Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0155/11
Data do Acordão:05/23/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
DIREITO DE PREFERÊNCIA
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
Sumário:I - O tribunal tributário pode e deve conhecer da existência do direito de preferência invocado por quem pretenda exercer esse direito na execução fiscal, sendo sua (e não dos tribunais judiciais) a competência em razão da matéria para conhecer desse pedido, como ficou decidido no caso sub judice pelo Tribunal dos Conflitos.
II - Isso não significa, contudo, que haja de se admitir uma acção instaurada pelos apresentantes da melhor proposta apresentada para a aquisição de um bem penhorado em ordem à declaração da inexistência do direito de preferência invocado por outrem.
III - O conhecimento da existência do referido direito far-se-á, não a título principal e em qualquer meio processual (acção ou incidente) intentado exclusivamente para esse fim, mas em sede da reclamação deduzida ao abrigo do disposto no art. 276.º do CPPT em ordem a averiguar da legalidade da decisão do órgão de execução fiscal que tenha reconhecido esse direito.
IV - Assim, aquele (designadamente, o que ofereceu a melhor proposta de aquisição em sede de venda por negociação particular) que se considerar lesado pela decisão do órgão de execução fiscal que reconheceu a um terceiro o direito de preferência na aquisição tem como meio processual adequado para reagir a reclamação prevista no art. 276.º do CPPT.
V - Se foi escolhido outro meio processual, há que verificar da possibilidade de convolação para o meio processual próprio e, na negativa, designadamente por se mostrar excedido o prazo para a utilização deste último, anular todo o processado.
Nº Convencional:JSTA00067619
Nº do Documento:SA2201205230155
Data de Entrada:02/18/2012
Recorrente:A...... E B......
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA E C......
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF BRAGA
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL
Legislação Nacional:CCIV66 ART416
CPPTRIB99 ART276 ART249 N7 ART10 N1 F ART97 N1 O ART151 N1 ART98 N4
CONST76 ART212 N3
ETAF02 ART49 N1 D
CPC96 ART4 N2 A ART2 N2
LGT ART97 N2 N3
Jurisprudência Nacional:AC CONFLITOS PROC10/09 DE 2009/07/07
Referência a Doutrina:ALBERTO DOS REIS CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO VOL II COIMBRA EDITORA 3ED PAG288/289.
RODRIGUES BASTOS NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL VOL I 3ED 1999 PAG 262.
ANTUNES VARELA REVISTA DE LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA ANO100 PAG378
JORGE DE SOUSA CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO E COMENTADO 6 ED IV PAG122/29
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO

1.1 Numa execução fiscal em que A……… e B……… (adiante Autores ou Recorrentes) apresentaram a proposta de valor mais elevado em sede de venda por negociação particular de um prédio aí penhorado, vieram pedir ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, «a título incidental», que declare que à sociedade denominada “C………, S.A.” (adiante Ré ou Recorrida), contrariamente ao por esta invocado, não assiste qualquer direito de preferência relativamente a esse prédio.

1.2 A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, após verificar que o Tribunal dos Conflitos declarou que a competência em razão da matéria para conhecer da acção de simples apreciação que visa obter a declaração de inexistência do direito de preferência em causa pertence ao tribunal tributário da área onde corre a execução fiscal, considerou que tal acção não pode ser deduzida, como foi, como incidente no processo executivo, devendo antes ser proposta autonomamente. Assim, julgou verificada a excepção dilatória inominada «de apresentação de uma acção declarativa como incidente do processo de execução fiscal» e, em consequência, absolveu a Ré da instância.

1.3 Inconformados com essa decisão, os Autores vieram dela recorrer para este Supremo Tribunal Administrativo e o recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

1.4 Os Recorrentes apresentaram as respectivas alegações, que resumiram em conclusões do seguinte teor:
«
1) A douta sentença recorrida julgou verificada uma excepção dilatória inominada de uma acção declarativa como incidente do processo de execução fiscal, absolvendo a Requerida da instância, com fundamento em que o Tribunal dos Conflitos declarou o tribunal tributário competente para decidir a acção de simples apreciação do direito de preferência em causa no incidente, mas não estipulou que essa acção fosse deduzida no âmbito do processo executivo, concluindo que a mesma deveria ter sido intentada autonomamente, tanto mais que o processo de execução fiscal admite somente os incidentes expressamente previstos no artº 166º do CPPT, excluindo a possibilidade do incidente em causa.
2) Contudo, dos fundamentos do dito Acórdão de 7 de Julho de 2009 do Tribunal dos Conflitos, como anteriormente do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no recurso nº 1879/08.1, interposto sobre o despacho saneador lavrado na acção ordinária nº 236/04.5TBVRMdo Tribunal Judicial de Vieira do Minho, resulta de forma evidente que o vínculo entre a matéria em causa, ou seja a apreciação da inexistência do direito de preferência litigioso, e a jurisdição administrativa e fiscal, e nesta o Tribunal Tributário, é precisamente a natureza incidental da questão concreta relativamente ao processo de execução fiscal.
3) Por força da regra relativa à modificação da competência prevista no artº 151º, nº 1, do CPPT, que exprime o princípio geral também plasmado no artigo 96º, nº 1, do CPC, segundo o qual o tribunal competente para a acção e também competente para conhecer dos respectivos incidentes, uma vez que a matéria sub judice no incidente, em si considerada, seria manifestamente da competência dos tribunais comuns.
4) Pelo que, salvo o devido respeito, não pode ser acolhido o entendimento postulado pela douta Sentença recorrida de que a pretensão dos Recorrentes respeitante à apreciação do direito de preferência deveria ter sido objecto de uma acção autónoma, à margem de qualquer dependência da execução fiscal, porquanto, fora do âmbito de aplicação daquela regra de modificação de competência consignada no artº 151º do CPPT, não há qualquer elemento de conexão entre a matéria em apreço e a jurisdição administrativa e fiscal.
5) Não pode igualmente proceder o argumento, veiculado na douta Sentença recorrida, de que o processo de execução fiscal não admite o incidente em apreço, o qual se configura como acção declarativa, não constando do elenco taxativo do artº 166º do CPPT, porquanto constituem incidentes, para efeitos do disposto no artº 151º, nº 1, do CPPT, não só os incidentes típicos previstos no artº 166º citado, mas também todos os incidentes atípicos, que não estão expressamente indicados para o processo de execução fiscal por não terem a natureza de incidentes, isto é, qualquer ocorrência extraordinária que perturbe a tramitação normal do processo, como foi considerado pelo Tribunal da Relação de Guimarães e pelo Tribunal dos Conflitos, sobre a questão da apreciação do direito de preferência, relativamente ao processo de execução fiscal.
6) Não se verificando, por conseguinte, a existência de uma excepção dilatória inominada de apresentação de uma acção declarativa como incidente do processo de execução fiscal, não deveria ter-se absolvido a Recorrida da instância com o referido fundamento, mas sim apreciado o mérito da causa, mediante o respectivo juízo acerca da inexistência do direito de preferência que a Recorrente impugna.

Nestes termos, concedendo provimento ao presente recurso, revogando a douta sentença recorrida e substituindo a mesma por decisão que ordene o prosseguimento dos autos com vista ao julgamento da questão decidenda no incidente, farão VV. Exª.s JUSTIÇA!».

1.5 A Ré contra alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

1.6 Recebidos neste Supremo Tribunal Administrativo, os autos foram com vista ao Ministério Público, que emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que ordene a devolução do processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga para prosseguimento da tramitação da acção de simples apreciação negativa, a processar por apenso ao processo de execução fiscal, com a seguinte fundamentação:

«1. O acórdão do Tribunal dos Conflitos prolatado em 7.07.2009 declarou competente para apreciar e decidir a acção de simples apreciação que tem por fim obter a declaração de inexistência de um direito de preferência invocado no domínio de uma execução fiscal (…) o tribunal tributário da área onde corre a execução (fls. 32)
A fundamentação jurídica da decisão claramente sublinha que a questão suscitada pelos autores tem a natureza de incidente de natureza jurisdicional, suscitado em execução fiscal (cf. designadamente fls. 31 4º parágrafo)
O elenco de incidentes do processo de execução fiscal constante do art. 166º nº 1 CPPT não tem carácter taxativo, igualmente abrangendo qualquer incidente atípico, na medida em que signifique uma ocorrência extraordinária que perturba o movimento normal do processo (cf. desenvolvimento em Jorge Lopes de Sousa Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado Volume II 2007 p. 122)

2. Tendo a acção declarativa de simples apreciação negativa tramitação própria, regulada no CPC (art. 4º nº 2 al. a) e 467º e sgs.) é aconselhável o processamento por apenso ao processo de execução fiscal (PEF), desentranhando-se para o efeito a petição inicial apresentada em 29.07.2009 (fls. 3/9)».

1.7 Foi dada vista aos Juízes Conselheiros adjuntos.

1.8 A questão que cumpre apreciar e decidir é a da saber se a Juíza do Tribunal a quo fez errado julgamento quando absolveu a Ré da instância, o que passa por indagar qual a forma processual que deve seguir o pedido de declaração de inexistência de direito de preferência formulado pelos apresentantes da melhor proposta em sede de venda por negociação particular: incidente atípico deduzido na execução fiscal, como escolheram os Autores e sustentam agora em sede de alegações de recurso, ou acção declarativa de simples apreciação negativa, como considerou a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga na decisão recorrida, ou outro?


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«Com interesse para a decisão e dos documentos constantes nos autos, considero provados os seguintes factos:
1. No dia 1 de Junho de 1995, para pagamento da quantia de Esc. 51.746.897$00 proveniente da execução que a Fazenda Nacional instaurou a D………, Lda., por dívidas de IVA, foi penhorado o prédio rústico denominado “………”, sito em ………, a confrontar a sul com a C………, inscrito na matriz predial da freguesia de ……… sob o artigo 1024 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Terras de Bouro sob o n.º 563 (fls. 110/111 e 112/115);
2. Por edital de 26 de Outubro de 1998, o Chefe da Repartição de Finanças do Concelho de Terras de Bouro fez saber que, no dia 18 de Novembro de 1998, pelas 11 horas, se iria proceder à venda do prédio penhorado, naquela repartição, por propostas em carta fechada (fls. 117);
3. Por não terem sido apresentadas propostas, o Chefe do Serviço autorizou a venda do prédio penhorado por negociação particular – (fls. 120 e 121);
4. Através do Ofício n.º 736, de 15 de Setembro de 2000, o Chefe do Serviço de Finanças notificou a C………, SA, na qualidade de confinante, para, querendo, exercer o direito de preferência que lhe assiste nos termos do artigo 416.º do Código Civil, relativamente ao prédio penhorado (fls. 124);
5. Através do Ofício n.º 485, de 24 de Maio de 2001, o Chefe do Serviço de Finanças convocou a C………, SA, assim como os restantes cinco proponentes, para, no dia 12 de Junho desse ano, alterarem, querendo, a proposta apresentada, sendo que, à data, a mais elevada era de Esc. 11.000.000$00 (fls. 126);
6. No dia 12 de Junho de 2001, o Chefe do Serviço de Finanças proferiu o despacho no qual ordenou a notificação dos adjudicatários para, no prazo de 15 dias, procederem ao depósito de da importância da adjudicação (11.000.000$00), na Tesouraria de finanças (fls. 131);
7. Em 12 de Junho de 2001, foi proferida a declaração de adjudicação, com o seguinte teor: “Aos doze dias do mês de Junho de 2001, neste Serviço de Finanças de Terras de Bouro, e na sequência da convocatória ordenada pelo ofício n.º 7000.04777, de 18 de Maio de 2001, do Exmo. Senhor Director de Finanças de Braga, tendo comparecido todos os proponentes, com excepção de E……… e F………, sem que qualquer dos convocados presentes tenha manifestado intenção de alterar a proposta anteriormente apresentada, apenas continuando a invocar a sua qualidade de preferente o representante da C………, SA, foi aceite a maior proposta apresentada por A… e B………, no valor de onze milhões de escudos ” (fls. 132);
8. Em 12 de Junho de 2001, A……… e B……… declararam, na repartição de finanças de Terras do Bouro, que pretendiam pagar a sisa devida com referência a Esc. 11.000.000$00, importância pela qual adquiriram o prédio rústico “………” – que declararam destinar à construção urbana (fls. 130);
9. Em 12 de Junho de 2001, a C………, SA, apresentou um requerimento ao Chefe de Finanças de Terras do Bouro, o qual se dá por integralmente reproduzido, no qual se pode ler que:

“(…) A Empresa esteve e está representada na reunião convocada pelo Ofício n.º 485, de 24 de Maio de 2001, e exerceu o direito de preferência que lhe assiste, pelo que não compreende por que razão não lhe foi, como devia, adjudicada a venda do prédio.
Esta não adjudicação constitui uma nulidade que expressamente se invoca e para todos os efeitos legais e designadamente os previstos no Código de Processo Tributário.
Pede deferimento” (a fls. 128 dos autos)
10. Este requerimento de arguição de nulidade foi indeferido através do ofício n.º 549, de 18 de Junho de 2001, no qual se pode ler que “por se tratar duma venda por negociação particular nos termos dos artigos 902.º e seguintes do Código de Processo Civil, não se aplica o disposto no artigo 896.º do mesmo Código ” (fls. 133);
11. Deste despacho interpôs a Empresa recurso para o Tribunal Tributário de Braga, o qual obteve provimento e, consequentemente, foi revogada a decisão proferida, para ser substituída por outra que não fosse de indeferimento pela razão nele invocada (fls. 136/144, 150/152 e 202/205);
12. Foi interposto recurso para o Tribunal Central Administrativo, tendo este negado provimento ao recurso (fls. 215/218);
13. Através do Ofício n.º 743, de 19 de Junho de 2002, o Chefe do Serviço de Finanças declarou à C………, SA, que “lhe foi reconhecido o direito de preferência” pela decisão do Tribunal Tributário de Braga, pelo que lhe deu 15 dias para proceder ao depósito de € 54.867,77, correspondentes ao valor da venda de Esc. 11.000.000$00 (fls. 154);
14. A……… e B……… recorreram para o Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Braga da decisão do Chefe do Serviço de Finanças de Terras de Bouro, de 19 de Junho de 2002, que os notificou de “que ficou sem efeito a adjudicação que lhes foi feita em 12 de Junho de 2001 com base na maior proposta apresentada (…) face ao recurso apresentado pela C………, SA, e competente despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Braga, pelo qual foi reconhecido o direito de preferência ao prédio em causa pela referida empresa” – (fls. 159/164);
15. A sentença do Tribunal Tributário de Braga de 29 de Novembro de 2002 concedeu provimento ao recurso e revogou a decisão (fls. 173/174);
16. Em 2004, os Requerentes intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Vieira de Minho, contra a C………, SA, uma acção de simples apreciação negativa sob a forma ordinária, autuada com o n.º 236/04-5TVRM, na qual peticionaram a declaração de inexistência de um direito de preferência na esfera jurídica da ré sobre o prédio penhorado (fls. 267/270);
17. No dia 18 de Abril de 2006, o Chefe do Serviço de Finanças de Bouro proferiu o seguinte despacho, constante de fls. 251:

«Por se encontrarem findos os presentes autos, cfr. despacho de fls. 467, tendo o presente o acórdão de fls. 419 e seguintes [do TCA, referido em 12)], determino os seguintes procedimentos:

1 – Quanto aos recorridos A……… e B……… que seja promovida a restituição do preço pago no valor de € 54.867,77, bem como da respectiva sisa no valor de € 2.743,79, cfr. fls. 135 e 176, respectivamente
2 – Quanto à Recorrente C………, SA, que seja emitida a certidão a favor do negociante particular Sr. G……… para que promova a competente escritura de compra e venda a favor da mesma»
18. A escritura a que se alude no número anterior foi realizada no dia 12 de Julho de 2007 (fls. 254/257);
19. No dia 8 de Outubro de 2007, A……… e B……… deduziram incidente de anulação de venda que foi julgado improcedente por sentença do Tribunal Tributário de Braga confirmada por acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 4 de Junho de 2009 (fls. 232/242 e 328/336 e 339/351);
20. No processo referido em 19) [Trata-se de lapso manifesto: escreveu-se 19) onde se queria escrever 16), pois é neste número, e não naquele, que se refere a acção de simples apreciação negativa que os aqui Recorrentes intentaram no Tribunal Judicial de Vieira do Minho contra a aqui Recorrida, pedindo a declaração da inexistência na esfera jurídica desta de um direito de preferência sobre o prédio penhorado.], a Empresa interpôs recurso da decisão do Tribunal de Vieira do Minho que julgou não verificada a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria, tendo a Relação de Guimarães julgado o tribunal judicial incompetente (fls. 362);
21. Os Requerentes recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça que ordenou a remessa dos autos para o Tribunal dos Conflitos (fls. 362/368);
22. Pelo acórdão de 7 de Julho de 2009, [foi pelo] Tribunal dos Conflitos declarado “competente para apreciar e decidir a acção de simples apreciação, que tem por fim obter a declaração da inexistência de um direito de preferência invocado no domínio de uma execução fiscal, a jurisdição administrativa e fiscal em dentro desta, o tribunal tributário da área onde corre a execução” (fls. 26 a 32);
23. A presente acção de apreciação do direito de preferência deu entrada no dia 29 de Julho de 2009.

Resultou a convicção do tribunal da análise dos documentos constantes dos autos e do processo administrativo apenso, devidamente referenciados em cada facto.

Nada mais ficou provado com interesse para a decisão».


*

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

Numa execução fiscal em que foi penhorado um prédio que, após se ter gorado a venda por propostas em carta fechada, foi posto à venda por negociação particular, o órgão de execução fiscal – o Serviço de Finanças de Terras do Bouro – notificou a sociedade denominada “C………, S.A.”, na qualidade de preferente que considerou advir-lhe do disposto no art. 416.º do Código Civil, para, querendo, exercer o direito de preferência (cfr. n.ºs 1. a 4. dos factos provados).
O órgão de execução fiscal aceitou a melhor proposta, que foi apresentada por A……… e B……… e adjudicou-lhes, em 12 de Junho de 2001, o prédio (cfr. n.ºs 5. a 8. dos factos provados).
Em face dessa adjudicação, a “C………, S.A.” arguiu a nulidade do acto de adjudicação mediante requerimento endereçado ao Chefe do Serviço de Finanças de Terras do Bouro e que este indeferiu mediante decisão que veio a ser revogada pelo Tribunal Tributário de 1.ª instância de Braga por sentença confirmada por acórdão do Tribunal Central Administrativo (cfr. n.ºs 5. a 12. dos factos provados).
Perante o trânsito em julgado da sentença do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Braga, o Serviço de Finanças de Terras do Bouro entendeu proceder à notificação da “C………, S.A.” de que «lhe foi reconhecido o direito de preferência» e concedendo-lhe 15 dias para proceder ao pagamento do preço da venda, mediante depósito (cfr. n.º 13. dos factos provados); do mesmo passo, notificou A……… e B……… «que ficou sem efeito a adjudicação que lhes foi feita em 12 de Junho de 2001 com base na maior proposta apresentada (…) face ao recurso apresentado pela C………, SA, e competente despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Braga, pelo qual foi reconhecido o direito de preferência ao prédio em causa pela referida empresa» (cfr. n.º 14. dos factos provados).
A……… e B……… reclamaram para o Tribunal Tributário de 1.ª instância de Braga da decisão do Chefe do Serviço de Finanças de Terras do Bouro ínsita naquela notificação e o Juiz daquele Tribunal anulou-a (cfr. n.º 15. dos factos provados, sendo que as referências aí feita a recurso e a revogação só se compreendem como reclamação e anulação, respectivamente, pois a reclamação prevista no art. 276.º e segs. do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) é a forma processual prevista para a sindicância judicial dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal (O lapso na denominação do meio processual utilizado poderá encontrar explicação no facto de, à data, o CPPT ainda ter pouco tempo de vigência – uma vez que apenas entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2000 (cfr. art. 4.º, do Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, diploma que aprovou o Código) – e no âmbito do Código de Processo Tributário, o meio processual correspondente ser denominado recurso judicial (cfr. art. 355.º), designação que, aliás, ainda é a utilizada quer no art. 101.º, alínea d), da Lei Geral Tributária (LGT) quer no art. 97.º, n.º 1, alínea n), do CPPT.).
Ulteriormente, já em 2006, o Chefe do Serviço de Finanças de Terras do Bouro proferiu despacho em que ordenou a restituição a A……… e B……… do preço pago pela aquisição do prédio penhorado, bem assim como da respectiva sisa, e que seja efectuada – pelo «negociante particular» – a escritura de venda do prédio penhorado à “C………, S.A.”, escritura que veio a celebrar-se em 12 de Julho de 2007 (cfr. n.ºs 17. e 18. dos factos provados).
A……… e B……… pediram ao Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga a anulação dessa venda, pedido que foi julgado improcedente mediante sentença que foi confirmada por acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (cfr. n.º 19. dos factos provados).
Tendo como pano de fundo esta factualidade, cumpre ainda ter presente que A……… e B………, em 2004, intentaram no Tribunal Judicial de Vieira do Minho contra a “C………, S.A.”, uma acção de simples apreciação negativa, pedindo a declaração da inexistência na esfera jurídica desta de um direito de preferência sobre o prédio penhorado (cfr. n.º 16. dos factos provados).
Nessa acção, a Ré recorreu da decisão do referido Tribunal Judicial que julgou não verificada a invocada excepção da incompetência em razão da matéria e o Tribunal da Relação de Guimarães, concedendo provimento ao recurso, julgou o Tribunal Judicial incompetente em razão da matéria.
Os Autores recorreram desse acórdão do Tribunal da Relação da Guimarães para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual entendeu remeter o processo ao Tribunal dos Conflitos, que decidiu no sentido de que a competência em razão da matéria para conhecer do pedido era do tribunal tributário da área por onde corre a execução fiscal (cfr. n.ºs 20. a 22. dos factos provados).
Vieram então os Autores à execução fiscal pedir ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, «a título incidental», que declare que à sociedade denominada “C………, S.A.” não assiste qualquer direito de preferência relativamente ao prédio penhorado.
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, após verificar que o Tribunal dos Conflitos declarou que a competência em razão da matéria para conhecer da acção de simples apreciação que visa obter a declaração de inexistência do direito de preferência em causa pertence ao tribunal tributário da área onde corre a execução fiscal, considerou que tal pedido não pode ser deduzido, como foi, como incidente no processo executivo, devendo antes ser formulado em acção proposta autonomamente. Assim, julgou verificada a excepção dilatória inominada «de apresentação de uma acção declarativa como incidente do processo de execução fiscal» e, em consequência, absolveu a Ré da instância.
É dessa decisão que vem interposto o recurso ora sob apreciação, sendo que os Recorrentes sustentam, em síntese, que o pedido deve seguir sob a forma de incidente, tal como foi decidido pelo Tribunal dos Conflitos.
A questão a dirimir é, pois, a de saber se a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga fez ou não correcto julgamento quando considerou que a acção declarativa de apreciação negativa deve ser proposta de forma autónoma da execução fiscal e não como incidente desta.


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2.2.2 DO CONHECIMENTO DO DIREITO DE PREFERÊNCIA EM SEDE DE EXECUÇÃO FISCAL

Desde logo, podemos afirmar que não concordamos com a decisão recorrida, o que não significa que concordemos com a posição sustentada pelos Recorrentes. Vejamos:
Como é sabido, o titular de direito de preferência legal ou de preferência convencional com eficácia real sobre o bem a alienar em processo de execução fiscal pode exercer o seu direito no acto de adjudicação, motivo por que o n.º 7 do art. 249.º do CPPT impõe a sua notificação para o efeito ( Para maior desenvolvimento sobre o tema, JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume IV, anotações 5 a 10 ao art. 249.º, págs. 122 a 129.).
Todas as questões relativas ao exercício do direito de preferência em sede de execução fiscal são da competência dos tribunais tributários, como decorre do disposto no art. 212.º, n.º 3, da Constituição da República, no art. 49.º, n.º 1, alínea d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e nos arts. 10.º, n.º 1, alínea f), 97.º, n.º 1, alínea o), e 151.º, n.º 1, do CPPT, e como bem ficou explícito no acórdão do Tribunal dos Conflitos a que se alude no processo e para cuja fundamentação ora remetemos ( Referimo-nos ao acórdão de 7 de Julho de 2009, proferido no processo com o n.º 10/09, publicado no Apêndice ao Diário da República de 25 de Janeiro de 2010 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2009/32600.pdf), págs. 33 a 37, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/78cd171e3d49c1a3802575fa0050d4c3?OpenDocument.).
Mas, se é certo que o Tribunal dos Conflitos decidiu no sentido de que é da competência do tribunal tributário (da área por onde corre a execução) conhecer do pedido de declaração da inexistência do direito de preferência relativamente a um bem penhorado numa execução fiscal, tal decisão do Tribunal dos Conflitos não significa, nem poderia significar – sob pena de exorbitar da questão que lhe foi submetida e lhe cumpria dirimir – que aí se tenha determinado qual o meio processual próprio para o pedido em causa. Dito de outro modo, o Tribunal dos Conflitos afirmou apenas que a competência para conhecer desse pedido é do tribunal tributário e já não que esse pedido haja de ser formulado ao tribunal tributário através de uma acção de simples apreciação negativa ou através de um incidente na própria execução fiscal.
Dito isto – que nos permite afastar os argumentos esgrimidos pelos Recorrentes e pela decisão recorrida na medida em que buscaram apoio no acórdão do Tribunal dos Conflitos para sustentarem as respectivas teses quanto ao meio processual adequado ao pedido em causa –, podemos avançar no sentido de determinar qual o meio processual ajustado ao pedido, formulado pelo apresentante da melhor proposta para aquisição do bem penhorado numa execução fiscal, de que se declare judicialmente que àquele que pretende exercer o direito de preferência não assiste esse direito?
Salvo o devido respeito, não podemos concordar com a tese da Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que vai no sentido de que esse pedido deve ser efectuado mediante acção autónoma. Desde logo, porque o contencioso tributário, contrariamente ao que se passa na jurisdição comum (cfr. art. 4.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC)) não prevê tal acção nem se justificaria que a previsse para as situações, como a sub judice, em que a venda foi já efectuada àquele a quem o órgão de execução fiscal reconheceu a qualidade de preferente. Por isso, decidiremos pela revogação da decisão recorrida.
Mas isso não significa que concordemos com a posição sustentada pelos Recorrentes, de que esse pedido deve ser formulado na execução fiscal, erigindo-se em incidente da mesma.
A nosso ver, no contencioso tributário o referido pedido não deve ser formulado a título principal – seja mediante acção seja mediante incidente –, mas em sede da reclamação deduzida ao abrigo do disposto no art. 276.º do CPPT em ordem a averiguar da legalidade da decisão do órgão de execução fiscal que tenha reconhecido ou negado esse direito.
Ou seja, o pedido de declaração de inexistência do direito de preferência só faz sentido quando deduzido relativamente a uma concreta decisão proferida em sede de execução fiscal: ou esse direito foi aí reconhecido, caso em que se justifica que quem se sinta prejudicado nos seus direitos ou interesses legítimos pela respectiva decisão reaja judicialmente contra ela, ou, se na execução fiscal não houve decisão quanto ao exercício desse direito, não há possibilidade de formular ao tribunal tributário uma pretensão no sentido de que seja declarada a inexistência do direito de preferência.
Antes de avançarmos, convém aqui relembrar o pedido formulado pelos Autores, reproduzindo-o:

«Nestes Termos, deve julgar-se o presente pedido incidental provado e procedente, e em consequência, declarar-se que à Requerida não assiste qualquer direito de preferência relativamente ao prédio […], penhorado nos autos de execução e acima melhor identificado,
operando-se no processo de execução e com referência à venda por negociação particular formalizada por escritura pública outorgada em 12.07.2007 […] a substituição da Requerida pelos Requerentes, na qualidade de autores da melhor proposta de aquisição e a quem foi determinada inicialmente a entrega do imóvel; se assim não se entender,
deverá ser anulada a venda por negociação particular a favor da Requerida determinada pelo Despacho do Chefe do Serviço de Finanças exarado a fls. 469, do prédio penhorado na execução fiscal, e ordenada a alienação do prédio penhorado a favor dos Requerentes, como autores da proposta de aquisição mais elevada».

Ou seja, e regressando ao caso concreto, tendo o órgão de execução fiscal reconhecido à Ré e ora Recorrida o direito de preferência, os Autores, ora Recorrentes, considerando-se prejudicados por essa decisão e para contra ela reagirem judicialmente, dispunham da reclamação dos actos do órgão de execução fiscal. Sendo certo que a cada direito corresponde um meio processual adequado a fazê-lo valer (cfr. art. 2.º, n.º 2, do CPC, e art. 97.º, n.º 2, da LGT) é a denominada reclamação prevista no art. 276.º do CPC o meio processual que o legislador entendeu como adequado para apreciar a existência ou inexistência do invocado direito de preferência sobre um bem penhorado.
Essa reclamação foi o meio criado pelo legislador para que todos aqueles que se acham lesados nos seus direitos ou interesses legítimos por quaisquer decisões da administração tributária no processo de execução fiscal possam contra estas reagir.
Em face do que vimos de dizer, podemos concluir que o meio processual de que os ora Recorrentes lançaram mão não é adequado à prossecução do fim por eles visado, qual seja a declaração de inexistência do direito de preferência da Ré relativamente ao prédio que lhe foi vendido na execução fiscal. Ora, se o pedido formulado pelo autor não se ajusta à finalidade abstractamente figurada pela lei para essa forma processual ocorre a nulidade por erro na forma do processo ( Cfr. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra Editora, 3.ª edição – reimpressão, págs. 288/289. No mesmo sentido, RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, volume I, 3.ª edição, 1999, pág. 262, e ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 100.º, pág. 378.).
Como decorre do que deixámos dito, o meio processual adequado ao pedido formulado em juízo seria a reclamação prevista no art. 276.º do CPPT, a deduzir no prazo de dez dias, nos termos do n.º 1 do artigo seguinte.
Resta-nos agora indagar da possibilidade de convolação para o meio processual adequado, como o impõem os arts. 97.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária e 98.º, n.º 4, do CPPT.
Como é sabido, é inviável a sanação da nulidade por erro na forma do processo quando, na data que a petição inicial deu entrada em juízo, estava já precludido o prazo para deduzir o meio processual adequado ( A doutrina e a jurisprudência são unânimes no sentido de que, para efectuar a convolação, é necessário que seja viável o prosseguimento do processo na forma processual adequada, designadamente que a petição inicial tenha sido tempestivamente apresentada para efeitos da nova forma processual. Neste sentido, vide JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., volume II, anotação 10 d) ao art. 98.º, págs. 91/92.). É o que sucede no caso sub judice, pois a petição inicial deu entrada em 29 de Julho de 2009 (cf. n.º 23. dos factos provados) e os Autores, pelo menos desde 2007, sabiam que o Serviço de Finanças de Terras do Bouro reconhecera à ora Recorrida o direito de preferência sobre o bem penhorado, em consequência do que o mesmo lhe foi vendido (cf. n.ºs 17. a 19. dos factos provados).
Assim, em face da inviabilidade da convolação, por à data em que foi apresentada a petição inicial se mostrar há muito excedido o prazo para interpor a reclamação prevista no art. 276.º do CPPT – meio processual próprio –, há que declarar a anulação do processado.


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2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - O tribunal tributário pode e deve conhecer da existência do direito de preferência invocado por quem pretenda exercer esse direito na execução fiscal, sendo sua (e não dos tribunais judiciais) a competência em razão da matéria para conhecer desse pedido, como ficou decidido no caso sub judice pelo Tribunal dos Conflitos.
II - Isso não significa, contudo, que haja de se admitir uma acção instaurada pelos apresentantes da melhor proposta apresentada para a aquisição de um bem penhorado em ordem à declaração da inexistência do direito de preferência invocado por outrem.
III - O conhecimento da existência do referido direito far-se-á, não a título principal e em qualquer meio processual (acção ou incidente) intentado exclusivamente para esse fim, mas em sede da reclamação deduzida ao abrigo do disposto no art. 276.º do CPPT em ordem a averiguar da legalidade da decisão do órgão de execução fiscal que tenha reconhecido esse direito.
IV - Assim, aquele (designadamente, o que ofereceu a melhor proposta de aquisição em sede de venda por negociação particular) que se considerar lesado pela decisão do órgão de execução fiscal que reconheceu a um terceiro o direito de preferência na aquisição tem como meio processual adequado para reagir a reclamação prevista no art. 276.º do CPPT.
V - Se foi escolhido outro meio processual, há que verificar da possibilidade de convolação para o meio processual próprio e, na negativa, designadamente por se mostrar excedido o prazo para a utilização deste último, anular todo o processado.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, julgar verificado o erro na forma do processo e, em face da impossibilidade de fazer seguir o pedido dos ora Recorrentes sob a forma processual adequada, anular todo o processado.


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Custas pelos Recorrentes, mas apenas em primeira instância.

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Lisboa, 23 de Maio de 2012. - Francisco Rothes (relator) – Fernanda Maçãs - Isabel Marques da Silva.