Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02046/04.0BELSB 0808/18
Data do Acordão:10/14/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:DIREITO DE AUDIÊNCIA
AUDIÊNCIA PRÉVIA
ANULABILIDADE
Sumário:I - A falta de audiência prévia à decisão administrativa, quando não seja legalmente dispensada, constitui preterição de formalidade essencial, conducente, em regra, à anulabilidade do acto (cfr. art. 135.º do CPA antigo, a que corresponde o n.º 1 do art. 163.º do actual CPA).
II - O afastamento do efeito anulatório por preterição do direito de audiência, por via da aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo, apenas pode ocorrer quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insusceptível de influenciar a decisão final, o que acontece, em geral, nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de actividade administrativa vinculada.
Nº Convencional:JSTA000P26504
Nº do Documento:SA22020101402046/04
Data de Entrada:10/11/2019
Recorrente:SECRETÁRIO DE ESTADO DOS ASSUNTOS FISCAIS
Recorrido 1:A.........., SGPS, SA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional do acórdão proferido na acção administrativa especial com n.º 2046/04.0BELSB pelo Tribunal Central Administrativo Sul (onde o processo teve o n.º 709/05)

1. RELATÓRIO

1.1 O Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (adiante também denominado Entidade demandada ou Recorrente) recorre para o Supremo Tribunal Administrativo do acórdão por que o Tribunal Central Administrativo Sul, julgando procedente o pedido impugnatório formulado em acção administrativa pela sociedade acima identificada (adiante também denominada Autora ou Recorrida), anulou o acto impugnado, de indeferimento do pedido de dedução de prejuízos fiscais apurados por uma sociedade incorporada, por preterição do direito de audiência prévia (bem assim como condenou a Entidade demandada a retomar o procedimento expurgado dessa ilegalidade), apresentando para o efeito alegações que contém as seguintes conclusões:

«A) O acórdão ora recorrido fez, salvo o devido respeito, uma incorrecta interpretação e aplicação do art. 60.º da LGT e al. a) do n.º 1 do art. 103.º do CPA aos factos.

B) Antes de mais, a natureza urgente do procedimento então previsto no art. 69.º do CIRC é de considerar como circunstância que, pela sua excepcionalidade e pela incompatibilidade com a duração mínima do procedimento de audição dos interessados, justifica a preterição da formalidade da audição prévia, de acordo com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 103.º do CPA [aplicável por força da alínea c) do artigo 2.º da LGT].

C) No caso sub judice, atenta a proximidade do prazo para o deferimento tácito já não era possível cumprir a formalidade da audição da ora recorrida sem que se comprometesse a utilidade da decisão.

D) Conforme se deliberou no Ac. do STA de 22/10/12, Proc. 708/12, sendo certo que o direito de participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes dizem respeito tem de ser norteado pelo princípio superior da salvaguarda dos seus direitos ou interesses legítimos na feitura de uma decisão que se deseja correcta, não o é menos que tal exercício não deve criar obstáculos a situações objectivas de urgência legal.

E) Donde, o curtíssimo prazo concedido à administração tributária para a decisão do pedido, conjugado com a obrigatoriedade de o sujeito passivo apresentar imediatamente toda a prova no requerimento onde formula a sua pretensão, revela o carácter urgente do procedimento tributário, o que legitimaria, in casu, face a um eventual esgotamento do prazo para o terminus do procedimento, a dispensa da formalidade da audição prévia.

Ainda que assim não se entenda, sem conceder:

F) Contrariamente ao ora deliberado, no caso em concreto, a preterição do direito de audição prévia não teria a mínima probabilidade de influenciar a favor do contribuinte a decisão tomada impondo-se, assim, o aproveitamento do acto e, consequentemente, determinar que o acto permaneça na sua estabilidade e vigência no ordenamento jurídico.

G) No caso dos autos, como decorre do acórdão recorrido, o que motivou o douto Tribunal a quo foi a circunstância de poder haver matéria sobre a qual a sociedade incorporante se podia pronunciar, uma vez que a entidade demandada havia dito, na fundamentação do acto de indeferimento que: “caso a sociedade incorporada tiver participações em sociedades não residentes e fora da União Europeia e se as tiver adquirido a entidades com as quais existam relações especiais, estará aberta a hipótese de obtenção de vantagens fiscais com a operação de fusão”.

H) Todavia, verifica-se que tal circunstância sobre a qual, no entender do acórdão recorrido era reclamada a intervenção da Autora, era precisamente em desfavor da mesma Autora.

I) Ou seja, ainda que a mesma viesse a pronunciar-se sobre tal questão, a decisão a tomar pela AT seria sempre a mesma, em virtude da aplicação da al. a) do n.º 7 do então art. 67.º do CIRC, conjugado com a al. g) do n.º 1 do art. 33.º do EBF.

J) Assim, contrariamente ao deliberado no Acórdão recorrido, a decisão a tomar pela AT, ainda que a então A. se pronunciasse dizendo que não se verificava a hipotética situação configurada pela mesma AT, nunca deixaria de ser aquela que foi tomada, como, aliás, se alcança do teor da fundamentação que sustenta o acto impugnado, cfr. informação n.º 522/04, da DSIRC, transcrita no ponto B) da matéria de facto dada como provada.

K) Efectivamente, como resulta daquela fundamentação, fosse qual fosse a pronúncia da então A., a aplicação do então n.º 7, al. a) do art. 67.º do CIRC, sempre se imporia à AT.

L) Ainda que a pronúncia da então A. se desse, a decisão da AT não seria diferente da que foi tomada, uma vez que existiria sempre a possibilidade de a mesma A. poder, efectivamente, beneficiar da isenção de IRC a que tem direito.

M) E foi precisamente essa consideração de se estar perante uma sociedade que pode gozar de uma isenção de IRC, presente ou futura, que determinou a decisão de indeferimento.

N) Isto é, ainda que a então A. viesse confirmar que, à data, não usufruía de qualquer isenção de IRC, isso não determinaria, contrariamente ao que foi entendido pelo Acórdão recorrido, que o processo prosseguisse para efeitos de apreciação da pretensão, de fundo, da então A., uma vez que é a própria AT que concede que a mesma não tem usufruído do benefício, conforme comprovou através da consulta ao sistema informático.

O) Pelo que, a decisão da AT, ainda que a então A. se tivesse pronunciado em sede de direito de audição, seria sempre aquela que foi tomada no sentido de que sempre seria de aplicar ao caso a norma constante da então al. a) do n.º 7 do art. 67.º do CIRC.

P) E, assim sendo, a decisão da AT, baseou-se numa mera interpretação de uma norma que afastou a ora recorrida do regime especial previsto para as fusões de sociedades nos então artigos 67.º e 69.º do CIRC.

Q) Aplicação essa que configura uma mera questão de direito e que foi contrariada pela então A. na presente acção, dizendo, precisamente, aquilo que diria em sede de direito de audição e que a AT já sabia, que não beneficiava da isenção, cfr. art. 8.º da p.i.

R) Ou seja, tendo em conta um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas do caso em concreto deveria o Tribunal recorrido, salvo o devido respeito, ter concluído pelo aproveitamento do acto, uma vez que é claro que, ainda que a então A. se pronunciasse em sede de direito de audição, ela apenas viria dizer o que disse e que a AT já sabia, que era o facto de não estar a gozar de isenção de IRC, donde não se suscitam, quaisquer dúvidas em como se verificaria sempre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto.

Por outro lado:

S) A anulação do acto impugnado motivada pelo vício de forma de violação do direito de audição prévia nas circunstâncias factuais em que os presentes autos se circunscrevem, nomeadamente não aplicação do princípio do aproveitamento do acto inválido, é salvo o devido respeito, violadora do Princípio da Proporcionalidade.

T) Assim, a deliberação do Tribunal a quo, ao não aplicar o princípio do aproveitamento do acto, e determinando a anulação do acto de indeferimento do pedido de transmissão de prejuízos fiscais, face às circunstâncias que rodeiam o caso em concreto, não se mostra adequada, nem necessária e muito menos proporcional em sentido estrito.

Termos pelos quais e, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso e ser revogado o Acórdão recorrido, que deve ser substituído por Acórdão que julgue a improcedência da acção e mantenha o acto impugnado, com todas as legais e devidas consequências».

1.2 A Autora apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido, com conclusões do seguinte teor:

«A. Não merece acolhimento o presente recurso na medida em que o Recorrente se limita a fazer uma interpretação errónea do teor do douto acórdão a quo.

B. Acresce que o artigo 103.º do CPA, na redacção então em vigor, não tem aplicação ao procedimento tributário em crise nos presentes autos, cuja questão decidenda se encontra plenamente regulada no artigo 60.º da LGT, maxime no n.º 2 desse mesmo artigo.

C. O presente recurso não traz nada de novo ao que já foi dito pelo Recorrente nos autos a quo.

D. A falta de audição prévia da Recorrida consubstancia preterição de formalidade essencial, violando o artigo 60.º da LGT e o artigo 266.º da CRP».

1.3 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

1.4 Neste Supremo Tribunal, o Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso. Após enunciar o objecto do recurso, resumir a fundamentação de facto e de direito do acórdão recorrido, enunciar a questão a decidir e proceder à sua apreciação, com extensa e pertinente fundamentação doutrinal e jurisprudencial, concluiu nos seguintes termos: «[…]

O caso configurado nos autos e relativo à apreciação de pedido de autorização para a dedução de prejuízos fiscais de sociedade incorporada, apresentado ao abrigo do disposto no artigo 69.º do CIRC, na redacção em vigor em 2004, não configura uma situação de urgência que justifique ou fundamente a omissão da promoção da audiência do contribuinte por parte da Administração Tributária.
No caso concreto não é possível fazer um juízo de prognose póstuma em que se conclua que a decisão tomada no despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, datado de 14/05/2004, exarado sobre a informação n.º 522/04/09 de 10 de Maio de 2004, era a única concretamente possível, ou que a audiência prévia não tinha a mínima possibilidade de influenciar a decisão tomada, em ordem ao aproveitamento do acto.
Afigura-se-nos, assim, que se impõe a confirmação do acórdão recorrido, no sentido da anulação do acto sindicado, por preterição de formalidade legal essencial, decorrente da omissão da promoção do exercício do direito de audição por parte do contribuinte, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 60.º da LGT».

1.5 Cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

O acórdão recorrido deu como provada a seguinte factualidade:

«A) Em 10 de Janeiro de 2003, a Autora mediante requerimento dirigido ao Ministro das Finanças, solicitou ao abrigo do artigo 69.º do CIRC, autorização para a dedução de prejuízos fiscais pela sociedade “B……………………., Lda.” (Doc. junto ao p.a. não numerado).

B) Em 10 de Maio de 2004, foi emitida Informação n.º 522/04/09 pela Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, sob o assunto: «Dedução de Prejuízos» da qual se extraíram as seguintes conclusões:
«9. De acordo com a alínea a) do n.º 7 do art. 67.º do CIRC, o regime especial aplica-se às operações de fusões em que intervenham sociedades com sede ou direcção efectiva em território português sujeitas e não isentas de IRC, cujo lucro tributável não seja determinado pelo regime simplificado. Ora, uma SGPS instalada e licenciada para operar na Zona Franca da Madeira beneficia de uma isenção de IRC nos termos já referidos, definidos na alínea g) do n.º 1 do art. 33.º do EBF. Trata-se de uma isenção temporária, de carácter misto, e que é meramente parcial, uma vez que não abrange a totalidade dos rendimentos auferidos pela SGPS.
Parece, todavia, haver fundamento, para considerar não estar verificado o requisito indicado na alínea a) do n.º 7 do art. 67.º do CIRC, na medida em que o objectivo do regime de neutralidade – o diferimento da tributação para o momento da realização dos proveitos como se tivessem sido obtidos pela sociedade fundida – não se verificará no caso da sociedade participada ser detentora de participações sociais na situação referida na parte final do ponto anterior. Assim, parece-nos que o presente pedido deve ser indeferido com este fundamento.
10. Por último, refira-se que face ao disposto na Circular n.º 13/99, de 8 de Julho, da Direcção de Serviços de Justiça Tributária, concretamente, no ponto 3, esta decisão poderá ser dispensada de audiência prévia dos interessados, uma vez que a decisão se baseia numa mera interpretação de uma norma aplicável ao caso (alínea a) do n.º 7 do art. 67.º do CIRC).
11. Também, no n.º 1 do art. 103.º do CPA, estão previstas as situações em que não existe o direito de audiência, entre as quais, se refere ser razoável não exercer o direito de audição quando a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão, o que, no caso concreto, colhe acolhimento, face à proximidade do termo do prazo de deferimento tácito.
12. No que respeita ao prazo de deferimento tácito, refira-se que embora o processo tenha dado entrada nos serviços a 10 de Janeiro de 2003, só a 24 de Novembro de 2003 é que foram reunidos todos os elementos necessários para apreciação do pedido em questão, pelo que só a partir desta data é que se começa a contar o prazo de deferimento. De notar, que se a decisão não for proferida até 24 de Maio de 2004, ocorre o deferimento tácito.
À consideração superior» (Doc. junto ao p.a. não numerado).

C) Em 14 de Maio de 2004, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, exarou na Informação n.º 522/04/09 de 10 de Maio de 2004, despacho n.º 1189/2004-XV do seguinte teor: “Concordo” (Doc. junto ao p.a. não numerado).

D) No seguimento do despacho identificado na al. C) do probatório, à Autora foi remetido o ofício n.º 17512 de 21.05.2004, cujo conteúdo se transcreve, em seguida:
«ASSUNTO: DEDUÇÃO DE PREJUÍZOS FISCAIS – Art. 69.º do Código do IRC
Relativamente ao assunto referenciado, informo V.Exª que o pedido foi indeferido por despacho n.º 1189/2004- XV de 14 de Maio de 2004, de S.Ex.ª o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, com os seguintes fundamentos:
Estando a sociedade incorporante instalada e licenciada para operar na Zona Franca da Madeira, goza do direito ao benefício fiscal prevista na alínea g) do n.º 1 do art. 33.º do EBF o qual isenta as SGPS relativamente aos lucros e mais-valias provenientes das participações sociais que detenham em sociedade não residentes no território português, exceptuadas as zonas francas, ou o de outros Estados Membros da União Europeia.
A sociedade incorporante tem obtido rendimentos provenientes de participações sociais em sociedades sediadas no território nacional, pelo que não tem sido possível usufruir do benefício, como se comprova através da consulta ao sistema informático.
De qualquer modo, mantém o direito ao referido Benefício Fiscal.
De acordo com a alínea a) do n.º 7 do artigo 67.º do Código do IRC, o regime especial de neutralidade aplica-se às operações de fusões em que intervenham sociedade com sede ou direcção efectiva em território sujeitas e não isentas de IRC, cujo lucro tributável não seja determinado pelo regime simplificado.
Ora, uma SGPS instalada e licenciada para operar na Zona Franca da Madeira beneficia de uma isenção de IRC nos termos já referidos, definidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 33.º do EBF.
Trata-se de uma isenção temporária, de carácter misto, e que é meramente parcial, uma vez que não abrange a totalidade dos rendimentos auferidos pela SGPS.
Assim, há fundamento para considerar não estar verificado o requisito indicado na alínea a) do n.º 7 do artigo 67.º do Código do IRC, na medida em que o objectivo do regime de neutralidade – o deferimento da tributação para o momento da realização dos proveitos como se tivessem sido obtidos pela sociedade fundida poderá não ficar acautelado face ao benefício previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 33.º do EBF.
Não sendo aplicável o regime de neutralidade, não tem aplicabilidade a transmissibilidade dos prejuízos previstos no n.º 1 do artigo 69.º do CIRC» (Doc. junto ao p.a. não numerado).».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

2.2.1.1 A sociedade ora Recorrida, enquanto entidade incorporante numa operação de fusão por incorporação, pediu ao Ministro das Finanças, ao abrigo do disposto no art. 69.º do CIRC, na redacção aplicável (Dispunha o n.º 1 do art. 69.º do CIRC, na redacção do Decreto-Lei n.º 221/2001, de 7 de Agosto: «Os prejuízos fiscais das sociedades fundidas podem ser deduzidos dos lucros tributáveis da nova sociedade ou da sociedade incorporante até ao fim do período referido no n.º 1 do artigo 47.º, contado do exercício a que os mesmos se reportam, desde que seja concedida autorização pelo Ministro das Finanças, mediante requerimento dos interessados entregue na Direcção-Geral dos Impostos até ao fim do mês seguinte ao do registo da fusão na conservatória do registo comercial».), autorização para deduzir os prejuízos fiscais de uma sociedade incorporada.
Porque viu recusada a sua pretensão por despacho do ora Recorrente (proferido por delegação de competências), apresentou acção (inicialmente sob a forma de impugnação judicial, mas convolada em acção administrativa especial), pedindo i) a anulação do despacho que lhe recusou o pedido e ii) a condenação da Entidade demandada à prática do acto devido, de autorização da transmissão de prejuízos.
Invocou a Autora, ora Recorrida, na petição inicial: a) a violação do seu direito de audiência prévia à decisão do procedimento em que foi apreciado o pedido de transmissão de prejuízos ao abrigo do disposto no então art. 69.º do CIRC (corresponde ao actual art. 75.º do mesmo Código) e b) que estavam verificados todos os requisitos para o deferimento do pedido que formulou, motivo por que o despacho impugnado enferma de vício de violação de lei por ofensa ao disposto nos arts. 67.º e 69.º do CIRC.

2.2.1.2 O Tribunal Central Administrativo Sul, conhecendo da acção em primeira instância (De acordo com os arts. 38.º, alínea b), e 49.º, n.º 1, alínea a), subalínea iv), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, compete ao tribunal central administrativo conhecer da acção administrativa especial de acto administrativo em matéria tributária que não comporta a apreciação da legalidade do acto de liquidação praticado por membro do Governo.), proferiu acórdão em que começou por apreciar o invocado vício de forma por preterição do direito de audiência prévia à decisão e, julgando-o procedente, anulou o despacho impugnado. Isto, em síntese, porque considerou que o despacho por que o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais indeferiu o pedido formulado pela Autora foi proferido sem que a esta fosse dada a possibilidade de se pronunciar sobre o projecto de indeferimento, como o exige o disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 60.º da Lei Geral Tributária (LGT).
Mais considerou o Tribunal Central Administrativo Sul que não era possível condenar a Entidade demandada à prática do acto devido, como pretendido pela Autora, na medida em que o procedimento carecia ainda da realização da audiência prévia, motivo por que condenou a Entidade demandada a retomar o procedimento, proferindo novo acto, após sanar o vício (leia-se, conceder à Autora a possibilidade de exercer o seu direito de audiência prévia), devendo reapreciar a pretensão da Autora à luz dos elementos e realidade jurídica existentes à data em que foi proferido o acto anulado.

2.2.1.3 Inconformada com esse acórdão, na parte em que julgou procedente o vício de forma por preterição de formalidade essencial, veio a Entidade demandada dele recorrer. Contrariando o entendimento adoptado naquele aresto, entende, em resumo,

a) que, no caso, não havia lugar a audiência prévia do interessado i) quer em face da urgência da decisão [cfr. conclusões A) a E)] ii) quer porque o fundamento em que se alicerçou a decisão impugnada é meramente de direito [cfr. conclusões P) e Q)]; ainda que assim não se considere,

b) que a preterição da formalidade se teria degradado em não essencial, uma vez que a decisão impugnada nunca poderia ter outro sentido senão o que assumiu e, atento o fundamento que a alicerçou, seria totalmente irrelevante o que a ora Recorrida pudesse ter afirmado a esse propósito [cfr. conclusões F) a O), Q) e R)].

2.2.1.4 Assim, a questão que ora cumpre apreciar e decidir é a de indagar se o acórdão fez errado julgamento quando considerou que o acto impugnado enferma de vício de preterição de formalidade essencial por falta de notificação para o exercício do direito de audiência prévia, a determinar a sua anulação, o que passa por saber

i) se no procedimento para procedimento de apreciação do pedido de transmissão de prejuízos ao abrigo do disposto no então art. 69.º do CIRC é ou não dispensável conceder ao interessado o direito de audiência prévia à decisão; na negativa, ou seja, caso não seja de dispensar a audiência,

ii) se, no caso, podemos concluir pelo afastamento do efeito anulatório por degradação da formalidade em não essencial, designadamente por a decisão a proferir nunca poder ser senão aquela que foi tomada, no sentido do indeferimento do pedido, porque sempre seria de aplicar ao caso a norma constante da então alínea a) do n.º 7 do art. 67.º do CIRC.

2.2.2 DO DIREITO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA À DECISÃO DO PROCEDIMENTO E SUA DISPENSA

Subscrevemos integralmente os considerandos expendidos pelo Tribunal Central Administrativo Sul relativamente ao direito de audiência prévia e sua dispensa em função da urgência do procedimento, que ora reproduzimos:

«Deverá começar por dizer-se que é inegável que a Constituição da República Portuguesa atribui dignidade constitucional ao princípio da participação dos cidadãos nas decisões administrativas que lhes digam respeito, ao impor, no seu artigo 267.º, n.º 5, que a lei ordinária assegure tal participação.
Daí que o Tribunal Constitucional afirme no seu acórdão n.º 272/98 de 9 de Março de 1998: «A audiência prévia do recorrente visa garantir o princípio do contraditório, cuja salvaguarda o Acórdão do Tribunal Constitucional (2 Secção) n.º 222/90, de 20 de Junho, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 396, págs. 224 e seguintes, considera ser “uma exigência comum, decorrente da garantia do artigo 2.º, n.º 1, da Constituição, e da noção de um due process of law, ínsita na própria ideia de Estado de direito democrático”» (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980243.html).
Conforme dispõe o n.º 1 do artigo 1.º da LGT, é este o diploma que regula as relações jurídico-tributárias, sem prejuízo do disposto no direito comunitário e noutras normas de direito internacional que vigorem directamente na ordem interna ou em legislação especial.
A participação no procedimento tributário que, como vimos, constitui imperativo estruturante decorrente da Constituição é concretizada no artigo 60.º da LGT, que consagra o princípio da participação dos sujeitos passivos na formação das decisões que lhes digam respeito, nomeadamente pelo direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições (cfr. alínea b) do seu n.º 1). Também o CPPT, no seu artigo 45.º, consagra o princípio do contraditório no procedimento tributário, ao estipular que «O procedimento tributário segue o princípio do contraditório, participando o contribuinte, nos termos da lei, na formação da decisão».
Do panorama legal que vem dito, impõe-se a conclusão de que o direito de audição de que gozam os contribuintes (na vigência do Código Processo Tributário (CPT), o direito de audição constituía já uma garantia do contribuinte – artigo 19.º, c) do diploma), constitui direito constitucional aplicado ao procedimento tributário, enquanto corolário do princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações da Administração Pública que lhe digam respeito, visando assegurar uma tutela preventiva contra qualquer lesão dos seus direitos ou interesses.
Nesse sentido, pode ler-se, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23.02.2012, proferido no processo n.º 059/12, o seguinte: «Trata-se, em suma, do direito que assiste aos contribuintes interessados de serem ouvidos num determinado procedimento tributário, antes de ser proferida a decisão, com vista a garantir a observância de princípios que regem a actividade procedimental no plano da relação jurídica tributária e que impõem a participação e a transparência procedimental, pilares fundamentais de um Estado de direito. Deste modo, sempre que se esteja na presença de um procedimento tributário há que permitir a participação dos cidadãos nas decisões que lhes digam respeito, de modo a que possam contribuir para um cabal esclarecimento dos factos e para uma mais adequada e justa decisão, sob pena de preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão (a menos que seja manifesto que a decisão só podia, em abstracto, ter o conteúdo que teve em concreto, sabido que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do acto, pois as formalidades procedimentais essenciais degradam-se em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las)» (disponível em texto integral em www.dgsi.pt)
No âmbito da LGT, estabelece o seu artigo 60.º, n.º 2 «É dispensada a audição no caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe for favorável».
Como afirma ANTÓNIO LIMA GUERREIRO, comentando o artigo 60.º, n.º 2, da LGT «O referido preceito é uma norma excepcional, prevendo os casos típicos de dispensa do exercício do direito de audição, e, por isso, não contém qualquer lacuna que possa ser suprida pelas normas do C.P.A. (nesse sentido, ver Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Lopes de Sousa, "Lei Geral Tributária Comentada e Anotada" pg. 204). No sentido igualmente do que afirmam esses autores, entendemos igualmente inaplicável ao direito de audição o caso de dispensa previsto no artigo 103.º, número 2, alínea a), quando os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão ou sobre as provas produzidas. Essa inaplicabilidade resulta igualmente de o direito de audição se fazer, nos termos do número 4, que são fortemente garantísticos dos direitos do contribuinte, com base em um projecto de decisão, o que não será possível nessas circunstâncias» (Lei Geral Tributária, Anotada, Editora Rei dos Livros, 2000, pág. 280).
No mesmo sentido, LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA afirmam que «este caso de dispensa de audiência não foi incluído na LGT, pelo que, não havendo nesta matéria caso omisso, não haverá suporte legal para fazer aplicação, no procedimento tributário, do preceituado nesta alínea a)» (Lei Geral Tributária, Anotada e comentada, Encontro de Escrita, 4.ª edição, 2012, pág. 509).
Concordando com a posição acima expendida, podemos desde já, retirar a conclusão de que prevendo o artigo 60.º, n.º 2 da LGT as situações de dispensa de audiência prévia, não existe suporte legal para fazer a aplicação no procedimento tributário das normas constantes do CPA, ao que aqui importa, o artigo 103.º, n.º 2 al. a), nos termos do qual «1- Não há lugar a audiência dos interessados: a) Quando a decisão seja urgente;».
Não ficando por dizer, aliás, que diferente seria, se o procedimento em causa contemplasse alguma urgência objectiva, como sucede na norma do artigo 170.º do CPPT; com interesse, a este propósito, veja-se o acórdão do STA de 23.02.2012, proferido no processo n.º 59/12, disponível em www.dgsi.pt.
Não obstante o que ficou dito, importa chamar à colação o CPA, na medida em que o despacho sindicado suportou a dispensa da audiência prévia em norma inserida naquele diploma legal.
Como é sabido, no artigo 100.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) (na redacção anterior à vigente) consagra-se de forma expressa o direito que assiste ao interessado, em determinado procedimento, de, como já referimos supra, ser ouvido antes de ser proferida decisão que lhe seja desfavorável, sendo que tal direito a ser ouvido e que se opera mediante a audiência prevista no citado normativo deve consistir na efectiva possibilidade que será conferida ao interessado no procedimento em questão de ter uma participação útil no âmbito daquele procedimento, não devendo reconduzir-se ou traduzir-se num mero acto de rotina, impendendo sobre a Administração uma “obrigação de meios” no sentido de criar as condições necessárias e bastantes de molde a que ao interessado seja assegurada uma participação substancial no âmbito do procedimento em questão.
Compreende-se, assim, que o tribunal só pode recusar efeito invalidante à omissão da formalidade prevista no artigo 100.º do CPA se o acto tiver sido proferido no uso ou exercício de poderes vinculados e se puder, num juízo de prognose póstuma, concluir, com total segurança, que a decisão administrativa impugnada era a única concretamente possível, independentemente de invocação de motivos pela Administração, quando a decisão se mostre urgente (cfr. entre outros, vide - Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (Pleno) STA de 02.06.2004 e 23.05.2006, proferidos respectivamente nos processos n.ºs 01591/03 [e 1618/02], ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Na fundamentação daquele juízo de urgência, passível de ser sindicado pelo julgador, não relevarão razões ligadas à necessidade de cumprimento do prazo legal de conclusão de determinado processo ou com a necessidade de evitar a formação de acto tácito sendo que a urgência da decisão terá de ser aferida «... em relação à situação objectiva real que a decisão procedimental se destina a regular ...» e «… não em relação à urgência procedimental que esta, (em regra pelo menos) não justifica a preterição de formalidades essenciais do procedimento ...» (cfr. M. Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e J. Pacheco Amorim in: ob. cit., págs. 463/464).
Sob a epígrafe «Inexistência e dispensa de audiência dos interessados» estabelece o artigo 103.º do CPA (na redacção anterior à vigente) o seguinte:
«1- Não há lugar a audiência dos interessados:
a) Quando a decisão seja urgente;
b) Quando seja razoavelmente de prever que a diligência possa comprometer a execução ou a utilidade da decisão.
c) Quando o número de interessados a ouvir seja de tal forma elevado que a audiência se torne impraticável, devendo nesse caso proceder-se a consulta pública, quando possível, pela forma mais adequada.
2 - O órgão instrutor pode dispensar a audiência dos interessados nos seguintes casos:
a) Se os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre as questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas;
b) Se os elementos constantes do procedimento conduzirem a uma decisão favorável aos interessados».
Voltando ao caso concreto.
Como resulta do probatório, a dispensa da audiência prévia no procedimento tributário (sobre o conceito de procedimento tributário veja-se o artigo 54.º da LGT) iniciado pela Autora foi justificada do seguinte modo: «(...) face à proximidade do termo do prazo do deferimento tácito».
Sobre esta problemática escrevem MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES E J. PACHECO de AMORIM «(…) não são as razões ligadas com a necessidade de cumprimento do prazo legal de conclusão do processo ou com a necessidade de prevenir o aparecimento de actos tácitos – pelo menos, nos casos em que tais efeitos têm contra-interessados, que podem ser invocados para justificar o preenchimento do pressuposto da urgência da decisão».
E, acrescentam os autores:
«Para prevenir ou remediar essas situações, a Administração dispõe, com efeito, de poderes situados no âmbito do princípio da informalidade e da celeridade, mas não pode, obviamente, sacrificar posições e direitos procedimentais dos interessados, com o cariz deste» (Código do Procedimento Administrativo, Comentado, 2.ª Edição - 3.ª Reimpressão da Edição de 1997 - anotação III ao artigo 103.º, páginas. 463 e 464).
E, nas palavras de JORGE LOPES DE SOUSA: «se em determinadas situações concretas tais prazos se mostrarem insuficientes para permitirem a tempestiva prática do acto, tal sucederá, presumivelmente, por insuficiente diligência da administração tributária em levar a cabo as funções que a lei lhe atribui. Nestas condições, será inaceitável que a urgência na prolação da decisão ou a previsão sobre o comprometimento da execução ou utilidade desta, sendo gerados por uma actuação deficiente da administração tributária, possam conduzir a uma solução em que a salvaguarda dos interesses desta seja feita à custa dos interesses dos contribuintes» (Código de procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume 1, anotação 14 ao artigo 45.º, pág. 435).
A razão de ser deste entendimento encontrar-se-á, entendemos nós, no conteúdo das previsões (facti species) contidas no artigo 103.º do CPA, isto porque, o exercício do poder de dispensa do direito está delimitado ao conjunto das situações aí previstas.
A falta de audição prévia do contribuinte, nos casos consagrados no artigo 60.º, n.º 1, da LGT, constitui um vício de procedimento susceptível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada (cfr. Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, Editora Encontro de Escrita, 2012, pág. 515).
Resta, pois, concluir que não tendo sido a Autora notificada para exercer o direito de audição prévia sobre o projecto de decisão relativo ao procedimento tributário a que alude a al. A) do probatório, procede o vício procedimental diagnosticado na petição inicial ao acto impugnado».

O acórdão recorrido, na parte que vimos de reproduzir, não nos merece reparo algum. É certo que a Recorrente insiste na tese da natureza urgente do procedimento mas, salvo o devido respeito, não traz argumento algum que não tenha já sido considerado e refutado pelo Tribunal Central Administrativo Sul. Porque concordamos integralmente com o que neste ficou dito, na ausência de nova argumentação aduzida, limitamo-nos a reiterar o que aí ficou afirmado.
Na verdade, o procedimento à data previsto no art. 69.º do CIRC não é de considerar como urgente e não será o facto de a AT não ter diligenciado pelo andamento célere do procedimento, como lhe compete, que permitirá, em face da proximidade da data da formação do deferimento tácito, alterar essa natureza, como bem deixou explicado, com referência à doutrina pertinente, o acórdão recorrido. O Recorrente discorda desse entendimento, mas a sua argumentação já foi proficientemente rebatida pelo Tribunal Central Administrativo Sul.
Por outro lado, também não será a circunstância de não existirem questões de facto em discussão em sede do procedimento que poderá justificar a dispensa do direito de audiência prévia, como parece sugerir o Recorrente nas conclusões P) e Q).
Como diz JORGE LOPES DE SOUSA, «há que notar que não é apenas quando a decisão se fundamenta em factos não afirmados pelos interessados que se justifica o direito de audiência, pois o direito de participação na formação na decisão constitucionalmente reconhecido reporta-se à sua globalidade, abrangendo por isso, o direito de este se pronunciar sobre qualquer questão de direito relativamente à qual não haja sintonia entre a sua posição e a que a administração tributária pretende adoptar no procedimento tributário» (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, I volume, anotação 3 ao art. 45.º, pág. 426.). O mesmo Autor explica detalhadamente por que o direito de audiência não se justifica só nos casos em que haja apreciação de factos, mas também tem lugar nos casos em que tenha de haver apenas apreciação de questões de direito (Ibidem, sendo que o Autor, comentando a Circular n.º 13/99, de 8 de Julho de 1999 (disponível em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/D9501C35-463A-420D-A531-3D2C5DAF846A/0/circular_13_de_08-07-1999_direccao_de_servicos_de_justica_tributaria.pdf), designadamente os casos aí previstos sob a alínea a) das «Decisões sujeitas a audiência» – casos descritos como «As decisões que se fundamentam em factos não revelados nos pedidos, petições, reclamações ou recursos hierárquicos, apresentados pelos contribuintes» –, salienta que «em relação à situação referida na alínea a), há que notar que não é apenas quando a decisão se fundamenta em factos não afirmados pelos interessados que se justifica o direito de audiência, pois o direito de participação na formação na decisão constitucionalmente reconhecido reporta-se à sua globalidade, abrangendo por isso, o direito de este se pronunciar sobre qualquer questão de direito relativamente à qual não haja sintonia entre a sua posição e a que a administração tributária pretende adoptar no procedimento tributário».).
No mesmo sentido, veja-se também o que ficou dito no parecer proferido nos presentes autos pelo Procurador-Geral-Adjunto, com pertinentes referências doutrinais, que também subscrevemos.
Concluímos, pois, que se verifica a preterição do direito de audiência prévia à decisão do procedimento, não sendo caso de dispensa desse direito, como bem decidiu o acórdão recorrido.

2.2.3 DO AFASTAMENTO DO EFEITO ANULATÓRIO

O Recorrente sustenta, subsidiariamente, que ainda que se considerasse que no procedimento em causa há lugar à audiência prévia do interessado, sempre teríamos de concluir pelo afastamento do efeito anulatório por degradação da formalidade em não essencial, designadamente por a decisão a proferir nunca poder ser senão aquela que foi tomada, ou seja, no sentido do indeferimento do pedido.
A falta de audiência prévia à liquidação, quando não seja legalmente dispensada, constitui preterição de formalidade essencial, conducente, em regra, à anulabilidade do acto (cfr. art. 135.º do CPA antigo, a que corresponde o n.º 1 do art. 163.º do actual CPA).
No entanto, há situações em que a preterição da formalidade pode não ter efeitos invalidantes (cfr. o n.º 5 do art. 163.º do actual CPA), designadamente quando o conteúdo do acto anulável não possa ser outro, por o acto ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível.
Há muito que a doutrina e a jurisprudência acolhem o princípio do aproveitamento do acto, ainda que à data sem suporte directo em disposição legal alguma (Hoje, o princípio tem consagração no n.º 5 do art. 163.º do novo CPA, que dispõe:
«5- Não se produz o efeito anulatório quando:
a) O conteúdo do acto anulável não possa ser outro, por o acto ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;
b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;
c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o acto teria sido praticado com o mesmo conteúdo».), mas que assenta no entendimento de que não se justifica a anulação de um acto administrativo que foi praticado no exercício de poderes vinculados e está de acordo com os pressupostos fixados na lei. Assim, nos termos desse princípio admite-se que a falta de audiência dos interessados, quando obrigatória, possa não conduzir à anulação do acto final do procedimento quando «essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do acto – utile per inutile non viciatur. O que exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso» (Cfr. o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 22 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 441/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/212bcafe7f4d180f80257c6f004ea9c0.).
Será essa a situação dos autos?
Não, como bem deixou explicado o acórdão recorrido, cuja fundamentação aqui damos acolhemos, usando da faculdade concedida no n.º 5 do art. 663.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT.
Na verdade, a AT alicerçou a decisão de indeferimento do pedido da ora Recorrida nos seguintes termos: «…há fundamento para considerar não estar verificado o requisito indicado na alínea a) do n.º 7 do artigo 67.º do Código do IRC, na medida em que o objectivo do regime de neutralidade – o diferimento da tributação para o momento da realização dos proveitos como se tivessem sido obtidos pela sociedade fundida poderá não ficar acautelado face ao benefício previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 33.º do EBF. Não sendo aplicável o regime especial de neutralidade, não tem aplicabilidade a transmissibilidade dos prejuízos prevista no n.º 1 do artigo 69.º do Código do IRC».
Ora, como bem salientou o Procurador-Geral-Adjunto, «essa apreciação é controversa, não só porque baseada numa situação futura hipotética (aplicabilidade do regime de isenção), como pelo facto de a própria AT reconhecer não estar a ser usufruída pela Requerente, motivo pelo qual concordamos com o entendimento sufragado no acórdão recorrido no sentido de que não pode concluir-se que a decisão tomada era a única possível ou que o exercício do direito de audiência não tinha a mínima possibilidade de influenciar a decisão tomada».
Assim, o acórdão recorrido também não merece censura no segmento em que entendeu não ser de afastar, por via da aplicação ao caso da teoria do aproveitamento do acto, os efeitos invalidantes do acto final do acto do procedimento decorrentes da preterição da formalidade legal por não concessão à ora Recorrida da possibilidade de exercer o direito de audiência prévia à decisão.

2.2.4 CONCLUSÕES

Por tudo o que deixámos dito, o recurso não merece provimento e, preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - A falta de audiência prévia à decisão administrativa, quando não seja legalmente dispensada, constitui preterição de formalidade essencial, conducente, em regra, à anulabilidade do acto (cfr. art. 135.º do CPA antigo, a que corresponde o n.º 1 do art. 163.º do actual CPA).

II - O afastamento do efeito anulatório por preterição do direito de audiência, por via da aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo, apenas pode ocorrer quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insusceptível de influenciar a decisão final, o que acontece, em geral, nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de actividade administrativa vinculada.


* * *

3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente, que ficou vencido no recurso [cfr. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT].

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Lisboa, 14 de Outubro de 2020. - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.