Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0973/13
Data do Acordão:01/14/2015
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:RECURSO JURISDICIONAL
INUTILIDADE
FALTA DE ATAQUE A UM DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO RECORRIDA
Sumário:I – O recurso jurisdicional tem como objecto a sentença recorrida e destina-se a anulá-la ou alterá-la com fundamento em vício de forma (nulidade) ou de fundo (erro de julgamento) que o recorrente entenda afectá-la.
II – Se a sentença julgou improcedente a pretensão do impugnante com mais do que um fundamento, o recurso só terá utilidade (virtualidade de se repercutir na decisão recorrida) se atacar todos esses fundamentos, sendo que se o não fizer relativamente a um deles, sempre a decisão se manterá incólume com base neste (relativamente ao qual se verificou o trânsito em julgado).
III – Nesta circunstância, em que o efeito jurídico pretendido com o recurso não é juridicamente possível, o tribunal ad quem não deve tomar conhecimento do recurso, porque aos tribunais está vedada a prática de actos inúteis (cfr. art. 130.º do CPC).
Nº Convencional:JSTA000P18447
Nº do Documento:SA2201501140973
Data de Entrada:05/30/2013
Recorrente:A..........., LDA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da decisão proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 220/11.2BEPNF

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade denominada “A…………, Lda.” (a seguir Contribuinte, Impugnante ou Recorrente) recorre para este Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida pelo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, que julgou improcedente a impugnação judicial por ela deduzida contra a liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) que lhe foi efectuada com referência ao 4.º trimestre de 2005 e, bem assim, contra a decisão do Director de Finanças do Porto que lhe indeferiu o recurso hierárquico que interpôs da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que deduziu contra aquele acto tributário.

1.2 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as alegações de recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«A) O relatório de acção inspectiva foi concluído com base no conjunto documentos e elementos reunidos a coberto do despacho n.º DI200802911, e não a partir dos elementos recolhidos no âmbito da Ordem de Serviço que deu origem ao procedimento inspectivo, em violação do disposto nos n.ºs 1 e 4 do art. 46.º do RCPIT.

B) A A.F. só notificou o sujeito passivo da realização da acção inspectiva depois de a mesma ter sido iniciada, sem que a A.F. lhe tenha concedido o prazo mínimo previsto na lei para se preparar documentalmente com todos os elementos indispensáveis à demonstração da sua situação contributiva.

C) O acto inspectivo não se encontra sancionamento pelo chefe de equipa, tal como determina o n.º 5 do art. 62.º do RCPIT.

D) Os actos de liquidação objecto de impugnação, têm na sua génese um acto interlocutório ferido de ilegalidade, por falta de credenciação, ausência de notificação do procedimento inspectivo e ainda por falta de credenciação, o que se revela susceptível de fundamentar anulação dos actos tributários praticados na sequência de uma ilegalidade do procedimento de inspecção.

E) Salvo o devido respeito foram violados os artigos 46.º, n.ºs 1 e 4, 49.º e 62.º, n.º 5 do RCPIT.

Julgando-se o Recurso procedente, será feita JUSTIÇA!».

1.3 Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que não seja conhecido o recurso, por manifesta inutilidade, com a seguinte fundamentação:

«[…] Salvo melhor juízo, o presente recurso não tem qualquer efeito útil, pois que a sentença recorrida, que julgou improcedente a impugnação, transitou em julgado.
De facto, como resulta da simples leitura da sentença, o tribunal recorrido julgou verificada a excepção peremptória inominada de abuso de direito e absolveu a Fazenda Pública do pedido.
Não obstante a verificação da referida excepção determinar a improcedência da impugnação judicial e ficar prejudicado o conhecimento das restantes questões (artigo 660.º/2 do CPC), o certo é que por uma questão “economia e celeridade processuais” o tribunal recorrido entendeu por bem conhecer dos pretensos vícios formais imputados ao procedimento inspectivo, julgando-os improcedentes.
Ora, como resulta das alegações/conclusões da recorrente, esta apenas recorreu da sentença no segmento em que julgou não verificados os alegados vícios formais do procedimento.
Assim sendo, a sentença mostra-se transitada em julgado na parte em que julgou verificada a excepção de abuso de direito e absolveu a FP do pedido/julgou improcedente a impugnação.
Portanto, o presente recurso mostra-se despido de qualquer utilidade, uma vez que, mesmo que viesse a obter provimento, não haveria hipótese legal de revogar a sentença que julgou improcedente a impugnação pela verificação da excepção de abuso de direito.
Não deve, pois, conhecer-se do recurso por inutilidade uma vez que a lei / (artigo 137.º do CPC) proíbe a prática de actos inúteis».

1.5 Notificado do teor do parecer do Ministério Público, a Recorrente veio sustentar que, contrariamente ao aí alegado, a sentença não transitou em julgado no que se refere às questões suscitadas no recurso, motivo por que o recurso deverá ser aceite e conhecido.

1.6 Colheram-se os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos.
1.7 Como procuraremos demonstrar, a única questão que cumpre apreciar e decidir é a da utilidade do recurso, o que passa por indagar se a sentença transitou em julgado quanto a um dos fundamentos que determinaram a improcedência da impugnação judicial, qual seja o da verificação da excepção do abuso de direito.

* * *
2. FUNDAMENTOS
2.1 DE FACTO

O Juiz Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel efectuou o julgamento de facto nos seguintes termos:

«Com relevância para a decisão da causa, o tribunal julga provado:

A) A impugnante foi sujeita a um procedimento de inspecção externa parcial, ao IRC e IVA, dos exercícios de 2005 e 2006, cuja notificação do projecto do relatório de inspecção tributária (RIT) consta de fls. 111 e 112 do PRG apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

B) O processo um procedimento de inspecção externa parcial, ao IRC e IVA, dos exercícios de 2005 e 2006, foi concluído com o RIT junto de fls. 113 a 134 ao PRG apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

C) No âmbito desse procedimento e na sequência da notificação do projecto de RIT e para o exercício do direito de audição, a impugnante exerceu o direito de audição em que, entre o mais, reconheceu a legalidade da correcção do IVA do exercício de 2005, no valor de € 12.162,86, resultante do imposto em falta apurado por correcção meramente aritmética (fls. 143 do PRG).

D) O exercício do direito de audição foi subscrito pela própria impugnante que, entre o mais, afirmou expressamente “1.8. Relativamente à regularização do imposto sobre o valor acrescentado de 12.162,86 €, com efeito não foram cumpridas as formalidades legais atinentes à regularização em causa, pelo que se aceita a correcção” (fls. 142 a 148 do PRG).

E) A Fazenda Pública aceitou expressamente esta afirmação da impugnante (artigos 7 e 8 da contestação e ponto 4 da decisão da RG, a fls. 262, 263, 265 e 266 do PRG).

F) Em 24/4/2008, a impugnante foi notificada do despacho de procedimento de inspecção n.º DI200802911, de 3/4/2008, que consta de fls. 251 do PRG, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

G) Em 16/10/2008, a impugnante foi notificada da nota de diligência n.º NDD200869234, referente ao despacho de procedimento de inspecção n.º DI200802911, de 3/4/2008, que consta de fls. 252 do PRG, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

H) Em 15/10/2008, a impugnante foi notificada do despacho com a ordem de serviço do procedimento de inspecção externa n.º OI200803937, de 15/10/2008, de âmbito parcial ao IRC e IVA dos anos de 2005 e 2006, que consta de fls. 253 do PRG, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

I) Em 16/10/2008, a impugnante foi notificada da nota de diligência n.º NDO200870906, referente ao despacho de procedimento de inspecção externa de âmbito parcial ao IRC e IVA dos anos de 2005 e 2006 n.º OI200803937, de 15/10/2008, que consta de fls. 254 do PRG, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

Com relevância para a decisão da causa, não há matéria de facto julgada não provada».


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR – DELIMITAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO

A sociedade denominada “A…………, Lda.” pediu em impugnação judicial a anulação da liquidação oficiosa de IVA que lhe foi efectuada pela Administração tributária (AT) com referência ao 4.º trimestre do ano de 2005, invocando como fundamentos do pedido de anulação desse acto, que formulou a final, os seguintes vícios do procedimento de inspecção que lhe deu origem: (i) a falta de credenciação para a realização do procedimento inspectivo, (ii) a ausência de notificação do procedimento de inspecção e (iii) a falta de sancionamento superior do projecto de relatório.
O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel começou por conhecer da excepção de abuso de direito no recurso à impugnação pela Contribuinte, suscitada na contestação e, considerando-a verificada, entendeu que a mesma determinava a absolvição da Fazenda Pública do pedido, julgando a impugnação judicial improcedente. Não obstante, e tendo registado «poder considerar-se que fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas (art. 660.º, n.º 2, do CPC)», invocando «uma razão de economia e celeridade processuais», entendeu também apreciar as questões suscitadas pela Impugnante na petição inicial, para as julgar a todas improcedentes.
A Impugnante veio apresentar recurso desta sentença. Se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, não discorda do decidido pelo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel senão no que respeita ao julgamento de não verificação das ilegalidades que por ela foram invocadas na petição inicial. Assim, toda a argumentação aduzida em sede de recurso se refere, exclusivamente, à falta de credenciação para a realização do procedimento inspectivo [conclusão A)], à ausência de notificação do procedimento de inspecção [conclusão B)] e à falta de sancionamento superior do projecto de relatório [conclusão C)].
Ou seja, a Recorrente em momento algum exprime discordância com a sentença na parte em que nesta se considerou verificado o abuso de direito, a determinar a improcedência da impugnação judicial.
Daí termos adiantado em 1.7 que a única questão que cumpre apreciar e decidir é a da utilidade do recurso, o que passa por indagar se a sentença transitou em julgado por não vir atacado um dos fundamentos que determinaram a improcedência da impugnação judicial, qual seja o da verificação da excepção do abuso de direito.

2.2.2 DA INUTILIDADE DO RECURSO

Como resulta do que deixámos já dito, a impugnação judicial foi julgada improcedente com mais do que um fundamento.
Na verdade, o Juiz, começou por apreciar a excepção peremptória invocada pela Fazenda Pública – abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium –, que considerou proceder e determinar a absolvição da Fazenda Pública do pedido.
A nosso ver, porque o Juiz considerou que a impugnação constituía abuso de direito e, por isso, absolveu a Fazenda Pública do pedido (decisão que ora não cumpre sindicar porque fora do objecto do recurso) deveria a sentença ter-se quedado por aí, pois, as demais questões suscitadas nos autos – respeitantes aos vícios do procedimento inspectivo que esteve na origem da liquidação impugnada e que alegadamente se repercutiram na legalidade desse acto tributário – ficaram prejudicadas pela solução dada à questão do abuso do direito [cfr. art. 608.º, n.º 2 («O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».), do Código de Processo Civil (CPC)]. No entanto, o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel entendeu prosseguir na apreciação das questões suscitadas pela Impugnante na petição inicial, julgando-as a todas improcedentes.
Acontece, porém, que a Impugnante atacou a sentença apenas quanto a esta última decisão – relativa à parte em que foram apreciados os vícios por ela assacados ao procedimento inspectivo –, nada dizendo no recurso relativamente à primeira parte, ou seja, àquela em que foi apreciada a excepção peremptória inominada do abuso de direito e, em consequência, se absolveu a Fazenda Pública do pedido. É certo que, como decorre dos n.ºs 2 e 4 do art. 635.º do CPC («[…] 2. Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre.
[…] 4. Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso. […]»), pode o recorrente restringir o recurso a uma parte da sentença quando esta contiver decisões distintas, desde que o especifique no requerimento de interposição do recurso ou essa restrição do objecto do recurso resulte, expressa ou tacitamente, das conclusões do recurso. Mas, fazendo-o, a parte da sentença que não seja recorrida transita em julgado, como resulta do disposto no art. 628.º do CPC («A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação».) – com os efeitos previstos no n.º 1 do art. 619.º do CPC («1. Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º».) – e o afirma expressamente o n.º 5 do citado art. 835.º do CPC («5. Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo».).
Ou seja, no caso sub judice, a sentença transitou em julgado na parte em que nela se considerou verificada a excepção peremptória inominada do abuso de direito e, em consequência, se absolveu a Fazenda Pública do pedido.
Assim, a apreciação do recurso revela-se inútil, uma vez que, ainda que fosse provido, nunca a Recorrente obteria o efeito jurídico pretendido – a revogação da sentença –, uma vez que sempre se manteria o julgamento nela efectuado, de absolvição do pedido com fundamento na excepção do abuso de direito.
A apreciação e decisão do recurso não teria qualquer interesse processual (Revestindo mero interesse teórico ou académico, que aos tribunais não compete tutelar.), interesse que constitui uma condição da admissibilidade do próprio recurso.
Neste sentido se tem vindo a pronunciar a jurisprudência (Vide, por mais recentes, os seguintes acórdãos desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 17 de Outubro de 2012, proferido no processo n.º 583/12, publicado no Apêndice ao Diário da República de 8 de Novembro de 2013 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2012/32240.pdf), págs. 3006 a 3010, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9f4ccd5a4dc9034880257aa10033483b?OpenDocument;
- de 24 de Outubro de 2012, proferido no processo n.º 696/12, publicado no Apêndice ao Diário da República de 8 de Novembro de 2013 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2012/32240.pdf), págs. 3177 a 3185, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3434984cdb89a15f80257aa8003b5358?OpenDocument;
- de 13 de Novembro de 2013, proferido no processo com o n.º 1020/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 26 de Junho de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2013/32240.pdf), págs. 4474 a 4477, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/caec64fb82bc19fd80257c29004adb24?OpenDocument.) e a doutrina (Vide JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, IV volume, anotação 12 ao art. 279.º, pág. 337.).
Por tudo o que deixámos dito, não tomaremos conhecimento do recurso.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - O recurso jurisdicional tem como objecto a sentença recorrida e destina-se a anulá-la ou alterá-la com fundamento em vício de forma (nulidade) ou de fundo (erro de julgamento) que o recorrente entenda afectá-la.
II - Se a sentença julgou improcedente a pretensão do impugnante com mais do que um fundamento, o recurso só terá utilidade (virtualidade de se repercutir na decisão recorrida) se atacar todos esses fundamentos, sendo que se o não fizer relativamente a um deles, sempre a decisão se manterá incólume com base neste (relativamente ao qual se verificou o trânsito em julgado).
III - Nesta circunstância, em que o efeito jurídico pretendido com o recurso não é juridicamente possível, o tribunal ad quem não deve tomar conhecimento do recurso, porque aos tribunais está vedada a prática de actos inúteis (cfr. art. 130.º do CPC).


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em não tomar conhecimento do recurso.

Custas pela Recorrente.


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Lisboa, 14 de Janeiro de 2015. - Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Ascensão Lopes.