Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FÁTIMA GOMES | ||
Descritores: | SERVIDÃO DE PASSAGEM EXTINÇÃO PRÉDIO DOMINANTE PRÉDIO URBANO OBRAS NOVAS CASA DE HABITAÇÃO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO REAPRECIAÇÃO DA PROVA PODERES DA RELAÇÃO VIOLAÇÃO DE LEI LEI PROCESSUAL PROVA VINCULADA DOCUMENTO AUTENTICADO FORÇA PROBATÓRIA DEPOIMENTO DE PARTE CONFISSÃO JUDICIAL FORMA ESCRITA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA OBJETO DO RECURSO ADMISSIBILIDADE DE RECURSO RECURSO DE REVISTA DUPLA CONFORME NULIDADE DE SENTENÇA NULIDADE DE ACÓRDÃO | ||
Data do Acordão: | 12/17/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGAR A REVISTA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
Sumário : | I. Não é nulo o acórdão do TR quando em recurso de revista se invoca uma nulidade da sentença (e não do acórdão recorrido). II. Cabe revista do acórdão do TR quando se invoca que este decidiu violação da lei processual – maxime do disposto no art. 662.º do CPC – no que concerne à apreciação da matéria de facto, não havendo neste âmbito dupla conforme; III. Não se verificando ofensa de qualquer disposição que fixe a força de determinado meio de prova e estando em causa meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal, arredada está a possibilidade de o STJ sindicar, em sede de revista, o eventual erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC) IV. Para os efeitos do disposto no art. 1545º, n.º2 CC, segundo o qual a afectação das utilidades próprias da servidão a outros prédios importa sempre a constituição de uma servidão nova e a extinção da antiga, a incorporação de uma “leira” no prédio existente, não permite que se considere que ficamos perante um prédio novo. V. O mesmo vale para a realização de obras de modificação, remodelação e ampliação da casa de habitação existente no referido prédio. VI. Mesmo que tivesse ficado provado que tal casa de habitação passou a ser habitada por um número superior de pessoas às que lá residiam antes das ditas obras, tal também não fundamentaria a extinção da servidão e nem sequer a verificação de uma situação excessiva quanto ao seu modo de exercício já que uma servidão de passagem constituída por usucapião e/ou por destinação de pai de família, como a que está em causa nos autos – recaindo sobre prédios e não sobre pessoas – nunca poderá conter uma limitação quanto ao número de pessoas que habita a casa de habitação erigida no prédio dominante e que utiliza a servidão. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I- Relatório 1. AA. e BB. intentaram acção sob a forma de processo comum contra CC. (por si e na qualidade de herdeira da herança aberta por óbito de FF.), DD. e EE. (na qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de FF.). Formulam os seguintes pedidos: a) que se reconheça que os autores/reconvindos (doravante, apenas autores) são donos e possuidores do prédio identificado nos artigos 6º e 7º da petição inicial e, bem assim, que os réus/reconvintes (doravante, apenas réus) são donos e possuidores do prédio identificado sob os artigos 8º e 9º do mesmo articulado; b) que se reconheça que está constituída a favor do prédio dos réus, por via contratual, mercê dos compromissos celebrados em 05/01/1890, uma servidão de passagem a pé através do prédio dos autores, a exercer pelo ……… do prédio destes; c) que se reconheça que a referida servidão de passagem respeitava apenas ao prédio que aos réus pertenceu, conforme o mesmo existia inicialmente, ou seja, para as casas sobradadas e telhadas, com uma porta e duas janelas de peitoril que dava acesso à rua, com dois pavimentos, duas divisões no rés-do-chão e duas divisões no andar, cobrindo a área de 49 m2, e com uma horta de 184 m2 e comportava o uso habitual por um número restrito de pessoas, não superior a quatro; d) que se reconheça que, mercê das obras a que procederam, os réus eliminaram o referido prédio urbano e construíram um novo prédio urbano, constituído por duas divisões e cozinha no rés-do-chão e oito divisões no andar, com cozinha e casa de banho, e um anexo com uma divisão, cobrindo agora a área total de 164,97 m2, e logradouro de 770 m2, permanentemente habitado por mais do dobro das pessoas que anteriormente aí viviam e mais agregados familiares do que o inicial; e) que se reconheça que, após a compra do terreno efectuada a GG., passaram os réus a utilizar a mesma entrada para acesso a esse terreno, fazendo-o, porém, sem qualquer título e abusivamente; f) que se reconheça que tal novo prédio urbano não dispõe, nem precisa de dispor, visto que confina directamente com a via pública, da servidão de passagem atrás referida, nem de qualquer outra, para efeitos de trânsito para a via pública; g) verem os réus, em consequência da procedência dos pedidos anteriores, e uma vez que passaram a afectar as utilidades próprias da servidão a outros prédios, que a ela não têm direito (o novo prédio urbano agora construído e o prédio rústico que adquiriram a GG.), declarada extinta a servidão de passagem caracterizada na petição inicial; ou, se assim se não entender, em alternativa a este pedido, h) verem os réus declarado que apenas teriam direito à servidão como inicialmente estava constituída, pelo que essa servidão não está constituída para se servirem por ela enquanto acesso para uso dos novos e outro prédio, que dela não beneficiam, senão após constituírem – se legalmente o puderem fazer - uma servidão nova com a necessária amplitude e meios que a lei lhes possa facultar; i) que sejam os réus condenados a deixarem, definitivamente, de transitar pelo referido acesso construído no prédio dos autores; j) e que sejam os réus condenados a retirarem do subsolo do prédio dos autores todos os novos encanamentos que aí instalaram quer para fornecimento de água pública, quer para o saneamento, a destruírem e removerem a dependência que construíram para instalação de botijas de gás e para depósitos de água e a eliminarem, repondo no estado anterior às obras a que procederam, a tijoleira que implantaram no acesso à varanda dos autores, o degrau que a mais aí construíram, e os vasos com plantas que instalaram na mesma varanda.
2. Os Réus apresentaram contestação, tendo começado por invocar a excepção do caso julgado. Impugnaram ainda parte da factualidade alegada pelos autores, concluindo no sentido da improcedência da acção. Por fim, deduziram pedido reconvencional através do qual pedem que os autores sejam condenados a reconhecer que as escadas contíguas às suas e delas separadas por um corrimão pertencem única e exclusivamente aos réus, mais devendo os autores ser condenados a retirarem a chapa de telhado que colocaram por cima das suas escadas e das dos réus e cujos elementos de fixação/suporte cravaram directamente na parede do prédio dos réus.
3. Os autores apresentaram réplica, tendo impugnado a factualidade invocada pelos réus na reconvenção, concluindo pela sua improcedência.
4. Foi realizada audiência prévia, na qual os autores se pronunciaram acerca da excepção deduzida pelos réus, pugnando pela sua improcedência.
5. Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou verificada a excepção dilatória de ofensa ao caso julgado material, absolvendo os réus da instância quanto aos pedidos formulados pelos autores nas alíneas a) a i), mais se tendo, quanto ao resto, afirmado a validade e regularidade da instância.
6. Na sequência de recurso interposto pelos réus, foi, pelo Tribunal da Relação ……, proferido acórdão que, julgando parcialmente procedente a apelação, manteve a decisão absolutória dos réus da instância relativamente aos pedidos formulados nas alíneas a), b) e c) – nesta, quanto ao reconhecimento de que a servidão de passagem respeitava ao prédio dos réus inscrito na matriz urbana da freguesia de ……. como sendo o art.º ……º e que corresponde ao anteriormente inscrito sob o artigo ……º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ……., o qual, antes da remodelação a que foi submetido, era composto de casas sobradadas, telhadas, cortes, cozinha térrea ao nascente e horta – e determinou o prosseguimento dos normais termos do processo quanto ao demais peticionado e para apreciação do pedido reconvencional.
7. Realizou-se audiência de discussão e julgamento.
8. Foi então proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, consequentemente, condenou os réus a eliminarem, repondo no estado anterior às obras a que procederam, a tijoleira que implantaram no acesso à varanda dos autores e a retirarem os vasos com plantas que instalaram na mesma varanda, julgando improcedentes os demais pedidos formulados pelos autores contra os réus, absolvendo estes de tais pedidos. E julgou parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, condenou os autores a retirarem os elementos de fixação/suporte da chapa de telhado que cravaram directamente na parede do prédio aludido em 9 e 14, julgando improcedentes os demais pedidos.
9. Inconformados com esta decisão, autores e réus vieram interpor recursos, que foram recebidos como de apelação, e que culminaram com a prolação de acórdão com o seguinte dispositivo: 11. Por acórdão de 29-09-2020, a Formação admitiu a revista excepcional ao abrigo da al. a) do n.º 1 do art. 672.º do CPC, com fundamento no facto ser parca a doutrina e a jurisprudência acerca da questão de direito em torno da interpretação da norma do art. 1545.º, n.º 2, do CC, ligada ao alegado agravamento da servidão predial em causa nos autos, e de, portanto, se justificar a intervenção do STJ, cuja decisão é susceptível de irradiar para a resolução de casos semelhantes.
12. No recurso de revista os AA. formulam as seguintes conclusões (transcrição): 1.ª – O acórdão recorrido, posto ante a necessidade de decidir se devia ou não ser determinada a realização de um arbitramento, em virtude de o juiz do processo o ter indeferido, em sede de meios de prova, por o julgar desnecessário uma vez que sustentou que a matéria que ele se destinava a provar podia ser provada por testemunhas ou pela sua própria análise dos documentos autênticos juntos aos autos, mas ter acabado, na sentença por concluir que nem as testemunhas tinham competência para se pronunciar sobre a matéria em questão, nem ele próprio, indeferiu o assim requerido com o argumento de que a decisão da 1ª instância que indeferiu esse meio de prova fazia caso julgado, o que tornava impossível, agora qualquer decisão que determinasse o arbitramento. 2.ª – O mesmo acórdão, posto ante a necessidade de interpretar o disposto no artigo 1545º n.º2 do Código Civil, entendeu que esta norma não tinha aplicação não obstante ter-se provado que as utilidades próprias da servidão inicialmente constituída por escritura de partilhas junta aos autos tinha sido estendida a uma leira posteriormente comprada pelo proprietário do prédio dominante, e ter-se ainda provado que o prédio dominante foi ampliado, porque esses factos são insuficientes para se considerar existente um prédio novo. 3.ª – O acórdão recorrido, posto ante a necessidade de decidir se a matéria de facto fixada devia ser ampliada com o contributo de vários documentos autênticos e de documentos particulares, todos não impugnados, que impunham essa ampliação, bem como o contributo das declarações confessórias da ré, sustentou que, sem apreciar ou julgar essa necessidade ou o alcance desses documentos, “a motivação apresentada pelo tribunal recorrido mostra-se aprofundada, e depois de ouvir os depoimentos que refere certeira” para além de concluir ainda “que os recorrentes não demonstram a existência de um qualquer erro de julgamento da decisão da matéria de facto”. 4.ª – O acórdão recorrido, posto ante a necessidade de corrigir a afirmação constante de uma sentença anterior entre as mesmas partes, que considerou que a servidão em causa tinha sido constituída por destinação de pai de família e por usucapião, quando a verdade é que ela foi constituída voluntária e contratualmente, através de uma escritura pública de partilha junta aos autos, sustentou que não era admissível essa correcção porque a “decisão” anterior transitara em julgado, sendo pois oponível à pretensão por força da autoridade do caso julgado. 5ª. – Por último, o acórdão recorrido manteve a decisão da 1ª instância em cujos termos na procedência parcial da reconvenção os autores foram condenados a retirarem os elementos de fixação/suporte de uma chapa que cravaram directamente na parede do prédio dos réus, por entender que está provado que essa parede é propriedade exclusiva dos réus. 6.ª – Ora, pelas razoes que serão melhor explicitadas de seguida esse conjunto de decisões é inaceitável e não pode manter-se, merecendo as críticas que em resumo se passam a fazer: a) Fazem uma interpretação revogatória do disposto no artigo 1545º n.º2 do Código Civil, uma vez que quer a lei, quer a doutrina, quer a jurisprudência são claras a entender que o agravamento da servidão é um acto ilícito, que deve ter o tratamento exigido pelo artigo 1545º n.º 2 do Código Civil; b) Não havendo coincidência de situações entre a que indeferiu o arbitramento, por razões determinadas que depois não foram confirmadas e foram até desmentidas pelo próprio julgador, o arbitramento que fosse determinado em consequência da comprovada impossibilidade de o julgador e as testemunhas comprovarem os factos a averiguar, porque assente noutros e novos pressupostos, em nada violaria o caso julgado; c) Na sua única hermenêutica possível, o artigo 1545º n.2º do Código Civil só pode ser interpretado no sentido de que os agravamentos apontados e provados (acrescentamento de um prédio rústico ao prédio urbano primitivo e ampliação deste para mais do dobro) justificam a extinçao da servidão inicial, a requerimento dos proprietários do prédio serviente, e a constituição de uma servidão nova, a requerimento dos proprietários do prédio dominante, pelo que a decisão é absolutamente ilegal; d) Tendo os recorrentes apontado os factos que importava corrigir e as razões pelas quais esses factos eram relevantes, tendo ainda justificado a sua inserção na matéria de facto por se emergirem de documentos autênticos e particulares, por todos aceites como verdadeiros, bem como por assentarem em declarações confessórias da ré, o acórdão recorrido não podia, como o fez, limitar a sua análise a sustentar que a motivação da 1ª instância era correcta, aprofundada e certeira, e a alegação dos réus incapaz de demonstrar a existência de qualquer erro de julgamento, pois não foi chamado a pronunciar-se sobre o mérito das justificações da 1ª instância mas sim sobre o interesse e o mérito da matéria de facto dever ser aditada. e) O acórdão recorrido não podia cobrir a grosseira qualificação constante da decisão anterior (que justificou a existência da servidão por ter sido constituída por destinação de pai de família e por usucapião) quando a verdade é que, e isso estava provado documentalmente, foi constituída por escritura de partilhas e por isso voluntariamente, com o argumento de que a correcção que se impunha estava impedida pela autoridade do caso julgado formado pela matéria constante da decisão anterior, porque não obstante entre as duas ações existir identidade de sujeitos, são diferentes quer a causa de pedir, quer o pedido, e da autoridade do caso julgado, concebida como “insusceptibilidade de impugnação de uma decisão em consequência do caráter definitivo decorrente do respetivo trânsito” (na expressão utilizada no Acórdão do STJ de 12/07/2011, Proc. nº 129/07.4TBPST.S1., dgsi.net), não pode falar-se sequer, porque nos deparamos com duas ações em que os autores são os mesmos, e “ao contrário do autor, cuja pretensão não está submetida a um efeito preclusivo, sendo-lhe lícito deduzi-la repetidamente, desde que a fundamente em causa de pedir diferente, (só) o réu, por força do ónus de concentração de toda a defesa na contestação, está sujeito àquela preclusão” (cfr. o Acórdão do STJ de 20/12/2017, Col. Jurisp. STJ Ano XXV, III, pág. 256). f) O acórdão recorrido não podia escusar-se, como se escusou, a julgar a dificuldade posta pela interpretação dos artigos 1371º n.º 1, 1373º n.º 1 do Código Civil, nem podia excluir a necessidade de discutir a questão face à afirmação, que nada permitia fazer, de que estava provado que o muro onde foram cravadas as traves era propriedade dos réus. 7.ª – Ora, cabe recurso de revista, da decisão da Relação que importe violação da lei substantiva – que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação na lei, como no erro de determinação da norma – violação ou errada a aplicação das leis no processo e erro na apreciação das provas, quando houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova ou, ou fixe a força de determinado meio de prova, conforme prescrito pelo artigo 674º do Código de Processo Civil. 8.ª – Ante uma decisão da Relação que fixe a matéria de facto desrespeitando a lei, o Supremo pode, conhecendo do erro, anular logo a decisão recorrida e julgar o fundo da questão, como fez no acórdão de 12 de Março de 1998 (Col. Jurisp. STJ VI, I, pag.124) ou optar a solução de exercer uma “discreta censura”, anulando o acórdão recorrido para que o recurso seja de novo julgado nas partes viciadas pela Relação, como decidiu, por exemplo, o acórdão do STJ de 12 de Janeiro de 1994 (Col. Jurisp. STJ 1994, I , pag.31) medida que se impõe porque o acórdão recorrido recusou a reanálise da matéria de facto e a sua ampliação sem fundamento algum, tanto quanto mais é certo que se deparava com documentos com força probatória plena, incorrendo em “excepcional erro de julgamento” (cfr. Ac. STJ de 19/10/2004, Col. Jurisp. STJ XII , III, pag.72). Sem prescindir, 9.ª – Atenta a natureza da acção, indispensável se tornava, por arbitramento, fixar a composição anterior do prédio dominante, a capacidade abstrata do mesmo para albergar pessoas antes e depois das obras, e se o aumento significativo do quintal do prédio dominante podiam constituir agravamento da servidão pretérita, objectivo que o Tribunal entendeu, pois fixou como um dos temas de prova (despacho de folhas 437) o de “determinar se a servidão de passagem em questão poderá ser declarada extinta pelos fundamentos aduzidos pelos autores, ou, caso assim se não entenda, se poderá ser declarado que tal servidão não poderá servir de acesso aos alegados novos prédios invocados pelos autores e ao prédio entretanto adquirido pelos réus, até que seja constituída uma servidão nova com amplitude para tal”. 10.ª – No entanto, o despacho em causa decidiu também “indeferir o arbitramento requerido (…) na medida em que a factualidade em questão poderá e deverá ser elucidada com recurso à pertinente documentação e eventualmente à prova testemunhal, não se vislumbrando qual a utilidade de nomear um perito tendo em vista a análise da dita documentação, quando o tribunal o poderá fazer”. 11.ª – Desse despacho não foi interposto recurso, porque dos seus termos resulta, e os autores acreditaram nisso, que o tribunal estava habilitado a responder à matéria de facto com os elementos que considerou suficientes, designadamente os conhecimentos do julgador e a suficiência da prova testemunhal, mas, produzida a sentença, através desta veio a demonstrar-se que aqueles pressupostos do indeferimento do arbitramento eram inexatos, porque não apenas, num reconhecimento de clara auto insuficiência do julgador, a sentença declararia que “o tribunal (…) não foi capaz de constatar a existência no subsolo do prédio aludido em 1 de quaisquer encanamentos”, como, em relação às afirmações das testemunhas ouvidas, não acolheu os seus depoimentos com o argumento de que “duvida-se que as mesmas tenham conhecimentos técnicos suficientes para discernir se a canalização colocada no subsolo do prédio aludido em 1 era relativa a saneamento e águas públicas ou ao escoamento de águas pluviais”. 12.ª – Assim sendo ficou então – mas só então – comprovado que o requerido arbitramento como meio de prova da matéria da ação era indispensável e não podia ser substituído nem pela análise do julgador, nem pelos depoimentos das testemunhas, pois uma e outras apenas serviriam de complemento do que do arbitramento pudesse concluir-se, justificando-se, por isso, a nulidade da decisão, que o acórdão recorrido não determinou, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, als. c) e d) do Código de Processo Civil, por os fundamentos do despacho, conjugados com os da sentença, estarem em oposição com a decisão de indeferimento daquele meio de prova, e o juiz ter, por isso, conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento sem realização do referido arbitramento, resultando da nulidade a necessária repetição do julgamento. 13.ª – O fundamento de direito do processo é o do artigo 1545.º, n.º 2 do Código Civil, que se desdobra em dois comandos distintos, acionados, cada um, também por sujeitos processuais distintos, o que releva em termos de legitimidade processual, activa e passiva, e substantiva: a) se se verificar que ocorreu a afetação da servidão a prédios diferentes ou a funções de serviço pessoal do proprietário do prédio dominante, a servidão pode ser declarada extinta, por iniciativa e a requerimento do proprietário do prédio com ela onerado; b) se o proprietário do prédio onerado com a servidão requerer a sua extinção com fundamento na afetação da mesma a prédio distinto do beneficiado, o proprietário do prédio dominante pode requerer a constituição de uma nova servidão, alargando o âmbito da precedente, ou estabelecendo um âmbito novo e distinto, desde que o requeira judicialmente, eventualmente em reconvenção, e o tribunal lhe reconheça esse direito. 14.ª – Com efeito, “em obediência ao princípio do menor prejuízo para o prédio onerado, é vedado ao proprietário dominante introduzir na servidão quaisquer inovações que ampliem abusivamente o seu conteúdo”, pelo que lhe é proibido “operar modificações que, direta ou indiretamente, se traduzam num agravamento do prédio serviente, ou seja, no exercício de um ónus superior ao resultante do título constitutivo”, como é o caso de “substituição do prédio dominante por outro e ainda a mudança do exercício da servidão no âmbito do prédio dominante” e a “ampliação do prédio dominante” (Mário Tavarela Lobo, Mudança e Alteração da Servidão, fls. 30 e ss., e, no mesmo sentido, Mota Pinto, RDES, 21, fls. 127 e ss. e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05/02/2013, Relator Fernando Fernandes Freitas, da Relação de Coimbra de 24/02/2015, Relator Henrique Antunes, ambos disponíveis em www.dgsi.pt e Acórdão do STJ de 27/05/1999, BMJ 487, 313). 15.ª – Através da presente ação os autores pediram a condenação dos réus nos termos do artigo 1545.º, n.º 2 do Código Civil (“a afetação das utilidades próprias da servidão a outros prédios importa sempre a constituição de uma servidão nova, e a extinção da antiga”), porque a servidão constituída através de escritura e inventário de 1890, outorgados pelos anteriores proprietários recíprocos de cada um dos prédios, devia ser declarada extinta, na medida em que os réus, continuando a servir-se dela, ampliaram o prédio urbano para mais do dobre da área, bem como passaram a usá-la para acesso a um prédio rústico que da servidão não beneficiava, e que os réus adquiriram entretanto, passando a usar, desde o termo das obras, a servidão quer para o novo prédio urbano, quer para aquele prédio rústico, matéria que – adiante-se desde já – foi inteiramente provada. 16.ª – Tendo os réus deduzido reconvenção, na qual pediram a condenação dos autores a retirarem os elementos de fixação/suporte de uma chapa do telhado que os autores cravaram diretamente na parede divisória do prédio dos réus, em relação a uma varanda dos autores, vieram as instâncias a julgar - após a fixação da matéria de facto julgada pertinente -, a reconvenção parcialmente provada e procedente, condenando os autores a retirarem os referidos elementos de fixação da chapa do telhado. 17.ª – As instâncias consideraram provada, entre o mais, a propriedade dos autores sobre a varanda e respetivas escadas de acesso com corrimão, a realização de obras pelos réus no seu prédio, a partir do ano de 2005 e até ao ano de 2013, que fizeram com que ele passasse a dispor de rés-do-chão e anexo com duas divisões e cozinha no rés-do-chão, oito divisões, cozinha e casa de banho no andar, e de um anexo com uma divisão, cobrindo a área de 164,97m2 e logradouro de 770m2, que passaram a permitir aos réus e aos arrendatários utilizar diariamente e sempre que entendem a referida servidão; a compra pelos réus de uma leira de terra, que agregaram ao logradouro do seu prédio urbano, passando a servir-se da servidão para acesso e retorno dessa leira; que o prédio dos réus tem acesso direto à via pública, confinando diretamente com a Rua …….. e que os autores colocaram uma chapa a servir de telhado por cima das escadas de acesso à sua varanda, cravando na parede da casa de habitação dos réus os elementos de fixação dessa chapa (factos provados n.os 1 a 11, 12, 13, 22 a 26, 33 a 36 e 42). 18.ª – Sem prejuízo de se dever entender que, tendo as instâncias admitido que os réus ampliaram o seu prédio e passaram a utilizar a servidão de passagem para a referida leira de terreno que compraram, essa matéria era suficiente para que a ação procedesse no que respeita à declaração de extinção da servidão (cfr. a obra de Tavarela Lobo atrás citada), verdade é que a matéria de facto assim resumida é muito deficiente em termos de extensão e de comprovação dos factos ocorridos, uma vez que, pelo menos, através de certidão fiscal emitida pela repartição de finanças competente, e resultante de declarações que foram prestadas ante os serviços pelos próprios réus (artigo 25.º da petição inicial e documento para o qual remete), devia ter sido julgado provada a evolução da descrição do prédio dos réus que começou por ter, conforme as referidas declarações, uma área coberta de 49 m2 e dois pavimentos com duas divisões em cada, e um terreno de quintal de 184 m2 (até 30/06/2001), para passar a ter, a partir dessa data duas divisões e cozinha no rés-do-chão, e oito divisões, cozinha e casa de banho no andar, com um anexo com uma divisão a área coberta de 145 m2 com logradouro de 770 m2 (este a partir de 2014), o que levou os autores a impugnarem a fixação da matéria de facto, nos termos do artigo do 640º Código de Processo Civil cujos ónus foram inteiramente cumpridos, sem prejuízo de que o acórdão recorrido não julgou dever ampliar a matéria de facto. 19.ª – Por outro lado, embora em local destacado da matéria de facto que fixou, o tribunal considerou provado na sentença que “os réus têm efetivamente acesso direto à via pública, confinando diretamente com a Rua ….., podendo esse acesso fazer-se a partir da garagem melhor identificada nas fotografias de fls. 488 e 489” e, bem assim, que “é evidente que as obras levadas a cabo pelos RR. consistiram na remodelação e ampliação da casa de habitação já existente”, pelo que não se compreende como essa matéria de facto não foi considerada entre os factos provados. 20.ª – Para além disso, certo é que a ré, em depoimento de parte, que constitui declaração confessória, admitiu que o seu prédio urbano era composto antes das obras por duas habitações, uma com uma loja no rés-do-chão e cozinha e dois quartos no andar e outra com uma cozinha no rés-do-chão e uma sala e dois quartos no andar (depoimento transcrito nas alegações, nos lugares da gravação aí citados) pelo que, tendo os autores cumprido escrupulosamente os ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil, essa matéria devia ter sido considerada também provada, permitindo comparar a construção anterior às obras e a construção posterior, comprovando o enorme aumento de volumetria da nova construção (49 m2 iniciais para 203,96 m2), e essa matéria – que se requereu fosse aditada aos factos provados sob o n.º 43, com a redação sugerida a fls. 32 – era relevante para a decisão, não se percebendo o motivo que levou a Relação a nem sequer a ela aludir. 21.ª – Do modo como foi fixada a matéria de facto, pelo acórdão recorrido, permanecendo indecifráveis as razoes pelas quais foram aproveitados somente parte dos documentos e ignorados os demais, bem como as razões pelas quais nem os documentos autênticos juntos aos autos serviram para comprovar as características dos prédios serviente e dominante, impõem-se que o Tribunal de revista julgue o recurso, consideramos já provados todos esses factos, emergentes de documentos não impugnados. 22.ª – As instâncias julgaram inadmissível a extinção da servidão por estar provado que ela foi constituída por usucapião e por destinação de pai de família, sendo que a servidão por destinação de pai de família, por ser voluntária, não é extinguível por desnecessidade, nos termos do artigo 1569.º, n.º 2 do Código Civil, o que é manifestamente errado, pois: a) constitui uma impossibilidade lógica, física e jurídica que uma servidão seja constituída ao mesmo tempo por destinação de pai de família e por usucapião: no primeiro caso (artigo 1549.º do Código Civil) a servidão constitui-se no momento da separação dos domínios entre dois prédios que pertenceram ao mesmo proprietário; no segundo caso, constitui-se ao fim de 15 ou 20 anos após o momento da separação dos domínios; b) a servidão constituiu-se apenas por destinação de pai de família, e de forma voluntária, ou seja, por via contratual, estando junto à petição inicial a certidão da escritura que o comprova, pois os aí outorgantes (segunda página, linhas 5 a 10) declaram que “sendo todos de maior idade estavam deliberados em fazerem uma partilha amigável, como lhes faculta a lei”; 23.ª – A circunstância, invocada pela sentença, e aceite pelo acórdão recorrido, como indiciadora do “desmoronamento da tese defendida pelos autores”, de a leira “não se apresentar como sendo um prédio autónomo do prédio (dos réus) antes tendo sido incorporada neste” não apenas não é verdadeira porque a leira em causa foi vendida como um prédio inteiramente autónomo e independente, com descrição própria na Conservatória do Registo Predial e foi vendida alegadamente em 17/12/1986, isto é, há mais de 30 anos, pelo significativo preço de 90.000$00, o que tudo explica a sua autonomia e relevância, como porque a lei não permite distinguir, como a sentença distingue, se o prédio que de novo fica afetado pela servidão pré-existente é ou não autónomo em relação ao primitivo prédio, ou foi ou não incorporado neste. 24.ª – As instâncias aceitaram pelo menos que o prédio dos réus tinha inicialmente a área de logradouro de 184 m2, e passou a ter, após a incorporação da leira, uma área de logradouro de 770 m2, ou seja, teve um aumento de área de quintal de 586 m2, equivalente a um lote médio de terreno, ficando a leira e o prédio reconstruído a servir-se do caminho de servidão, o que tudo justifica o preenchimento de todas as condições legais a que se refere o artigo 1545.º, n.º 2 do Código Civil, no que respeita à parcela dessa norma que permite ao proprietário do prédio serviente requerer a extinção da servidão. 25.ª – No que respeita ao julgamento do pedido reconvencional (“deverão pois os autores ser condenados a retirarem os elementos de fixação/suporte daquela chapa”) não se vê como a condenação pode ter qualquer fundamento, pois ela assenta no pressuposto de que a parede em causa é parte componente do prédio urbano dos réus, o que estes não alegaram, nem seria verdade pois (como, entre o mais resulta das fotografias de fls. 292 e 293) a parede em causa é a parede lateral esquerda da varanda cuja propriedade a sentença reconheceu aos autores, pelo que ou é propriedade destes, ou, se não for, por ser parede divisória, é comum a ambos os prédios. 26.ª – E daí que, mesmo concedendo a possibilidade mais favorável aos réus de a parede ser comum, importaria sempre ter presente o disposto no artigo 1373.º do Código Civil, em cujos termos qualquer dos consortes pode edificar sobre a parede ou muro comum, bem como introduzir nele traves ou barrotes, contanto que não ultrapasse o meio da parede ou do muro, restrição que nem sequer se aplica se a parede ou o muro tiver espessura inferior a 5dm, condições de facto que não estão preenchidas, nem sequer foram alegadas. 27.ª – Acresce que o Acórdão do STJ de 26/02/1998 (BMJ 474, 492) expressamente equiparou as traves ou barrotes à construção de quaisquer pilares que não ultrapassem metade da espessura da parede comum, pelo que do exposto resulta que a condenação dos autores em sede do pedido reconvencional não tem qualquer suporte legal, nem do pedido o tribunal podia sequer tomar conhecimento, quer porque não está justificada em termos factuais a propriedade do muro, quer porque este é, pelo menos comum, o que tudo implica que aos réus competia ter descrito a situação fáctica que suportaria o pedido, e não o fizeram. Termos em que: Deve julgar-se nula e de nenhum efeito a sentença produzida, para que seja determinada realização de um arbitramento em 1ª instância, nos termos requeridos, seguindo-se, depois, os demais termos e o julgamento; Quando assim se não entenda, deve revogar-se o acórdão recorrido para, após a ampliação da matéria de facto nos termos preconizados, ou directamente no Supremo Tribunal de Justiça ou no Tribunal recorrido; Quando nem isso se entenda, deve sempre revogar-se o acórdão recorrido para se julgar a acção inteiramente procedente e provada, e a reconvenção não provada e improcedente, Assim se fazendo JUSTIÇA! Em síntese, as questões a tratar são: a) Saber se o acórdão recorrido devia ter declarado a nulidade da sentença nos termos do art. 615.º, n.º 1, als. c) e d), do CPC; b) Saber se, ao ter reapreciado a matéria de facto que os recorrentes impugnaram, a Relação violou a lei processual; c) Saber se a Relação violou o direito probatório material, em concreto, a força probatória plena dos documentos juntos aos autos e da declaração confessória da ré; d) Saber se foi feita incorrecta interpretação da norma constante do art. 1545.º n.º 2, do CC. Ora, resulta claramente, da análise que se faça do acórdão recorrido nesta parte, que, apesar de os recorrentes não terem sido rigorosos no cumprimento dos ónus impostos no art. 640.º do CPC, o Tribunal da Relação não só aproveitou o recurso na parte referente à impugnação da matéria de facto, apreciando-o, como também, no âmbito dessa apreciação, procedeu à audição da prova gravada (quer do depoimento de parte da ré CC., quer dos depoimentos das restantes testemunhas) e depois de a ter ouvido – como lhe competia e se impunha –, acompanhou integralmente a fundamentação de facto plasmada na sentença, transcrevendo-a e, nessa medida, fazendo-a sua (e, portanto, quer no que tange aos meios de prova aí referidos e analisados, quer no que se refere ao juízo fáctico que com base neles formou). Para além disso e contrariamente ao alegado pelos recorrentes, a Relação justificou, de forma clara e suficiente (ainda que sintética), por que razão considerou correcta, aprofundada e certeira a dita motivação, aludindo, para tanto, expressamente ao dito depoimento de parte e aos depoimentos das testemunhas que indicou, sendo que se retira dessas justificações que foi depois de proceder à audição da prova gravada que formou convicção em sentido inteiramente coincidente com a 1.ª instância no que se refere à insuficiência da prova para dar como provada a matéria concernente à descrição e à área do prédio em questão. Por estas razões, não se vislumbra que possa ser assacada à Relação a violação das normas processuais que regulam esta matéria. Diferente seria se a Relação se tivesse limitado a fazer uma apreciação meramente formal da motivação ínsita na sentença, sem ter procedido à audição da prova gravada e sem qualquer apreciação crítica quanto à mesma – o que, manifestamente, não é o caso. Acresce que, ainda que não se ignore que, subjacente ao disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC esteve o propósito expresso de reforçar os poderes da Relação na reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto, o certo é que essa reapreciação não se confunde com um novo julgamento. Destarte, tendo a Relação agido em conformidade com o disposto no art. 662.º do CPC, forçoso é concluir que a revista estará, nesta parte, condenada ao fracasso. Os documentos (certidões prediais e matriciais, plantas e fotografias) a que os recorrentes aludem não revestem força probatória plena no que se refere à descrição e à área do prédio em questão (arts. 371.º, 376.º, e 377.º, do CC)[1]; A declaração confessória, obtida em depoimento/declarações de parte, só tem força probatória plena na parte em que tenha sido reduzida a escrito e a verdade é que a factualidade que os recorrentes pretendem ver declarada provada não consta da assentada, que, de resto, não mereceu qualquer reclamação[2] (arts. 356.º, n.º 2, 358.º, n.º 1, e 361.º, do CC, e arts. 452.º, 463.º, e 466.º do CPC)[3]. Tudo para concluir, sem necessidade de mais considerações, que, não se verificando ofensa de qualquer disposição que fixe a força de determinado meio de prova e estando em causa meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal, arredada está a possibilidade de o STJ sindicar, em sede de revista, o eventual erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC). Quanto à questão em torno da interpretação da norma constante do art. 1545.º, n.º 2, do CC – em relação à qual foi admitida a revista excepcional – decidiu a Relação, acompanhando a fundamentação da 1.ª instância, que, tendo ficado provado que a leira adquirida pelos réus foi agregada ao logradouro do prédio destes (que, assim, ficou com maior área) e que, após essa aquisição, os réus continuaram a transitar pelo caminho em causa nos autos para aceder ao quintal do seu prédio, que passou a incluir essa leira, não pode concluir-se que os réus tenham passado a afectar as utilidades próprias da servidão a um novo prédio em termos de importar a constituição de uma servidão nova e a extinção da antiga. Nesta conformidade, sublinhou a Relação que a dita leira, tendo sido incorporada no logradouro do prédio dos réus, nunca se apresentou como um prédio rústico independente daquele no qual foi integrada, sendo que, mesmo que tal incorporação no prédio dominante não tivesse ocorrido, estando provado que a servidão continuou a ser exercida também em relação a esse prédio, nunca se poderia considerar que as suas utilidades próprias tivessem sido afectadas, em exclusivo, àquele outro prédio de forma a implicar a sua extinção. Decidiu, para além disso, a Relação que o facto de se ter provado que os réus realizaram obras na casa de habitação existente no seu prédio, independentemente da extensão dessas obras, não permite concluir que o prédio que aí existia foi eliminado, dando lugar a um novo prédio, sendo que quando o art. 1545.º, n.º 2, do CC se refere à afectação das utilidades próprias da servidão a outros prédios, está a considerar as hipóteses em que a servidão é separada do prédio dominante para passar a servir um outro prédio, necessariamente situado em lugar diferente do prédio dominante. Partindo deste pressuposto, considerou a Relação, secundando, também neste particular, a fundamentação vertida na sentença, que a circunstância de os réus terem realizado obras de ampliação, remodelação e beneficiação na casa de habitação erigida no seu prédio não conduz à conclusão de que a servidão constituída em benefício deste último passou a servir um prédio diferente. Acrescentou, para além disso, que, mesmo que tivesse ficado provado que tal casa de habitação passou a ser habitada por um número superior de pessoas às que lá residiam antes das ditas obras, tal também não fundamentaria a extinção da servidão e nem sequer a verificação de uma situação excessiva quanto ao seu modo de exercício já que uma servidão de passagem constituída por usucapião e/ou por destinação de pai de família, como a que está em causa nos autos – recaindo sobre prédios e não sobre pessoas – nunca poderá conter uma limitação quanto ao número de pessoas que habita a casa de habitação erigida no prédio dominante e que utiliza a servidão. Por estas razões, concluiu a Relação que, não tendo ficado provada a afectação das utilidades próprias da servidão a outros prédios, não se verifica a previsão legal do art. 1545.º, n.º 2, do CC, não havendo, portanto, fundamento para a extinção da servidão.
Já os recorrentes sustentam que, contrariamente ao que se verteu no acórdão posto em crise, se justifica a extinção da servidão com fundamento no seu agravamento, que é inadmissível, quer a alteração se faça para um prédio novo, quer a alteração se faça por ampliação ou modificação do prédio primitivo, quer ainda pelo acrescentamento de um prédio rústico ao prédio urbano primitivo, uma vez que está vedado ao proprietário do prédio dominante introduzir quaisquer inovações que, directa ou indirectamente, se traduzam num agravamento do prédio serviente, ou seja, no exercício de um ónus superior ao resultante do título constitutivo, como é o caso de substituição do prédio dominante por outro, da mudança do exercício da servidão no âmbito do prédio dominante e da ampliação do prédio dominante.
Vejamos. A questão em causa nos autos reconduz-se à problemática atinente ao modo e à extensão do exercício da servidão, cumprindo determinar se as alterações introduzidas no prédio dominante importam ou não extinção da servidão, a saber: (i) alteração consistente na integração de uma leira no logradouro do prédio dominante; e (ii) alteração consistente nas obras de ampliação, remodelação e beneficiação levadas a cabo na casa de habitação erigida no prédio dominante. Diz o art.º 1545.º do CC (Inseparabilidade das servidões):
Trata-se da principal norma jurídica convocada para a resolução da questão, a qual, naturalmente, pressupõe o conceito e regime de servidão predial – art.º 1543.º e ss do CC.
Para análise das questões identificadas, importará, não apenas atender à lei, mas considerar os factos resultantes da instrução da causa, em que se destacam: a) Dos factos provados 12. Em data não apurada, mas situada após 17/12/1986 e antes de 1990, a ré 13. Com a compra aludida em 12, a leira aí aludida foi agregada ao logradouro do prédio aludido em 9, o qual ficou com maior área. (…) 22. Por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º 2840/07……., que correu os seus termos pelo …..º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ….., foi declarado que a favor do prédio aludido em 9 e 14 e a onerar o prédio aludido em 1 encontra-se constituída, por usucapião e por destinação de pai de família, uma servidão de passagem que se desenvolve, a partir da via pública (Rua …..) pelo interior da parte urbana do prédio aludido em 1, através de um portão existente neste prédio, após o que se percorre um caminho, sob a construção urbana edificada no prédio aludido em 1 e daí, no termo do caminho, através de um largo componente do logradouro deste prédio, acedendo por escadas ao prédio aludido em 9 e 14, designadamente, ao seu quintal e à sua parte traseira, onde se situa a casa e o terreno. 23. A ré CC. e o seu falecido marido decidiram, por volta do ano de 2005, proceder a obras de modificação, remodelação e ampliação da casa de habitação erigida no prédio aludido em 9 e 14, 24. sendo que, após a morte do marido da ré CC., tal projecto foi continuado por esta e pelos seus filhos, os aqui réus DD. e EE.. 25. Terminadas as ditas obras, instalaram-se, numa parte da dita casa de habitação existente no prédio aludido em 9 e 14, por contrato de arrendamento celebrado com os réus, um casal (marido e mulher) com uma filha, 26. sendo que a outra parte de tal casa de habitação se encontra, por contrato de arrendamento celebrado com os réus, ocupada por uma outra pessoa. (…) 32. Os réus, após a aquisição da dita leira, continuaram a transitar pelo caminho aludido em 22, nos termos aí referidos, para acederem ao quintal do prédio aludido em 9 e 14, o qual passou a incluir essa leira. 33. Após a realização das ditas obras, a casa de habitação do prédio aludido em 9 e 14 passou a dispor de rés-do-chão e anexo, com duas divisões e cozinha no rés-do-chão, 8 divisões, cozinha e casa de banho no andar, e de um anexo com uma divisão, cobrindo a área de 164,97 m2 e logradouro de 770 m2. 34. As aludidas obras foram concluídas no ano de 2013. 36. A partir do termo das obras atrás referidas, os arrendatários da casa de habitação erigida no prédio aludido em 9 e 14 ficaram a passar diariamente e sempre que entendem pelo caminho aludido em 22.
b) Dos factos não provados a) No âmbito das obras aludidas em 23 e 24, os réus construíram um prédio inteiramente novo. b) dotando-o de três unidades habitacionais com utilização independente, c) sendo que o prédio que existia anteriormente foi integralmente demolido. d) Aquando do início das obras, o prédio aludido em 9 e 14 era constituído por e) Aquando do início das obras e antes, aquando da constituição da dita f) O prédio aludido em 9 e 14, antes da realização das ditas obras, apenas
Algumas notas complementares devem ser aqui reafirmadas. Desde logo a relação que se impõe efectuar entre o sentido normativo do art.º 1545.º CC e a situação fáctica apurada. Mas também a relação entre a situação fáctica apurada e o conceito de prédio, in casu, urbano, decorrente da lei civil, que o define como “qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro” (art.º 204.º, n.º 2 CC). Estando demonstrado que os RR. eram já proprietários do prédio urbano identificado no ponto 9 e 14 dos factos provados, composto por parte urbana e logradouro, e que ao mesmo prédio veio a ser acrescentada uma parte que aumentou o logradouro, sem que essa parte tivesse adquirido autonomia jurídica relativamente ao prédio que dele beneficiou, parece, smo., claudicar o pressuposto legal a que se reporta o art.º 1545.º, n.º 2 - A afectação das utilidades próprias da servidão a outros prédios. Na verdade, não se consegue identificar – em face dos factos provados – que exista aqui uma violação do princípio da inseparabilidades das servidões prediais, no sentido de que as utilidades de que o prédio dominante goza tenham sido alargadas ou passadas para outro prédio, distinto do dominante, em prejuízo do prédio serviente. Não se desconhecem as orientações doutrinais, nem a escassa jurisprudência que sobre o art.º 1545.º, n.º 2 existe, nomeadamente a que se indica:
Contudo, da sua análise decorre: 1ª – a necessidade de aferição fáctica da existência de um ou mais prédios; 2º – a dificuldade de definir o conceito de prédio, quer por referência aos elementos constantes do registo predial, quer aos de carácter fiscal (matriz); 3º – a ideia segundo a qual em caso de fusão ou ampliação de um dos prédios a que se reporta a servidão ter de se distinguir a situação antes e após a fusão ou ampliação, para se conseguir determinar se as utilidades podem beneficiar a parte ampliada ou objecto de fusão. Segundo essas correntes, se um prédio dominante é objecto de fusão com outro, as utilidades de que beneficia em virtude de anterior servidão não se estendem à porção absorvida. Mas, as posições indicadas não são absolutas, passando sempre por uma análise casuística[5].
Mesmo à luz destas orientações doutrinais e jurisprudenciais indicadas, adaptadas ao caso concreto deste autos, sempre se diria que a questão que importa resolver é a de saber se com a anexação da leira passou a existir um prédio distinto do prédio dominante e que tenha passado a beneficiar das utilidades que a este eram atribuídas pela servidão. Acontece que esta resposta está dada pelos factos provados, ao se ter concluído que a leira integrou o logradouro do prédio dominante, aumentando a sua extensão, mas sem que o prédio tenha sofrido uma mudança qualificativa, pois era urbano e urbano se manteve, mas com logradouro maior, logradouro esse que não tinha autonomia suficiente para ser considerado novo prédio, pois também não tinha uma utilidade distinta do logradouro a que se veio a juntar.
Não tinha de assim ter sucedido, mas para que tal não acontecesse a situação de facto – e de facto provada – tinha de ser diversa daquela que se nos é apresentada nos autos (art.º 682.º, n.º 2 CPC), determinando esta que o STJ proceda à aplicação da lei aos factos apurados (art.º 682.º, n.º 1 CPC).
Em ordem a melhor fundamentar a orientação aqui defendida cumpre igualmente chamar à colação a escassa jurisprudência deste STJ, citando para o efeito: No seu conteúdo encontra-se a seguinte fundamentação:
Em face do exposto, a posição adoptada pelas instâncias não desvirtua a lei vigente e é a que melhor se adequa à situação concreta dos presentes autos, devendo, por isso, ser mantida e confirmada.
Finalmente, importa ver se o tribunal a quo decidiu bem quando que a circunstância de os réus terem realizado obras de ampliação, remodelação e beneficiação na casa de habitação erigida no seu prédio não conduz à conclusão de que a servidão constituída em benefício deste último passou a servir um prédio diferente e que mesmo que tivesse ficado provado que tal casa de habitação passou a ser habitada por um número superior de pessoas às que lá residiam antes das ditas obras, tal também não fundamentaria a extinção da servidão e nem sequer a verificação de uma situação excessiva quanto ao seu modo de exercício já que uma servidão de passagem constituída por usucapião e/ou por destinação de pai de família, como a que está em causa nos autos – recaindo sobre prédios e não sobre pessoas – nunca poderá conter uma limitação quanto ao número de pessoas que habita a casa de habitação erigida no prédio dominante e que utiliza a servidão. Também aqui nos parece que assiste razão ao tribunal recorrido: em 1º lugar, porque voltamos aos factos provados e só se apura que houve ampliação do prédio dos réus e não existem dois prédios; em 2º lugar porque não veio demonstrado que as utilidades de que o prédio dominante podia beneficiar estavam limitadas a um certo número de pessoas que podiam passar, até porque a utilidade transferida do prédio serviente é efectuada em favor do dominante e não de pessoas certas e determinadas (ou incertas e não determinadas com em número limitado), sob pena de estarmos perante uma servidão não real- sem adesão aos factos provados nesta acção; em 3º lugar, porque, em face do disposto no art.º 1565.º do CC, na falta de prova em contrário, a servidão entende-se constituída por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, o que comporta a passagem não só pelos seus proprietários como arrendatários, visitas, amigos, etc. Em consequência, improcede também aqui a alegação dos recorrentes.
Nada mais havendo a tratar, é altura de decidir.
III - Decisão Pelos fundamentos acima indicados, é negada a revista, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes
Lisboa, 17 de Dezembro de 2020
Fátima Gomes (Relatora)
Acácio Neves
Fernando Samões _________________________-- |