorrida, como expressamente resulta da transcrição efetuada, que a irregularidade verificada afeta a compreensão da situação patrimonial da sociedade, não podendo deixar de secundar-se esse entendimento atenta a dimensão da dívida e amplitude da sua repercussão no passivo da sociedade; como bem se referiu na sentença, a inclusão dos valores em causa significaria uma redução em 45% do valor do ativo.”; ademais, recusou apreciar a inconstitucionalidade invocada quanto à interpretação do art. 186º, 2, h), do CIRE, enquanto regra de imputação de conduta ao gerente enquanto responsável pela apresentação das contas da sociedade, uma vez ela incidir sobre dimensão normativa que não vincula o tribunal à sua apreciação por não ter sido aplicada.

1.6. O mesmo juízo processual de “dupla conformidade decisória” deve ser feito para o segmento relativo à consequência decorrente da qualificação da insolvência para o gerente afectado, aqui Recorrente, no que respeita à aplicação e determinação da inibição do art. 189º, 2, c), do CIRE, durante um período de três anos (a única objecto de impugnação recursiva em face da sentença de 1.ª instância). Configurando como premissa a transcrição e a asserção de que “a primeira instância decidiu com acerto”, o acórdão recorrido, depois de identificar a razão de ser da inibição prevista legalmente, asseverou que “a duração da medida da inibição aplicada, de três anos, afigura-se-nos proporcionada às especificidades do caso em apreço, não tendo o tribunal de primeira instância, nem esta Relação, procedido à sua aplicação como se de efeito automático [este sublinhado está no original] da declaração de insolvência culposa se tratasse”. Neste particular, também a questão da inconstitucionalidade, pelo mesmo fundamento antes referido, não foi sindicada.

1.7. Para o juízo de preenchimento do art. 671º, 3, 2.ª parte, do CPC antes afirmado, é mister assinalar que este obstáculo ao conhecimento do recurso de revista, relativamente a cada um dos segmentos decisórios submetidos no âmbito do objecto recursivo, não se preclude sempre que o acórdão recorrido acrescenta fundamentação, na linha da sentença recorrida, provocada pela argumentação trazida pelo Recorrente à apreciação do 2.º grau de jurisdição, desde que tal não implique um desvio no caminho interpretativo-aplicativo da sentença recorrida – relativo ao fundamento da qualificação da insolvência como culposa, nos termos do art. 186º, 2, h), do CIRE, e à densificação da consequência inibitória para o gerente afectado. E quando assim é, ou seja, quando subsiste adição de fundamentos em segunda instância justificada pela necessidade de pronúncia ao acervo argumentativo do apelante, não existe diversidade essencial da fundamentação que obste à aplicação do art. 671º, 3, do CPC. Por outras palavras, para se implicar a intervenção do STJ “é necessário, para o efeito, uma modificação qualificada, essencial, da fundamentação jurídica que aos olhos das partes exiba a ideia de que as águas em que cada instância navegou são tão diferentes, que só mesmo as decisões são coincidentes[3]. Isso significa que o obstáculo recursório da “dupla conforme” não se preenche com “qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica assumida pela Relação para manter a decisão já tomada em 1ª instância”; “é necessário, na verdade, que estejamos confrontados com uma modificação qualificada ou essencial da fundamentação jurídica em que assenta, afinal, a manutenção do estrito segmento decisório – só aquela se revelando idónea e adequada para tornar admissível a revista normal”, só se podendo considerar existente essa fundamentação essencialmente diferente se “a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância”[4]. Em suma, para se activar o recurso de revista é imperativo que a essencialidade da diferença do fundamento que confirma a decisão determine uma sucumbência qualitativa da parte prejudicada[5].
Conclui-se, assim, que, pelas razões apontadas, a confirmação (com fundamentação adicional tendo em conta o objecto recursivo da apelação do Recorrente) dos resultado decisórios da sentença em 1.º grau leva a que faleça o respectivo interesse processual para aceder ao terceiro grau da jurisdição quando recebe duas decisões que pelo seu teor definiram de modo consolidado a sua situação jurídica sem deixar lugar a dúvida razoável e objectiva na fundamentação, uma vez que as duas decisões acabam por ser fungíveis entre si nos seus efeitos[6].
Tal implica a inadmissibilidade da revista à luz do art. 671º, 3, do CPC, fundamentada no art. 671º, 1, do CPC, quanto a esses segmentos decisórios afectados pela coincidência das instâncias, em referência às Conclusões 28.ª a 58.ª.

1.8. O art. 615º, 4, do CPC, aplicável por força dos arts. 666º, 1, e 679º do CPC estatui que «[a]s nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do nº 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades». O que implica que, uma vez convocado o art. 674º, 1, c), do CPC, essa arguição – Conclusões 17.º a 19.ª –, não é admitida autonomamente se não for admissível recurso ordinário, em termos gerais, e, se for pela ocorrência de dupla conforme que tal recurso não se admite, só será admissível suscitar a questão de nulidade decisória como fundamento do recurso de revista se este recurso ainda for admissível, em especial na modalidade de revista excepcional (art. 672º, 1, 3, CPC).
De tal sorte que fica prejudicado, por ora, o conhecimento e qualquer decisão sobre a arguição que o Recorrente suscita, como vício do acórdão recorrido, em relação à previsão do art. 615º, 1, c), do CPC, tendo em conta a acessoriedade de tal fundamento recursivo no que toca à admissibilidade da revista.

Tendo presente o exposto, estamos perante circunstâncias processuais que, considerando a previsão legislativa restrita de revista das decisões interlocutórias com incidência processual (art. 671º, 2, CPC), por um lado, e de irrecorribilidade das decisões materiais finais (art. 671º, 1, CPC) consagrada no art. 671º, 3, do CPC, obstam à admissibilidade e conhecimento do objecto do recurso de revista normal interposto pelo Recorrente, o que afecta, igualmente e por ora, o conhecimento da nulidade do acórdão recorrido, dependente dessa admissibilidade.
           

2. Da revista excepcional interposta a título subsidiário

Não obstante, o Recorrente interpôs recurso de revista excepcional, a título subsidiário e de acordo com a alegação dos fundamentos recursivos do art. 672º, 1, a) e b), do CPC (Conclusões 8.ª a 16.ª) – o que é de aceitar se a inadmissibilidade do recurso de revista normal se fundar no impedimento da “dupla conforme” e quanto aos segmentos decisórios impugnados que revelem essa coincidência entre as instâncias[7].

Em sede de resposta ao despacho proferido em aplicação do art. 655º, 1, do CPC, vieram ainda os Recorrentes, invocando o disposto no art. 193º, 3, do CPC, invocar a convolação do expendido ao abrigo do disposto no art. 14º, 1, do CIRE, enquanto contradição jurisprudencial – como fundamento contemplado pelo art. 672º, 1, c), e 2, c), do CPC – o que é de deferir para os devidos efeitos (em acrescento: arts. 6º, 2, e 547º do CPC), em referência às Conclusões 2.ª a 7.ª dos Recorrentes.

Requereram, a final, que “sendo rejeitado o Recurso de Revista ao abrigo do disposto no artigo 14º, nº 1 do CIRE, e transitando os autos para apreciação dos fundamentos de Revista Excepcional, aí se considere o mesmo interposto ao abrigo das alíneas a), b) e c) do disposto no artigo 672º, nº 1 do CPC”.

Razão pela qual há que remeter os autos à Formação de Juízes do STJ a que se refere o art. 672º, 3, do CPC, para apreciação e decisão sobre esses fundamentos específicos de admissibilidade (interesse jurídico, relevo social e contradição jurisprudencial), nos segmentos decisórios em que se julgou existir “dupla conformidade decisória” (nos termos vistos: supra, pontos 1.5. a 1.7).

III) DECISÃO

Nesta conformidade, acorda-se em:

1) não tomar conhecimento do objecto do recurso de revista normal interposta a título principal;

2) ordenar a remessa dos autos à Formação Especial deste STJ, a que alude o art. 672º, 3, do CPC, para o efeito de julgamento dos fundamentos específicos da revista excepcional interposta a título subsidiário, após o trânsito da decisão proferida quanto à revista normal.

Custas pelos Recorrentes.

STJ/Lisboa, 2 de Março de 2021

Ricardo Costa (Relator)

Nos termos do art. 15º-A do DL 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do DL 20/2020, de 1 de Maio, e para os efeitos do disposto pelo art. 153º, 1, do CPC, declaro que o presente acórdão, não obstante a falta de assinatura, tem o voto de conformidade do Senhor Juiz Conselheiro que é 1.º Adjunto neste Colectivo.

António Barateiro Martins

Ana Paula Boularot

(Com declaração de voto em anexo)

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

______

PROC 1035/10.0TYLSB.L1.S1

6ª SECÇÃO

DECLARAÇÃO DE VOTO

Voto a decisão, no que tange à remessa dos autos à Formação para apreciação dos requisitos atinentes à Revista excepcional encetada, por ser a competente nos termos do artigo 672º, nº3 do CPCivil.

Contudo, no que respeita à fundamentação quanto às razões da inadmissibilidade da Revista normal, não posso, de todo em todo, acompanhá-la.

A tese, que faz maioria, parece entender que o recurso interposto de um Acórdão da Relação que incide sobre questões processuais e substantivas, pondo fim ao processo, se poderá dividir em duas Revistas diferentes: uma incidente sobre as decisões apelidadas de interlocutórias, que têm por alvo as intercorrências formais, recorríveis nos termos do nº 2 do artigo 671º; uma outra cujo objecto será a decisão de mérito produzida.

Na minha opinião, a Revista aqui interposta, visando, como visa, questões processuais e a questão de mérito, é una e indivisível, tendo sido interposta, como poderia tê-lo sido, nos termos do disposto no artigo 671º, nº 1 do CPCivil de harmonia com o preceituado no artigo 674º, nº 1, alíneas a) e b), já que ali se prevê que para além das questões substantivas, a errada aplicação da lei de processo poderá ser posta em causa, para além, como é óbvio, da concomitante arguição de nulidades, nos termos da alínea c), as quais aqui não estão em equação.

Os especiais requisitos formais que a Lei de processo exige para as decisões interlocutórias, nos termos do normativo inserto no nº 2, alíneas a) e b) do CPCivil, implicam que apenas essas e só essas decisões estejam em causa na impugnação e não já que conjuntamente a parte ponha em causa a decisão de mérito, porque se assim se não entender, a conclusão a retirar é que o legislador, nestas circunstâncias, impõe  a interposição de duas Revistas autónomas, o que não resulta, nem da letra, nem do espírito dos segmentos normativos em análise, sempre se acrescentando que as questões igualmente foram suscitadas de forma conjugada e unitária, na Apelação interposta de harmonia com o preceituado no artigo 644º, nº 3 do CPCivil.

Assim, as razões de remessa dos autos à Formação, na minha opinião, baseiam-se na dupla conformidade decisória «tout court» do Acórdão produzido, terem sido invocados os fundamentos aludidos nas alíneas a), b) e C) do artigo 672º, nº 1 do CPCivil, verificando-se as demais condições gerais de recorribilidade.

(Ana Paula Boularot)

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[1] V., por todos e comodidade quanto à fundamentação deste critério, o Ac. do STJ de 13/10/2020, processo n.º 54/10.1TBBGC-R.G1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt (em relação ao ponto I. do Sumário).

[2] V., na doutrina, RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 671º, pág. 176, ID., “Repensando os requisitos da dupla conforme (artigo 671.º, n.º 3, do CPC)”, Julgar, Novembro de 2019, pág. 6 (“É nesse quadro que são prolatadas duas decisões sucessivas sobre a mesma questão”); na jurisprudência recente do STJ, v. o Ac. de 29/9/2020, processo n.º 731/16.3T8STR.E1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[3] Ac. do STJ de 19/2/2015, processo n.º 1397/10.0TBPVZ.P1.S1, Rel. PIRES DA ROSA, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça – Secções Cíveis cit., pág. 95, também com ênfase da nossa responsabilidade.
[4] V. Ac. do STJ (também) de 19/2/2015, processo n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, Rel. LOPES DO REGO, in www.dgsi.pt.
[5] Assim: ELIZABETH FERNANDEZ, Um novo Código de Processo Civil? Em busca das diferenças, Vida Económica, Porto, 2014, pág. 190.
Recentemente, v. o Ac. do STJ de 26/11/2020, processo n.º 4279/17.0T8GMR.G1-A.S1, Rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO, in www.dgsi.pt: “(…) de acordo com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, a pronúncia acerca de questão nova ou, como ocorre no caso dos autos, colocada em termos inovadores em sede de apelação, da qual a Relação não conhece ou que julga improcedente, não permite concluir pela existência de fundamentação essencialmente diferente. Se assim não fosse, estaria encontrada a via para instrumentalizar o recurso de apelação de forma a impedir, sempre e em todos os casos, a formação de dupla conforme”.
[6] Seguimos RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546º a 1085º, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 671º, pág. 181.
[7] Sobre a legitimidade e validade desta interposição, ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 671º, págs. 369-370.