Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01411/16
Data do Acordão:09/12/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:NULIDADE
DECISÃO JUDICIAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
QUESTÃO
Sumário:I - As nulidades das decisões judiciais situam-se no âmbito da sua validade formal e pressupõem que o concreto acto jurisdicional tenha desrespeitado as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou violado o conteúdo e limites do poder à sombra da qual foi decretado.
II - Não pode considerar-se que a decisão judicial enferma de omissão de pronúncia relativamente a questão que, apesar de ser do conhecimento oficioso, não foi validamente suscitada por qualquer das partes.
Nº Convencional:JSTA000P23574
Nº do Documento:SA22018091201411
Data de Entrada:12/14/2016
Recorrente:A............, LDA
Recorrido 1:DIRECTOR GERAL DAS ALFÂNDEGAS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Arguição de nulidades do acórdão proferido no recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 274/06.3BEFUN

1. RELATÓRIO

1.1 A Fazenda Pública, notificada do acórdão proferido nestes autos por este Supremo Tribunal Administrativo, que, concedendo provimento ao recurso interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal por “A…………, Lda.”, anulou a liquidação de direitos aduaneiros de importação apurada no processo de cobrança a posteriori por a Administração Tributária (AT) ter considerado existirem irregularidades ao regime específico de abastecimento denominado “POSEIMA” (O Conselho das Comunidades Europeias adoptou, pela Decisão n.º 91/315/CE, em 26 de Junho de 1991, um programa de acções específicas para fazer face ao afastamento e à insularidade dos Açores e da Madeira, denominado Poseima, que se integra na política da Comunidade a favor das regiões ultraperiféricas. Entre outras medidas, o POSEIMA instituiu um Regime Específico de Abastecimento (REA) de determinados produtos agrícolas essenciais para o consumo humano e a transformação nas regiões ultraperiféricas. O REA consiste na não aplicação de qualquer direito à importação directa para a Madeira e para os Açores dos produtos por ele abrangidos, quando originários de países terceiros, ou na concessão de uma ajuda, no caso do abastecimento ser feito a partir dos países da Comunidade.), decorrentes da incorporação do açúcar importado em produtos reexpedidos para o Continente, veio apresentar requerimento de arguição de nulidade por omissão de pronúncia quanto à «questão da eventual necessidade de pedido de reenvio prejudicial suscitada por ambas as partes, existindo no caso sub judice uma manifesta falta de fundamentação da desnecessidade do reenvio» (Apesar da aparente contradição – a invocada «manifesta falta de fundamentação da desnecessidade do reenvio» pressuporia que o acórdão tinha concluído por essa “desnecessidade”, o que significaria, afinal, que se tinha pronunciado sobre a questão –, afigura-se-nos que a Requerente não quis invocar a nulidade por falta de fundamentação, mas apenas a nulidade por omissão de pronúncia.).

1.2 A Requerida não respondeu.

1.3 Cumpre apreciar e decidir, tendo-se dispensado os vistos dos Conselheiros adjuntos por se tratar de matéria – a arguição de nulidades das decisões judiciais – sobre a qual existe jurisprudência abundante e consolidada.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 Vem arguida a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.
Segundo a Requerente, este Supremo Tribunal teria incorrido nessa nulidade por não ter abordado a questão «da eventual necessidade de pedido de reenvio prejudicial» para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que alega ter sido «suscitada por ambas as partes».
Recordemos que a nulidade por omissão de pronúncia, expressamente prevista no art. 125.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), está directamente relacionada com o comando fixado n.º 2 do art. 608.º do Código de Processo Civil (CPC), segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
Por conseguinte, só pode ocorrer omissão de pronúncia quando o juiz não toma posição sobre questão colocada pelas partes, não emite decisão no sentido de não poder dela tomar conhecimento nem indica razões para justificar essa abstenção de conhecimento, e da sentença também não resulta, de forma expressa ou implícita, que esse conhecimento tenha ficado prejudicado em face da solução dada ao litígio.
Importa, pois, antes do mais, averiguar o que é uma questão para efeitos do disposto no n.º 2 do art. 608.º do CPC: «O conceito de «questões» abrange tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e das causas de pedir e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem», motivo por que, «[p]ara se estar perante uma questão é necessário que haja a formulação do pedido de decisão relativo a matéria de facto ou de direito sobre uma concreta situação de facto ou jurídica sobre que existem divergências, formulado com base em alegadas razões de facto ou de direito» (JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, II volume, anotação 10 b) ao art. 125.º, págs. 363/364. ).
A jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo também tem vindo a afirmar que «os recursos jurisdicionais estão sujeitos a uma disciplina legal bem definida, designadamente no que se refere ao modo como deve apresentada a alegação de recurso e respectivas conclusões», motivo por que «[n]o caso dos recursos para o Supremo Tribunal Administrativo das sentenças proferidas pelos tribunais tributários de 1.ª instância, porque estão limitados à matéria de direito, há, desde logo, que atentar no disposto no art. 685.º-A, n.º 2, alínea a), do CPC, que impõe que nas conclusões do recurso se indiquem as normas jurídicas violadas, sendo que, na ausência destas, se devem indicar os princípios jurídicos violados» e, assim, «para que se considere suscitada uma questão em sede de recurso, não basta a referência, efectuada de passagem, nas alegações de recurso e respectivas conclusões, à violação de [uma norma ou de um] um princípio jurídico, exigindo-se que o recorrente individualize e concretize, de forma inequívoca, em que consiste a sua divergência com a decisão recorrida, concretizando as suas razões e formulando um pedido de decisão relativamente a uma concreta situação» (Ver, entre outros, o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 3 de Abril de 2013, proferido no processo n.º 948/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/f9d5978da2d538b480257b4e0031edcc.).
Recordemos também que, relativamente a questões do conhecimento oficioso não suscitadas pelas partes, não pode falar-se em omissão de pronúncia: se o tribunal delas não conhecer, devendo fazê-lo (cfr. art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), incorrerá em erro de julgamento, mas já não em omissão de pronúncia (Neste sentido, desenvolvidamente, JORGE LOPES DE SOUSA, obra e volume citados, anotação 11 ao art. 125.º, pág. 365. ).
Dito isto, vejamos por que a Requerente considera verificada a omissão de pronúncia. A seu ver, «a questão da necessidade de formulação de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do art. 276.º do TFUE, foi suscitada nos autos, tanto pela Recorrente como pela Recorrida». Salvo o devido respeito, não o foi, nem pelo Recorrente e, muito menos, pela Recorrida. Vejamos:
Diz a Requerente que a Recorrente (ora Requerida) «suscitou a necessidade de adopção deste mecanismo nas suas alegações de recurso».
Mas, lidas as alegações de recurso e respectivas conclusões, a única referência que encontramos a uma pronúncia pelo TJUE é na conclusão 13, onde ficou dito: «Estão em causa nos presentes autos, essencialmente, a aplicação de normas de direito comunitário, sobre as quais o Tribunal de Justiça, ao que se saiba, até agora não se pronunciou e cuja pronúncia, atentas as posições em confronto, poderá ser necessária ou útil se esse Venerando Tribunal assim o entender».
Salvo o devido respeito, atento o que deixámos dito quanto ao modo como devem ser suscitadas as questões perante o tribunal, não pode considerar-se que a afirmação de que a pronúncia pelo TJUE «poderá ser necessária ou útil se esse Venerando Tribunal assim o entender» constitua modo válido de suscitar perante o Supremo Tribunal Administrativo a questão do pedido de reenvio prejudicial.
Acresce que sempre poderia discutir-se a legitimidade da Fazenda Pública para arguir a nulidade por omissão de pronúncia relativamente a uma questão suscitada pela Impugnante.
Por outro lado, lidas as contra-alegações, não vislumbramos qualquer referência, por mínima que seja, ao pedido de reenvio prejudicial que a ora Requerente diz ter efectuado. É certo que alega tê-lo feito «anteriormente quando a 04/03/2013 requereu, através de peça processual, a remessa do processo para o STA». No entanto, esse requerimento, endereçado ao Tribunal Central Administrativo Sul, foi apresentado bem depois do termo do prazo para apresentar as contra-alegações de recurso e, ademais, a questão não foi suscitada como fundamento em ordem à decisão do recurso, mas apenas quando foi arguida a nulidade do acórdão proferido no Tribunal Central Administrativo Sul e, note-se bem, a título subsidiário, ou seja, para a eventualidade de a arguição da nulidade não ser, como foi, atendida.
Temos, pois, que a questão do reenvio prejudicial para o TJUE não foi suscitada em termos válidos pela Recorrente e, seguramente, não foi suscitada pela Recorrida.
A nosso ver, a alegação ora sustentada pela Requerente, de que o Supremo Tribunal Administrativo deveria ter conhecido da questão do reenvio prejudicial para o TJUE, poderá eventualmente integrar a invocação de erro de julgamento, mas não nulidade do acórdão. Recorde-se que as nulidades das decisões judiciais situam-se no âmbito da sua validade formal e pressupõem que o concreto acto jurisdicional tenha desrespeitado as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou violado o conteúdo e limites do poder à sombra da qual foi decretado; não incluem as divergências entre as partes e o tribunal quanto à interpretação e aplicação das regras de direito ou quanto ao apuramento, interpretação e qualificação dos factos relevantes, que, se constituírem erros de julgamento, serão a corrigir por recurso, nos casos em que a lei ainda o admita.
Sem prejuízo de tudo quanto deixámos dito, sempre diremos o seguinte:
Este Supremo Tribunal considerou que tendo a Impugnante, que importou açúcar para consumo directo na Região Autónoma da Madeira (RAM) ao abrigo do Poseima, vendido esse açúcar a uma empresa daquela Região, a compradora surge, à partida, como consumidor final. Se esta, que incorporou o açúcar em sumos concentrados, expede parte destes para fora da RAM, não se vislumbra fundamento para responsabilizar a Impugnante pela devolução do benefício concedido ao abrigo do Poseima, a menos que se lhe apontasse qualquer situação de conluio com a compradora ou o conhecimento das intenções da mesma. Assim, não se descortina incumprimento algum dos compromissos assumidos pela Impugnante enquanto operador no âmbito do Poseima, sendo que a decisão da compradora de reexpedir para fora da RAM parte da sua produção (sumos) em que incorporou aquele açúcar só a ela a pode responsabilizar, sendo a esta que cabia dar cumprimento ao disposto no art. 9.º, n.º 3, do Reg. (CE) n.º 20/2002, da Comissão, de 28 de Dezembro de 2001, no sentido de, eventualmente, lograr reunir as condições para o efeito previsto no art. 17.º do mesmo Regulamento. Por isso, salvo o devido respeito, não se compreende por que a AT, ao invés de exigir a devolução do benefício à ora Requerida – a quem não imputou incumprimento algum das regras do Poseima –, o não exigiu da sociedade que lhe comprou o açúcar e que, essa sim contrariando as regras do Poseima, o reexpediu, incorporado nos sumos, para o Continente. Ora, a nosso ver, a resposta a essa questão não exige a interpretação de uma disposição de Direito da União Europeia nem a apreciação da validade de um acto emanado das instituições comunitárias, órgãos ou organismos da União, motivo por que não encontrámos razão para o reenvio prejudicial.
Por tudo quanto ficou dito, não pode proceder a invocada nulidade por omissão de pronúncia.

2.2 Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - As nulidades das decisões judiciais situam-se no âmbito da sua validade formal e pressupõem que o concreto acto jurisdicional tenha desrespeitado as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou violado o conteúdo e limites do poder à sombra da qual foi decretado.
II - Não pode considerar-se que a decisão judicial enferma de omissão de pronúncia relativamente a questão que, apesar de ser do conhecimento oficioso, não foi validamente suscitada por qualquer das partes.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em indeferir o requerido.

Custas pela Requerente.


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Lisboa, 12 de Setembro de 2018. – Francisco Rothes (relator) – António Pimpão – Dulce Neto.