Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7228/16.0T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
PRÉDIO DOMINANTE
PRÉDIO URBANO
OBRAS NOVAS
CASA DE HABITAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
VIOLAÇÃO DE LEI
LEI PROCESSUAL
PROVA VINCULADA
DOCUMENTO AUTENTICADO
FORÇA PROBATÓRIA
DEPOIMENTO DE PARTE
CONFISSÃO JUDICIAL
FORMA ESCRITA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
OBJETO DO RECURSO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
NULIDADE DE SENTENÇA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGAR A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Não é nulo o acórdão do TR quando em recurso de revista se invoca uma nulidade da sentença (e não do acórdão recorrido).

II. Cabe revista do acórdão do TR quando se invoca que este decidiu violação da lei processual – maxime do disposto no art. 662.º do CPC – no que concerne à apreciação da matéria de facto, não havendo neste âmbito dupla conforme;

III. Não se verificando ofensa de qualquer disposição que fixe a força de determinado meio de prova e estando em causa meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal, arredada está a possibilidade de o STJ sindicar, em sede de revista, o eventual erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC)

IV. Para os efeitos do disposto no art. 1545º, n.º2 CC, segundo o qual a afectação das utilidades próprias da servidão a outros prédios importa sempre a constituição de uma servidão nova e a extinção da antiga, a incorporação de uma “leira” no prédio existente, não permite que se considere que ficamos perante um prédio novo.

V. O mesmo vale para a realização de obras de modificação, remodelação e ampliação da casa de habitação existente no referido prédio.

VI. Mesmo que tivesse ficado provado que tal casa de habitação passou a ser habitada por um número superior de pessoas às que lá residiam antes das ditas obras, tal também não fundamentaria a extinção da servidão e nem sequer a verificação de uma situação excessiva quanto ao seu modo de exercício já que uma servidão de passagem constituída por usucapião e/ou por destinação de pai de família, como a que está em causa nos autos – recaindo sobre prédios e não sobre pessoas – nunca poderá conter uma limitação quanto ao número de pessoas que habita a casa de habitação erigida no prédio dominante e que utiliza a servidão.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório

1. AA. e BB. intentaram acção sob a forma de processo comum contra CC. (por si e na qualidade de herdeira da herança aberta por óbito de FF.), DD. e EE. (na qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de FF.).

Formulam os seguintes pedidos:

a) que se reconheça que os autores/reconvindos (doravante, apenas autores) são donos e possuidores do prédio identificado nos artigos 6º e 7º da petição inicial e, bem assim, que os réus/reconvintes (doravante, apenas réus) são donos e possuidores do prédio identificado sob os artigos 8º e 9º do mesmo articulado;

b) que se reconheça que está constituída a favor do prédio dos réus, por via contratual, mercê dos compromissos celebrados em 05/01/1890, uma servidão de passagem a pé através do prédio dos autores, a exercer pelo ……… do prédio destes;

c) que se reconheça que a referida servidão de passagem respeitava apenas ao prédio que aos réus pertenceu, conforme o mesmo existia inicialmente, ou seja, para as casas sobradadas e telhadas, com uma porta e duas janelas de peitoril que dava acesso à rua, com dois pavimentos, duas divisões no rés-do-chão e duas divisões no andar, cobrindo a área de 49 m2, e com uma horta de 184 m2 e comportava o uso habitual por um número restrito de pessoas, não superior a quatro;

d) que se reconheça que, mercê das obras a que procederam, os réus eliminaram o referido prédio urbano e construíram um novo prédio urbano, constituído por duas divisões e cozinha no rés-do-chão e oito divisões no andar, com cozinha e casa de banho, e um anexo com uma divisão, cobrindo agora a área total de 164,97 m2, e logradouro de 770 m2, permanentemente habitado por mais do dobro das pessoas que anteriormente aí viviam e mais agregados familiares do que o inicial;

e) que se reconheça que, após a compra do terreno efectuada a GG., passaram os réus a utilizar a mesma entrada para acesso a esse terreno, fazendo-o, porém, sem qualquer título e abusivamente;

f) que se reconheça que tal novo prédio urbano não dispõe, nem precisa de dispor, visto que confina directamente com a via pública, da servidão de passagem atrás referida, nem de qualquer outra, para efeitos de trânsito para a via pública;

g) verem os réus, em consequência da procedência dos pedidos anteriores, e uma vez que passaram a afectar as utilidades próprias da servidão a outros prédios, que a ela não têm direito (o novo prédio urbano agora construído e o prédio rústico que adquiriram a GG.), declarada extinta a servidão de passagem caracterizada na petição inicial; ou, se assim se não entender, em alternativa a este pedido,

h) verem os réus declarado que apenas teriam direito à servidão como inicialmente estava constituída, pelo que essa servidão não está constituída para se servirem por ela enquanto acesso para uso dos novos e outro prédio, que dela não beneficiam, senão após constituírem – se legalmente o puderem fazer - uma servidão nova com a necessária amplitude e meios que a lei lhes possa facultar;

i) que sejam os réus condenados a deixarem, definitivamente, de transitar pelo referido acesso construído no prédio dos autores;

j) e que sejam os réus condenados a retirarem do subsolo do prédio dos autores todos os novos encanamentos que aí instalaram quer para fornecimento de água pública, quer para o saneamento, a destruírem e removerem a dependência que construíram para instalação de botijas de gás e para depósitos de água e a eliminarem, repondo no estado anterior às obras a que procederam, a tijoleira que implantaram no acesso à varanda dos autores, o degrau que a mais aí construíram, e os vasos com plantas que instalaram na mesma varanda.

2. Os Réus apresentaram contestação, tendo começado por invocar a excepção do caso julgado. Impugnaram ainda parte da factualidade alegada pelos autores, concluindo no sentido da improcedência da acção. Por fim, deduziram pedido reconvencional através do qual pedem que os autores sejam condenados a reconhecer que as escadas contíguas às suas e delas separadas por um corrimão pertencem única e exclusivamente aos réus, mais devendo os autores ser condenados a retirarem a chapa de telhado que colocaram por cima das suas escadas e das dos réus e cujos elementos de fixação/suporte cravaram directamente na parede do prédio dos réus.

3. Os autores apresentaram réplica, tendo impugnado a factualidade invocada pelos réus na reconvenção, concluindo pela sua improcedência.

4. Foi realizada audiência prévia, na qual os autores se pronunciaram acerca da excepção deduzida pelos réus, pugnando pela sua improcedência.

5. Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou verificada a excepção dilatória de ofensa ao caso julgado material, absolvendo os réus da instância quanto aos pedidos formulados pelos autores nas alíneas a) a i), mais se tendo, quanto ao resto, afirmado a validade e regularidade da instância.

6. Na sequência de recurso interposto pelos réus, foi, pelo Tribunal da Relação ……, proferido acórdão que, julgando parcialmente procedente a apelação, manteve a decisão absolutória dos réus da instância relativamente aos pedidos formulados nas alíneas a), b) e c) – nesta, quanto ao reconhecimento de que a servidão de passagem respeitava ao prédio dos réus inscrito na matriz urbana da freguesia de ……. como sendo o art.º ……º e que corresponde ao anteriormente inscrito sob o artigo ……º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ……., o qual, antes da remodelação a que foi submetido, era composto de casas sobradadas, telhadas, cortes, cozinha térrea ao nascente e horta  – e determinou o prosseguimento dos normais termos do processo quanto ao demais peticionado e para apreciação do pedido reconvencional.

7. Realizou-se audiência de discussão e julgamento.

8. Foi então proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, consequentemente, condenou os réus a eliminarem, repondo no estado anterior às obras a que procederam, a tijoleira que implantaram no acesso à varanda dos autores e a retirarem os vasos com plantas que instalaram na mesma varanda, julgando improcedentes os demais pedidos formulados pelos autores contra os réus, absolvendo estes de tais pedidos.

E julgou parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, condenou os autores a retirarem os elementos de fixação/suporte da chapa de telhado que cravaram directamente na parede do prédio aludido em 9 e 14, julgando improcedentes os demais pedidos.

9. Inconformados com esta decisão, autores e réus vieram interpor recursos, que foram recebidos como de apelação, e que culminaram com a prolação de acórdão com o seguinte dispositivo:
“Por todo o exposto, este Tribunal da Relação …….. decide julgar os recursos de autores e réus improcedentes, e em consequência confirma na íntegra a sentença recorrida.”


10. Inconformados vieram os AA. interpor recurso de revista.
Os recorrentes interpõem recurso de revista, sustentando, no respectivo requerimento de interposição, que o mesmo deve ser recebido como revista-regra uma vez que, apesar de o acórdão ter confirmado, sem voto de vencido, a decisão proferida na 1.ª instância, o fez à custa de não ter julgado o recurso da matéria de facto, nem os fundamentos em que este assentava, não sendo, assim, coincidente a fundamentação das duas decisões produzidas: só a primeira decide a matéria de facto, a segunda nada decide, pelo que é impossível falar-se em dupla conforme.
Invocam ainda os recorrentes, para o caso de assim não se entender, que o recurso sempre deverá ser recebido como revista excepcional ao abrigo do art. 672.º, n.º 1, als. a) e b), do CPC, posto que não havendo jurisprudência sobre a questão – que é objecto do processo e do recurso – de saber como se interpreta o disposto no art. 1545.º, n.º 2, do CPC no que se refere ao facto de a afectação das utilidades próprias da servidão a outros prédios importar sempre a constituição de uma servidão nova e a extinção da antiga, reveste suficiente relevância jurídica para ser apreciada pelo STJ, ao que acresce a circunstância de estarem em causa interesses de particular relevância social.

11. Recebidos os autos a relatora proferiu despacho no qual, nomeadamente, se disse:
No caso vertente, embora pareça decorrer do requerimento de interposição do recurso que os recorrentes alicerçam a admissibilidade da revista normal no facto de a Relação não ter sequer apreciado a impugnação da matéria de facto (e, portanto, na suposta rejeição do recurso de apelação nessa parte) e apesar de, nas conclusões, misturarem a invocada violação da lei adjectiva no que se refere à forma como a Relação apreciou a matéria de facto com a suposta violação do direito probatório material (que se situam em planos distintos), consegue extrair-se das conclusões que os recorrentes questionam a forma como a Relação fez a dita apreciação, com fundamento no facto de a mesma se ter limitado a aferir da correcção da motivação plasmada na sentença.
Pelo que, sufragando o entendimento que o STJ tem adoptado neste particular, se afigura que, tendo sido impugnada, no recurso de apelação, a matéria de facto e tendo os recorrentes questionado, na revista (ainda que de forma confusa e desordenada), o uso pela Relação dos poderes que lhe são conferidos quanto à reapreciação da dita matéria pelo art. 662.º do CPC, os quais não têm correspondência na decisão da 1.ª instância, tal será quanto basta para que se conclua que não se verifica a dupla conformidade de decisões, posto que não se pode afirmar que existam duas decisões conformes acerca de uma questão comum (Vejam-se, neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos do STJ, proferidos quer no âmbito da revista normal, quer no âmbito da revista excepcional, de 14-09-2017, de 12-02-2019, de 11-04-2019, de 17-10-2019, 02-07-2015 e de 03-11-2016 (estes dois últimos proferidos no âmbito da revista excepcional), todos infra indicados).
5. Todavia, restringindo-se a inexistência de dupla conforme à violação do direito adjectivo, por parte da Relação, no tocante à reapreciação da decisão de facto, crê-se que a admissibilidade da revista normal nessa parte, em caso de improcedência desse específico fundamento, não permitirá alargar o objecto do recurso às demais questões de mérito suscitadas, posto que estas, contrariamente àquela, se mostram abrangidas pela dupla conforme (art. 671.º, n.º 3, do CPC - Neste sentido: Acórdãos do STJ de 18-01-2018, de 08-11-2018 e de 23-04-2020, todos infra indicados) – o que os recorrentes, nesta parte, nem sequer contestam.
Sucede, porém, que os recorrentes, acautelando a possibilidade de se entender que existe dupla conforme, pediram, desde logo, a revista excepcional, sendo que é à Formação de apreciação liminar (e não ao Relator do processo) que compete apreciar os pressupostos de que depende a sua admissibilidade (art. 672.º, n.º 3, CPC).
6. Em consequência e apesar de não se encontrar expressamente prevista na lei processual qual a tramitação que o recurso de revista deve seguir em casos como o presente, afigura-se que, havendo uma única revista, melhor será que os autos sejam, desde já, remetidos à Formação a que alude o art. 672.º, n.º 3, do CPC, a fim de que – depois desta se pronunciar sobre a admissibilidade ou não da revista excepcional – seja fixado o objecto do recurso e que todas as questões sejam apreciadas de uma só vez e num único acórdão.
Remeta-se à formação, após o que os autos devem regressar à relatora para delimitação e conhecimento do objecto da revista.

11. Por acórdão de 29-09-2020, a Formação admitiu a revista excepcional ao abrigo da al. a) do n.º 1 do art. 672.º do CPC, com fundamento no facto ser parca a doutrina e a jurisprudência acerca da questão de direito em torno da interpretação da norma do art. 1545.º, n.º 2, do CC, ligada ao alegado agravamento da servidão predial em causa nos autos, e de, portanto, se justificar a intervenção do STJ, cuja decisão é susceptível de irradiar para a resolução de casos semelhantes.

12. No recurso de revista os AA. formulam as seguintes conclusões (transcrição):

1.ª – O acórdão recorrido, posto ante a necessidade de decidir se devia ou não ser determinada a realização de um arbitramento, em virtude de o juiz do processo o ter indeferido, em sede de meios de prova, por o julgar desnecessário uma vez que sustentou que a matéria que ele se destinava a provar podia ser provada por testemunhas ou pela sua própria análise dos documentos autênticos juntos aos autos, mas ter acabado, na sentença por concluir que nem as testemunhas tinham competência para se pronunciar sobre a matéria em questão, nem ele próprio, indeferiu o assim requerido com o argumento de que a decisão da 1ª instância que indeferiu esse meio de prova fazia caso julgado, o que tornava impossível, agora qualquer decisão que determinasse o arbitramento.

2.ª – O mesmo acórdão, posto ante a necessidade de interpretar o disposto no artigo 1545º n.º2 do Código Civil, entendeu que esta norma não tinha aplicação não obstante ter-se provado que as utilidades próprias da servidão inicialmente constituída por escritura de partilhas junta aos autos tinha sido estendida a uma leira posteriormente comprada pelo proprietário do prédio dominante, e ter-se ainda provado que o prédio dominante foi ampliado, porque esses factos são insuficientes para se considerar existente um prédio novo.

3.ª – O acórdão recorrido, posto ante a necessidade de decidir se a matéria de facto fixada devia ser ampliada com o contributo de vários documentos autênticos e de documentos particulares, todos não impugnados, que impunham essa ampliação, bem como o contributo das declarações confessórias da ré, sustentou que, sem apreciar ou julgar essa necessidade ou o alcance desses documentos, “a motivação apresentada pelo tribunal recorrido mostra-se aprofundada, e depois de ouvir os depoimentos que refere certeira” para além de concluir ainda “que os recorrentes não demonstram a existência de um qualquer erro de julgamento da decisão da matéria de facto”.

4.ª – O acórdão recorrido, posto ante a necessidade de corrigir a afirmação constante de uma sentença anterior entre as mesmas partes, que considerou que a servidão em causa tinha sido constituída por destinação de pai de família e por usucapião, quando a verdade é que ela foi constituída voluntária e contratualmente, através de uma escritura pública de partilha junta aos autos, sustentou que não era admissível essa correcção porque a “decisão” anterior transitara em julgado, sendo pois oponível à pretensão por força da autoridade do caso julgado.

5ª. – Por último, o acórdão recorrido manteve a decisão da 1ª instância em cujos termos na procedência parcial da reconvenção os autores foram condenados a retirarem os elementos de fixação/suporte de uma chapa que cravaram directamente na parede do prédio dos réus, por entender que está provado que essa parede é propriedade exclusiva dos réus.

6.ª – Ora, pelas razoes que serão melhor explicitadas de seguida esse conjunto de decisões é inaceitável e não pode manter-se, merecendo as críticas que em resumo se passam a fazer:

a) Fazem uma interpretação revogatória do disposto no artigo 1545º n.º2 do Código Civil, uma vez que quer a lei, quer a doutrina, quer a jurisprudência são claras a entender que o agravamento da servidão é um acto ilícito, que deve ter o tratamento exigido pelo artigo 1545º n.º 2 do Código Civil;

b) Não havendo coincidência de situações entre a que indeferiu o arbitramento, por razões determinadas que depois não foram confirmadas e foram até desmentidas pelo próprio julgador, o arbitramento que fosse determinado em consequência da comprovada impossibilidade de o julgador e as testemunhas comprovarem os factos a averiguar, porque assente noutros e novos pressupostos, em nada violaria o caso julgado;

c) Na sua única hermenêutica possível, o artigo 1545º n.2º do Código Civil só pode ser interpretado no sentido de que os agravamentos apontados e provados (acrescentamento de um prédio rústico ao prédio urbano primitivo e ampliação deste para mais do dobro) justificam a extinçao da servidão inicial, a requerimento dos proprietários do prédio serviente, e a constituição de uma servidão nova, a requerimento dos proprietários do prédio dominante, pelo que a decisão é absolutamente ilegal;

d) Tendo os recorrentes apontado os factos que importava corrigir e as razões pelas quais esses factos eram relevantes, tendo ainda justificado a sua inserção na matéria de facto por se emergirem de documentos autênticos e particulares, por todos aceites como verdadeiros, bem como por assentarem em declarações confessórias da ré, o acórdão recorrido não podia, como o fez, limitar a sua análise a sustentar que a motivação da 1ª instância era correcta, aprofundada e certeira, e a alegação dos réus incapaz de demonstrar a existência de qualquer erro de julgamento, pois não foi chamado a pronunciar-se sobre o mérito das justificações da 1ª instância mas sim sobre o interesse e o mérito da matéria de facto dever ser aditada.

e) O acórdão recorrido não podia cobrir a grosseira qualificação constante da decisão anterior (que justificou a existência da servidão por ter sido constituída por destinação de pai de família e por usucapião) quando a verdade é que, e isso estava provado documentalmente, foi constituída por escritura de partilhas e por isso voluntariamente, com o argumento de que a correcção que se impunha estava impedida pela autoridade do caso julgado formado pela matéria constante da decisão anterior, porque não obstante entre as duas ações existir identidade de sujeitos, são diferentes quer a causa de pedir, quer o pedido, e da autoridade do caso julgado, concebida como “insusceptibilidade de impugnação de uma decisão em consequência do caráter definitivo decorrente do respetivo trânsito” (na expressão utilizada no Acórdão do STJ de 12/07/2011, Proc. nº 129/07.4TBPST.S1., dgsi.net), não pode falar-se sequer, porque nos deparamos com duas ações em que os autores são os mesmos, e “ao contrário do autor, cuja pretensão não está submetida a um efeito preclusivo, sendo-lhe lícito deduzi-la repetidamente, desde que a fundamente em causa de pedir diferente, (só) o réu, por força do ónus de concentração de toda a defesa na contestação, está sujeito àquela preclusão” (cfr. o Acórdão do STJ de 20/12/2017, Col. Jurisp. STJ Ano XXV, III, pág. 256).

f) O acórdão recorrido não podia escusar-se, como se escusou, a julgar a dificuldade posta pela interpretação dos artigos 1371º n.º 1, 1373º n.º 1 do Código Civil, nem podia excluir a necessidade de discutir a questão face à afirmação, que nada permitia fazer, de que estava provado que o muro onde foram cravadas as traves era propriedade dos réus.

7.ª – Ora, cabe recurso de revista, da decisão da Relação que importe violação da lei substantiva – que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação na lei, como no erro de determinação da norma – violação ou errada a aplicação das leis no processo e erro na apreciação das provas, quando houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova ou, ou fixe a força de determinado meio de prova, conforme prescrito pelo artigo 674º do Código de Processo Civil.

8.ª – Ante uma decisão da Relação que fixe a matéria de facto desrespeitando a lei, o Supremo pode, conhecendo do erro, anular logo a decisão recorrida e julgar o fundo da questão, como fez no acórdão de 12 de Março de 1998 (Col. Jurisp. STJ VI, I, pag.124) ou optar a solução de exercer uma “discreta censura”, anulando o acórdão recorrido para que o recurso seja de novo julgado nas partes viciadas pela Relação, como decidiu, por exemplo, o acórdão do STJ de 12 de Janeiro de 1994 (Col. Jurisp. STJ 1994, I , pag.31) medida que se impõe porque o acórdão recorrido recusou a reanálise da matéria de facto e a sua ampliação sem fundamento algum, tanto quanto mais é certo que se deparava com documentos com força probatória plena, incorrendo em “excepcional erro de julgamento” (cfr. Ac. STJ de 19/10/2004, Col. Jurisp. STJ XII , III, pag.72).

Sem prescindir,

9.ª – Atenta a natureza da acção, indispensável se tornava, por arbitramento, fixar a composição anterior do prédio dominante, a capacidade abstrata do mesmo para albergar pessoas antes e depois das obras, e se o aumento significativo do quintal do prédio dominante podiam constituir agravamento da servidão pretérita, objectivo que o Tribunal entendeu, pois fixou como um dos temas de prova (despacho de folhas 437) o de “determinar se a servidão de passagem em questão poderá ser declarada extinta pelos fundamentos aduzidos pelos autores, ou, caso assim se não entenda, se poderá ser declarado que tal servidão não poderá servir de acesso aos alegados novos prédios invocados pelos autores e ao prédio entretanto adquirido pelos réus, até que seja constituída uma servidão nova com amplitude para tal”.

10.ª – No entanto, o despacho em causa decidiu também “indeferir o arbitramento requerido (…) na medida em que a factualidade em questão poderá e deverá ser elucidada com recurso à pertinente documentação e eventualmente à prova testemunhal, não se vislumbrando qual a utilidade de nomear um perito tendo em vista a análise da dita documentação, quando o tribunal o poderá fazer”.

11.ª – Desse despacho não foi interposto recurso, porque dos seus termos resulta, e os autores acreditaram nisso, que o tribunal estava habilitado a responder à matéria de facto com os elementos que considerou suficientes, designadamente os conhecimentos do julgador e a suficiência da prova testemunhal, mas, produzida a sentença, através desta veio a demonstrar-se que aqueles pressupostos do indeferimento do arbitramento eram inexatos, porque não apenas, num reconhecimento de clara auto insuficiência do julgador, a sentença declararia que “o tribunal (…) não foi capaz de constatar a existência no subsolo do prédio aludido em 1 de quaisquer encanamentos”, como, em relação às afirmações das testemunhas ouvidas, não acolheu os seus depoimentos com o argumento de que “duvida-se que as mesmas tenham conhecimentos técnicos suficientes para discernir se a canalização colocada no subsolo do prédio aludido em 1 era relativa a saneamento e águas públicas ou ao escoamento de águas pluviais”.

12.ª – Assim sendo ficou então – mas só então – comprovado que o requerido arbitramento como meio de prova da matéria da ação era indispensável e não podia ser substituído nem pela análise do julgador, nem pelos depoimentos das testemunhas, pois uma e outras apenas serviriam de complemento do que do arbitramento pudesse concluir-se, justificando-se, por isso, a nulidade da decisão, que o acórdão recorrido não determinou, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, als. c) e d) do Código de Processo Civil, por os fundamentos do despacho, conjugados com os da sentença, estarem em oposição com a decisão de indeferimento daquele meio de prova, e o juiz ter, por isso, conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento sem realização do referido arbitramento, resultando da nulidade a necessária repetição do julgamento.

13.ª – O fundamento de direito do processo é o do artigo 1545.º, n.º 2 do Código Civil, que se desdobra em dois comandos distintos, acionados, cada um, também por sujeitos processuais distintos, o que releva em termos de legitimidade processual, activa e passiva, e substantiva:

a) se se verificar que ocorreu a afetação da servidão a prédios diferentes ou a funções de serviço pessoal do proprietário do prédio dominante, a servidão pode ser declarada extinta, por iniciativa e a requerimento do proprietário do prédio com ela onerado;

b) se o proprietário do prédio onerado com a servidão requerer a sua extinção com fundamento na afetação da mesma a prédio distinto do beneficiado, o proprietário do prédio dominante pode requerer a constituição de uma nova servidão, alargando o âmbito da precedente, ou estabelecendo um âmbito novo e distinto, desde que o requeira judicialmente, eventualmente em reconvenção, e o tribunal lhe reconheça esse direito.

14.ª – Com efeito, “em obediência ao princípio do menor prejuízo para o prédio onerado, é vedado ao proprietário dominante introduzir na servidão quaisquer inovações que ampliem abusivamente o seu conteúdo”, pelo que lhe é proibido “operar modificações que, direta ou indiretamente, se traduzam num agravamento do prédio serviente, ou seja, no exercício de um ónus superior ao resultante do título constitutivo”, como é o caso de “substituição do prédio dominante por outro e ainda a mudança do exercício da servidão no âmbito do prédio dominante” e a “ampliação do prédio dominante” (Mário Tavarela Lobo, Mudança e Alteração da Servidão, fls. 30 e ss., e, no mesmo sentido, Mota Pinto, RDES, 21, fls. 127 e ss. e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05/02/2013, Relator Fernando Fernandes Freitas, da Relação de Coimbra de 24/02/2015, Relator Henrique Antunes, ambos disponíveis em www.dgsi.pt e Acórdão do STJ de 27/05/1999, BMJ 487, 313).

15.ª – Através da presente ação os autores pediram a condenação dos réus nos termos do artigo 1545.º, n.º 2 do Código Civil (“a afetação das utilidades próprias da servidão a outros prédios importa sempre a constituição de uma servidão nova, e a extinção da antiga”), porque a servidão constituída através de escritura e inventário de 1890, outorgados pelos anteriores proprietários recíprocos de cada um dos prédios, devia ser declarada extinta, na medida em que os réus, continuando a servir-se dela, ampliaram o prédio urbano para mais do dobre da área, bem como passaram a usá-la para acesso a um prédio rústico que da servidão não beneficiava, e que os réus adquiriram entretanto, passando a usar, desde o termo das obras, a servidão quer para o novo prédio urbano, quer para aquele prédio rústico, matéria que – adiante-se desde já – foi inteiramente provada.

16.ª – Tendo os réus deduzido reconvenção, na qual pediram a condenação dos autores a retirarem os elementos de fixação/suporte de uma chapa do telhado que os autores cravaram diretamente na parede divisória do prédio dos réus, em relação a uma varanda dos autores, vieram as instâncias a julgar - após a fixação da matéria de facto julgada pertinente -, a reconvenção parcialmente provada e procedente, condenando os autores a retirarem os referidos elementos de fixação da chapa do telhado.

17.ª – As instâncias consideraram provada, entre o mais, a propriedade dos autores sobre a varanda e respetivas escadas de acesso com corrimão, a realização de obras pelos réus no seu prédio, a partir do ano de 2005 e até ao ano de 2013, que fizeram com que ele passasse a dispor de rés-do-chão e anexo com duas divisões e cozinha no rés-do-chão, oito divisões, cozinha e casa de banho no andar, e de um anexo com uma divisão, cobrindo a área de 164,97m2 e logradouro de 770m2, que passaram a permitir aos réus e aos arrendatários utilizar diariamente e sempre que entendem a referida servidão; a compra pelos réus de uma leira de terra, que agregaram ao logradouro do seu prédio urbano, passando a servir-se da servidão para acesso e retorno dessa leira; que o prédio dos réus tem acesso direto à via pública, confinando diretamente com a Rua …….. e que os autores colocaram uma chapa a servir de telhado por cima das escadas de acesso à sua varanda, cravando na parede da casa de habitação dos réus os elementos de fixação dessa chapa (factos provados n.os 1 a 11, 12, 13, 22 a 26, 33 a 36 e 42).

18.ª – Sem prejuízo de se dever entender que, tendo as instâncias admitido que os réus ampliaram o seu prédio e passaram a utilizar a servidão de passagem para a referida leira de terreno que compraram, essa matéria era suficiente para que a ação procedesse no que respeita à declaração de extinção da servidão (cfr. a obra de Tavarela Lobo atrás citada), verdade é que a matéria de facto assim resumida é muito deficiente em termos de extensão e de comprovação dos factos ocorridos, uma vez que, pelo menos, através de certidão fiscal emitida pela repartição de finanças competente, e resultante de declarações que foram prestadas ante os serviços pelos próprios réus (artigo 25.º da petição inicial e documento para o qual remete), devia ter sido julgado provada a evolução da descrição do prédio dos réus que começou por ter, conforme as referidas declarações, uma área coberta de 49 m2 e dois pavimentos com duas divisões em cada, e um terreno de quintal de 184 m2 (até 30/06/2001), para passar a ter, a partir dessa data duas divisões e cozinha no rés-do-chão, e oito divisões, cozinha e casa de banho no andar, com um anexo com uma divisão a área coberta de 145 m2 com logradouro de 770 m2 (este a partir de 2014), o que levou os autores a impugnarem a fixação da matéria de facto, nos termos do artigo do 640º Código de Processo Civil cujos ónus foram inteiramente cumpridos, sem prejuízo de que o acórdão recorrido não julgou dever ampliar a matéria de facto.

19.ª – Por outro lado, embora em local destacado da matéria de facto que fixou, o tribunal considerou provado na sentença que “os réus têm efetivamente acesso direto à via pública, confinando diretamente com a Rua ….., podendo esse acesso fazer-se a partir da garagem melhor identificada nas fotografias de fls. 488 e 489” e, bem assim, que “é evidente que as obras levadas a cabo pelos RR. consistiram na remodelação e ampliação da casa de habitação já existente”, pelo que não se compreende como essa matéria de facto não foi considerada entre os factos provados.

20.ª – Para além disso, certo é que a ré, em depoimento de parte, que constitui declaração confessória, admitiu que o seu prédio urbano era composto antes das obras por duas habitações, uma com uma loja no rés-do-chão e cozinha e dois quartos no andar e outra com uma cozinha no rés-do-chão e uma sala e dois quartos no andar (depoimento transcrito nas alegações, nos lugares da gravação aí citados) pelo que, tendo os autores cumprido escrupulosamente os ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil, essa matéria devia ter sido considerada também provada, permitindo comparar a construção anterior às obras e a construção posterior, comprovando o enorme aumento de volumetria da nova construção (49 m2 iniciais para 203,96 m2), e essa matéria – que se requereu fosse aditada aos factos provados sob o n.º 43, com a redação sugerida a fls. 32 – era relevante para a decisão, não se percebendo o motivo que levou a Relação a nem sequer a ela aludir.

21.ª – Do modo como foi fixada a matéria de facto, pelo acórdão recorrido, permanecendo indecifráveis as razoes pelas quais foram aproveitados somente parte dos documentos e ignorados os demais, bem como as razões pelas quais nem os documentos autênticos juntos aos autos serviram para comprovar as características dos prédios serviente e dominante, impõem-se que o Tribunal de revista julgue o recurso, consideramos já provados todos esses factos, emergentes de documentos não impugnados.

22.ª – As instâncias julgaram inadmissível a extinção da servidão por estar provado que ela foi constituída por usucapião e por destinação de pai de família, sendo que a servidão por destinação de pai de família, por ser voluntária, não é extinguível por desnecessidade, nos termos do artigo 1569.º, n.º 2 do Código Civil, o que é manifestamente errado, pois:

a) constitui uma impossibilidade lógica, física e jurídica que uma servidão seja constituída ao mesmo tempo por destinação de pai de família e por usucapião: no primeiro caso (artigo 1549.º do Código Civil) a servidão constitui-se no momento da separação dos domínios entre dois prédios que pertenceram ao mesmo proprietário; no segundo caso, constitui-se ao fim de 15 ou 20 anos após o momento da separação dos domínios;

b) a servidão constituiu-se apenas por destinação de pai de família, e de forma voluntária, ou seja, por via contratual, estando junto à petição inicial a certidão da escritura que o comprova, pois os aí outorgantes (segunda página, linhas 5 a 10) declaram que “sendo todos de maior idade estavam deliberados em fazerem uma partilha amigável, como lhes faculta a lei”;

23.ª – A circunstância, invocada pela sentença, e aceite pelo acórdão recorrido, como indiciadora do “desmoronamento da tese defendida pelos autores”, de a leira “não se apresentar como sendo um prédio autónomo do prédio (dos réus) antes tendo sido incorporada neste” não apenas não é verdadeira porque a leira em causa foi vendida como um prédio inteiramente autónomo e independente, com descrição própria na Conservatória do Registo Predial e foi vendida alegadamente em 17/12/1986, isto é, há mais de 30 anos, pelo significativo preço de 90.000$00, o que tudo explica a sua autonomia e relevância, como porque a lei não permite distinguir, como a sentença distingue, se o prédio que de novo fica afetado pela servidão pré-existente é ou não autónomo em relação ao primitivo prédio, ou foi ou não incorporado neste.

24.ª – As instâncias aceitaram pelo menos que o prédio dos réus tinha inicialmente a área de logradouro de 184 m2, e passou a ter, após a incorporação da leira, uma área de logradouro de 770 m2, ou seja, teve um aumento de área de quintal de 586 m2, equivalente a um lote médio de terreno, ficando a leira e o prédio reconstruído a servir-se do caminho de servidão, o que tudo justifica o preenchimento de todas as condições legais a que se refere o artigo 1545.º, n.º 2 do Código Civil, no que respeita à parcela dessa norma que permite ao proprietário do prédio serviente requerer a extinção da servidão.

25.ª – No que respeita ao julgamento do pedido reconvencional (“deverão pois os autores ser condenados a retirarem os elementos de fixação/suporte daquela chapa”) não se vê como a condenação pode ter qualquer fundamento, pois ela assenta no pressuposto de que a parede em causa é parte componente do prédio urbano dos réus, o que estes não alegaram, nem seria verdade pois (como, entre o mais resulta das fotografias de fls. 292 e 293) a parede em causa é a parede lateral esquerda da varanda cuja propriedade a sentença reconheceu aos autores, pelo que ou é propriedade destes, ou, se não for, por ser parede divisória, é comum a ambos os prédios.

26.ª – E daí que, mesmo concedendo a possibilidade mais favorável aos réus de a parede ser comum, importaria sempre ter presente o disposto no artigo 1373.º do Código Civil, em cujos termos qualquer dos consortes pode edificar sobre a parede ou muro comum, bem como introduzir nele traves ou barrotes, contanto que não ultrapasse o meio da parede ou do muro, restrição que nem sequer se aplica se a parede ou o muro tiver espessura inferior a 5dm, condições de facto que não estão preenchidas, nem sequer foram alegadas.

27.ª – Acresce que o Acórdão do STJ de 26/02/1998 (BMJ 474, 492) expressamente equiparou as traves ou barrotes à construção de quaisquer pilares que não ultrapassem metade da espessura da parede comum, pelo que do exposto resulta que a condenação dos autores em sede do pedido reconvencional não tem qualquer suporte legal, nem do pedido o tribunal podia sequer tomar conhecimento, quer porque não está justificada em termos factuais a propriedade do muro, quer porque este é, pelo menos comum, o que tudo implica que aos réus competia ter descrito a situação fáctica que suportaria o pedido, e não o fizeram.

Termos em que:

Deve julgar-se nula e de nenhum efeito a sentença produzida, para que seja determinada realização de um arbitramento em 1ª instância, nos termos requeridos, seguindo-se, depois, os demais termos e o julgamento; Quando assim se não entenda, deve revogar-se o acórdão recorrido para, após a ampliação da matéria de facto nos termos preconizados, ou directamente no Supremo Tribunal de Justiça ou no Tribunal recorrido; Quando nem isso se entenda, deve sempre revogar-se o acórdão recorrido para se julgar a acção inteiramente procedente e provada, e a reconvenção não provada e improcedente, Assim se fazendo JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação
13. De facto
13.1. A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. Os autores são donos e possuidores de um prédio urbano de rés-do-chão e primeiro andar, com uma dependência e logradouro, com a área coberta de 135 m2 e 235 m2 de logradouro, situado na Rua ………, da freguesia de ……., em ………., descrito na Conservatória do Registo Predial de …….., actualmente, sob o nº ……, inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o art.º ……., que proveio do art.º ……, a confrontar de norte com HH., de sul com os réus, de nascente com II. e de poente com a referida rua da ……….
2. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de ……. a aquisição, a favor dos autores, do prédio aludido em 1, por compra a GG. e mulher JJ..
3. Os autores, por si e antepossuidores, estão, há mais de 30, 40 e 50 anos, na posse do prédio aludido em 1, que engloba a parcela de terreno que inclui uma varanda e respectivas escadas de acesso, com corrimão instalado sensivelmente a meio das mesmas, melhor identificada nas fotografias de fls. 477, 478 e 487, que aqui se dão por reproduzidas, usando-o, ocupando-o, transformando-o e dando-o de arrendamento,
4. de forma ininterrupta,
5. sem oposição de ninguém,
6. à vista de toda a gente,
7. com a convicção de não lesarem direitos de outrem
8. e com ânimo de quem usa e frui coisas próprias e no próprio nome dos exercitantes.
9. Por escritura de cessão de quinhões hereditários e compra e venda de meação, celebrada no dia 10/08/1999, no 1º Cartório Notarial …….., a cargo do notário Dr. LL., cujo teor, constante de fls. 50 a 53, aqui se dá por reproduzido, os aí primeiros outorgantes declararam vender ou ceder à aqui ré CC., pelo preço ali aludido, o quinhão hereditário que lhes pertencia na herança ilíquida e indivisa por óbito de MM., mais tendo declarado o primeiro outorgante NN. que vendia ou cedia à aqui R. CC., pelo preço aí mencionado, a meação que lhe pertencia na dita herança e que abrangia apenas o prédio urbano inscrito na matriz predial respectiva da freguesia de ……., deste concelho, sob o artigo ….., tendo a aqui ré CC., então casada sob o regime da comunhão de adquiridos com FF., declarado aceitar tal contrato.
10. O referido FF. viria a falecer em 14/07/2009,
11. sucedendo-lhe, como únicos e universais herdeiros, os aqui réus, que, como tal, foram habilitados.
12. Em data não apurada, mas situada após 17/12/1986 e antes de 1990, a ré CC. e o seu marido declararam comprar a OO. e a PP., que declararam vender, pelo preço de € 448,92, uma leira situada no lugar da ……, com entrada pelo lado poente, a confrontar do norte e nascente com os compradores, do sul com II. e AA. e do poente com II., a qual fazia parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …….
13. Com a compra aludida em 12, a leira aí aludida foi agregada ao logradouro do prédio aludido em 9, o qual ficou com maior área.
14. Os réus, relativamente ao prédio urbano aludido em 9, situado na Rua …….., freguesia de ……., …….., constituído por casa de habitação, inscrito na matriz urbana da freguesia de …… com o art.º …….º, que corresponde ao anteriormente inscrito sob o artigo …….º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ……. sob o n.º ……., por si e antepossuidores, há mais de 30, 40 e 50 anos, vêm-no usando, ocupando, transformando e dando de arrendamento,
15. na convicção de não lesarem direitos de outrem,
16. com conhecimento da generalidade das pessoas,
17. sempre sem oposição de ninguém,
18. à vista de toda a gente,
19. sem interrupção alguma
20. e com ânimo de quem usa e frui coisas próprias e no próprio nome dos exercitantes.
21. O prédio aludido em 9 e 14 confina com o prédio aludido em 1, a sul deste.
22. Por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º 2840/07…….., que correu os seus termos pelo …….º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ……, foi declarado que a favor do prédio aludido em 9 e 14 e a onerar o prédio aludido em 1 encontra-se constituída, por usucapião e por destinação de pai de família, uma servidão de passagem que se desenvolve, a partir da via pública (Rua …..) pelo interior da parte urbana do prédio aludido em 1, através de um portão existente neste prédio, após o que se percorre um caminho, sob a construção urbana edificada no prédio aludido em 1 e daí, no termo do caminho, através de um largo componente do logradouro deste prédio, acedendo por escadas ao prédio aludido em 9 e 14, designadamente, ao seu quintal e à sua parte traseira, onde se situa a casa e o terreno.
23. A ré CC. e o seu falecido marido decidiram, por volta do ano de 2005, proceder a obras de modificação, remodelação e ampliação da casa de habitação erigida no prédio aludido em 9 e 14,
24. sendo que, após a morte do marido da ré CC., tal projecto foi continuado por esta e pelos seus filhos, os aqui réus DD. e EE..
25. Terminadas as ditas obras, instalaram-se, numa parte da dita casa de habitação existente no prédio aludido em 9 e 14, por contrato de arrendamento celebrado com os réus, um casal (marido e mulher) com uma filha,
26. sendo que a outra parte de tal casa de habitação se encontra, por contrato de arrendamento celebrado com os réus, ocupada por uma outra pessoa.
27. No âmbito das ditas obras, os réus instalaram encanamentos para fornecimento de água pública e saneamento, referentes ao prédio aludido em 9 e 14.
28. No âmbito das ditas obras, os réus edificaram uma dependência para instalação de botijas de gás
29. e outra dependência para depósito de águas pluviais.
30. Os réus procederam à cobertura com tijoleira de parte da varanda aludida em 3,
31. Mais tendo aí instalado vasos com plantas decorativas.
32. Os réus, após a aquisição da dita leira, continuaram a transitar pelo caminho aludido em 22, nos termos aí referidos, para acederem ao quintal do prédio aludido em 9 e 14, o qual passou a incluir essa leira.
33. Após a realização das ditas obras, a casa de habitação do prédio aludido em 9 e 14 passou a dispor de rés-do-chão e anexo, com duas divisões e cozinha no rés-do-chão, 8 divisões, cozinha e casa de banho no andar, e de um anexo com uma divisão, cobrindo a área de 164,97 m2 e logradouro de 770 m2.
34. As aludidas obras foram concluídas no ano de 2013.
35. O prédio aludido em 9 e 14 tem acesso directo à via pública, confinando directamente com a Rua ……..
36. A partir do termo das obras atrás referidas, os arrendatários da casa de habitação erigida no prédio aludido em 9 e 14 ficaram a passar diariamente e sempre que entendem pelo caminho aludido em 22.
37. Ao longo destes últimos 40 anos, os pais e avós dos aqui réus e seus caseiros utilizaram a parte esquerda das escadas aludidas em 3 (para quem está virado de frente para as mesmas e considerando o corrimão nelas instalado) para acederem à sua casa de habitação,
38. lavaram-na
39. concertaram-na
40. e colocaram na mesma vasos,
41. sem que, até à data da entrada desta acção, os autores a isso se tivessem oposto.
42. Os autores colocaram uma chapa a servir de telhado por cima das escadas aludidas em 3, tendo, para o efeito, cravado ou mandado cravar directamente na parede da casa de habitação erigida no prédio aludido em 9 e 14 os elementos de fixação/suporte daquela chapa.


13.2. Não se consideram provados os seguintes factos:
a. No âmbito das obras aludidas em 23 e 24, os réus construíram um prédio inteiramente novo,
b. dotando-o de três unidades habitacionais com utilização independente,
c. sendo que o prédio que existia anteriormente foi integralmente demolido.
d. Aquando do início das obras, o prédio aludido em 9 e 14 era constituído por uma casa quase em ruínas, dotada somente de uma porta para a rua e, no interior, de escadas para o 1º andar com uma loja e escadas para sair para o quintal.
e. Aquando do início das obras e antes, aquando da constituição da dita servidão de passagem, o prédio aludido em 9 e 14 tinha apenas 4 divisões, dispondo de dois pavimentos, com duas divisões em cada um deles, com a área coberta de 49 m2.
f. O prédio aludido em 9 e 14, antes da realização das ditas obras, apenas dispunha de cómodos susceptíveis de albergar uma família com o máximo de 4 pessoas.
g. No prédio aludido em 9 e 14, desde a data da constituição da servidão atrás referida e até ao início das obras, sempre viveram agregados familiares que não ultrapassavam 4 pessoas.
h. Terminadas as aludidas obras, os réus, por força de contrato de arrendamento, instalaram no rés-do-chão da casa de habitação aludida em 25 uma outra pessoa para além das acima aludidas.
i. A partir do termo das obras atrás referidas, os réus e todos os seus dependentes, amigos, e familiares ficaram a passar diariamente e sempre que entendem pelo caminho aludido em 22.
j. As instalações aludidas em 27 foram realizadas sob o solo do prédio aludido em 1., que os réus, para o efeito, perfuraram.
k. As instalações aludidas em 28 e 29 foram realizadas no logradouro do prédio aludido em 1, que os réus, para o efeito, perfuraram.
l. Os réus, na parcela de terreno aludida em 3, designadamente, nas escadas de acesso à varanda, construíram mais um degrau.
m. A aquisição, pelos réus, da leira aludida em 12 ocorreu cerca do ano de 1999.
n. Em 1973, os autores dividiram as escadas entre a casa deles e a dos réus, aludidas em 3, afirmando aos réus que cada um passava a zelar pelas suas escadas e entradas.
o. Os autores, há cerca de 40 anos, não utilizam a parte das escadas aludidas em 3 que permite o acesso à casa de habitação erigida no prédio aludido em 9 e 14,
p. nem as limpam,
q. concertam
r. ou adornam,
s. apenas o fazendo na parte de tais escadas que permite aceder à casa de habitação erigida no prédio aludido em 1.
t. Os autores não se opuseram quando os réus alargaram tais escadas.

De Direito
14. Objecto do recurso
Por referência ao despacho da relatora, de fls…, o objecto do recurso compreende as questões que aí foram indicadas e ainda a questão a que a formação (Acórdão de 29-09-2020) respondeu afirmativamente ao admitir a revista excepcional, a saber a questão de direito em torno da interpretação da norma do art. 1545.º, n.º 2, do CC, ligada ao alegado agravamento da servidão predial em causa nos autos (É, portanto, esta questão, assim delineada, que constituirá, a par com as demais já enunciadas no despacho da relatora relativas à matéria de facto), e ainda com a questão da invocada nulidade, objecto do recurso.

Em síntese, as questões a tratar são:

 a) Saber se o acórdão recorrido devia ter declarado a nulidade da sentença nos termos do art. 615.º, n.º 1, als. c) e d), do CPC;

b) Saber se, ao ter reapreciado a matéria de facto que os recorrentes impugnaram, a Relação violou a lei processual;

c) Saber se a Relação violou o direito probatório material, em concreto, a força probatória plena dos documentos juntos aos autos e da declaração confessória da ré;

d) Saber se foi feita incorrecta interpretação da norma constante do art. 1545.º n.º 2, do CC.

15. Questões
a) Nulidade do acórdão recorrido
No que concerne à invocada nulidade da decisão, sustentam os recorrentes que os fundamentos do despacho que indeferiu o arbitramento por si requerido, conjugados com a sentença, se encontram em oposição com a decisão de indeferimento desse meio de prova, justificando-se a nulidade da decisão que o acórdão recorrido não determinou nos termos do art. 615.º, n.º 1, als. c) e d), do CPC, para além de que o juiz conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento sem a realização do referido arbitramento, resultando da nulidade a repetição do julgamento.
Neste particular, entendeu a Relação que, cabendo apelação autónoma da decisão do tribunal de 1.ª instância que indeferiu o arbitramento requerido pelos recorrentes nos termos do art. 644.º, n.º 2, al. d), do CPC, sem que estes tenham recorrido dessa decisão no respectivo prazo legal, tal decisão transitou em julgado, não podendo agora os recorrentes, atenta a força de caso julgado formal (art. 620.º do CPC), voltar a suscitar a questão.
Decidiu, por isso, a Relação que a invocada nulidade tinha de improceder, tanto mais que os recorrentes nem sequer invocaram uma situação que fosse subsumível à previsão do art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, saindo, ao invés, a sua argumentação da sentença e indo buscar apoio, para encontrar contradições, no despacho que indeferiu o referido meio de prova quando, na verdade, a citada previsão legal está limitada a contradições intrínsecas dentro da própria peça decisória, não se vendo também em que medida é que o juiz teria conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento.
É, pois, esta nulidade da sentença (e não do acórdão recorrido) que os recorrentes voltam a invocar nesta sede, o que determina necessariamente a sua improcedência, já que o recurso de revista incide sobre o acórdão recorrido e não sobre a sentença ou qualquer despacho que a tenha sido proferido na 1ª instância.


b) Saber se, ao ter reapreciado a matéria de facto que os recorrentes impugnaram, a Relação violou a lei processual
A este propósito, sustentam os recorrentes que a Relação se limitou a subscrever os fundamentos da sentença, excluindo qualquer análise da decisão quanto à crítica que foi feita pelos autores à matéria de facto e que, resultando os factos – relativos à evolução do prédio dos réus – de documentos autênticos e particulares que não foram impugnados, bem como do depoimento de parte da ré, que constitui declaração confessória, deviam aqueles ter resultado provados.
Os recorrentes imputam, portanto, à Relação erros que se situam em dois planos distintos: por um lado, a violação da lei processual quanto aos poderes que lhe estão cometidos, à luz do disposto no art. 662.º do CPC, no âmbito da impugnação da matéria de facto e, por outro lado, a violação do direito probatório material por, alegadamente, estarem em causa documentos com força probatória plena e uma declaração confessória que, no seu entender, imporiam decisão diversa da matéria de facto.
Todavia, apenas a violação da lei adjectiva constitui fundamento para afastar a dupla conformidade decisória no que tange especificamente à questão de saber se, ao ter apreciado a impugnação da matéria de facto, a Relação agiu dentro dos limites traçados pela lei processual e se conformou essa apreciação com as normas que regulam tal matéria à luz do arts. 640.º e 662.º do CPC.
Já o erro na apreciação da prova que os recorrentes imputam igualmente à Relação, com fundamento em suposta violação do direito probatório material, não afastando a dupla conformidade decisória, não implica, por si só, a admissibilidade do recurso de revista, pode é constituir fundamento deste, se o mesmo for admissível (art. 674.º, n.º 1, do CPC) .
Na verdade, julga-se que um entendimento diverso esvaziaria de sentido a regra da dupla conforme, já que bastaria aos recorrentes imputar à Relação, ainda que de forma infundada, a violação da lei processual para dessa forma verem apreciadas, a reboque desse suposto erro, questões que, de outra forma e em face da aludida limitação recursória, não poderiam ser conhecidas pelo STJ (art. 671.º, n.º 3, do CPC).
Nesta conformidade, dando como assente, à luz das considerações expendidas, que apenas caberá apreciar se ocorreu (ou não) violação da lei processual – maxime do disposto no art. 662.º do CPC – no que concerne à apreciação da matéria de facto, vejamos se a Relação se absteve, como alegam os recorrentes, de reapreciar, efectivamente, os meios de prova que os mesmos indicaram para alicerçar a impugnação que fizeram dessa decisão em sede de apelação.
Consignou-se, neste particular, no acórdão recorrido:
De seguida os recorrentes pretendem a alteração da decisão sobre matéria de facto.
Ora, anotando o art. 640º CPC, que contém os requisitos formais de admissibilidade do recurso sobre matéria de facto, escreve Abrantes Geraldes (Recursos, 2017, fls. 158):
“a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a)           falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b);
b)           falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c)           falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (vg. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc);
d)           falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e)           falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido
relativamente a cada segmento da impugnação”.
Da leitura das alegações e das respectivas conclusões, o que verificamos é o seguinte: nas conclusões, onde, como acabámos de ver, os recorrentes devem especificar os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a), apenas encontramos de relevante o ponto 11, onde afirmam o seguinte: “…devia ter sido julgado provada a evolução da descrição do prédio dos réus que começou por ter, conforme as referidas declarações, uma área coberta de 49 m2 e dois pavimentos com duas divisões em cada, e um terreno de quintal de 184 m2 (até 30/06/2001), para passar a ter, a partir dessa data duas divisões e cozinha no rés-do-chão, e oito divisões, cozinha e casa de banho no andar, com um anexo com uma divisão a área coberta de 145 m2 com logradouro de 770 m2 (este a partir de 2014)”.
E no corpo das alegações pretendem que se acrescente à matéria de facto provada este facto: “Facto 43: “aquando do início das obras e antes, aquando da constituição da dita servidão de passagem, o prédio dos réus era composto por duas habitações, uma com uma loja no rés-do-chão e cozinha e dois quartos no andar, e outra com uma cozinha no rés-do-chão e uma sala e dois quartos no andar, com a área total coberta de 49m2”.
Se bem repararmos, nem sequer há coincidência entre o que se escreve num lado e o que se escreve no outro. E para impugnar a decisão sobre matéria de facto, que está vertida em números, ou itens, ou letras, todos eles a descrever apenas factos, é exigível um mínimo de rigor, quer na determinação do ponto onde ocorreu o erro de julgamento, quer na formulação que se pretende que o Tribunal de recurso imponha.
Dito isto, consideramos que ainda é possível salvar esta parte do recurso, atentando apenas na formulação que os recorrentes pretendem que se adite à matéria de facto provada, sob a designação de “facto 43”.
E, considerando que a matéria de facto tem de ser analisada e apreciada em bloco, pois não podemos correr o risco de haver contradições entre factos, vamos analisar igualmente o recurso dos réus sobre matéria de facto. Estes identificam claramente nas conclusões qual é a sua pretensão em matéria de facto: entendem que com a prova produzida os factos dados como não provados nas alíneas n), o), p), q) e r) deveriam antes ter sido julgados provados. E apresentam a sua argumentação nesse sentido.
Vejamos.
Quanto à pretensão dos autores, o facto que eles pretendem aditar à lista dos provados corresponde, com algumas diferenças, ao facto que o Tribunal a quo considerou não provado sob a alínea e).
O facto em causa é o seguinte:
43. “aquando do início das obras e antes, aquando da constituição da dita servidão de passagem, o prédio dos réus era composto por duas habitações, uma com uma loja no rés-do-chão e cozinha e dois quartos no andar, e outra com uma cozinha no rés-do-chão e uma sala e dois quartos no andar, com a área total coberta de 49m2”.
Vejamos como o Tribunal fundamentou essa decisão:
“No que se refere à factualidade constante das alíneas d) a f), temos que a mesma foi desmentida pela R. CC. no decurso do seu depoimento/declarações de parte, que referiu que a casa de habitação erigida no prédio aludido em 9 e 14, antes da realização das aludidas obras, dispunha de mais divisões do que as invocadas pelos AA. No mesmo sentido, as testemunhas QQ., RR. e SS. esclareceram, demonstrando possuir conhecimento directo do alegado, que a casa de habitação em causa, anteriormente, era constituída por mais divisões do que as invocadas pelos AA.
As testemunhas arroladas pelos AA. não demonstraram possuir um conhecimento tão esclarecido da dita factualidade quanto o demonstrado pelas ditas testemunhas arroladas pelos RR., até porque, ao contrário destas, as testemunhas arroladas pelos AA. nunca viveram na casa de habitação erigida no prédio aludido em 9 e 14, não dispondo de grande conhecimento acerca da sua configuração anterior (e actual). De qualquer forma, a testemunha TT., que, em comparação com as demais testemunhas arroladas pelos AA., foi a que demonstrou possuir um conhecimento mais apurado acerca da dita factualidade, referiu que a casa de habitação em questão, antes da realização das ditas obras, tinha mais divisões do que as invocadas pelos AA.
No que à dita factualidade respeita, refira-se ainda que a documentação de fls. 134 a 149 não permite confirmar a sua veracidade. De facto, de tal documentação apenas poderá retirar-se a conclusão de que o prédio aludido em 9 e 14 foi inscrito pela primeira vez no serviço de finanças no ano de 1937, tendo-lhe sido atribuído o artigo …., o qual deu origem ao artigo …. que, por sua vez, acabou por dar origem ao artigo ……. De tal documentação pode ainda concluir-se que o dito prédio, quando estava inscrito no artigo …. da matriz predial respectiva, estava descrito como sendo um prédio com dois pavimentos, tendo, no rés-do-chão, duas divisões e duas divisões no 1º andar, com terreno de horta e com a área total de 233 m2, sendo a área coberta de 49 m2.
Porém, como resulta da dita documentação, o mesmo prédio, quando inscrito sob o artigo ……. da matriz predial respectiva, estava descrito como sendo um prédio composto por rés-do-chão e anexo, sendo o rés-do-chão composto por 2 divisões e uma cozinha e o andar composto por 8 divisões, uma cozinha e uma casa de banho, sendo a área coberta de 145 m2 e o logradouro de 525 m2. Por fim, o dito prédio, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ….., encontra-se presentemente descrito como sendo um prédio destinado a habitação, de tipologia T2, com dois pavimentos, com a área coberta de 164,97 m2, tendo duas divisões assoalhadas e cozinha no rés-do-chão e oito divisões, uma cozinha e casa de banho no andar.
Como é sabido, a descrição do prédio, que inclui a sua área, não faz parte do elenco dos factos a registar que se mencionam nos artigos 2º e 3º do Código do Registo Predial, não podendo, pois, a área e confrontações dos imóveis constantes da descrição considerar-se abrangidas pela presunção que se estabelece no artigo 7º de tal diploma legal.
O mesmo se diga relativamente ao teor dos documentos relativos à inscrição matricial dos prédios, cujo teor nunca poderá considerar-se demonstrativo de que tais prédios têm as áreas, as confrontações e a configuração aí mencionada.
De qualquer forma, a dita documentação indicia que, já em 2001, o prédio aludido em 9 e 14 tinha uma área coberta superior à invocada pelos AA. e mais divisões do que as por estes alegadas.
Assim sendo, considerando o teor dos ditos elementos probatórios, outra não poderia ter sido a decisão que não fosse a de considerar não provada a factualidade constante das alíneas d) a f)”.
Ora, a motivação apresentada pelo Tribunal recorrido mostra-se correcta, aprofundada, e depois de ouvir os depoimentos que refere, certeira. Explica e bem que a ré CC., no decurso do seu depoimento/declarações de parte, referiu que a casa de habitação erigida no prédio aludido em 9 e 14, antes da realização das aludidas obras, dispunha de mais divisões do que as invocadas pelos autores. E no mesmo sentido foi o depoimento das testemunhas QQ., RR. e SS.. Os recorrentes apenas se referem ao depoimento/declarações da própria ré.
Assim, não conseguimos começar a vislumbrar um erro de julgamento nesta decisão de dar tal facto como não provado.
Improcede pois esta parte do recurso.”

Ora, resulta claramente, da análise que se faça do acórdão recorrido nesta parte, que, apesar de os recorrentes não terem sido rigorosos no cumprimento dos ónus impostos no art. 640.º do CPC, o Tribunal da Relação não só aproveitou o recurso na parte referente à impugnação da matéria de facto, apreciando-o, como também, no âmbito dessa apreciação, procedeu à audição da prova gravada (quer do depoimento de parte da ré CC., quer dos depoimentos das restantes testemunhas) e depois de a ter ouvido – como lhe competia e se impunha –, acompanhou integralmente a fundamentação de facto plasmada na sentença, transcrevendo-a e, nessa medida, fazendo-a sua (e, portanto, quer no que tange aos meios de prova aí referidos e analisados, quer no que se refere ao juízo fáctico que com base neles formou).

Para além disso e contrariamente ao alegado pelos recorrentes, a Relação justificou, de forma clara e suficiente (ainda que sintética), por que razão considerou correcta, aprofundada e certeira a dita motivação, aludindo, para tanto, expressamente ao dito depoimento de parte e aos depoimentos das testemunhas que indicou, sendo que se retira dessas justificações que foi depois de proceder à audição da prova gravada que formou convicção em sentido inteiramente coincidente com a 1.ª instância no que se refere à insuficiência da prova para dar como provada a matéria concernente à descrição e à área do prédio em questão.

Por estas razões, não se vislumbra que possa ser assacada à Relação a violação das normas processuais que regulam esta matéria. Diferente seria se a Relação se tivesse limitado a fazer uma apreciação meramente formal da motivação ínsita na sentença, sem ter procedido à audição da prova gravada e sem qualquer apreciação crítica quanto à mesma – o que, manifestamente, não é o caso.

Acresce que, ainda que não se ignore que, subjacente ao disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC esteve o propósito expresso de reforçar os poderes da Relação na reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto, o certo é que essa reapreciação não se confunde com um novo julgamento.

Destarte, tendo a Relação agido em conformidade com o disposto no art. 662.º do CPC, forçoso é concluir que a revista estará, nesta parte, condenada ao fracasso.

c) Saber se a Relação violou o direito probatório material, em concreto, a força probatória plena dos documentos juntos aos autos e da declaração confessória da ré
Nesta questão os recorrentes invocam a violação do direito probatório material – que fundam na força probatória plena dos documentos juntos aos autos e no depoimento de parte da ré CC. uma vez que sustentam constituir declaração confessória – defendendo, nessa medida, que a descrição e a área “iniciais” do prédio dos réus deveria ter sido dada como provada.
Não lhes assiste razão.

Os documentos (certidões prediais e matriciais, plantas e fotografias) a que os recorrentes aludem não revestem força probatória plena no que se refere à descrição e à área do prédio em questão (arts. 371.º, 376.º, e 377.º, do CC)[1];

A declaração confessória, obtida em depoimento/declarações de parte, só tem força probatória plena na parte em que tenha sido reduzida a escrito e a verdade é que a factualidade que os recorrentes pretendem ver declarada provada não consta da assentada, que, de resto, não mereceu qualquer reclamação[2] (arts. 356.º, n.º 2, 358.º, n.º 1, e 361.º, do CC, e arts. 452.º, 463.º, e 466.º do CPC)[3].

Tudo para concluir, sem necessidade de mais considerações, que, não se verificando ofensa de qualquer disposição que fixe a força de determinado meio de prova e estando em causa meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal, arredada está a possibilidade de o STJ sindicar, em sede de revista, o eventual erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC).


d) Saber se foi feita incorrecta interpretação da norma constante do art. 1545.º n.º 2, do CC.

Quanto à questão em torno da interpretação da norma constante do art. 1545.º, n.º 2, do CC – em relação à qual foi admitida a revista excepcional – decidiu a Relação, acompanhando a fundamentação da 1.ª instância, que, tendo ficado provado que a leira adquirida pelos réus foi agregada ao logradouro do prédio destes (que, assim, ficou com maior área) e que, após essa aquisição, os réus continuaram a transitar pelo caminho em causa nos autos para aceder ao quintal do seu prédio, que passou a incluir essa leira, não pode concluir-se que os réus tenham passado a afectar as utilidades próprias da servidão a um novo prédio em termos de importar a constituição de uma servidão nova e a extinção da antiga.

Nesta conformidade, sublinhou a Relação que a dita leira, tendo sido incorporada no logradouro do prédio dos réus, nunca se apresentou como um prédio rústico independente daquele no qual foi integrada, sendo que, mesmo que tal incorporação no prédio dominante não tivesse ocorrido, estando provado que a servidão continuou a ser exercida também em relação a esse prédio, nunca se poderia considerar que as suas utilidades próprias tivessem sido afectadas, em exclusivo, àquele outro prédio de forma a implicar a sua extinção.

Decidiu, para além disso, a Relação que o facto de se ter provado que os réus realizaram obras na casa de habitação existente no seu prédio, independentemente da extensão dessas obras, não permite concluir que o prédio que aí existia foi eliminado, dando lugar a um novo prédio, sendo que quando o art. 1545.º, n.º 2, do CC se refere à afectação das utilidades próprias da servidão a outros prédios, está a considerar as hipóteses em que a servidão é separada do prédio dominante para passar a servir um outro prédio, necessariamente situado em lugar diferente do prédio dominante.

Partindo deste pressuposto, considerou a Relação, secundando, também neste particular, a fundamentação vertida na sentença, que a circunstância de os réus terem realizado obras de ampliação, remodelação e beneficiação na casa de habitação erigida no seu prédio não conduz à conclusão de que a servidão constituída em benefício deste último passou a servir um prédio diferente.

Acrescentou, para além disso, que, mesmo que tivesse ficado provado que tal casa de habitação passou a ser habitada por um número superior de pessoas às que lá residiam antes das ditas obras, tal também não fundamentaria a extinção da servidão e nem sequer a verificação de uma situação excessiva quanto ao seu modo de exercício já que uma servidão de passagem constituída por usucapião e/ou por destinação de pai de família, como a que está em causa nos autos – recaindo sobre prédios e não sobre pessoas – nunca poderá conter uma limitação quanto ao número de pessoas que habita a casa de habitação erigida no prédio dominante e que utiliza a servidão.

Por estas razões, concluiu a Relação que, não tendo ficado provada a afectação das utilidades próprias da servidão a outros prédios, não se verifica a previsão legal do art. 1545.º, n.º 2, do CC, não havendo, portanto, fundamento para a extinção da servidão.

Já os recorrentes sustentam que, contrariamente ao que se verteu no acórdão posto em crise, se justifica a extinção da servidão com fundamento no seu agravamento, que é inadmissível, quer a alteração se faça para um prédio novo, quer a alteração se faça por ampliação ou modificação do prédio primitivo, quer ainda pelo acrescentamento de um prédio rústico ao prédio urbano primitivo, uma vez que está vedado ao proprietário do prédio dominante introduzir quaisquer inovações que, directa ou indirectamente, se traduzam num agravamento do prédio serviente, ou seja, no exercício de um ónus superior ao resultante do título constitutivo, como é o caso de substituição do prédio dominante por outro, da mudança do exercício da servidão no âmbito do prédio dominante e da ampliação do prédio dominante.

Vejamos.

A questão em causa nos autos reconduz-se à problemática atinente ao modo e à extensão do exercício da servidão, cumprindo determinar se as alterações introduzidas no prédio dominante importam ou não extinção da servidão, a saber: (i) alteração consistente na integração de uma leira no logradouro do prédio dominante; e (ii) alteração consistente nas obras de ampliação, remodelação e beneficiação levadas a cabo na casa de habitação erigida no prédio dominante.

Diz o art.º 1545.º do CC (Inseparabilidade das servidões):
1. Salvas as excepções previstas na lei, as servidões não podem ser separadas dos prédios a que pertencem, activa ou passivamente.
2. A afectação das utilidades próprias da servidão a outros prédios importa sempre a constituição de uma servidão nova e a extinção da antiga.

Trata-se da principal norma jurídica convocada para a resolução da questão, a qual, naturalmente, pressupõe o conceito e regime de servidão predial – art.º 1543.º e ss do CC.

Para análise das questões identificadas, importará, não apenas atender à lei, mas considerar os factos resultantes da instrução da causa, em que se destacam:

a) Dos factos provados

12. Em data não apurada, mas situada após 17/12/1986 e antes de 1990, a ré
CC. e o seu marido declararam comprar a OO. e a PP., que declararam vender, pelo preço de € 448,92, uma leira situada no lugar da …., com entrada pelo lado poente, a confrontar do norte e nascente com os compradores, do sul com II. e AA. e do poente com II., a qual fazia parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …...

13. Com a compra aludida em 12, a leira aí aludida foi agregada ao logradouro do prédio aludido em 9, o qual ficou com maior área.

(…)

22. Por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º 2840/07……., que correu os seus termos pelo …..º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ….., foi declarado que a favor do prédio aludido em 9 e 14 e a onerar o prédio aludido em 1 encontra-se constituída, por usucapião e por destinação de pai de família, uma servidão de passagem que se desenvolve, a partir da via pública (Rua …..) pelo interior da parte urbana do prédio aludido em 1, através de um portão existente neste prédio, após o que se percorre um caminho, sob a construção urbana edificada no prédio aludido em 1 e daí, no termo do caminho, através de um largo componente do logradouro deste prédio, acedendo por escadas ao prédio aludido em 9 e 14, designadamente, ao seu quintal e à sua parte traseira, onde se situa a casa e o terreno.

23. A ré CC. e o seu falecido marido decidiram, por volta do ano de 2005, proceder a obras de modificação, remodelação e ampliação da casa de habitação erigida no prédio aludido em 9 e 14,

24. sendo que, após a morte do marido da ré CC., tal projecto foi continuado por esta e pelos seus filhos, os aqui réus DD. e EE..

25. Terminadas as ditas obras, instalaram-se, numa parte da dita casa de habitação existente no prédio aludido em 9 e 14, por contrato de arrendamento celebrado com os réus, um casal (marido e mulher) com uma filha,

26. sendo que a outra parte de tal casa de habitação se encontra, por contrato de arrendamento celebrado com os réus, ocupada por uma outra pessoa.

(…)

32. Os réus, após a aquisição da dita leira, continuaram a transitar pelo caminho aludido em 22, nos termos aí referidos, para acederem ao quintal do prédio aludido em 9 e 14, o qual passou a incluir essa leira.

33. Após a realização das ditas obras, a casa de habitação do prédio aludido em 9 e 14 passou a dispor de rés-do-chão e anexo, com duas divisões e cozinha no rés-do-chão, 8 divisões, cozinha e casa de banho no andar, e de um anexo com uma divisão, cobrindo a área de 164,97 m2 e logradouro de 770 m2.

34. As aludidas obras foram concluídas no ano de 2013.

36. A partir do termo das obras atrás referidas, os arrendatários da casa de habitação erigida no prédio aludido em 9 e 14 ficaram a passar diariamente e sempre que entendem pelo caminho aludido em 22.

b) Dos factos não provados

a) No âmbito das obras aludidas em 23 e 24, os réus construíram um prédio inteiramente novo.

b) dotando-o de três unidades habitacionais com utilização independente,

c) sendo que o prédio que existia anteriormente foi integralmente demolido.

d) Aquando do início das obras, o prédio aludido em 9 e 14 era constituído por
uma casa quase em ruínas, dotada somente de uma porta para a rua e, no interior, de
escadas para o 1º andar com uma loja e escadas para sair para o quintal.

e) Aquando do início das obras e antes, aquando da constituição da dita
servidão de passagem, o prédio aludido em 9 e 14 tinha apenas 4 divisões, dispondo de
dois pavimentos, com duas divisões em cada um deles, com a área coberta de 49 m2.

f) O prédio aludido em 9 e 14, antes da realização das ditas obras, apenas
dispunha de cómodos susceptíveis de albergar uma família com o máximo de 4
pessoas.

g) No prédio aludido em 9 e 14, desde a data da constituição da servidão atrás
referida e até ao início das obras, sempre viveram agregados familiares que não
ultrapassavam 4 pessoas.

h) Terminadas as aludidas obras, os réus, por força de contrato de arrendamento, instalaram no rés-do-chão da casa de habitação aludida em 25 uma outra pessoa para além das acima aludidas.
i) A partir do termo das obras atrás referidas, os réus e todos os seus dependentes, amigos, e familiares ficaram a passar diariamente e sempre que entendem pelo caminho aludido em 22.

Algumas notas complementares devem ser aqui reafirmadas.

Desde logo a relação que se impõe efectuar entre o sentido normativo do art.º 1545.º CC e a situação fáctica apurada.

Mas também a relação entre a situação fáctica apurada e o conceito de prédio, in casu, urbano, decorrente da lei civil, que o define como “qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro” (art.º 204.º, n.º 2 CC).

Estando demonstrado que os RR. eram já proprietários do prédio urbano identificado no ponto 9 e 14 dos factos provados, composto por parte urbana e logradouro, e que ao mesmo prédio veio a ser acrescentada uma parte que aumentou o logradouro, sem que essa parte tivesse adquirido autonomia jurídica relativamente ao prédio que dele beneficiou, parece, smo., claudicar o pressuposto legal a que se reporta o art.º 1545.º, n.º 2 - A afectação das utilidades próprias da servidão a outros prédios.

Na verdade, não se consegue identificar – em face dos factos provados – que exista aqui uma violação do princípio da inseparabilidades das servidões prediais, no sentido de que as utilidades de que o prédio dominante goza tenham sido alargadas ou passadas para outro prédio, distinto do dominante, em prejuízo do prédio serviente.

Não se desconhecem as orientações doutrinais, nem a escassa jurisprudência que sobre o art.º 1545.º, n.º 2 existe, nomeadamente a que se indica:
i) Ac. TRPorto de 18/6/1998, processo 502/98[4];
ii) Mário Tavarela Lobo, Mudança e alteração de servidão, Coimbra, 1984, em especial, p. 10 a 16, 23 a 34, 38, 101 e ss., 108 e ss. e 129 e ss.;
iii) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1987, p. 618 e ss.

Contudo, da sua análise decorre:

1ª – a necessidade de aferição fáctica da existência de um ou mais prédios;

2º – a dificuldade de definir o conceito de prédio, quer por referência aos elementos constantes do registo predial, quer aos de carácter fiscal (matriz);

3º – a ideia segundo a qual em caso de fusão ou ampliação de um dos prédios a que se reporta a servidão ter de se distinguir a situação antes e após a fusão ou ampliação, para se conseguir determinar se as utilidades podem beneficiar a parte ampliada ou objecto de fusão.

Segundo essas correntes, se um prédio dominante é objecto de fusão com outro, as utilidades de que beneficia em virtude de anterior servidão não se estendem à porção absorvida. Mas, as posições indicadas não são absolutas, passando sempre por uma análise casuística[5].

Mesmo à luz destas orientações doutrinais e jurisprudenciais indicadas, adaptadas ao caso concreto deste autos, sempre se diria que a questão que importa resolver é a de saber se com a anexação da leira passou a existir um prédio distinto do prédio dominante e que tenha passado a beneficiar das utilidades que a este eram atribuídas pela servidão.

Acontece que esta resposta está dada pelos factos provados, ao se ter concluído que a leira integrou o logradouro do prédio dominante, aumentando a sua extensão, mas sem que o prédio tenha sofrido uma mudança qualificativa, pois era urbano e urbano se manteve, mas com logradouro maior, logradouro esse que não tinha autonomia suficiente para ser considerado novo prédio, pois também não tinha uma utilidade distinta do logradouro a que se veio a juntar.

Não tinha de assim ter sucedido, mas para que tal não acontecesse a situação de facto – e  de facto provada – tinha de ser diversa daquela que se nos é apresentada nos autos (art.º 682.º, n.º 2 CPC), determinando esta que o STJ proceda à aplicação da lei aos factos apurados (art.º 682.º, n.º 1 CPC).

Em ordem a melhor fundamentar a orientação aqui defendida cumpre igualmente chamar à colação a escassa jurisprudência deste STJ, citando para o efeito:
i)  O acórdão de 30-01-2003, Revista n.º 3949/02,[6], com o seguinte sumário (parcial), no qual se tratou de uma transformação de prédio rústico em urbano, tendo-se considerado que essa transformação não implicava alterações na servidão existente:
VI - À existência de servidão de passagem por destinação do antigo dono ou pai de família, prevista nos art.ºs 1547, n.º 1, e 1549 do CC, interessa a situação (de serventia) subsistente na altura em que, com a separação de prédios, se constituiu.
VII - No entanto, uma vez constituída não é a transformação do prédio rústico dominante em prédio urbano que automaticamente a pode extinguir por, alegadamente, tal modificar ou tornar mais oneroso o seu conteúdo.

No seu conteúdo encontra-se a seguinte fundamentação:
6. Nada à resolução desta causa encontrada pelas instâncias atrasa - óbvio será mesmo que adianta - a regra da inseparabilidade das servidões dos prédios (dominante e serviente) a que respeitam - cfr. arts. 1543º e 1545º C.Civ.
Nada, à luz desses preceitos, com tal interfere a transformação dos prédios separados de rústicos em urbanos.
Não pode, nomeadamente, atribuir-se, sem mais, a essa transformação a virtualidade de extinguir servidão de passagem, cujo conteúdo, - isto é, consoante art. 1544º, a utilidade ou vantagem que representa -, é constituído pelos actos (de passagem) em que se traduz o exercício desse direito.
Não devem, claro está, confundir-se as utilidades da servidão com as do prédio dominante; de modo nenhum resulta da propriedade horizontal divisão proíbida pelo art. 1546º C.Civ.; nem decorre necessariamente da matéria de facto provada que o conteúdo da servidão tenha efectivamente sido alterado ou modificado pela transformação do destino económico dos prédios envolvidos.
Outra, diversa, questão é a do eventualmente maior - mais intenso - uso, que pode, de facto, traduzir-se numa maior onerosidade do encargo imposto sobre o prédio serviente.
Há, enfim, que evitar confusões, ou tergiversação, que, neste caso, se afigura serem estas:
- Mesmo quando considerado que a transformação da natureza do prédio dominante determina necessariamente alteração da servidão, nada na lei permite extrapolar daquele facto a extinção desse encargo.
- Pedida, em acção de simples apreciação negativa, a declaração da inexistência de servidão, vê-se mal o que é que a subsequente discussão sobre a oposta existência, ou não, dessa servidão tem que ver com o conteúdo da mesma, isto é, com a utilidade ou proveito - passagem, acesso ou trânsito - que integra ou representa, em termos abstractos, qualitativamente idênticos, ou - esse o ponto vivo da mais recente linha de defesa da ora recorrente - com a sua extensão ou modo de exercício (8), alegadamente, em concreto, agravados, o que, eventualmente susceptível de justificar oposição a esse mais frequente e alargado exercício, todavia se situa, de todo em todo, fora da previsão do art. 1569º C.Civ.


ii) O Acórdão de 21-02-2013, relativo ao processo n.º 4077/05.4TBVCT.G1.S[7], em que se apurou haver uma divisão de um prédio em novos prédios:
I - A servidão exprime uma limitação ao direito de propriedade do prédio que com ela é onerado (prédio serviente) em favor do prédio que dela beneficie (prédio dominante).
II - A servidão que onera um prédio que é, posteriormente, objecto de loteamento, passando a onerar uma parcela desse terreno, que agora constitui um lote, e por conseguinte, um prédio diferente, constitui, nesse circunstancialismo, uma nova servidão, e não uma mudança da existente.
III - Para ser oponível a terceiros (designadamente os adquirentes dos respectivos lotes), a nova servidão deveria ser objecto de escritura pública e registo na Conservatória de Registo Predial respectiva (art. 7.º do CRgP).

Em face do exposto, a posição adoptada pelas instâncias não desvirtua a lei vigente e é a que melhor se adequa à situação concreta dos presentes autos, devendo, por isso, ser mantida e confirmada.

Finalmente, importa ver se o tribunal a quo decidiu bem quando que a circunstância de os réus terem realizado obras de ampliação, remodelação e beneficiação na casa de habitação erigida no seu prédio não conduz à conclusão de que a servidão constituída em benefício deste último passou a servir um prédio diferente e que mesmo que tivesse ficado provado que tal casa de habitação passou a ser habitada por um número superior de pessoas às que lá residiam antes das ditas obras, tal também não fundamentaria a extinção da servidão e nem sequer a verificação de uma situação excessiva quanto ao seu modo de exercício já que uma servidão de passagem constituída por usucapião e/ou por destinação de pai de família, como a que está em causa nos autos – recaindo sobre prédios e não sobre pessoas – nunca poderá conter uma limitação quanto ao número de pessoas que habita a casa de habitação erigida no prédio dominante e que utiliza a servidão.

Também aqui nos parece que assiste razão ao tribunal recorrido: em 1º lugar, porque voltamos aos factos provados e só se apura que houve ampliação do prédio dos réus e não existem dois prédios; em 2º lugar porque não veio demonstrado que as utilidades de que o prédio dominante podia beneficiar estavam limitadas a um certo número de pessoas que podiam passar, até porque a utilidade transferida do prédio serviente é efectuada em favor do dominante e não  de pessoas certas e determinadas (ou incertas e não determinadas com em número limitado), sob pena de estarmos perante uma servidão não real- sem adesão aos factos provados nesta acção; em 3º lugar, porque, em face do disposto no art.º 1565.º do CC, na falta de prova em contrário, a servidão entende-se constituída por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, o que comporta a passagem não só pelos seus proprietários como arrendatários, visitas, amigos, etc.

Em consequência, improcede também aqui a alegação dos recorrentes.

Nada mais havendo a tratar, é altura de decidir.

III - Decisão

Pelos fundamentos acima indicados, é negada a revista, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes

Lisboa, 17 de Dezembro de 2020

Fátima Gomes (Relatora)

Acácio Neves

Fernando Samões

_________________________--
[1] Neste sentido: Acórdãos do STJ de 19-06-2019, de 03-10-2019 e de 10-12-2019.
[2] Vide acta de 26-03-2019 constante do processo electrónico.
[3] Neste sentido: Acórdãos do STJ de 13-02-2014, de 20-05-2014, de 19-06-2019, de 11-07-2019, de 06-02-2020 e de 03-03-2020, todos infra indicados.
[4] In CJ, Ano XXIII, Tomo III, 1998, p. 207-209. Refira-se a citação relevante: “Se, em vez da divisão do prédio serviente ou dominante se operar a ampliação de qualquer deles, em consequência da fusão com prédio contíguo, deverá entender-se, respectivamente, que só fica onerada com a servidão a parte que constituía, antes o prédio serviente e que a servidão não poderá ser utilizada directamente para proveito da parte com que foi ampliado o prédio dominante (V. Tavarela Lobo, “Mudança e alteração da servidão”, Coimbra, 1984, p. 101 e ss, e, quanto à segunda hipótese, Pires de Lima, “Direitos Reais”, 4ªe, p. 344).
[5] Ac. TRPorto de 18/6/1998, processo 502/98 na citação indicada na nota anterior vê-se o elemento de adaptação ao caso concreto através da palavra em itálico directamente.
[6] 7.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Oliveira Barros  - in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4229d1ed8612193880256ce7004a08bf?OpenDocument
[7] Tavares de Paiva (Relator), in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e489fa3dba874c0780257b19005b46e1?OpenDocument