Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:071/23.1BALSB
Data do Acordão:02/21/2024
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IMPOSTO SOBRE VEÍCULO
REENVIO PREJUDICIAL
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DAS COMUNIDADES EUROPEIAS
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Sumário:I - O recurso para o Supremo Tribunal Administrativo de decisão arbitral de mérito por oposição quanto à mesma questão fundamental de direito com outra decisão do tribunal arbitral (previsto pelo n.º 2 do art. 25.º do RJAT), pressupõe que se verifique entre ambas as decisões arbitrais oposição quanto à mesma questão fundamental de direito e que a orientação perfilhada na decisão recorrida não esteja de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo (n.º 3 do art. 152.º do CPTA, aplicável ex vi do n.º 3 do art. 25.º do RJAT).
II - Há oposição quanto à mesma questão fundamental de direito sempre que as decisões em confronto são tomadas num circunstancialismo fáctico substancialmente idêntico e por referência à mesma disciplina jurídica.
III - Impondo-se o reenvio prejudicial ao TJUE para que se pronuncie sobre a conformidade do disposto no art. 11.º do CISV, na redacção que lhe foi dada pelo art. 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, com o disposto no art. 110.º do TFUE e com o que resulta do acórdão C-169/20 e tendo o reenvio sido já ordenado noutro processo a correr termos neste Supremo Tribunal, é de suspender a instância até que o TJUE se pronuncie.
Nº Convencional:JSTA000P31939
Nº do Documento:SAP20240221071/23
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:AA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso por oposição de decisões arbitrais

1. RELATÓRIO

1.1 Em representação da AT, veio a Fazenda Pública interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 25.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro.), da decisão arbitral proferida pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) em 21 de Abril de 2023 no processo n.º 527/2022-T (Disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?id=7080.). Invocou oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com a decisão proferida pelo CAAD em 28 de Novembro de 2022, no processo n.º 481/2022-T, já transitada em julgado (Disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?id=6842.) e apresentou alegações, com conclusões do seguinte teor:

«A. A Autoridade Tributária e Aduaneira vem, nos termos do artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável por força do artigo 25.º, n.ºs 2 e 3, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), interpor recurso para esse Supremo Tribunal Administrativo da Decisão Arbitral proferida em 21/04/2023 no Processo n.º 527/2022-T, por contradição com a Decisão Arbitral proferida em 28/11/2022 no Processo n.º 481/2022-T, no respeitante à condenação da AT à anulação parcial da liquidação impugnada (e consequente reembolso da respetiva quantia, bem como do pagamento de juros indemnizatórios) efectuada ao abrigo da nova/actual redacção do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, na redacção introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro.

B. A Decisão Arbitral recorrida colide frontalmente com a Decisão Arbitral que se indica como fundamento, relativamente ao entendimento da conformidade do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, na redacção introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, com o Direito da União Europeia, concretamente com o artigo 110.º do TFUE.

C. A Decisão Arbitral recorrida considerou que o n.º 1 do artigo 11.º do CISV, na redacção introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, é incompatível com o artigo 110.º do TFUE na medida em que sujeita os veículos usados provenientes de outros Estados- Membros a uma carga tributária superior à do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional, o que consubstancia uma discriminação proibida pelo referido artigo do TFUE, e implica que, consequentemente, a norma do artigo 11.º do CISV seja ilegal.

D. De acordo com a mesma decisão, com referência à actual redacção do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, a alteração legislativa foi insuficiente, na medida que estabeleceu taxas percentuais diferenciadas para cada uma das componentes (componente cilindrada e componente ambiental), permitindo a persistência de uma concreta discriminação entre veículos originariamente registados em território nacional e os veículos usados provenientes de outro Estado-Membro.

E. Laborando neste erro, decidiu o Tribunal Arbitral, em contradição total com a Decisão Arbitral fundamento, pela anulação parcial da liquidação de ISV impugnada, condenando a AT a devolver o valor de imposto pago em excesso pelo Requerente, acrescido de juros indemnizatórios.

F. A Decisão Arbitral fundamento, proferida no processo 481/2022-T, em 28/11/2022, tendo por base também acto tributário de liquidação de Imposto Sobre Veículos efectuado ao abrigo da actual redacção do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro (cf. pontos 31 e 36 das págs. 14 e 16, da decisão) entendeu que a nova redacção está em conformidade com o Direito da União Europeia, pugnando pela sua compatibilidade com o artigo 110.º do TFUE e com a jurisprudência comunitária.

G. A mesma decisão fundamento defende que relativamente à componente ambiental há uma certa liberdade conformadora do imposto pelo legislador nacional, pois desde que ele tenha adoptado critérios objetivos, de todos conhecidos e a todo o momento verificáveis, nada obriga a que as regras que funcionam para a componente cilindrada tenham necessariamente de ser aplicáveis à componente ambiental, estando neste caso justificada a diferenciação que se estabelece entre as diferentes percentagens por tempos de uso consoante as componentes.

H. Na Decisão fundamento, o tribunal arbitral, considerando que, não sendo o artigo 11.º, n.º 1, do CISV incompatível com a jurisprudência comunitária dimanada da interpretação do artigo 110.º do TJUE, decidiu manter o acto de liquidação impugnado.

I. Deste modo, a decisão Arbitral sob recurso considerou que o n.º 1 do artigo 11.º do CISV, na redacção introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, não está em conformidade com o artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia e não reflecte, porque insuficiente, a doutrina que resulta do acórdão do TJUE, de 2 de Setembro de 2021, no Processo C-169/20, e a decisão Arbitral fundamento decidiu, no que se refere à legalidade da liquidação efectuada em aplicação do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, na redacção introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, que esta foi efectuada em conformidade com a lei nacional em vigor e com o direito comunitário, cumprindo o disposto no artigo 110.º do TFUE, e a jurisprudência comunitária, e que a alteração ao n.º 1 do art. 11.º do CISV, na redacção dada pelo art.º 391º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, está de acordo com a decisão do TJUE proferida no Processo C-169/20.

J. Demonstrada está, assim, uma evidente contradição entre a Decisão recorrida e a Decisão fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito que se prende com a conformidade com o Direito da União Europeia, concretamente com o disposto no artigo 110.º do TFUE, de liquidações de ISV efectuadas ao abrigo da redacção do n.º 1 do artigo 11.º do CISV introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, que aprovou a Lei do Orçamento de Estado para 2021, que importa dirimir, mediante a admissão do presente recurso e consequente anulação da decisão contestada, com substituição da mesmo por nova Decisão que determine a improcedência do pedido de anulação parcial do acto de liquidação de ISV, com todas as consequências legais, ao abrigo do n.º 6 do artigo 152.º do CPTA.

K. A infração a que se refere o n.º 2 do artigo 152.º do CPTA traduz-se num manifesto erro de julgamento expresso na decisão recorrida, na medida em que a Decisão Arbitral Recorrida considera que o n.º 1 do artigo 11.º do CISV, na redacção introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, que aprovou a Lei do Orçamento de Estado para 2021, não está em conformidade com o disposto no artigo 110.º do TFUE, ao prever taxas de redução distintas às componentes cilindrada e ambiental a aplicar na tributação dos veículos admitidos de outro Estado-Membro da União Europeia.

L. A anterior redacção do n.º 1, do artigo 11.º do CISV, de 29 de junho, dada pela Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro de 2016, e a sua conformidade com o Direito da União Europeia, designadamente com o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE – por não prever a aplicação de percentagens de redução à componente ambiental do ISV, previstas apenas para a componente cilindrada – foi objeto de diversos litígios no tribunal arbitral tributário, e veio a dar lugar ao pedido de reenvio prejudicial para o TJUE, no âmbito do qual veio a ser proferido o acórdão do TJUE, de 2 de Setembro de 2021, no Processo C-169/20.

M. Aquela norma não previa a aplicação de percentagens de redução à componente ambiental do ISV, previstas apenas para a componente cilindrada, no cálculo do valor do imposto aplicável aos veículos usados admitidos no território nacional e adquiridos noutros Estados-Membros.

N. Através da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, que aprovou a Lei do Orçamento de Estado para 2021, o legislador nacional procedeu à alteração da redacção do n.º 1, do artigo 11.º do CISV, passando este a prever que os veículos usados provenientes de Estados-Membros da União Europeia beneficiem de redução sobre a componente ambiental do ISV à semelhança do que já sucedia com a componente cilindrada do ISV, conforme resulta das percentagens constantes da tabela D constante daquela norma.

O. Conforme resulta da Proposta de Lei do Orçamento de Estado para 2021, a nova redacção n.º 1 do artigo 11.º do CISV, teve, precisamente, em vista: “(…) salvaguardar os ambiciosos objetivos ambientais do País e a incorporar o essencial das preocupações levantadas pela Comissão Europeia em matéria de compatibilidade com o direito europeu” prevendo-se “à semelhança do que já sucede

com a componente cilindrada do ISV, que os veículos usados provenientes de Estados–membros da União Europeia passem a beneficiar de um desconto sobre a componente ambiental do ISV, o qual, ao contrário do que sucede com a componente cilindrada, não estará associado à desvalorização comercial dos veículos, mas antes à sua vida útil média remanescente (medida pela idade média dos veículos enviados para abate), por se entender que a mesma é uma boa métrica do horizonte temporal de poluição do veículo, assegurando-se, deste modo, que os carros poluentes serão justamente tributados à entrada em Portugal”.

P. Não podem, por conseguinte, ser imputados aos actos de liquidação efectuados ao abrigo da actual redacção do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, qualquer vício de violação do Direito da União Europeia, mormente do artigo 110.º do TFUE, por não ter sido aplicada a redução de anos de uso à componente ambiental, porque a nova redacção do n.º 1 do artigo 11.º já prevê, na Tabela D, percentagens de redução para a componente ambiental.

Q. A Decisão arbitral, ora recorrida, entende, não obstante, que a actual redacção do n.º 1 do artigo 11.º do CISV ao estabelecer taxas percentuais diferenciadas para cada uma das componentes, cilindrada e ambiental, permite a persistência de uma discriminação entre os veículos registados em território nacional e os veículos provenientes de outro Estado-Membro, declarando que a alteração legislativa foi insuficiente e que, por isso, aquela norma é ilegal.

R. Já a Decisão fundamento (cf. págs. 14 e 17 da decisão), na senda do acórdão do processo C-290/05, defende que o critério ambiental é um critério objetivo, e que havendo uma certa liberdade conformadora do imposto pelo legislador nacional desde que ele tenha adoptado critérios objectivos, de todos conhecidos e a todo o momento verificáveis, nada obriga a que as regras que funcionam para a componente cilindrada tenham necessariamente de ser aplicáveis à componente ambiental, estando neste caso justificada a diferenciação que se estabelece entre as diferentes percentagens por tempos de uso consoante as componentes.

S. No mesmo sentido da decisão fundamento, pronunciam-se igualmente as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 350/2021-T e 349/2022-T, já transitadas em julgado, sendo que a decisão do processo n.º 350/2021-T, refere, quanto à possibilidade de aplicação de diferentes taxas de redução à componente cilindrada e à competente ambiental do imposto, que o legislador nacional optou por aplicar percentagens de redução de ISV diferenciadas que, ao contrário do que sucede com a componente cilindrada, não estão associadas à desvalorização comercial dos veículos, mas antes à sua vida útil média remanescente, medida pela idade média dos veículos enviados para abate, por se entender que a mesma é uma boa métrica do horizonte temporal de poluição do veículo, assegurando-se, deste modo, que os carros poluentes serão justamente tributados à entrada em Portugal, não tendo o Tribunal de Justiça entendido que a percentagem de redução teria de ser a mesma para as duas componentes.

T. A Jurisprudência e a Doutrina têm entendido que o regime estabelecido no artigo 152.º do CPTA para os recursos para uniformização da jurisprudência, destina-se a obter decisão que fixe a orientação jurisprudencial nos casos em que se verifiquem os seguintes pressupostos: i) existência de decisões contraditórias entre acórdãos do STA ou deste e do TCA ou entre acórdãos do TCA; ii) contraditoriedade decisória “sobre a mesma questão fundamental de direito”; iii) verificação do trânsito em julgado, quer do acórdão recorrido, quer do acórdão fundamento, devendo o recurso se mostrar interposto no prazo de 30 dias contado do trânsito do acórdão recorrido; iv) não conformidade da orientação perfilhada no acórdão impugnado com a jurisprudência mais recentemente consolidada do STA; a oposição deverá decorrer de decisões expressas, não bastando a pronúncia implícita ou a mera consideração colateral, tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.

U. O Regime Jurídico da Arbitragem Tributária prevê, no artigo 25.º, n.ºs 2 e 3, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é suscetível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral, sendo-lhe aplicável, com as necessárias adaptações o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

V. No caso vertente encontram-se preenchidos todos os requisitos de admissibilidade impostos pelo artigo 152.º do CPTA, designadamente os enunciados no Acórdão do Pleno do STA de 21/04/2016, proferido no processo n.º 0698/15, quanto à contradição da mesma questão fundamental de direito, que pressupõe “identidade essencial quanto à matéria litigiosa”, conforme o Acórdão do S.T.J. de 02/02/2017, proferido no Proc. 4902/14.9T2SNT.LI.SI-A.

W. Está em causa a aplicação de forma diversa dos mesmos preceitos legais em situações fácticas substancialmente idênticas, não se entendendo estas como total identidade dos factos, mas apenas a sua subsunção às mesmas normas legais, na linha do entendimento de Jorge Lopes de Sousa e do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no recurso n.º 87156, de 26/04/1995.

X. Decorre, de todo o exposto, que a Decisão Arbitral recorrida evidencia manifesta contradição quanto à mesma questão fundamental de direito com a Decisão fundamento, devendo a decisão recorrida ser substituída por nova decisão que julgue improcedente o pedido de anulação parcial do acto de liquidação de ISV.

Termos em que deve o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência ser admitido por se mostrar verificada a contradição entre a Decisão Arbitral proferida no Processo 527/2022-T, em 21.04.2023 e a Decisão Arbitral fundamento, proferida no Processo n.º 481/2022-T, em 28/11/2022, devendo, em consequência, o mesmo ser julgado procedente e, nos termos e com os fundamentos acima indicados, ser revogada a Decisão Arbitral de anulação parcial da liquidação de ISV impugnada, com todas as consequências legais».

1.2 O Recorrido não contra-alegou.

1.3 Dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer no sentido de que «deve ser conhecido o mérito do presente recurso e neste sentido, deve a presente instância ser suspensa, considerando a necessidade de proceder ao reenvio prejudicial para o TJUE, nos termos do artigo 267.º do TFUE, da questão da conformidade do artigo 11.º do CISV, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31.12, com o artigo 110.º do TFUE».

1.4 Cumpre apreciar e decidir, sendo que, primeiro, há que examinar se estão verificados os requisitos da admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência.
Só se concluirmos pela verificação desses requisitos, passaremos a conhecer do mérito do recurso, ou seja, da infracção imputada à decisão arbitral recorrida [cf. art. 152.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)].
Nesse caso, antes de passarmos ao conhecimento do mérito impor-se-á verificar da necessidade de proceder ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, ao abrigo do disposto no art. 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), da questão da conformidade do art. 11.º do Código do Imposto sobre Veículos (CISV), na redacção que lhe foi conferida pelo art. 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2021, com o art. 110.º do TFUE.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

2.1.1 A decisão arbitral recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

«A. O ora Requerente introduziu em Portugal, em 5/8/2022 e 16/8/2022, os seguintes veículos automóveis ligeiros usados, provenientes da Alemanha, país membro da União Europeia: - Marca Ferrari, Modelo F 151, a que foi atribuída a matrícula ...; - Marca Rolls-Royce, Modelo Ghost Family, a que foi atribuída a matrícula ... . Veículos que tiveram a sua primeira matrícula no referido país de origem.

B. Conforme resulta dos elementos constantes do PA apenso aos autos, e relativos aos procedimentos atinentes às Declarações Aduaneiras de Veículo (DAVs) n.ºs, respetivamente, 2022/..., com data de 16/8/2022, e 2022/..., com data de 5/8/2022, ambas da Alfândega de Leixões, relativo a ISV, tendo sido as referidas DAVs apresentadas naquela instância aduaneira, por transmissão electrónica de dados, para introdução no consumo dos veículos, ligeiros de passageiros, usados, provenientes da Alemanha. Com referência às mencionadas DAVs, apresentadas pelo ora Requerente, operador sem estatuto, foram declarados os veículos ligeiros de passageiros da marca Rolls-Royce e Ferrari, usados, acima referidos e cujas características constam das inscrições dos Quadros E, para os quais aqui se remete (vd. PA apenso).

C. A liquidação e o cálculo do montante de imposto foram efetuados de acordo com os artigos 7.º e 11.º, n.º 1, do CISV, tendo sido aplicadas, conforme resulta do Quadro R da DAV, as reduções previstas nas tabelas A e D para os veículos ligeiros de passageiros, com referência à componente cilindrada e à componente ambiental, de acordo com as características do veículo, nos termos dos referidos artigos do CISV.

D. Dos Quadros T das declarações consta a identificação do acto de liquidação e data da liquidação (IL n.º 2022/..., de 11/8/2022, e IL nº 2022/..., de 4/8/2022), montante, termo final do prazo de pagamento (que, em ambos os casos, ocorreu em 31/8/2022), data de cobrança e a identificação do autor do acto (quadro V).

E. A AT liquidou ISV no montante de €20.687,43 quanto ao veículo da marca Ferrari, e € 27.524,32 quanto ao veículo da marca Rolls-Royce. Do valor total de ISV liquidado (e que foi pago pelo requerente), € 16.619,93 [= € 9.850,40 + € 6.769,53] correspondem à componente cilindrada e € 31.591,82 [= € 17.673,92 + € 13.917,90] à componente ambiental (vd. Docs. 1 e 2 apensos aos autos).

F. O Requerente alega que, quanto à componente ambiental, o ISV foi liquidado por mais € 11.460,81 – um “excesso [que] [...] resulta da aplicação das percentagens de redução de 28% e 43%, quando deveria ter aplicado as percentagens de 52% e 65%, respectivamente, percentagens que foram aplicadas à componente cilindrada”. Por essa razão, o Requerente considera que a liquidação deve ser corrigida, “reduzindo-se o valor do ISV a pagar para o valor de € 36.750,94”, e que deve ser “restituído ao Impugnante o [acima referido] montante de € 11.460,81”. Para o Requerente, a actual redacção do n.º 1 do art. 11.º do CISV “viola o direito europeu – art. 110.º do TFUE”.

G. A 1/9/2022, o Requerente apresentou o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação parcial das liquidações de ISV ora em causa, assim como a restituição do montante de € 11.460,81, acrescido de juros indemnizatórios».


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2.1.2 A decisão arbitral fundamento deu como provada a seguinte factualidade:

«15.1 O Requerente procedeu à introdução no consumo por via da apresentação na Alfândega de Leixões da DAV n.º 2022/..., de 11.03.2022, do veículo ligeiro de passageiros da marca «...»», Modelo DA3, com o n.º de chassis ..., de ... centímetros cúbicos de cilindrada e 225 g/Km de emissões de dióxido de carbono, com a anterior matrícula definitiva da República de Espanha ..., atribuída pela primeira vez em 02.09.2009, e a que veio a ser atribuída a matrícula nacional ... .

15.2 O veículo move-se a gasolina, foi declarado aos serviços aduaneiros como tendo 90 288 quilómetros no conta quilómetros, e teve um valor de aquisição de 28 000 €.

15.3 O referido veículo foi sujeito à liquidação do ISV de 5526,49 €, em 09.03.2022, correspondendo 1437,98 €, a título de componente cilindrada, e 4088,51 €, a título de componente ambiental, tendo a referida importância sido paga em 11.03.2022.

15.4 O imposto foi formado a partir do cálculo das taxas em vigor para os veículos novos, com uma redução de 80%, na componente cilindrada, por força da aplicação de uma tabela escalonada em função dos tempos de uso, até 10 anos, e uma redução de 65% na componente ambiental, por força de uma tabela escalonada, em função dos tempos de uso, até 15 anos».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.2.1.1 DOS REQUISITOS DA ADMISSIBILIDADE

Constituem requisitos de admissibilidade do presente recurso:

i) que a decisão arbitral se tenha pronunciado sobre o mérito da pretensão deduzida e tenha posto termo ao processo arbitral (art. 25.º, n.º 2, primeira parte, do RJAT);

ii) que esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo (art. 25.º, n.º 2, segunda parte, do RJAT);

iii) que a orientação perfilhada na decisão arbitral não esteja de acordo com a jurisprudência mais recente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo [art. 152.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi do n.º 3 do art. 25.º do RJAT].

iv) que a decisão arbitral fundamento tenha transitado em julgado [art. 688.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do disposto no art. 140.º, n.º 3, do CPTA e no art. 281.º do CPPT].

2.2.1.2 DA OPOSIÇÃO

Não havendo dúvidas quanto à verificação do primeiro requisito enunciado, passemos de imediato à apreciação do requisito que enunciámos sob o n.º ii), dizendo, desde já, que é de considerar que a questão fundamental de direito é a mesma quando as situações fácticas em ambas as decisões arbitrais sejam substancialmente idênticas, entendendo-se como tal, para este efeito, as que sejam subsumidas às mesmas normas legais e cujo quadro legislativo seja também substancialmente idêntico, o que sucederá quando seja o mesmo o regime jurídico aplicável ou quando as alterações legislativas a relevar num dos acórdãos não interfiram, nem directa nem indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida; entende-se também que as duas decisões arbitrais estão em oposição entre si quando se opõem as decisões respectivas, não bastando que se oponham os seus fundamentos.
A Recorrente identificou como questão de direito decidida em sentido divergente pelos acórdãos em confronto a da conformidade com o Direito da União Europeia, designadamente com o disposto no art. 110.º do TFUE, das liquidações de ISV efectuadas em 2022, ao abrigo da redação do n.º 1 do art. 11.º do CISV em vigor à data, que é a introduzida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, que aprovou a Lei do Orçamento de Estado para 2021. Dito de outro modo, a questão que se coloca consiste em saber se a referida redacção do n.º 1 do art. 11.º do CISV está em conformidade com o Direito da União Europeia, designadamente com o disposto no art. 110.º do TFUE, ao prever distintas taxas de redução nas componentes cilindrada e ambiental do imposto que recai sobre a importação de veículos usados de outros Estados-Membros da União Europeia.
Tendo como pano de fundo essa questão, vejamos o que a esse propósito ficou dito em cada uma das decisões arbitrais em confronto:
Na decisão arbitral recorrida está em causa um pedido de anulação parcial das liquidações de ISV, relativamente à admissão de dois veículos usados no território nacional em 2022, com a invocação de que, na redução prevista no art. 11.º do CISV, foram aplicadas, quanto à componente ambiental, «as percentagens de redução de 28% e 43%, quando deveria ter aplicado as percentagens de 52% e 65%, respectivamente, percentagens que foram aplicadas à componente cilindrada».
O Tribunal arbitral julgou procedente a pretensão do contribuinte, no entendimento de que a redacção dada ao art. 11.º do CISV pelo art. 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro – apesar de pretender pôr termo às críticas que vieram a ser assumidas pelo TJUE no acórdão proferido em 2 de Setembro de 2021 no processo C-169/20 – não impede que a discriminação negativa dos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estados-Membros (comparativamente à tributação dos veículos originariamente registados em território português) se mantenha, embora por valores inferiores àqueles que vinham sendo praticados até 31 de Dezembro de 2020, termos em que entende que a violação do art. 110.º do TFUE se mantém, na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transaccionados no mercado nacional.
Por sua vez, na decisão arbitral fundamento estava em causa o pedido de anulação de liquidação de ISV efectuada em 2022 na parte em que, ao abrigo do n.º 1 do art. 11.º do CISV, na redação introduzida pela Lei nº 75-B/2020, de 31 de Dezembro, foi feita uma redução de 28% na componente ambiental, ao invés de, como na redacção na componente cilindrada, se ter feito uma redução de 52%.
O tribunal arbitral entendeu, após invocar o entendimento sufragado pelo TJUE na decisão proferida já referido processo C-169/20, «que o artigo 11.º, n.º 1 do CISV, ao prever, na admissão de veículos usados provenientes de outros Estados-Membros da União Europeia, reduções do imposto diferenciadas em função dos tempos de uso, consoante se trate da componente cilindrada ou da componente ambiental, que não tenham exclusivamente em conta o preço, seja incompatível com a jurisprudência comunitária dimanada da interpretação do artigo 110.º do TJUE, contanto que as componentes que integram o imposto assentem em critérios objetivos e verificáveis».
Por isso, julgou improcedente o pedido de declaração de ilegalidade daquele acto de liquidação de ISV na parte respeitante à componente ambiental
Como decorre do exposto, ambas as decisões arbitrais se debruçaram sobre a aplicação do n.º 1 do art. 11.º do CISV, na redacção introduzida pelo art. 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro e adoptaram soluções divergentes.
Não havendo, por enquanto, jurisprudência deste Supremo Tribunal sobre a questão tendo por base a aplicação do n.º 1 do art. 11º do CISV, na redação introduzida pelo art. 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, haverá, pois que conhecer do mérito do recurso.

2.2.2 DO MÉRITO DO RECURSO – SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA

Antes de passar ao conhecimento do mérito, há que ter presente que no acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal, proferido em 22 de Novembro de 2023, no processo n.º 25/23.8BALSB (Disponível em https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/e8cd36f13c5f373980258a75003f3545.), em que se colocava questão idêntica à dos presentes autos, foi determinado o reenvio prejudicial para o TJUE para apreciação da seguinte questão: «o artigo 110.º do TFUE e os comandos ínsitos no acórdão do TJUE n.º C-169/20, são afrontados pela alteração legislativa de 2020 do artigo 11.º do CISV, que estabeleceu as regras de desvalorização da componente ambiental, mas em que a desvalorização da componente ambiental obedece a critérios distintos da desvalorização da componente da cilindrada, o que implica taxas de desvalorização distintas e, nessa medida, poderá acarretar um efeito discriminatório sobre os veículos usados importados de outros países da União?»
Enquanto a questão estiver pendente de apreciação no TJUE, impõe-se, atento o disposto nos termos dos arts. 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, suspender os presentes autos de recurso, o que se determinará até à emissão de pronúncia por aquele Tribunal.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso para o Supremo Tribunal Administrativo de decisão arbitral de mérito por oposição quanto à mesma questão fundamental de direito com outra decisão do tribunal arbitral (previsto pelo n.º 2 do art. 25.º do RJAT), pressupõe que se verifique entre ambas as decisões arbitrais oposição quanto à mesma questão fundamental de direito e que a orientação perfilhada na decisão recorrida não esteja de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo (n.º 3 do art. 152.º do CPTA, aplicável ex vi do n.º 3 do art. 25.º do RJAT).

II - Há oposição quanto à mesma questão fundamental de direito sempre que as decisões em confronto são tomadas num circunstancialismo fáctico substancialmente idêntico e por referência à mesma disciplina jurídica.

III - Impondo-se o reenvio prejudicial ao TJUE para que se pronuncie sobre a conformidade do disposto no art. 11.º do CISV, na redacção que lhe foi dada pelo art. 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, com o disposto no art. 110.º do TFUE e com o que resulta do acórdão C-169/20 e tendo o reenvio sido já ordenado noutro processo a correr termos neste Supremo Tribunal, é de suspender a instância até que o TJUE se pronuncie.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes do Pleno da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em:

- julgar verificada a oposição de julgados;

- suspender os presentes autos até que seja proferida decisão pelo TJUE no reenvio prejudicial a que se procedeu no processo n.º 25/23.8BALSB, devendo o acórdão que vier a ser proferido pelo TJUE ser junto a este processo.

Custas a determinar a final.

Solicite ao processo n.º 25/23.8BALSB que comunique logo que haja decisão do TJUE.


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Lisboa, 21 de Fevereiro de 2024. – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia – Isabel Cristina Mota Marques da Silva – José Gomes Correia – Joaquim Manuel Condesso Charneca – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – Gustavo André Simões Lopes Courinha – Pedro Nuno Pinto Vergueiro – Anabela Ferreira Alves e Russo – Fernanda de Fátima Esteves.