Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01137/11.6BEBRG
Data do Acordão:01/25/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:REVISTA
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CPPT
Sumário:I - O recurso de revista excepcional, previsto no art. 285.º do CPTT, visa funcionar como “válvula de segurança” do sistema, sendo admissível apenas se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão do recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, cumprindo ao recorrente alegar e demonstrar a factualidade necessária para integrar a verificação dos referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis).
II - Não é de admitir a revista se o recurso assenta num pressuposto – designadamente quanto à fundamentação do acto impugnado – que não é correcto e, por esse motivo, as questões que pretende sujeitar ao Supremo Tribunal não poderiam influir na decisão a proferir.
Nº Convencional:JSTA000P30507
Nº do Documento:SA22023012501137/11
Data de Entrada:10/10/2022
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 1137/11.6BEBRG
Recorrente: “A..., S.A.”
Recorrida: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada, inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte em 8 de Outubro de 2020 ( Disponível em http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/-/9209048ff5ec443f80258614006308f8.) – que, apreciando o recurso por ela interposto da sentença por que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) que lhe foram efectuadas com referência ao ano de 2008 –, dele recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentando as alegações de recurso, com conclusões do seguinte teor:

«A. O presente recurso de revista tem por objecto o Acórdão proferido pelo TCAN notificado à Recorrente em 12.10.2020, que negou provimento ao recurso interposto por esta da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, a qual julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra os actos de liquidação adicional de IVA com os n.ºs 11006348, 11006350, 11006352, 11006354, 11006356, 11006358, 11006360, 11006362, 11006364 e 11006366 e respectivos juros compensatórios com os n.ºs 11006349, 11006351, 11006353, 11006355, 11006357, 11006359, 11006361, 11006363, 11006365 e 11006367, no valor total de € 18.932,98, referentes aos períodos de 0801, 0802, 0804, 0805, 0806, 0807, 0809, 0810, 0811 e 0812;

B. Os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso de revista, estabelecidos no artigo 285.º, do CPPT, encontram-se reunidos in casu, pelo que deve o mesmo ser admitido;

C. Desde logo porque em causa encontram-se questões passíveis de se repetir num número indeterminado de casos futuros, o que torna a admissão da revista claramente necessária para a melhor aplicação do direito, nos termos do n.º 1, do artigo 285.º, do CPPT;

D. Por outro lado, as questões que pretende a Recorrente ver apreciada em sede de revista revestem uma relevância social que lhe imprime a importância fundamental a que se reporta o n.º 1, do artigo 285.º, do CPPT, e que se assume como um dos pressupostos que justifica a admissibilidade do recurso de revista;

E. O presente recurso de revista afigura-se tempestivo, por ter sido interposto dentro do prazo de 30 dias previsto no n.º 1, do artigo 638.º do CPC aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT;

F. As questões e respectivas sub-questões que a Recorrente coloca a este Supremo Tribunal Administrativo são as seguintes:

1. É admissível, à luz do ordenamento jurídico português, que a AT invoque, como fundamento para a emissão de uma liquidação adicional de IVA, a ausência de prova da natureza efectiva dos serviços adquiridos pelo sujeito passivo, a isso associando o artigo 20.º do Código do IVA, e apesar disso – isto é, apesar de uma alegação que remete para a existência de fraude – se desonere de demonstrar essa fraude? Ou seja, sendo a tónica da peça do procedimento que fundamenta os actos tributários – o RIT – a ausência de efectividade dos serviços com relação aos quais se suportou o imposto que se pretende deduzir, afigura-se admissível que:
i. a base legal respectiva seja uma norma (o artigo 20.º do Código do IVA) que apenas serve para apurar se, relativamente a uma operação efectiva e existente (sendo por isso inútil quanto a operações tidas por não efectivas e, logo, inexistentes ou fictícias), existirá uma relação entre os inputs nos quais se suportou imposto e as operações tributáveis realizadas a jusante?
ii. a alegação de fraude em que se consubstancia o fundamento do acto tributário – que se traduz na ausência de efectividade dos serviços adquiridos a montante – venha desacompanhada da respectiva prova, pela AT, dessa alegada fraude?

2. À luz do ordenamento jurídico português e do Direito da União Europeia, considerar-se-á que um tribunal nacional acolhe a jurisprudência do TJUE a que se encontra vinculado, se o mesmo invoca, num caso em que o direito à dedução foi rejeitado por fraude na operação subjacente invocada para se exercer esse direito, jurisprudência que é da autoria do TJUE mas que trata a relação que deve existir entre os bens e serviços adquiridos a montante e as operações realizadas a jusante para efeitos do direito à dedução (inútil, portanto, quanto a operações tidas por não efectivas e, logo, inexistentes ou fictícias), e já não a jurisprudência do TJUE que em concreto aborda a rejeição do direito à dedução por fraude na operação subjacente invocada para se exercer esse direito (e que se aplica a operações tidas por não efectivas e, logo, inexistentes ou fictícias)?

3. Por outro lado, ainda, afigura-se possível, considerando a lei portuguesa e o Direito da União Europeia, que um Tribunal nacional decida (i) com base numa jurisprudência que é da autoria do TJUE mas que não tem aplicação ao caso concreto (por se reportar à relação que deve existir entre inputs e outputs, relação essa que não se afere, por inútil, se em causa estiver uma operação tida por não efectiva ou fictícia) e (ii) em sentido contrário à jurisprudência do TJUE que efectivamente se aplica ao caso em apreço (segundo a qual, sendo o direito à dedução rejeitado com base na existência de fraude, deve a AT demonstrar, com base em elementos objectivos, que o sujeito passivo conhecia ou devia conhecer que ao adquirir os bens ou serviços a montante participava numa fraude ao IVA cometida pelo fornecedor ou por qualquer outro interveniente na cadeia de operações), decidir pelo não reenvio prejudicial por se tratar de questão que se encontra esclarecida por jurisprudência do TJUE?

4. Afigura-se admissível que o Tribunal que decide em última instância se abstenha de proceder ao reenvio prejudicial com base no facto de não ter sido impugnada a sentença de primeira instância nessa parte, numa situação em que o Tribunal de primeira instância se limita, a este respeito, a afirmar que não lhe compete concretizar o reenvio por não decidir em última instância?

5. É conforme ao ordenamento jurídico português, designadamente às exigências constitucionalmente consagradas a que deve obedecer a fundamentação dos actos tributários, que se conclua pela verificação do dever de fundamentação de um acto tributário relativamente ao qual as instâncias a cuja apreciação foi submetida a sua legalidade consensualmente afirmam não ser clara a distinção entre as conclusões da inspecção que se referem a IRC e aquelas que se reportam a IVA? Por outras palavras, sendo a fundamentação de um acto tributário assumida e judicialmente considerada confusa no que respeita às conclusões que se reportam a cada imposto corrigido, pode ainda assim considerar-se cumprido o dever de fundamentar o acto tributário?

G. A primeira questão suscita-se por a AT ter negado o direito à dedução do IVA suportado com base no único argumento de que não resulta provada a natureza efectiva dos serviços prestados, sustentando a correcção com o artigo 20.º do Código do IVA, norma esta que determina que para efeitos de exercício do direito à dedução tem de existir um link entre os inputs incorridos pelo sujeito passivo e as operações tributáveis realizadas a jusante, análise que não tem lugar quanto a operações consideradas não efectivas ou fictícias (na medida em que, sendo consideradas fictícias, não permitem, por isso, o exercício do direito à dedução);

H. Ou seja, a AT rejeitou o direito à dedução com base em fraude na operação subjacente invocada para exercer aquele direito, com base num preceito legal (o artigo 20, n.º 1 do Código do IVA) que não tem qualquer utilidade no tocante a operações que sejam consideradas, como aquelas in casu foram, não efectivas e fictícias;

I. Mais: a ausência de materialidade ou efectividade das operações como fundamento da rejeição do exercício do direito à dedução tem uma base legal específica, prevista nos n.ºs 3 e 4 do artigo 19.º do Código do IVA e que não foi invocada para fundamentar a correcção em causa, o que também justifica a intervenção do Supremo Tribunal em sede de revista;

J. Por outro lado, ainda, de acordo com a jurisprudência do TJUE, sempre que a base da rejeição do direito à dedução do IVA é a fraude ou a ausência de realização efectiva das operações subjacentes à emissão das facturas que titulam o direito à dedução que se rejeita, recai um especial ónus sobre a AT de demonstrar objectivamente que o sujeito passivo conhecia ou devia conhecer que participava numa operação fraudulenta cometida pelo fornecedor ou por qualquer outro interveniente na cadeia de operações;

K. A AT, no RIT, não alegou nem demonstrou, através de elementos objectivos, que a Recorrente sabia ou devia saber que a operação invocada como base para o direito à dedução do IVA fazia parte de uma fraude ao IVA levada a cabo pelo fornecedor dos bens ou serviços ou por qualquer outro interveniente na cadeia de operações, pelo que se afigura imperioso que este Supremo Tribunal se pronuncie sobre a legalidade de um tal fundamento para os actos tributários de liquidação adicional de IVA desacompanhado da demonstração da fraude que se invoca;

L. A segunda questão coloca-se pelo facto de nenhuma das instâncias que foi chamada a apreciar o presente caso ter convocado para a sua decisão a jurisprudência do TJUE que efectivamente se aplica a um caso de rejeição do direito à dedução do IVA com base em fraude na operação subjacente;

M. Exemplo dessa jurisprudência é o Acórdão do TJUE de 20.06.2020, proferido no Processo C-430/19, nos termos do qual apenas se poder rejeitar o direito à dedução com base na ausência de efectividade das operações subjacentes, desde que a AT demonstre, com base em elementos objectivos, que o sujeito passivo a quem foram transmitidos os bens ou prestados os serviços conhecia ou devia conhecer que participava numa fraude ao IVA cometida pelo fornecedor ou por qualquer outro interveniente na cadeia de operações;

N. Assim, urge que este Supremo Tribunal esclareça se pode ter-se por cumprida a obrigação de os tribunais nacionais acolherem a jurisprudência do TJUE em matérias que, como o IVA, se encontrem abrangidas pelo Direito da União Europeia, desde que, para decidir uma questão, o Tribunal nacional invoque uma jurisprudência da autoria do TJUE (sobre a necessidade, que não se verifica quanto a operações tidas por não efectivas ou fictícias, de existir uma relação entre inputs e outputs), ainda que não aquela que especificamente versa sobre o fundamento dos actos tributários em causa (rejeição do exercício do direito à dedução com base em fraude, caso em que a análise daquela relação entre inputs e outputs se torna inútil);

O. A terceira questão decorre do facto de o Tribunal a quo ter considerado aplicável a um caso como aquele em apreço jurisprudência do TJUE que se debruça sobre a relação entre inputs e outputs para efeitos de exercício do direito à dedução, a qual é distinta da jurisprudência que deveria ser sido convocada e aplicada e que trata a questão da rejeição do direito à dedução com base na fraude na operação subjacente invocada para se exercer esse direito à dedução e, com base nessa premissa, tenha decidido pelo não reenvio prejudicial por se tratar de questão esclarecida por jurisprudência do TJUE;

P. O reenvio prejudicial é obrigatório para o Tribunal nacional que, como o Tribunal a quo, decide em última instância “sempre que seja suscitada uma questão de direito comunitário, salvo quando for impertinente, quando a disposição em causa já foi objecto de interpretação pelo TJUE ou quando, pela sua evidência, não dá lugar a qualquer dúvida interpretativa razoável” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07.07.2016, processo n.º 2872/15.5T8PNF.P1);

Q. Do ponto de vista da questão sob discussão – a rejeição do direito à dedução com base em fraude na operação subjacente – existe jurisprudência do TJUE que se pronunciou de forma firme sobre a mesma (de que é exemplo o Acórdão de 04.06.2020, Processo C-430/19) mas foi desconsiderada no Acórdão recorrido e, mais do que isso, contrariada pelo mesmo;

R. Neste sentido, impõe-se a pronúncia deste Supremo Tribunal quanto à admissibilidade de um Tribunal que decide em última instância, decidir pela alegada desnecessidade de reenvio prejudicial para o TJUE, por entender que a questão não é nova e que se encontra esclarecida pela jurisprudência do TJUE, muito embora a jurisprudência do TJUE que em concreto se debruça sobre o fundamento do acto tributário sob discussão (a rejeição do direito à dedução com base em fraude na operação subjacente) não seja convocada para essa decisão do Tribunal, que aliás a contraria e devia e que deve o Tribunal conhecer;

S. A quarta questão coloca-se por ter o Tribunal a quo decidido não proceder ao reenvio prejudicial por duas razões, uma das quais respeita à ausência de impugnação da sentença de primeira instância nessa parte;

T. Nessa medida, considera a Recorrente ser relevante para uma melhor aplicação do direito obter uma pronúncia do Supremo Tribunal Administrativo quanto à possibilidade de, num caso em que o Tribunal de primeira instância se limita a afirmar a ausência de competência para proceder ao reenvio prejudicial por não decidir em última instância, a falta de impugnação da sentença de primeira instância nessa parte legitimar a ausência de reenvio prejudicial pelo tribunal superior que decide em última instância;

U. A quinta e última questão que a Recorrente coloca a este Supremo Tribunal prende-se com o seguinte: ambos os tribunais a cujo crivo foi submetida a questão em apreço entendem que a fundamentação dos actos tributários não é exemplar, tendo o TAF de Braga assumidamente afirmado que não é clara a distinção entre as conclusões da inspecção que suportam as correcções em sede de um imposto (no caso, IVA) e aquelas que suportam as correcções em sede de outro imposto (no caso, IRC);

V. Não obstante remeta esta apreciação para o incumprimento do dever de fundamentação que competia à AT nos termos do artigo 268.º, n.º 3 da CRP e 77.º da LGT, desde logo porque um dos requisitos da fundamentação dos actos tributários é a clareza e ausência de obscuridade, o Tribunal concluiu que os actos tributários não padeciam de qualquer vício de falta de fundamentação;

W. Urge, assim, que este Supremo Tribunal se pronuncie sobre a possibilidade de, à luz do ordenamento jurídico e constitucional português, uma fundamentação considerada pelas instâncias que apreciaram os actos tributários como confusa por não se afigurar clara a distinção entre as conclusões que sustentam as correcções de um imposto (in casu, IVA) e as conclusões que sustentam as correcções de outro imposto (in casu, IRC), poder ainda assim ser considerada como uma fundamentação que cumpre os requisitos de clareza e ausência de obscuridade que a fundamentação dos actos tributários deve observar, afirmando, no fundo, que esta é simultaneamente confusa e clara.

Nestes termos e nos mais de Direito, se requer a V. Exas. se dignem admitir o presente recurso de revista e revogar o Acórdão recorrido, substituindo-o por outro que, com base na pronúncia acerca das questões supra identificadas, determine a anulação das liquidações adicionais de IVA, referentes aos períodos de 0801, 0802, 0804, 0805, 0806, 0807, 0809, 0810, 0811 e 0812, com as demais consequências legais».

1.2 A Fazenda Pública não contra-alegou o recurso.

1.3 Por despacho proferido em 6 de Outubro de 2022, a Desembargadora relatora no Tribunal Central Administrativo Norte ordenou a sua remessa ao Supremo Tribunal Administrativo.

1.4 Recebidos neste Supremo Tribunal, os autos foram com vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido de que «ao Ministério Público não compete emitir parecer sobre a admissão ou não admissão do Recurso de Revista, mas apenas quanto ao seu mérito no caso de o Recurso de Revista ser admitido».

1.5 Cumpre, preliminar e sumariamente, decidir da admissão do recurso, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 285.º do CPPT.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

Nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 6, e 679.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do art. 281.º do CPPT, remete-se para a matéria de facto constante do acórdão recorrido.


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.2.1.1 Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental, ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cfr. art. 285.º, n.º 1, do CPPT).
Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n.ºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.2.1.2 Como a jurisprudência também tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo – que deve estar bem delimitada – assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista [cfr. art. 144.º, n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis].

2.2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» ( Cfr., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.2.1.4 Vistas as alegações de recurso, vemos que a Recorrente pretende submeter à apreciação deste Supremo Tribunal as questões por ela enunciadas na alínea F) das conclusões, invocando que as mesmas, por um lado, são «questões passíveis de se repetir num número indeterminado de casos futuros, o que torna a admissão da revista claramente necessária para a melhor aplicação do direito, nos termos do n.º 1, do artigo 285.º, do CPPT» e, «[p]or outro lado, as questões que pretende a Recorrente ver apreciada em sede de revista revestem uma relevância social que lhe imprime a importância fundamental a que se reporta o n.º 1, do artigo 285.º, do CPPT».
Passemos, pois, a indagar se o recurso pode ser admitido à luz dos requisitos de admissibilidade da revista que a Recorrente invocou.

2.2.2 O CASO SUB JUDICE

Estamos no âmbito de uma impugnação judicial de liquidações adicionais de IVA, que foi julgada improcedente pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, julgamento que foi confirmado pelo Tribunal Central Administrativo Norte mediante acórdão que é o objecto do presente recurso.
Apesar de a Recorrente sustentar que a AT invoca «como fundamento para a emissão de uma liquidação adicional de IVA, a ausência de prova da natureza efectiva dos serviços adquiridos pelo sujeito passivo» e que a fundamentação utilizada pela AT para suportar as liquidações impugnadas «remete para a existência de fraude», a factualidade que foi dada como assente não autoriza essa conclusão. Vejamos:
Da factualidade que foi dada como provada resulta que o motivo por que não foi admitida a dedução do IVA constante das facturas em causa foi o de o descritivo das operações nelas mencionadas não permitir averiguar se estas se referem a serviços adquiridos pela sociedade Recorrente para a realização das operações enunciadas no art. 20.º do CIVA. Tenha-se presente que estão em causa facturas em que os serviços prestados por uma terceira sociedade à ora Recorrente foram descritas nos seguintes termos: «Consultoria na área de gestão e negócios, planeamento e controle» e «Despesas de representação – deslocações, combustíveis e estadias».
Recordemos aqui o que, a propósito, ficou dito na proposta de relatório e no relatório final dos serviços de inspecção tributária (que constituem a fundamentação formal dos actos impugnados), que incorporou aquela proposta:
- na proposta de relatório, «[…] III – Descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas à matéria tributável… III.1 Facturas de serviços prestados pela empresa V...… No âmbito da análise efectuada, foram detectadas diversas facturas contabilizadas na conta «62232 – Trabalhos especializados», em 2008 e 2009, cujos documentos de suporte são facturas emitidas pela empresa V..., Unipessoal, Lda. Da análise dos extractos e documentos de suporte, constata-se que os documentos são emitidos com periodicidade mensal, constando duas facturas por mês, com o descritivo genérico e muito vago de «Consultoria na área de gestão e negócios, planeamento e controle» e «Despesas de representação – deslocações, combustíveis e estadias», com valores de € 6.000,00+IVA e € 1.500,00+IVA, respectivamente… Até à data não foi apresentada qualquer prova documental que permita aferir da natureza efectiva dos serviços prestados e que permita comprovar… a sua conexão com as operações tributáveis, nos termos do art. 20.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA)…Assim, nos termos dos referidos artigos 23.º do CIRC e 20.º do CIVA, não serão aceites para efeitos fiscais os custos contabilizados e o IVA dedutível por período constante dos quadros seguintes…Correcção em sede de IVA dedutível:0801 a 0804 e 0806 a 0812: 1575,00 (ndr: por período) e 0805: 3.150…”»;
- no relatório, «[…] Relativamente às correcções propostas no ponto «III.1 – Facturas de serviços prestados pela empresa V...»…conforme referido no ponto III.1, nunca foi apresentada qualquer prova documental que permita aferir da natureza efectiva dos serviços prestados e que permita comprovar… a sua conexão com as operações tributáveis… Nos parágrafos 62.º e seguintes o contribuinte vem alegar falta de fundamentação, referindo que os argumentos apresentados no relatório foram apenas relativos a «aspectos formais das facturas» e «afirmações do sócio-gerente». Obviamente que a fundamentação das correcções não se limita a estes argumentos e fundamenta-se principalmente na falta de provas por parte da empresa que permita concluir da natureza dos serviços efectivamente prestados e assim permita concluir da indispensabilidade dos mesmos… Face ao exposto, tendo em conta que em vários parágrafos do exercício do direito de audição são retiradas conclusões infundadas e não tendo sido apresentado qualquer argumento/prova adicional a comprovar que os serviços em causa foram prestados e a sua natureza em concreto, somos de parecer de manter as correcções propostas no projecto de relatório, constantes do ponto III.1».
Com base nessa fundamentação, quer o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga quer o Tribunal Central Administrativo Norte entenderam que a AT procedeu às liquidações adicionais de IVA porque considerou que o descritivo usado nas referidas facturas não permitia saber qual a efectiva natureza das operações nelas mencionadas e, assim, também não permitia estabelecer a sua conexão com as operações tributáveis, exigida pelo art. 20.º do CIVA.
Esta interpretação dos fundamentos aduzidos pela AT como suporte das liquidações afigura-se-nos correcta. Salvo o devido respeito, apesar de a Recorrente pretender que a AT suportou as liquidações adicionais na existência de fraude decorrente na inexistência das operações a que aludem as facturas, a fundamentação daqueles actos não autoriza essa interpretação. Admitimos que a expressão “não foi apresentada qualquer prova documental que permita aferir da natureza efectiva dos serviços prestados” possa, numa primeira leitura, gerar algumas dúvidas, mas estas seguramente se dissiparão após uma leitura mais atenta (a suficiência da fundamentação afere-se pela óptica de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487.º, nº 2, do Código Civil), que não autoriza outro entendimento senão o de que a AT, quando refere a “natureza efectiva dos serviços prestados” se refere exclusivamente ao conteúdo das operações e não à sua existência; a não ser assim, nunca se compreenderia que, imediatamente a seguir, aludisse à «sua conexão com as operações tributáveis».
Esse erro na determinação do sentido da fundamentação dos actos impugnados – que não decorre da falta de clareza dos fundamentos externados, mas da menos atenta leitura dos mesmos –, em que parece ter incorrido a ora Recorrente, inquina todas as questões que ora pretende ver apreciadas por este Supremo Tribunal.
Somos, pois, levados a concluir que as questões suscitadas pela Recorrente em sede de revista assentam em pressupostos que não são os que respeitam à situação sub judice, o que afasta a possibilidade de admissão do recurso, por se não verificarem os respectivos requisitos de admissibilidade.

2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional, previsto no art. 285.º do CPTT, visa funcionar como “válvula de segurança” do sistema, sendo admissível apenas se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão do recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, cumprindo ao recorrente alegar e demonstrar a factualidade necessária para integrar a verificação dos referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis).

II - Não é de admitir a revista se o recurso assenta num pressuposto – designadamente quanto à fundamentação do acto impugnado – que não é correcto e, por esse motivo, as questões que pretende sujeitar ao Supremo Tribunal não poderiam influir na decisão a proferir.


* * *

3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em não admitir o presente recurso.

Custas pela Recorrente.
Lisboa, 25 de Janeiro de 2023. - Francisco Rothes (relator) - Aragão Seia - Isabel Marques da Silva.