Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B3949
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Nº do Documento: SJ200301300039497
Data do Acordão: 01/30/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 53/02
Data: 06/19/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. "A", moveu, em 26/4/2000, na comarca de Valença, acção declarativa com processo comum na forma ordinária de simples apreciação negativa contra B, C e mulher D, E e mulher F, e G.

Tinha em vista obter a declaração da inexistência de servidão de passagem, acesso ou trânsito para identificado imóvel constituído em propriedade horizontal de que os demandados são donos de fracções destinadas a comércio, servidão essa que, na tese destes, onerava parte não edificada de identificado prédio urbano da Autora.

Contestando esta acção negatória de servidão, os Réus, a final de articulado com 87 items, excepcionaram dilatoriamente, em vista do disposto nos arts. 1420º, 1421º, nº2º, al.c), e 1437º, nº2º, C.Civ., e 6º, al.e), CPC, a sua ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário natural (art.28º, nº2º, CPC ), e, ainda, por dever a acção ter sido proposta contra a herança ilíquida que representam, e não contra eles.

Excepcionaram, mais, dilatoriamente ( art.494º, al.g), CPC ), ter, nomeadamente, ficado provado em acção anterior entre os antecessores das ora partes que a faixa de terreno em discussão serve de caminho de acesso às traseiras do prédio dos Réus e se encontra onerada com uma servidão de passagem a favor desse prédio.

Antes pertencentes o prédio da Autora e o prédio em que se integram as fracções dos Réus à mesma proprietária, excepcionaram, por fim, peremptoriamente, a constituição de servidão por destinação de pai de família, e também, em outrossim indicados termos, por usucapião.

Houve réplica.

Para tanto suspensa a instância, a acção foi registada ( art.3º, nºs 1º, al.a), e 2º, do Cód. Reg. Predial ).

Em audiência preliminar, foi saneada e condensada a causa.

No despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção dilatória primeiro referida, em vista do art.26º, nºs 1º e 3º, CPC, e uma vez que, segundo alegado no articulado inicial, só os Réus se arrogam a titularidade de servidão de passagem (1).

Julgou-se, nesse despacho, igualmente improcedente a excepção de caso julgado deduzida na contestação, por falta de identidade das partes nas invocadas acções anteriores e por a única acção antes proposta pela aqui Autora contra os ora Réus ter terminado sem decisão de mérito.

Então indicada a matéria de facto assente e fixada a base instrutória, veio, após julgamento, a ser proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu os Réus do pedido, e condenou a Autora, por litigar de má fé, em 10 UC de multa.

2. A apelação da assim vencida não obteve provimento, tendo a Relação de Guimarães confirmado a sentença apelada.

Pede, agora, a Autora revista, formulando, com desrespeito manifesto da síntese imposta pelo nº1º do art.690º CPC, 41 conclusões.

As questões nelas propostas - cfr. arts.713º, nº2º, e 726º CPC - são, em suma, as seguintes:

a) - modificação, por sua maior onerosidade, do conteúdo da servidão de passagem, acesso ou trânsito em causa, constituída por destinação do pai de família, e consequente inexistência da servidão reconhecida pelas instâncias;

b) - indevida condenação por litigância de má fé.

Não houve contra-alegação.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

3. Convenientemente ordenada (2), e com, entre parênteses, indicação das correspondentes alíneas, quesitos, e documentos, a matéria de facto julgada provada é a seguinte:

( a ) - Por escritura pública de doação de 24/2/78, H declarou doar, com reserva de usufruto, a I, o prédio urbano que se compõe de casa de r/c e cave, com anexos e rossios, conhecido por Café ......, sito na ..... (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de Valença sob o n.º 26.565 ( doc.a fls.128 a 130 ).

( b ) - Por escritura pública de compra e venda celebrada em 19/10/79, H declarou ser dona e legítima possuidora do prédio rústico denominado São ......, de lavradio, com a área de 4.194 m2, destinado a construção urbana, sito no lugar de São ....., limites do lugar de ........, da freguesia e concelho de Valença, e vender a J uma parcela de terreno com a área de 1.048 m2, a destacar daquele, e a L a restante parcela do terreno atrás identificado, com a área de 3.145 m2 ( doc. a fls.131 a 139 ).

( c ) - Por escritura pública de justificação celebrada em 28/10/81, no Cartório Notarial de Valença, J e L e mulher, M, declararam ser donos das duas parcelas de terreno para construção urbana que adquiriram uma para cada um e que se identificam do seguinte modo: A - adquirida por J: parcela de terreno com a área de 1.048,5 m2 (...); B - adquirida por L: parcela com a área de 3.145,5 m2 (...) ( doc.a fls. 48 a 56 ).

(d) - Na mesma escritura os outorgantes declararam que "as referidas parcelas, ainda omissas na respectiva matriz dada a sua natureza de terrenos para construção, constituem a totalidade do prédio de onde foram destacadas e que é o rústico denominado " São .......", de lavradio, sito no local do mesmo nome, lugar da ...... (...)" (doc. citado).

( e ) - Sob o n.º 005211260392 da freguesia de Valença, encontra-se registado a favor da Autora o seguinte prédio urbano: Casa Café ....., Esplanada, morada de casas com adega e quintal, a confrontar do norte com N e O, do sul com sociedade P, do nascente com o Largo da ......., e do poente com H
( A ).

( f ) - A Autora tem instalado nesse prédio um estabelecimento comercial "Casa Café .....", Esplanada ( J ).

( g ) - A Autora, não só, por si e antecessores, fruíu, à vista de toda a gente, sem interrupções, nem intromissões, e sem oposição de quem quer que fosse, o terreno em que foi implantada esse prédio, feito com materiais e mão-de-obra pagos por si, como também o terreno anexo, que sempre foi utilizado para acesso pelo lado norte/poente e como sítio de arrumação de objectos e instrumentos do seu comércio; (os mesmos) habitaram ou fizeram arrendamentos da casa e logradouro, conservaram telhados e paredes, renovaram-na com obras cujos materiais foram adquiridos com dinheiro seu, e utilizaram e vedaram o terreno; e por esse terreno acediam e nele faziam armazém de objectos e utensílios do seu comércio, com exclusão de toda a gente ( L, M, N, O, P, e 1º).

( h ) - Sob o nº 001011270586, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial a favor de J e mulher G por adjudicação em divisão de coisa comum com Q, o prédio rústico denominado São ......, situado no sítio de São ......, limites do lugar da ........, parcela de terreno de lavradio com 1.048,5 m2 destinado à construção urbana ( I ).

( i ) - Sob o nº 00101270586-A, B, C, D, E, F, e G, encontram-se respectivamente descritas na Conservatória do Registo Predial a favor de J e mulher G, por adjudicação em divisão de coisa comum com Q, as seguintes fracções autónomas destinadas a comércio: uma cave, lado direito, com 241,90 m2; uma cave, lado esquerdo, com 200 m2; um r/c esquerdo com 151,47 m2; um r/c esquerdo com 62 m2 e um anexo na cave com 42 m2; um r/c fundo com 107,40 m2; um r/c, lado direito da galeria principal, com 83,60 m2; e um r/c, lado direito da galeria principal, com 47,70 m2 ( B, C, D, E, F, G, e H ).

( j ) - Por escritura de habilitação lavrada em 21/5/96, os Réus B, C ,G e E foram reconhecidos como únicos e universais herdeiros de J ( L ).

( l ) - São ........ é a designação dada ao edifício onde se localizam as fracções pertencentes aos Réus na presente acção, bem como o era em relação ao terreno onde foi implantado ( V ).

( m ) - O edifício de que fazem parte as fracções pertencentes aos Réus foi construído em terreno também a eles pertencente bem como a L e mulher, mais concretamente numa parcela de terreno com área de 1048,5 m2 então pertencente à Ré B e seu falecido marido ( pai e sogro dos demais Réus) J, ficando a confrontar pelo norte com Estrada Nacional 13/9, do sul com H, do nascente com caminho de servidão de H e P, e do poente com herdeiros de R ( X, Z, e AA ).

( n ) - Na acção sumária nº 23/82 ficou provado que faz integralmente parte do prédio da A. ( referido em ( a), supra ) uma faixa de terreno com cerca de 4 m de largura e 22 m de cumprimento ( U ).

( o ) - Os Réus e seus antecessores sempre, quer antes, quer depois, da construção do edifício de que as preditas fracções autónomas fazem parte, transitaram por essa faixa de terreno, a pé, e, quando não existiam obstáculos, com veículos motorizados; de e para a via pública, mais concretamente para a denominada Auto-Via que hoje estabelece a ligação entre a Estrada Nacional n.º 13 e a Auto-Estrada Porto/Valença e a Fortaleza de Valença; de cujo trânsito e passagem resultou que, tal caminho, ficasse, clara e iniludivelmente, trilhado, marcado e delimitado no solo, em consequência da passagem de pessoas e veículos, quer de tracção animal, quer motorizados; e balizado por paredes de pedra, tijolo e cimento que o configuram e delimitam, bem como por trilhos e terra pisada derivados da dita passagem e/ou trânsito ( 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, e 11º ( = 5º ) ).

(p) - Os Réus abriram e mantêm uma porta (abertura de parede) física ou ostensivamente comum às duas fracções - A e B -, retirada da extrema do terreno da Autora mais de 1,5 m ao nível do chão, mas mantêm ligação, pelo interior, com as fracções C, D, F, e G; e tentaram transitar mercadorias e artigos ou produtos para revenda comercial, desde a via pública para as referidas caves, mas foram sempre impedidos pela Autora, que colocou sempre obstáculos, incluindo veículos e entulho para impedir o pre- tendido trânsito, em especial viaturas automóveis, e tudo o que tem podido, como objectos de materiais duros (Q, R, e T).

(q) - Esse portão estava colocado na zona de confluência ou embocadura do caminho com a avenida pública ( 12º).

( r ) - Essa cancela mantinha-se permanentemente em condições de poder ser aberta pelos utentes do caminho - v.g. pelos Réus, já que nunca esteve fechada à chave ou por qualquer modo encerrada de modo a impedir a passagem, antes se mantendo em condições de ser aberta, a qualquer hora do dia ou da noite pelas pessoas que pretendessem transitar pelo caminho, nomeadamente os Réus e seus antecessores ( 13º, 14, e 15º).

( s ) - Quer antes da construção do Edifício São ...... (onde se situam as fracções dos Réus) quer durante a construção deste e mesmo posteriormente, sempre, e desde há mais de 20 anos, os Réus e seus antecessores transitaram por tal caminho, sendo que os próprios matérias, utensílios e ferramentas necessários à construção do edifício foram conduzidos ou transportados por tal caminho (16º, 17º, e18º).

Apreciando e decidindo:

4. Abandonada, agora, a tese, sustentada na apelação, da indispensabilidade da dedução de pedido reconvencional em acção de simples apreciação negativa, não deixará de observar-se, a esse respeito o que segue:

Conforme nº1º do art.342º C.Civ., é sobre o autor que recai o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que invoca em juízo.

A norma de direito probatório material firmada no nº1º do art.343º C.Civ., inverte esse regime-regra, pondo a cargo do réu o ónus da prova do direito em discussão.

Em ambas as subespécies de acções de simples apreciação
(positiva e negativa ) é, em todo o caso, e de harmonia com aqueles preceitos, sobre quem se arroga o direito em questão que recai o ónus da prova da existência desse direito.

A esta luz, não pode negar-se ao réu em acção de simples apreciação negativa posição substancial ou materialmente (embora não formalmente) coincidente com a de autor em acção de simples apreciação positiva (3).

Esse sendo, mesmo, o seu traço mais saliente, em vista da inversão do regime-regra do ónus da prova operado no nº1º do art.343º C. Civ., bem não poderá negar-se que, na perspectiva da relação material controvertida, o réu passa, nas acções de simples apreciação negativa, a ocupar posição equivalente à de autor noutra qualquer acção.

Nunca, por outro lado, uma acção de simples apreciação negativa pode improceder, e o nela demandado ser absolvido do pedido, por falta de prova (4).

Nessa espécie de acções, um non liquet probatório terá sempre, consoante art.516º CPC, que resolver-se em desfavor do réu (cfr. também art.346º C.Civ.).

Bem, por último, se não vê como negar que a improcedência de acção de simples apreciação negativa envolve - sem margem para tergiversação - o reconhecimento da existência do direito que o réu se arroga, que fica definitivamente estabelecida em face, ou vis à vis, da parte contrária.

Por isso mesmo prejudicada a proposição pelo mesmo de ulterior acção de simples apreciação positiva (arts.494º, al. i), 497º, nºs 1º e 2º, e 498º CPC), logo por aí se revela redundante a dedução de reconvenção, a que não pode atribuir-se mais valia alguma em relação à simples procedência da defesa deduzida em acção de simples apreciação negativa, não passando, nesse caso, de puro reverso da pretensão do autor, que se limita a pedir a declaração da inexistência de direito que o réu invoca.

Cometida a este, em tal acção, a prova desse direito, dificilmente se descortina o que é que em acção de simples apreciação negativa a dedução da reconvenção possa efectivamente acrescentar à simples defesa.

Concretamente: se na realidade improcedente esta acção negatória de servidão, fica definitivamente estabelecida entre as partes a existência da servidão de passagem em que se funda a defesa que lhe foi oposta, nada a tal acrescentando tão só formal reconhecimento (declaração, enfim) do direito e consequente "condenação" (entre aspas que revelam a impropriedade do termo face ao disposto no art.4º, n.º 2, als. a) e b), CPC) da parte vencida nesse mesmo reconhecimento de direito real, por sua natureza absoluto ( erga omnes ), e que, como dela decorre, todos se encontram obrigados a respeitar.

De todo o modo sobra, em contrário do sustentado na apelação pela ora igualmente recorrente ao afirmar que " no aspecto processual (,) a defesa dos réus nem sequer devia ser aceite ", de modo nenhum servir o acórdão deste Tribunal de 23/1/2001, CJSTJ, IX, 1º, 77 ss, em que se louvou, para sustentar a tese da obrigatoriedade da dedução de reconvenção nas acções de simples apreciação negativa, sob pena de inatendibilidade da defesa nelas deduzida.

Inexiste, enfim, o ónus processual menos bem congeminado na apelação com tal apoio.

Como adiantado no douto acórdão sob revista, na lição de Antunes Varela, na RLJ 121º/14 ( 9. ), na contestação das acções de mera apreciação negativa não tem, em princípio, cabimento defesa por excepção ( material ou peremptória ), nem a dedução de reconvenção, " mas apenas ( a ) alegação dos factos constitutivos do direito que o réu se arroga ou dos sinais demonstrativos da existência do facto que (...) afirma", por sua vez, consoante nº2º do art.502º, servindo a réplica, - nesta espécie de acções com função diversa da que lhe é, de modo geral, atribuída no nº1º desse artigo, de resposta às excepções ou reconvenção deduzidas pelo réu -, para o autor impugnar aqueles factos e para alegar os factos impeditivos e extintivos do direito invocado pelo réu ( cfr. nº2º do art.342º C.Civ.).

Obiter dictum quanto ficou notado, entra-se agora no cerne deste recurso.

5. Assente a existência de sinais ostensivos, inequívocos, visíveis e permanentes da serventia aludida, de passagem de um para outro dos prédios de antecessor comum, H, em questão, e vinda já essa situação, segundo se provou, dos antecessores (5) - e, assim, designadamente dessa - v.3., ( r ) e ( s ), supra, a própria recorrente reconhece, na alegação respectiva ( nº4º, a fls.253 dos autos ), não ter dúvidas, quando comprou o seu prédio a sucessor, por doação, da antiga dona dos dois imóveis em referência, de que adquiria um prédio que ficava onerado com uma servidão de passagem ou trânsito.

A mesma servidão, enfim, que nesta acção de simples apreciação negativa pediu se declarasse inexistente.

Inicialmente negada, deste modo, a existência desse encargo, acabou a A. por dizer, já em via de recurso, que tal assim com fundamento no agravamento das condições do exercício da servidão em causa:

Não pode, segundo já só na apelação sustentou, transformar-se uma servidão de passagem para um terreno destinado à agricultura em servidão de passagem para fracções de imóvel destinadas a actividade comercial.

Não suscitada nos articulados respectivos ( petição e réplica ), esta é, por isso, questão nova, de que, por não debatida na instância então recorrida, a instância ora recorrida não tinha, sequer, que conhecer, sob pena de preterição de jurisdição.

Bastaria, por isso, notar ser hipótese não contemplada no art.1569º ( nº1º) C.Civ.

Sempre, de todo o modo, se irá notar, ainda, o que segue:

6. Nada à resolução desta causa encontrada pelas instâncias atrasa - óbvio será mesmo que adianta - a regra da inseparabilidade das servidões dos prédios (dominante e serviente) a que respeitam - cfr. arts.1543º e1545º C.Civ.

Nada, à luz desses preceitos, com tal interfere a transformação dos prédios separados de rústicos em urbanos (6).

Não pode, nomeadamente, atribuir-se, sem mais, a essa transformação a virtualidade de extinguir servidão de passagem, cujo conteúdo, - isto é, consoante art.1544º, a utilidade ou vantagem que representa -, é constituído pelos actos (de passagem) em que se traduz o exercício desse direito.

Não devem, claro está, confundir-se as utilidades da servidão com as do prédio dominante; de modo nenhum resulta da propriedade horizontal divisão proíbida pelo art.1546º C.Civ.; nem decorre necessariamente da matéria de facto provada que o conteúdo da servidão tenha efectivamente sido alterado ou modificado pela transformação do destino económico dos prédios envolvidos (7).

Outra, diversa, questão é a do eventualmente maior - mais intenso - uso, que pode, de facto, traduzir-se numa maior onerosidade do encargo imposto sobre o prédio serviente.

Há, enfim, que evitar confusões, ou tergiversação, que, neste caso, se afigura serem estas:

- Mesmo quando considerado que a transformação da natureza do prédio dominante determina necessariamente alteração da servidão, nada na lei permite extrapolar daquele facto a extinção desse encargo.

- Pedida, em acção de simples apreciação negativa, a declaração da inexistência de servidão, vê-se mal o que é que a subsequente discussão sobre a oposta existência, ou não, dessa servidão tem que ver com o conteúdo da mesma, isto é, com a utilidade ou proveito - passagem, acesso ou trânsito - que integra ou representa, em termos abstractos, qualitativamente idênticos, ou - esse o ponto vivo da mais recente linha de defesa da ora recorrente - com a sua extensão ou modo de exercício (8), alegadamente, em concreto, agravados, o que, eventualmente susceptível de justificar oposição a esse mais frequente e alargado exercício, todavia se situa, de todo em todo, fora da previsão do art.1569º C.Civ.

7. À existência de servidão de passagem por destinação do antigo dono ou pai de família prevista nos arts.1547º, nº1º, e 1549º C.Civ. interessa, obviamente, a situação (de serventia) subsistente na altura em que, com a separação de prédios, se constituiu. No entanto:

Uma vez constituída, não é a transformação do prédio rústico dominante em prédio urbano que, ipso facto, - sem mais -, a pode extinguir, automaticamente, por, alegadamente, por tal modificado ou tornado mais oneroso o seu conteúdo.

Nem tal, como já notado, contempla o art.1569º C.Civ.; sempre, na falta de acordo, a extinção da servidão teria de ser judicialmente declarada (mesmo se já não em processo especial de arbitramento, antes previsto no art.1052º ss CPC); e não foi isso que se pediu nesta acção, mas sim a declaração da inexistência da servidão em referência.

Bem, por fim, se não entende a que propósito vem invocado o art.1415º C.Civ.

8. Estabelecido no art.1564º C.Civ. que as servidões são reguladas, no que respeita ao seu exercício, pelo título respectivo, é, nessa conformidade, certo que quando, como é o caso, se trate de servidão por destinação do pai de família, esse exercício terá de correlacionar-se com a situação de facto existente no momento em que os dois prédios ou as duas fracções se tiverem separado quanto à sua titularidade (9).

O nº2º do seguinte art.1565º determina, por sua vez, dever, em caso de dúvida, entender-se a servidão constituída por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante - como já visto, na altura acima referida (10) .

Os articulados são, a esse respeito, omissos: como natural, da parte da demandante, uma vez que, pretendendo a declaração da inexistência de servidão, ilógico, por isso mesmo, seria referir a sua extensão e o modo do seu exercício; da parte dos demandados, porque lhes cometido apenas pelo n.º 1 do art. 343º C.Civ. o ónus da prova, e, consequentemente, da alegação (moldado pelo da prova), dos factos constitutivos da servidão (sendo à demandante que, por sua vez, cabia, consoante n.º 2 do art.342º, o ónus da prova, e, assim, da alegação dos factos impeditivos, modificativos e extintivos daquele direito ).

Fica-se, deste jeito, sem saber quais, concreta e efectivamente, seriam, no mencionado momento relevante, as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante: que, designadamente, poderia estar, ou não estar, já então destinado a construção. E, como do art.676º, nº1º, CPC se vê, função dos recursos a revisão do decidido no tribunal recorrido, nem, como dito, de tal havia já, sequer, que cuidar na apelação.

Observava, em todo o caso, Pires de Lima (11) que " se uma servidão de passagem se constituir de modo geral, isto é, sem que do seu título conste a sua limitação a um certo e determinado uso, neste caso deve interpretar-se o conteúdo da servidão como extensivo a todas as utilidades que o prédio possa extrair da referida passagem "; e que, não havendo no título constitutivo restrição limitativa do exercício do direito de servidão, " a servidão é a mesma, não se alterando nem se agravando o seu conteúdo pelo facto de se tornar mais frequente ".

9. Não pode, por fim, manifestamente, reduzir-se o referido em 3. ( r ) e ( s), supra, à previsão do art. 1349º C.Civ.; e, referido a obras no prédio serviente com influência na servidão, não se vê que cabimento possa ter na matéria de facto apurada a disposição do art.1566º C.Civ. e demais preceitos invocados na última conclusão da alegação da recorrente; na qual há uma profusão de destaques a negrito, sublinhados e maiúsculas, mas, afinal, em vista do que ficou exposto, clara deficiência de razão.

Interessante o notado na parte final da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a fls.185, na nota 3 da sentença apelada, a fls.197, e no final dessa sentença, também na instância ora recorrida se julgou seguro ter a recorrente deduzido pretensão cuja falta de razão não podia desconhecer.

Revisitado agora quanto se leva dito ( cfr., nomeadamente, 5., supra ), a condenação por litigância de má fé confirmada pelo acórdão recorrido revela-se, em boa verdade, justificada à luz do disposto no art. 456º, nº2º, al.a), CPC.

10. Do deixado observado, a seguinte decisão:

Nega-se a revista.

Mantém-se a conforme decisão das instâncias.

Custas pela recorrente.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2003
Oliveira Barros
Miranda Gusmão
Sousa Inês
____________
(1) Como, por outro lado, notado no final da réplica, não se tratando de herança jacente, visto que já aceite ( cfr.art.2046º C. Civ.), e conhecidos os herdeiros, não tinha aplicação a al.a) do art.6º CPC, carecendo a herança, em tais circunstâncias, de personalidade judiciária.
(2) V., com inteiro apropósito, Antunes Varela, RLJ, 129º/51. Na indicação da matéria de facto assente passou-se da al.R) para a al.T) ( fls.123 ). Na al.L) dá-se por reproduzida escritura de habilitação de herdeiros. Reparo bastante a lição de Antunes Varela e outros, " Manual de Processo Civil", 2ª ed., 401, nota 2, deu-se, na sentença, cumprimento ao disposto no art.659º, nº3º, CPC
(3) Bem assim se compreende o adiantado em ARE de 29/7/82, CJ, VII, 4º, 278, na esteira, aliás, de ARP de 27/5/77, CJ, II, 858, onde ( 2ª col.) se fazem notar as consequências adjectivas da falada inversão do ónus da prova, nomeadamente no inicialmente disposto no art.486º, nº4º, e nos arts.502º, nº2º, e 504º CPC ( v., a esse respeito, Antunes Varela, BMJ 116/28-7.). Então julgado injustificado o tratamento especial dado a esta espécie de acções, o nº4º do art.486º foi eliminado pela reforma intercalar operada pelo DL 242/85, de 9/7, que alterou também o art.504º. Expressamente reportado o primitivo art.504º, tal como é ainda o caso do nº2º do art.502º, a esta espécie de acções, em harmonia com a versão ampliada daquele primeiro introduzida em 1985, e transportada para a actual ( produto da reforma de 1995/96 ), a previsão do falado nº4º do art. 486º foi alargada na versão ora vigente ( resultante dessa mesma reforma )
(4) Em contrário do expressamente considerado no acórdão deste Tribunal de 23/1/2001, CJSTJ, IX, 1º, 77 ss ( v.78, final da 1ª col. ), em que a ora recorrente, então apelante, se louvava.
(5) Plural. Assim, nomeadamente, da predita H. Nomeadamente ainda, no nº4º ( 4.) da alegação da recorrente na apelação, a fls.206 dos autos, reconhece-se expressamente que " a faixa de terreno do prédio da recorrente dava passagem para terrenos de H ( antiga dona comum ) ". Aí outrossim referido ( no nº5º) ter a A. adquirido o seu prédio a donatário da dita H, e esse, afinal, o título da separação ( v. 3. , (a) e (e), supra ), nada dele consta em contrário da serventia em questão nestes autos. Não se mostra, pois, preenchida a previsão da parte final do art.1549º C.Civ.
(6) A tenção, nesta veia, de que " ( ... ) o " prédio rústico " beneficiado ou dominante acabou. Por transformação deixou de existir " ( nº5º da alegação da recorrente, a fls.254 dos autos ) nada adianta à resolução da causa: tão só alterado o seu destino económico, esse prédio só deixou de existir na qualidade de rústico; e é, em vista do disposto no art.1569º C.Civ., claro não ser tal susceptível, seja por que via fôr, de pôr termo à servidão de trânsito em referência.
(7) Como elucidava Pires de Lima, " Lições de Direito Civil - Direitos Reais ", 4ª ed.( 1958 ), 343 ( último par.) -344, há ampliação abusiva do conteúdo da servidão quando o proprietário do prédio dominante pretenda auferir por ela utilidades (vantagens) a que pelo título constitutivo não tinha direito.
(8) V. Penha Gonçalves, " Curso de Direitos Reais ", 2ª ed. (1993 ), 470
( nº113.)
(9) Como esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela em nota a esse artigo, " C.Civ. Anotado ", III, 2ª ed., 662. O mesmo em Pires de Lima, ob.cit., 340.
(10) V. P.Lima e A. Varela, ob., vol. e ed. cits., 664, nota 3. ao art.1565º e Ac.STJ de 20/10/92, BMJ 420/579-IV e 587, onde se refere dever atender-se às novas necessidades e eventuais exigências do prédio dominante.
(11) Ob.cit., 344 e 345. Remete, para melhor desenvolvimento, para efectivamente elucidativa resposta a consulta publicada na RLJ 70º/23 ss. Nem, enfim, diversamente diz Tavarela Lobo, " Mudança e Alteração da Servidão " ( 1984 ), 23 ss, mormente 26 e 27, citado no aresto mencionado na nota anterior.