Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2390/23.8T8MAI-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: LIVRANÇA
AVAL EM BRANCO
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP202404082390/23.8T8MAI-C.P1
Data do Acordão: 04/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Constitui título executivo um título de crédito, como é uma livrança, desde que não mero quirógrafo, sem que se mostre necessário alegar (e comprovar) a relação subjacente (cfr. al. c), do nº1, do art. 703º, do CPC).
II – Os avalistas de livrança em branco ficam sujeitos à responsabilidade pelo pagamento do valor aposto nesse título (dele resultando a obrigação cambiária), a menos que, no requerimento inicial de embargos de executado, cumpram o ónus de alegar factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito emergente do título de crédito e os venham a lograr provar (cfr. nº2, do art. 342º, e art. 378º, do CC).
III - Não verificada violação do pacto de preenchimento, o prazo de prescrição de três anos, previsto no art.º 70.º, ex vi 77.º, da LULL, para a obrigação cambiária do avalista (cfr. art. 32º, da LULL) conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo portador (não de data de incumprimento do contrato subjacente ou do vencimento da obrigação subjacente, designadamente do decorrente da insolvência do subscritor da mesma).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2390/23.8T8MAI-A.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo de execução da Maia – Juiz 1


Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto:  Des. Fernanda Almeida
2º Adjunto: Des. Teresa Fonseca

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

Recorrentes: AA e BB

Recorrida: Banco 1..., S.A.


AA e BB deduziram, por apenso à execução ordinária para pagamento de quantia certa que Banco 1..., S.A., intentou contra si, embargos de executado, pedindo que se declare o preenchimento abusivo da livrança e, em consequência, que os embargos sejam julgados procedentes e que se declarasse a extinção da execução.
Invocam o preenchimento abusivo da livrança e a prescrição do direito da exequente e, ainda, a inexigibilidade da obrigação exequenda.
Recebidos os embargos, a exequente contestou, respondendo às exceções, impugnando a factualidade alegada pelos embargantes, e concluiu pela sua improcedência.
No despacho saneador, foi julgada improcedente a exceção da prescrição do direito invocado pela exequente, identificado o objeto do processo e enunciados os temas da prova.

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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com a observância das formalidades legais.

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Após, foi proferida sentença com a seguinte

 parte dispositiva:
“Julgo os presentes embargos de executado improcedentes e em consequência, absolvo a exequente do pedido contra si formulado.

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Custas pelos executados embargantes, nos termos do disposto no art. 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.”.

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Apresentaram os embargantes recurso de apelação pugnando por que seja revogada a decisão e substituída por outra que reconheça a prescrição do direito de ação da embargada/exequente com base nas seguintes

CONCLUSÕES:
1. Os ora apelantes não se conformam com a decisão ínsita no despacho saneador que julgou que o direito de ação cambiária da exequente não está prescrito, porquanto o título que serve de base à execução é uma livrança avalizada pelos executados com data de emissão de 17-01-2023 e vencimento a 31-01-2023 e que os executados embargantes foram citados para os termos da execução no dia 19 de março de 2023, concluindo que “a ação executiva deu entrada em juízo muito antes de ter decorrido o prazo de três anos de prescrição do direito de ação previsto no art. 70.º § 1.º, da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, aplicável às livranças ex vi art. 77.º do mesmo diploma, tendo ainda os executados embargantes sido citados antes do decurso desse prazo”.
2. Ora, declarada a insolvência, os credores têm de exercer os seus direitos de crédito no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados nele, sendo esta a solução que se harmoniza com a natureza e a função do processo de insolvência, enquanto execução universal, assim caraterizada pelo art.° 1° do CIRE.
3. Significa isto que a dívida exequenda se venceu com a declaração de insolvência (em 15-01-2020) - art. 91º do CIRE - e não na data aposta na livrança dada à execução (17-01-2023).
4. Por outro lado, a data de emissão da livrança (17-01-2023) tem uma data impossível já que em 17-01-2023 o gerente não tinha capacidade de gozo para praticar atos em nome da A... (neste caso emitir uma livrança) porque, nos termos do artigo 81.º do CIRE, tinha cessado a capacidade para a prática de atos como gerentes.
5. Sendo a obrigação de aval coligada com a obrigação principal (renting) o vencimento da obrigação principal implica o vencimento da obrigação coligada (aval), sob pena do avalista ficar juridicamente prejudicado no exercício dos seus direitos sobre a devedora (insolvente).
6. Estando o aval coligado como renting o prazo de vencimento do aval é igual ao prazo de vencimento da obrigação avalizada que é a data da declaração de insolvência: 15-01-2020.
7. O artigo 70.º da Lei Uniforme de Letras e Livranças determina que as ações contra o avalista prescrevem em três anos a contar do seu vencimento. Ora, tendo já decorrido mais de três anos sobre a data da insolvência (15.01.2020) e tendo os executados sido citados em 19-05-2023, prescreveu o aval, por não ter sido acionado no prazo de três anos.
8. Não está aqui em causa o direito de o Banco preencher a livrança, nem tão pouco que o prazo de prescrição se iniciar a contar da data do vencimento da livrança, conforme prescreve o artigo 70.º, n.º 1 da LULL. Está sim em causa o poder do Banco em escolher livremente a data de vencimento que coloca na livrança.
9. Se se considerar, sem mais, que o Banco pode escolher o momento em que preenche a livrança e, ao fazê-lo, pode inserir de forma arbitrária o momento de vencimento da letra, sem ter em conta outros critérios, os quais são até de índole legal, isto seria equivalente a dizer que o Banco pode, se assim o quiser, contornar o prazo de prescrição previsto no artigo 70.º, n.º 1 da LULL, mesmo sabendo-se que esta norma tem natureza imperativa (cfr. nesse sentido o texto “Aval e prescrição” de Heinrich Ewald Hörster e Maria Emília Teixeira, publicado na Revista de Direito Comercial de 23-01-2022 in https://www.revistadedireitocomercial.com/aval-e-prescricao).
10. Quer dizer, o fator estruturante do início do prazo de prescrição seria determinado pela vontade unilateral do Banco. Todavia, não cabe na vontade do Banco decidir sobre a aplicação daquela norma, pelo que, conceder-se que o prazo de três anos apenas começa a contar a partir da data de vencimento que o Banco escolhe colocar na livrança, é dizer que o prazo de três anos de prescrição começa a contar a partir da manifestação de vontade do Banco, que, por interesse próprio, aporá uma data que impeça o avalista de invocar a prescrição.
11. Com isto fica desvirtuado de forma completa e grosseira o instituto legal da prescrição e a ratio legis daquela norma, concebida toda ela em função da celeridade dos processos cambiários.
12. A admitir-se tal tese, seria o mesmo que dizer que o Banco pode decidir tornar os seus créditos imprescritíveis e dar como letra morta o estipulado no artigo 70.º, n.º 1 da LULL.
13. Neste sentido também Cunha, C. (2018). Aval e Insolvência. Coimbra: Almedina, pp. 79 e 80: “(...) como é sabido, a partir do momento em que se verifica este evento, fica o credor legitimado a preencher o título pelo valor em dívida e a proceder à respectiva cobrança. Mas pode demorar o tempo que entender a efectuar o preenchimento da letra ou livrança? E é inteiramente livre de completar o título, apondo-lhe a data de vencimento que lhe parecer mais conveniente? A resposta é, obviamente, negativa. Mesmo perante – ou sobretudo perante – as hipóteses de subscrição cambiária em branco, não é possível ignorar a valoração legislativa vertida na rapidez da prescrição cambiária. Repare-se: o direito de o portador acionar o sacador e endossantes extingue-se no prazo de um ano a contar do protesto (art. 70.o II da LU); o seu direito contra o obrigado principal (aceitante da letra ou emitente da livrança) extingue-se três anos após o vencimento da letra ou da livrança (art. 70.o I, 77.o VIII e 78.o, I LU). Se o credor, pela sua inércia, deixar esgotar tais prazos, o direito cambiário extingue-se (...). Mas (e este é o busílis da questão) quando se pode dizer exercitável o direito cambiário nas hipóteses de subscrição em branco? Justamente a partir do momento em que o respetivo portador está legitimado a preencher o título – ou seja (tipicamente), a partir da ocorrência do incumprimento e eventual resolução do contrato fundamental. E se é verdade que o credor não está propriamente obrigado a preencher o título nesse exacto momento, a verdade é que impende sobre si o ónus de o fazer com alguma brevidade, sob pena de, decorridos (no máximo) três anos sobre esse instante perder definitivamente a possibilidade de exercitar o direito cambiário contra o obrigado principal. Se persistir em preencher e/ ou acionar o título para lá desse limite temporal, ou em indicar uma data de vencimento posterior a ele, incorre em preenchimento abusivo e culposo nos termos do art. 10.º LU e, por referência à data de vencimento correcta, o direito cambiário deve considerar-se prescrito”.
14. Este resultado perverso que leva à inversão da finalidade do instituto da prescrição que é a de criar certeza, paz e segurança jurídicas, faz com que nunca haja certeza quanto ao fim do prazo de prescrição e, mais ainda, que pudesse nunca ocorrer a prescrição, na medida em que o seu início poderia ser manipulado.
15. É precisamente isto que a lei não permite. É neste sentido que o artigo 300.º do Código Civil determina, expressamente, que são nulos os negócios jurídicos destinados a dificultar “por outro modo” as condições em que a prescrição opera os seus efeitos. E um destes outros modos é precisamente a manipulação do início do prazo de prescrição que impossibilita alcançar o justo equilíbrio dos interesses de credor e devedor, em prejuízo manifesto deste último que em relação ao Banco será sempre a parte mais fraca.
16. No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 11.06.2019, relatado por Sílvia Pires (Proc. N.º 5046/16.4T8CBR-A.C1), disponível em www.dgsi.pt, pode ler-se o seguinte: “A possibilidade conferida ao mutuante de preencher livremente a livrança, designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, confere-lhe um poder de dilatar infinitamente no tempo a cobrança do crédito cambiário, revelando-se, essa possibilidade, desde logo, de uma forma ostensiva, desproporcionalmente desvantajosa para o mutuário, o qual fica, por um período de tempo ilimitado, sujeito a uma indesejável situação de incerteza, o que contraria os ditames da boa-fé objectiva (...)”.
17. O artigo 43.º da LULL refere as situações a partir das quais o portador de uma livrança pode exercer os seus direitos de ação contra os obrigados cambiários, consignando que o pode fazer após a declaração de insolvência do devedor da obrigação garantida.
18. Mais, o artigo 44.º da LULL refere que “no caso de falência declarada do sacado, quer seja aceitante, quer não, bem como no caso de falência declarada do sacador de uma letra não aceitável, a apresentação da sentença de declaração de falência é suficiente para que o portador da letra possa exercer o seu direito de acção”, contra qualquer obrigado cambiário.
19. O regime do artigo 43.º da LULL está em consonância com a parte final do artigo 44.º da LULL, que prevê que, para o acionamento, basta a apresentação da sentença que declarou a insolvência. Daqui decorre que o portador do título em branco pode, uma vez declarada a insolvência, acionar/executar todos os obrigados que figurem no título cambiário, incluindo, naturalmente, o avalista, o que significa que a declaração de insolvência se projeta imediatamente no direito cartular.
20. Ora, atendendo a que a data de vencimento da livrança deve corresponder à data de declaração de insolvência da A...[1], invoca-se a prescrição cambiária da livrança, nos termos do artigo 70º da LULL.
21. “O dador de aval é responsável da mesma forma que a pessoa por ele afiançada” (art 32º LULL), o que significa que o avalista está na mesma posição em que se encontra o avalizado (A...), sendo que os artigos 70º e 32º LULL se aplicam à livrança por força do artigo 77º, primeiro e último parágrafo, da LULL.
22. Assim, claro fica que é a partir do momento da declaração de insolvência da sociedade A... que o Banco 1..., aqui exequente embargado passou a ter o direito de acionar a sua garantia (livrança), devido ao incumprimento da obrigação extracartular subjacente, podendo preencher a livrança contra o avalista e inserindo a data de vencimento, contando-se a partir desta data o prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 70.º, n.º 1 da LULL e não de um dia posterior qualquer que o Banco, arbitrariamente, resolve colocar no título como data de vencimento.
23. É verdade que a LULL não determina um prazo limite para o preenchimento da livrança, mas daí não se pode concluir que o credor a possa preencher quanto ao vencimento do título com qualquer data em que se lhe apraz fazê-lo, sem dependência de prazo ou limite de tempo, arbitrariamente e sem consideração pela outra parte. Está limitado pelo pacto de preenchimento da livrança e pela Lei.
24. Neste sentido, veja-se Carolina Cunha: “… ao questionar o montante a que ascende a sua eventual responsabilidade ou mesmo a contestar a data inscrita no título, o avalista em branco não está a paralisar o direito do credor cambiário invocando factos emergentes de relações alheias. Está, isso sim, a colocar um problema prévio: o problema da divergência entre a vontade que ele próprio manifestou ao subscrever e entregar uma letra em branco (a saber: que venha a ser preenchida nos termos que valerem para o avalizado) e a declaração constante do título tal como veio a ser completado. Trata-se de um problema particular, ao qual o art. 10º LU, enquanto norma especial dá uma resposta específica…”[2] .
25. Se assim fosse, o direito de demandar o avalista, com base no título cambiário, seria suscetível de nunca prescrever, correspondendo-lhe uma vinculação virtualmente vitalícia, contrária aos ditames da ordem jurídica.
26. O entendimento baseado no mero dedutivismo formal, jus-positivista, que o prazo de prescrição começa a contar a partir da data do vencimento, independentemente do momento escolhido, beneficia unicamente um elemento da relação cambiária: os Bancos.
27. Todavia, não é função dos Tribunais, que estão ao serviço da justiça, designadamente da justiça social, legitimar arbitrariedades em detrimento de quem se encontra numa situação de inferioridade. Na verdade, cabe aos Tribunais prestar à sociedade serviços de maior relevância e valia: a garantia da justiça, como resultado da sua fidelidade à lei, e, ao mesmo tempo, garantir a paz social.
28. Com base no que ficou exposto resulta que prescreveu o direito do Exequente/Embargado de acionar os avalistas Executados/Embargantes, visto que foram ultrapassados mais do que três anos desde a data da declaração de insolvência da sociedade anónima avalizada.


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Apresentou a apelada contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso com base nas seguintes

CONCLUSÕES:

A)Vem, o recurso aqui sob escrutínio do despacho saneador, que, conheceu de mérito sobre a exceção da prescrição da ação cambiária, julgando-a improcedente;

B) A decisão proferida não enferma de qualquer vício, sendo isenta de mácula, não violando, por isso, qualquer normativo jurídico;

C) A divida exequenda, não se venceu, no que aos recorrentes diz respeito, com a declaração de insolvência;

D) A execução funda-se numa livrança emitida a favor da recorrida, subscrita, pela sociedade, A..., Ld.ª e avalizada pelos executados, embargantes;

E) Tem como data de emissão 17 de janeiro de 2023 e como data de vencimento, 31 de janeiro de 2023, apresentando-se como portadora daquela – livrança – a recorrida / exequente;

F) A livrança é um título à ordem, pelo qual uma pessoa se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância em certa data;

G) O subscritor de uma livrança é o obrigado principal;

H) O sacado obriga-se pelo aceite a pagar a letra à data do vencimento, sendo que, o pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval;

I) Garantia que é dada por um terceiro, ou pelo signatário da letra, sendo que o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada;

J) O aval é o ato pelo qual um terceiro ou um signatário da letra garante o pagamento da letra por parte de um dos seus subscritores, constituindo, por isso, um negócio cambiário unilateral;

K) O dador do aval mantém a sua obrigação, mesmo no caso de a obrigação, que ele garantiu, ser nula por qualquer razão, exceto por vício de forma;

L) A responsabilidade do avalista não é afetada pela nulidade da obrigação assumida pelo avalizado na letra, com exceção do referido na alínea precedente;

M) O vício de forma, a que se reporta a Lei Uniforme, é o que, respeitando aos requisitos externos da obrigação cambiária do aceite, se torna percetível pela simples inspeção do título;

N) Resulta, assim, que a obrigação do avalista é autónoma;

O) O avalista assume a obrigação emergente da própria letra ou livrança;

P) A sua responsabilidade não é subsidiária;

Q) Mantendo-se a respetiva obrigação;

R) Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador;

S) As disposições legais relativas ao aval, são aplicáveis às livranças, com as necessárias adaptações;

T) O portador pode exercer os seus direitos de ação contra o subscritor e outros coobrigados, no vencimento, se o pagamento não foi efetuado;

U) As ações contra o subscritor relativas a livranças, prescrevem no prazo de três anos a contar do seu vencimento;

V) Prazo igual se aplica à ação do portador contra o avalista do subscritor da livrança;

W) Decorre dos autos, que a ação executiva, baseada na livrança junto aos autos, foi instaurada no dia 17 de abril de 2023;

X) Foi subscrita pela A..., Lda., a favor da recorrida e avalizada pelos executados embargantes, com data de emissão de 17 de janeiro de 2023 e de vencimento de 31 de janeiro de 2023, apresentando-se a exequente como portadora da mesma;

Y) Os recorrentes foram citados para os termos da execução no dia 19 de maio de 2023;

Z) A execução deu entrada em juízo muito tempo antes de ter decorrido o prazo de três anos de prescrição do direito de ação, previsto no artigo 70º, § 1º, da Lei Uniforme, aplicável às livranças ex vi artigo 77º, do mesmo diploma;

AA) A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito.

BB) Incontestável é, que os embargantes / recorrentes, foram citados antes do decurso desse prazo prescricional.

CC) Pelo que se interrompeu o prazo de prescrição do direito de ação da recorrida;

DD) Logo, o direito de ação cambiária da exequente / recorrida, não está prescrito;

EE) A obrigação de aval não está coligada com a obrigação principal, no caso, contrato de Renting;

FF) Sendo o aval um negócio jurídico cambiário autónomo, essa autonomia faz nascer uma obrigação materialmente autónoma, dependente da obrigação principal apenas quanto ao aspeto formal;

GG) Qualquer alteração que possa existir na obrigação garantida pelo aval, por força de uma insolvência ou um qualquer plano de revitalização, é irrelevante para a obrigação dos executados, embargantes, que continuam vinculados ao pagamento da dívida nos termos em que a assumiram quando deram o aval;

HH) O avalista apenas se obriga ao pagamento da quantia titulada no título de crédito;

II) Não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado;

JJ) A obrigação firmada pelo avalista é perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente;

KK) O fim próprio do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário;

LL) A responsabilidade de garantia é primária;

MM) O que quer que ocorra na relação subjacente não possui a virtualidade de se transmitir à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária;

NN) Aplicando-se o plano de insolvência somente à sociedade insolvente que está impossibilitada de cumprir as suas obrigações nada impede que o credor acione os avalistas com vista ao cumprimento da obrigação que assumiram em consequência do aval prestado;

OO) Assim, por tudo quanto atrás ficou dito, é nosso entendimento, com o devido respeito e salvo melhor opinião, não estar prescrito o direito de ação da exequente / recorrida;

PP) Pelo que, bem andou o(a) Meritíssimo(a) Juiz(a) do Tribunal Recorrido ao decidir como decidiu;

QQ) Devendo, assim, ser mantida a decisão recorrida, que julgou improcedente a invocada exceção de prescrição da ação cambiária.


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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, a questão a decidir é a seguinte:

- Da prescrição do direito da exequente.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Foram os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância com relevância para a decisão (transcrição):
a) A exequente é uma instituição financeira que tem por objeto a celebração de contratos financeiros;
b) Tendo, no exercício da sua atividade, celebrado com A..., Lda., e com os executados embargantes os contratos de renting nºs 2573, 2574, 2582 e 2583;
c) A A..., Lda., não pagou todas as prestações a que estava obrigada;
d) No âmbito desses contratos, foi entregue uma livrança em branco, contendo no verso as assinaturas dos ora executados embargantes, efetuadas por estes, a seguir aos dizeres mecanicamente apostos “Bom por aval ao(s) subscritor(es)”;
e) A exequente declarou resolvidos todos os contratos por incumprimento dos mesmos;
f) A exequente informou a A..., Lda., e os ora executados embargantes de que iria proceder ao preenchimento da livrança pelo valor que considerou em dívida à data de 17 de janeiro de 2023, no montante de € 10.401,92 (dez mil e quatrocentos e um euros e noventa e dois cêntimos);
g) Os embargantes, em 4 de Junho de 2016, data da celebração dos contratos de renting, eram gerentes da A..., Lda.;
h) Tendo prestado o seu aval na livrança subscrita pela A..., Lda., como garantia de pagamento das obrigações contratualmente constituídas;
i) A A..., Lda., em novembro de 2019, como forma de reduzir os custos da empresa, entregou todos os carros que detinha em renting com a exequente;
j) Em 15 de janeiro de 2020 a A..., Lda., foi declarada insolvente no processo de insolvência que, sob o nº 230/20.9T8VNF, correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz 1;
l) A exequente não reclamou créditos no processo de insolvência da A..., Lda.;
m) Os executados foram citados para os termos da execução no dia 19 de maio de 2023;
n) A exequente apôs na livrança a data de vencimento de 31 de janeiro de 2023;
o) Da cláusula 26.3 do “Contrato Quadro de Aluguer de Veículo Automóvel sem condutor n.º ...” consta que “Tanto o cliente como o(s) fiador(es)/avalista(s) autorizam expressamente o Banco 1..., em caso de falta de cumprimento de quaisquer obrigações e/ou responsabilidades inerentes à operação acima indicada, a preencher a livrança referida no número anterior pelo valor que for devido, a fixar as datas de emissão e de vencimento, a designar o local de pagamento e o nome da pessoa a quem deve ser paga e, bem assim, a descontar essa livrança e utilizar o seu produto para cobrança do que constituir a totalidade do crédito do Banco 1..., acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos.”;
p) O veículo ..-RV-.. em 26 de outubro de 2020 apresentava 97.380 quilómetros, o veículo ..-RV-.. em 23 de dezembro de 2020 apresentava 129.520 quilómetros e o veículo ..-RR-.. em 30 de julho de 2020 apresentava 113.330 quilómetros;
q) Na quilometragem contratada haveria lugar ao recálculo do preço se a quilometragem efetivamente percorrida por cada um dos veículos, anualmente, excedesse mais de 25% da quilometragem contratada, conforme cláusula 6ª das condições gerais;
r) No processo de insolvência da A..., Lda., foram reconhecidos créditos à ora exequente pelo Sr. Administrador da Insolvência, no valor de € 9.939,71 (nove mil e novecentos e trinta e nove euros e setenta e um cêntimos), por terem sido indicados pelos legais representantes da insolvente;
s) Tendo os referidos créditos sido reconhecidos por sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 6 de janeiro de 2021 e transitada em julgado em 26 de janeiro de 2021;
t) Face à insuficiência da massa insolvente, a ora exequente nada recebeu nesse processo de insolvência;
u) Os ora embargantes aceitaram expressamente o pacto de preenchimento da livrança previsto no contrato;
v) As viaturas em causa não foram devolvidas diretamente pelos embargantes à Leaseplan, sendo por essa razão que não existe um relatório de recondicionamento com os danos e respetivas fotografias;
x) Quando a A..., Lda., entrou em incumprimento e com a finalidade de evitar que a dívida aumentasse, foi acordado com o parceiro da exequente B... a venda das viaturas;
z) A B... faturou os danos relativamente à viatura do contrato ...;
a’) Após a venda das viaturas os contratos foram fechados junto da Leaseplan, com os quilómetros à data, tendo posteriormente sido faturado o excesso de quilómetros;
b’) A exequente, a A..., Lda., representada pelos seus sócios gerentes, os ora embargantes e estes, em seu nome pessoal, na qualidade de fiadores/avalistas, outorgaram no dia 4 de Agosto de 2016 o acordo denominado “Contrato Quadro de Aluguer de Veículo Automóvel sem condutor n.º ...”, mediante o qual a exequente se obrigou a prestar à A..., Lda., serviços de colocação à disposição de veículos automóveis, bem como a gestão dos respectivos custos de manutenção e gestão;
c’) A exequente enviou aos ora embargantes as cartas datadas de 17 de Janeiro de 2023, solicitando o pagamento das seguintes quantias:
- Contrato nº ... – veículo com a matrícula ..-RR-.. – valor total de € 4.412,95 (quatro mil e quatrocentos e doze euros e noventa e cinco cêntimos), sendo € 2.774,43 (dois mil e setecentos e setenta e quatro euros e quarenta e três cêntimos) a título de débito de quilómetros acima do contratado e € 1.564,04 (mil e quinhentos e sessenta e quatro euros e quatro cêntimos) a título de despesas de recondicionamento do veículo, a que acrescem juros de mora e imposto de selo;
- Contrato nº ... – veículo com a matrícula ..-RR-.. – valor total de € 2.337,29 (dois mil e trezentos e trinta e sete euros e vinte e nove cêntimos), sendo € 2.297,84 (dois mil e duzentos e noventa e sete euros e oitenta e quatro cêntimos) a título de débito de quilómetros acima do contratado, a que acrescem juros de mora e imposto de selo;
- Contrato nº ... – veículo com a matrícula ..-RV-.. – valor total de € 2.272,94 (dois mil e duzentos e setenta e dois euros e noventa e quatro cêntimos), sendo € 2.234,58 (dois mil e duzentos e trinta e quatro euros e cinquenta e oito cêntimos) a título de débito de quilómetros acima do contratado, a que acrescem juros de mora e imposto de selo;
- Contrato nº ... - veículo com a matrícula ..-RV-.. – valor total de € 1.378,74 (mil e trezentos e setenta e oito euros e setenta e quatro cêntimos), sendo € 1.355,47 (mil e trezentos e cinquenta e cinco euros e quarenta e sete cêntimos), a título de débito de quilómetros acima do contratado, a que acrescem juros de mora e imposto de selo;
 d’) A exequente é portadora da livrança no valor de € 10.401,92 (dez mil e quatrocentos e um euros e noventa e dois cêntimos), com data de emissão de 17 de janeiro de 2023 e de vencimento de 31 de janeiro de 2023, emitida a favor da exequente, contendo no lugar destinado à assinatura do subscritor o carimbo com os dizeres “A..., Lda.”, seguido da assinatura do embargante AA, contendo ainda no verso os dizeres mecanicamente apostos “Bom por aval ao(s) subscritor(es)”, seguidos das assinaturas dos embargantes; (cfr. original de livrança a fls. 29, dos autos principais)
e’) Em 21 de Outubro de 2019 o veículo ..-RV-.. apresentava 86.110 quilómetros, o veículo ..-RV-.. apresentava 102.682 quilómetros e o veículo ..-RR-.. apresentava 104.474 quilómetros.


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2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou:
a) Que com a entrega dos veículos, os avalistas, ora embargantes, tivessem ficado convencidos de que a dívida ficaria integralmente satisfeita;
b) Que a exequente tivesse imputado à A..., Lda., os quilómetros “nascidos” após a entrega dos veículos;
c) Que a exequente, no decurso do contrato, nunca tivesse cobrado qualquer valor por excesso de quilómetros percorridos pelos veículos;
d) Que os embargantes tivessem sempre cuidado dos veículos com o maior cuidado e zelo.

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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Da prescrição do direito da exequente.


Insurgem-se os executados/embargantes, avalistas da livrança, contra a decisão que julgou improcedente a prescrição do direito da exequente, por a sociedade subscritora da livrança ter sido declarada insolvente mais de três anos antes das datas apostas na livrança, tendo o preenchimento sido abusivo.
Entendeu o Tribunal a quo não se ter demonstrado preenchimento abusivo da livrança em branco, avalizada pelos executados, não se encontrando prescrita a obrigação cambiária.

O direito cartular está sujeito a prazos de prescrição extintiva, nos termos do art. 70.º, da LULL, sendo tais prazos diferentes, consoante as posições dos sujeitos cambiários.

 Comecemos por referir que a prescrição é uma forma de extinção dos direitos cartulares[3] e que para os direitos cambiários há presunções especiais, com prazos prescricionais privativos, estando tais direitos “sujeitos a prazos de prescrição extintiva bastante curtos, que variam consoante a posição relativa dos signatários da letra: tais direitos prescrevem no prazo de 3 anos a contar da data do vencimento (contra o aceitante), de 1 ano a contar do protesto ou do vencimento se houver cláusula dispensando aquele (do portador contra os endossantes ou o sacador), ou de apenas seis meses a contar do acionamento ou pagamento do endossante (do endossante contra os demais endossantes ou o sacador) (art. 70º da LULL). Sublinhe-se que a prescrição dos direitos de um sujeito cambiário não afeta os demais – assim, o art. 71º da LULL determina que a interrupção da prescrição só opera em relação ao signatário a quem respeita (arts. 323º e segs do CCivil) – e não acarreta a extinção dos direitos subjacentes – já que, como vimos, as relações cambiárias e fundamentais coexistem, não importando a extinção prescritiva do crédito cambiário e extinção do crédito causal”[4].

Por força da regra remissiva do art. 77º, da LULL, são aplicáveis às livranças os mesmos prazos de prescrição das letras (arts 70º e 71º).
O prazo de prescrição de três anos, previsto no art.º 70.º, da LULL, é aplicável ao aceitante da letra/subscritor da livrança e ao respetivo avalista, pois que este último responde nos mesmos termos que a pessoa por si afiançada.

Contudo, cumpre reforçar e deixar claro que a prescrição de obrigação cartular, dado o princípio da autonomia, não implica a extinção da obrigação subjacente[5].

Na verdade, a extinção, por prescrição, da obrigação cambiária não atinge a obrigação causal ou subjacente[6].

Cumpre conhecer, olhando às circunstâncias do caso.

Vejamos o decidido. Refere o Tribunal a quo:
“A livrança dada à execução foi entregue em branco, já que, aquando da entrega à exequente, continha a assinatura dos representantes da subscritora, o carimbo desta e as declarações de aval dos executados embargantes, que constam do verso.
E não tinha aposta a data de emissão e de vencimento, a importância em numerário e por extenso, sendo que estes elementos foram aí apostos pela exequente posteriormente à sua entrega.
Ora, preceitua o art. 10º, da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças que, “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.”
Assim, “A letra em branco é aquela a que falta algum dos requisitos indicados no artigo 1º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação e em que o subscritor dá ao credor autorização para a preencher.” (Acórdão da Relação do Porto, de 18 de Novembro de 1997, proferido no processo nº 9730692, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf)
O mesmo sucede em relação à livrança em branco, atento o disposto no art. 77º, daquela Lei Uniforme.
Com efeito, “A livrança em branco destina-se a ser preenchida pelo seu adquirente, sendo essa aquisição acompanhada da atribuição de poderes para o seu preenchimento, o chamado pacto ou contrato de preenchimento. À livrança em branco, de acordo com o disposto no art. 10º, aplicável por força do estatuído no art. 77º, ambos da LULL, é imprescindível que dela conste a assinatura de, pelo menos um dos obrigados cambiários e que essa assinatura tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária.” (Acórdão do S.T.J., de 30 de Setembro de 2010, proferido no processo nº 2616/07.5TVPRT-A.P1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf)
Ora, “A assinatura em branco numa letra ou livrança faz presumir a vontade de fazer seu o texto que no título vier a ser escrito – vontade confessória – pelo que tal presunção beneficia o apresentante do título, cabendo ao subscritor demandado provar que o preenchimento do mesmo não se acha em conformidade com o ajustado.” (Acórdão da Relação do Porto, de 17 de Setembro de 2001, proferido no processo nº 0150854, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf)
“O contrato de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc…” (Abel Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças – Anotada”, 7ª Edição, Lisboa, 1996, pág. 80)
Este acordo, que pode ser expresso ou de induzir perante os factos que forem assentes, reporta-se à obrigação cartular em si mesma, o que pode ou não coincidir com a obrigação que esta garante e que daquela é causal ou subjacente”.
E mais refere “verifica-se que os embargantes, que são avalistas na livrança dada à execução, não são sujeitos da relação contratual subjacente à emissão da mesma.
Na verdade, no contrato subjacente à emissão da livrança, intervieram exequente e a A..., Lda., esta representada pelos seus sócios gerentes, os ora executados embargantes, os quais intervieram ainda a título pessoal na qualidade de avalistas da livrança emitida.
Ora, “O avalista não é sujeito da relação jurídica originária da obrigação cartular, antes e tão só da relação fundada no próprio aval, a qual só pode ser invocada, como é apodíctico, nas relações entre o avalista e avalizado.” (Pedro de Vasconcelos, in “Direito Comercial”, Títulos de Crédito, pág. 128)
Assim, “I – A obrigação do avalista é uma obrigação materialmente autónoma, ainda que formalmente dependente da do avalizado. II – Atenta essa autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções do avalizado, salvo no que concerne à excepção do pagamento.” (Acórdão do S.T.J., de 27 de Abril de 1999, proferido no processo nº 99A274, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf; no mesmo sentido, o Acórdão da Relação do Porto, de 11 de Julho de 2005, proferido no processo nº 0553750, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf)
Com efeito, “Não sendo os avalistas/embargantes sujeitos da relação subjacente à emissão do título cambiário (livrança), não podem deduzir defesa, ou oposição à execução, com base na relação extracartular, por a ela serem alheios.” (Acórdão da Relação do Porto, de 22 de Março de 2004, proferido no processo nº 0450120, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf)
Assim sendo, em princípio, o avalista carece de legitimidade para invocar quaisquer meios de defesa respeitantes ao avalizado, com excepção do pagamento.
Não obstante, in casu, os embargantes intervieram no respectivo pacto de preenchimento e a livrança encontra-se no domínio das relações imediatas, pelo que aqueles poderiam invocar a excepção de preenchimento abusivo.
Com efeito, “1 – No domínio das relações imediatas, e tratando-se de uma livrança em branco, é livremente oponível ao portador da letra a inobservância do pacto de preenchimento; 2 – A obrigação do avalista é materialmente autónoma, ainda que formalmente dependente da do avalizado; 3 – Atenta esta autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções do avalizado, salvo no que concerne ao pagamento; 4 – Mas, se tiver intervindo no pacto de preenchimento, pode opor ao portador, se o título não tiver entrado em circulação, a excepção do preenchimento abusivo; 5 – Ficando a seu cargo o respectivo ónus da prova;” (Acórdão do S.T.J., de 11 de Fevereiro de 2010, proferido no processo nº 1213-A/2001.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf)
Na verdade, “Tendo o embargante a qualidade de avalista, incumbia-lhe alegar e provar factos que lhe permitissem invocar o preenchimento abusivo, designadamente que interveio no pacto de preenchimento, onde então lhe seria possível questionar a obrigação exequenda, afirmando nomeadamente a sua inexistência por pagamento das quantias mutuadas (art. 342º, nº 2, do Código Civil). É que esta alegação desempenharia a função de excepção no confronto com o direito que o exequente pretende fazer valer na execução, assim fazendo uma oposição de mérito à execução.” (Acórdão do STJ, de 30 de Setembro de 2010, proferido no processo nº 2616/07.5TVPRT-A.P1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf)
Por outro lado, “Sendo os embargos de executado uma verdadeira acção declarativa, uma contra-acção do executado à acção executiva do exequente, com vista a impedir a execução ou a obstar à produção dos efeitos do título executivo, é sobre o embargante que recai o ónus de alegação e prova da inexistência da causa debendi ou do direito do exequente ou factos que, em processo normal, constituiriam matéria de excepção – factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito (art. 342º, nº 2, do C.C.). A livrança em branco é – tal como a letra em branco – uma livrança de formação sucessiva em que a obrigação cambiária só nasce ou se constitui quando o título vier a ser ulteriormente preenchido, conforme o acordo prévio – posição que é a mais conforme à literalidade dos títulos de crédito e ao sentido profundo da estatuição constante do art. 1º, da LULL. Invocando-se o preenchimento abusivo, tem aquele a quem é pedido o pagamento de alegar os termos do acordo cuja violação permita concluir pela violação do pacto de preenchimento, pois que, tratando-se de excepção peremptória – facto impeditivo do direito invocado pelo portador do título – terá, não só de alegar, como de provar os respectivos factos (artigos 493º, do CPC e 342º, nº 2, do CC.” (Acórdão da Relação do Porto, de 27 de Janeiro de 2005, proferido no processo nº 0437299, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf)”.

Assim, não verificado preenchimento abusivo da livrança em branco, avalizada pelos executados, constata-se, também, não poder ser considerada prescrita a obrigação cambiária, adianta-se, questão esta objeto do recurso e a apreciar.
Convocam os apelantes, para a apreciação da questão da prescrição, que a subscritora, A..., Lda., foi declarada insolvente em 15 de Janeiro de 2020, estando a exequente obrigada a preencher a livrança com tal data, face ao acordado na cláusula 26.3, e, tendo-lhe a mesma aposto outra (do ano de 2023), verifica-se preenchimento abusivo, mostrando-se, por referência à data da declaração de insolvência da subscritora, por isso, prescrito o direito cambiário.
Ora, bem decidiu o Tribunal a quo não se verificar preenchimento abusivo, não resultando demonstrada violação do pacto de preenchimento, não tendo sido acordada a aposição da data de declaração de insolvência da subscritora nem outra concreta data.
Na verdade, pelo pacto de preenchimento foi atribuído à exequente o direito a proceder ao preenchimento da livrança em caso de incumprimento do contrato que deu origem à emissão da mesma, apondo-lhe a data de emissão e de vencimento e os montantes ainda em dívida, não estando a mesma impedida de  recorrer à ação executiva para realização coativa da prestação contra os avalistas, face ao disposto no art. 817º, do Código Civil, que preceitua que, “Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor”.
Quanto à questão do ónus de alegação e da prova dos fundamentos dos embargos, pacífico é, na doutrina e jurisprudência, que recai sobre os embargantes o ónus de alegar factos de onde resulte o preenchimento abusivo ou outra circunstância a integrar defesa por exceção e o ónus de os demonstrar.
Assim tivemos já, também, nós oportunidade de decidir e de tomar posição, como aconteceu no Ac. desta Relação de 19/12/2023, proc. nº 5168/22.2T8MAI-A.P1, em que a ora Relatora foi adjunta, com o sumário: “1. A entrega de títulos de crédito “em branco”, subscritos pelos devedores, mas sem que neles seja aposta qualquer quantia ou data de vencimento, é prática comum nas relações comerciais valendo como uma “garantia imprópria” de pagamento de obrigações emergentes de contratos e/ou do seu incumprimento; 2. O subscritor de livrança em branco fica sujeito a ver-se responsabilizado pela aposição nesse título de um valor e de uma data a que previamente deu o seu acordo, nos termos do pacto celebrado com vista ao seu preenchimento; 3. Apresentado à execução um tal título de crédito, o ónus de alegação e prova de um preenchimento abusivo, violador do acordo nesse sentido firmado e, portanto, passível de censura ético jurídica, é do embargante já que se trata de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito”.
Neste Acórdão se analisou do direito aplicável à execução de títulos de crédito e da questão do preenchimento de livrança em branco, decidindo-se, com inteira pertinência para o caso sub judice (citando-se as respetivas notas, no local próprio, para melhor perceção):

tal título de crédito consubstancia título executivo sem necessidade de invocação de relação subjacente nos termos do previsto no artigo 703º, número 1 c), a contrario, do Código de Processo Civil e artigos 17º e 75º a 78º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.

Assim, fundada a execução em título de crédito, estava o exequente dispensado de invocar qualquer relação subjacente à sua emissão valendo a mesma como demonstrativa de que foi estabelecida uma relação cambiária que foi, aliás, a causa e pedir da execução.

Era, porém, lícito à Embargante, enquanto obrigada cambiária, invocar tal relação subjacente nos termos do previsto no artigo 731º do Código de Processo Civil, que lhe permite opor-se à execução com os mesmos fundamentos que podia discutir o seu débito em ação declarativa.

Tal oposição, que agora, em sede de recurso, se restringe ao não cumprimento do acordo de preenchimento/preenchimento abusivo, sustenta-se na alegação de que a Exequente apôs nesse título - que lhe fora entregue em branco para garantia de cumprimento de contrato que ambas celebraram -, quantia que não lhe é devida.

A entrega de títulos de crédito “em branco”, subscritos pelos devedores, mas sem que neles seja aposta qualquer quantia ou data de vencimento, é prática comum nas relações comerciais valendo como uma “garantia imprópria” de pagamento de obrigações emergentes de contratos e/ou do seu incumprimento.

Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte[7] referem-se a essa prática afirmando: “É certo que a letra em branco e, mais vulgarmente, a livrança em branco não são usadas tão-só como meios de caução; com alguma frequência recorre-se a estes títulos de crédito para assegurar o cumprimento de uma obrigação, só que, em tal caso, eles não consubstanciam uma garantia especial”

Carolina Cunha[8], afirma, a propósito que “A utilização do título em branco compreende-se como uma prestação de garantia num contexto de relativa incerteza. Supõe, normalmente, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido (porque falta determinar o respectivo montante, ou porque se aguarda o seu vencimento), ou no seio da qual se prevê como apenas eventual a constituição de um direito de crédito. Ocorre, sobretudo, no âmbito de relações duradouras com prestações pecuniárias como expediente para fazer face ao espectro do incumprimento. Ou seja, determinante do recurso à letra em branco é tanto o carácter ilíquido da dívida como o seu carácter futuro e incerto”.

Assim, é imprescindível que seja celebrado um acordo para preenchimento da livrança em branco que, nas palavras de Romano Martinez e Fuzeta da Ponte[9], “(…) corresponde a um protocolo complementar ou acessório, também designado por side letters, nos termos do qual se pretende regulamentar o contrato, dito base (no caso concreto a livrança em branco”.

O subscritor de livrança em branco fica, assim, nos termos do pacto celebrado com vista ao seu preenchimento, sujeito a ver-se responsabilizado pela aposição nesse título de um valor e de uma data a que previamente deu o seu acordo.

Caso o título tenha sido preenchido abusivamente poderá socorrer-se do regime do artigo 10º da Lei Uniforme das Letras e Livranças (por via da remissão do seu artigo 77º) de que decorre, a contrario, que se o título tiver sido preenchido contrariamente aos acordos realizados, pode a inobservância dos mesmos ser oposta ao portador que tenha cometido uma falta grave.

Regressando às palavras de Carolina Cunha[10] “A solução do art. 10º LU pode, portanto, resumir-se deste modo: quem voluntariamente emite uma letra incompleta suporta o risco inerente a essa sua atuação – o risco da inserção de um conteúdo não coincidente com a sua vontade – a menos que se verifique um particular desmerecimento na posição do portador-adquirente por a sua atuação ser passível de um juízo de censura ético-jurídica.”

Provou-se, no caso, que a subscrição da livrança pela Recorrente foi contemporânea de um acordo de preenchimento e foi emitida precisamente para ser preenchida caso se viesse a verificar incumprimento das suas obrigações caso em que o portador poderia preencher tal título com um valor correspondente “(…) ao saldo em dívida de capital, juros e demais encargos e despesas emergentes do presente contrato (…)

Assim, o ónus de alegação e prova de um preenchimento abusivo, violador do acordo nesse sentido firmado e, portanto, passível de censura ético jurídica é da embargante porquanto se trata de  facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito – cfr. artigos  342º, número 2 e 378º, do Código Civil, e 571º, n.º 2, e 731º, do Código de Processo Civil.[11][12].
Decorre dos factos provados que a livrança em causa foi entregue em branco e, embora quando emitida se não mostrasse completa, a lei permite seja, posteriormente, completada (validamente) em conformidade com o acordado, nos termos do denominado pacto de preenchimento.
  O acordo de preenchimento é uma convenção extracartular, não sujeita a forma, em que as partes ajustam os termos em que deverá ser definida a obrigação cambiária, como seja o montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, devendo o preenchimento do título ser efetuado em conformidade com o convencionado, sob pena de violação do pacto de preenchimento.
Uma vez completado o preenchimento do título e colocado este em circulação, cabe distinguir o domínio das relações mediatas do domínio das relações imediatas e, no âmbito destas, é lícito invocar a violação do pacto de preenchimento, embora recaia sobre o obrigado cambiário o ónus da prova dos factos que a densificam (cfr. artigos 342º n.º 2 e 378º do Código Civil e artigos 10º e 17º da LULL, a contrario)[13].
Em regra, o avalista apenas poderá invocar, perante o credor, o pagamento por parte do devedor seu avalizado. Ressalvam-se os casos em que o avalista, nessa qualidade, intervém no contrato que dá origem à livrança, do qual resultou a dívida cambiária avalizada, pois, nesta parte, o avalista não é terceiro, mas sim parte nesse contrato. Se desse contrato resultarem relações jurídicas que lhe tenham concedido direitos ou deveres, estamos no domínio das relações imediatas, pois não há aqui interposição de outras pessoas[14].
Como se analisou no Ac. RG de 17/12/2018, proc. nº 337/17.0T8PTL.G1, em que a ora relatora foi adjunta, citando-se, também, as respetivas notas para melhor perceção:

“O aval pode ser prestado por um terceiro ou por um signatário da letra ou da livrança (art. 30º/2 e 77º da LULL) e tem de ser prestado a favor de um dos obrigados, sem prejuízo de não constar do aval a designação daquele por quem é dado, se considerar prestado a favor do sacador da letra (art. 31º/4 da LULL) e, tratando-se de livrança, a favor do subscritor desta (art. 77º, parte final, da LULL).

O aval é escrito na letra ou na livrança ou numa folha anexa e exprime-se pelas palavras “bom por aval” ou qualquer outra fórmula equivalente e a simples assinatura na face anterior da letra, que não seja a do sacador ou do sacado, vale como aval (art. 31º da LULL), ou, no caso de livrança, a simples aposição de assinatura na face anterior desta, que não seja a do subscritor, vale como aval (art. 77º da LULL).

Nos termos do art. 32º da LULL, o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, o que significa que a responsabilidade do avalista se determina pela do avalizado, sendo esta sua responsabilidade não subsidiária, mas sim solidária e cumulativa[15].

Acresce que a posição do avalista, como a de qualquer interveniente na letra ou na livrança, é também autónoma, posto que o aval subsiste mesmo que o ato do avalizado seja nulo por qualquer razão que não seja um vício de forma (art. 32º/2 da LULL), pelo que com a prestação do aval, o avalista passa a ser um devedor cambiário, sujeito de uma obrigação cambiária, embora dependente, no plano formal, da do avalizado (art. 47º e 77º da LULL), essa sua obrigação é materialmente autónoma em relação à do avalizado, de modo que a sua obrigação se mantem mesmo no caso em que a obrigação garantida seja nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

A autonomia do aval traduz-se assim, “num regime segundo o qual o avalista é responsável pelo pagamento da obrigação cambiária própria, como avalista, que se define pela do avalizado, mas que vive e subsiste independentemente desta. Assim, o avalista do sacador é responsável mesmo que a assinatura do sacador seja falsa ou de uma pessoa fictícia (art. 7º da LULL), porque o avalista garante, não só que o sacador pagará, mas também a sua genuinidade”[16]. Ele responde, mesmo que o avalizado não deva responder. A garantia dada pode funcionar separadamente da obrigação deste, o que significa que “o avalista não está só em posição paralela à do avalizado; está numa posição de todo autónoma em relação a este”[17].

Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador, o mesmo acontecendo com o subscritor, endossantes ou avalistas de uma livrança (arts. 47º/1 e 77º da LULL), tendo o portador da letra ou da livrança o direito de acionar todas estas pessoas, individual ou coletivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram”[18].

Resulta, pois, assim, que: “Sendo o título executivo uma livrança, quem nele se obriga, mediante a aposição da respetiva assinatura, assume a respetiva obrigação cambiária. IV- Obrigação esta que se caracteriza pela sua natureza abstrata e formal/literal, independente de qualquer relação subjacente, sem prejuízo de no âmbito das relações imediatas esta relação subjacente poder ser discutida. V- Encontram-se no âmbito das relações imediatas aqueles que de forma direta se encontram ligados através da relação subjacente. VI- Considera-se que o avalista que teve intervenção direta no contrato subjacente à emissão do título que avaliza e/ou no pacto de preenchimento deste último, se situa no âmbito das relações imediatas e como tal poderá discutir com o credor/portador as exceções derivadas de tal relação subjacente ou pacto de preenchimento. VII- Enquanto factos impeditivos ou extintivos do direito do portador do título cambiário/exequente, cabe ao embargante alegar e fazer prova desses mesmos factos”[19].

E “Declarada a insolvência, os credores têm de exercer os seus direitos de crédito no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados nele, sendo esta a solução que se harmoniza com a natureza e a função do processo de insolvência, enquanto execução universal, assim caraterizada pelo art.° 1° do CIRE. II - Independentemente de o devedor estar a cumprir as suas obrigações relativamente a um determinado credor, da declaração de insolvência decorre que, por regra, todas as obrigações do devedor se consideram vencidas a partir da respetiva data. III - Por regra, o plano de insolvência não interfere com as garantias reais e pessoais dadas por terceiro ao devedor insolvente, podendo ser executadas apesar do plano. IV - O aval é um ato cambiário que origina uma obrigação autónoma independente e pessoal, cujos limites são aferidos pelo próprio título. Por ele, o avalista assume, ele próprio, a responsabilidade abstrata e objetiva pelo pagamento da letra, da livrança ou do cheque. V - Não obstante a literalidade e a abstração que caraterizam o título executivo e as obrigações (cambiárias) nele assumidas, assim como a autonomia do aval relativamente à obrigação do avalizado, pode - independentemente de qualquer pacto de preenchimento e da relação jurídica causal ou fundamental - ser estabelecida uma convenção extracartular entre o avalista e o credor, designadamente quanto ao modo como, em concreto e perante o avalista, o credor é admitido a exercer a sua pretensão cambiária. VI - Por se tratar então e uma relação imediata entre avalista e credor, pode ser suscitada e discutida entre eles em sede de embargos de executado”[20].

Não provada nas circunstâncias do caso violação do pacto de preenchimento, o prazo de prescrição não pode deixar de contar da data de vencimento, aposta na livrança, posterior à declaração de insolvência, pois que não resulta verificada situação de abuso.

Na verdade, “I-Uma vez que não há norma legal que estabeleça um prazo para o preenchimento da livrança em branco, se o pacto de preenchimento não estabelece um limite temporal para esse preenchimento, o portador do título não está obrigado a preencher o título em qualquer prazo. II- Se o pacto de preenchimento não estipula que a data de vencimento a preencher no título em branco terá de ser uma data específica (v.g. o vencimento do crédito na relação fundamental, a declaração de insolvência de um obrigado cambiário), a data aposta no título não é, em princípio, ilegítima. III- O exercício do direito cambiário é ilegítimo quando o portador da livrança emitida por preencher conhece e controla a constituição do crédito à luz da relação fundamental, o subscritor da livrança é declarado insolvente, o portador do título não reclama o seu crédito no processo de insolvência e preenche o título com uma data de vencimento praticamente dez anos posterior àquela declaração e só então instaura execução com base na livrança contra o avalista do subscritor, não havendo notícia de que durante esse período tenha procurado cobrar o seu crédito[21].

No caso temos que a data de vencimento da livrança pouco passa dos três anos posteriores à declaração de insolvência e a aposição de data mais não representa do que o normal exercício de um direito, tutelado por lei, em materialização do acordado entre as partes.

Assim o vem a entender a jurisprudência, entre a qual nos incluímos, como se pode constatar da análise dos casos que passamos a citar: 

- Acórdão do STJ de 19/6/2019, onde se decidiu:
I - Numa livrança em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 70º ex vi do artigo 77º, da LULL conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, quer essa data coincida ou não com o incumprimento do contrato subjacente ou com o vencimento da obrigação subjacente, nomeadamente quando esse vencimento decorre da insolvência do subscritor, em conformidade com o preceituado no artigo 91º, n.º 1, do CIRE.
II - Os avalistas de livrança em branco, destinada a caucionar um contrato de abertura de crédito em conta-corrente, atribuem ao portador o direito de preencher o título nos termos constantes do pacto de preenchimento.
III - Havendo pacto de preenchimento, tal pacto deve ser objecto de interpretação à luz dos critérios previstos no artigo 236º e seg. do Código Civil.
IV - Tendo o avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento, tal como o subscritor, é-lhe possível opor ao beneficiário a excepção material de preenchimento abusivo do título.
V - O prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 70º da LULL é aplicável ao aceitante/subscritor e ao respectivo avalista, pois que este último responde nos mesmos termos que a pessoa por si afiançada”[22];
- Acórdão da RP de 12/10/2021, a considerar:
 II – O pacto de preenchimento deve ser objecto de interpretação à luz dos critérios previstos no art.º 236.º do CC – teoria da impressão do declaratário.
III – O prazo de prescrição de três anos previsto no art.º 70.º da LULL é aplicável ao aceitante/subscritor e ao respectivo avalista, pois que este último responde nos mesmos termos que a pessoa por si afiançada.
IV – Se não há violação do pacto de preenchimento, numa livrança em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no art.º 70.º “ex vi” 77.º da LULL, conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, quer essa data coincida ou não com o incumprimento do contrato subjacente ou com o vencimento da obrigação subjacente, nomeadamente quando esse vencimento decorre da insolvência do subscrito, nos termos do art.º 91.º n.º1 do CIRE.
V – Se o avalista opta por lançar mão da invalidade da cláusula que integra o pacto de preenchimento em que interveio, com a respectiva exclusão do contrato, auto-exclui-se da intervenção no campo das relações imediatas com o portador da livrança, a coberto das quais poderia invocar e fazer valer a excepção de preenchimento abusivo”[23];

- Acórdão da RP de 12/10/2021, onde vem sumariado:

“I. Atendendo a que o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, daí decorre que ao avalista do subscritor da livrança é aplicável o mesmo prazo prescricional de três anos que se refere ao subscritor e que se inicia na data do respetivo vencimento.

II - A declaração de insolvência do subscritor da livrança determina o imediato vencimento da obrigação que para o mesmo emergia da relação subjacente estabelecida com o credor, o que permite a este exigir, desde logo, a respetiva obrigação cambiária, podendo proceder, nessa data, ao preenchimento para esse fim da livrança emitida em branco, designadamente apondo-lhe como data de vencimento a data da sentença de insolvência.

III - Porém, o preenchimento, nesta situação, de livrança emitida em branco com a aposição na mesma de uma data de vencimento posterior à da sentença de insolvência é de admitir se tal não constituir violação do que fora acordado no respetivo pacto de preenchimento.

IV - Assim, não havendo violação desse pacto de preenchimento o prazo de prescrição de três anos previsto no art. 70º da LULL conta-se a partir da data de vencimento que seja aposta na livrança pelo respetivo portador”[24];

- Acórdão da RL de 22/6/2021, onde vem sumariado:

“1. A obrigação do avalista, embora dependente da do avalizado quanto ao lado formal, é materialmente autónoma, assim, não sofrendo o aval de vício de forma, nem sofrendo a obrigação cambiária que garante desse mesmo tipo de vício, o avalista responde perante o portador da livrança, não podendo opor-lhe quaisquer vícios que atinjam a obrigação do avalizado, à exceção do pagamento (total ou parcial).

2. A declaração de insolvência do avalizado não é impedimento substantivo à execução do avalista.

3. Se no pacto de preenchimento foi dada autorização à mutuante para fixar livremente a data de [25]vencimento da livrança, sem qualquer limite temporal, e sem referência a qualquer facto relevante, não há preenchimento abusivo da mesma quando aquela a preenche anos depois do incumprimento ou da resolução do contrato garantido pela livrança, e desde que da factualidade provada não resulte ser o seu comportamento abusivo.

4. Inexistindo violação do pacto de preenchimento, o prazo de prescrição previsto no art. 70º da LULL, aplicável ex vi do art. 77º da mesma Lei, conta-se a partir da data de vencimento aposta no título pelo portador”.

No caso da invocada cláusula 26.3 consta que “Tanto o cliente como o(s) fiador(es)/avalista(s) autorizam expressamente o Banco 1..., em caso de falta de cumprimento de quaisquer obrigações e/ou responsabilidades inerentes à operação acima indicada, a preencher a livrança referida no número anterior pelo valor que for devido, a fixar as datas de emissão e de vencimento, a designar o local de pagamento e o nome da pessoa a quem deve ser paga e, bem assim, a descontar essa livrança e utilizar o seu produto para cobrança do que constituir a totalidade do crédito do Banco 1..., acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos.” (negrito e sublinhado nosso).

Assim, não resultando existir violação do pacto de preenchimento, antes atuação conforme ao convencionado, no exercício da liberdade contratual, sendo os contratos para ser cumpridos (cfr. art. 405º e seg. do Código Civil), o prazo de prescrição, de três anos, previsto no art. 70º da LULL, que se conta a partir da data de vencimento aposta na livrança pelo respetivo portador, não se mostra decorrido.
Mantém-se, pois, o decidido.
Sendo os embargos de executado uma verdadeira ação declarativa, uma contra ação do executado à ação executiva do exequente, com vista a extinguir a execução ou a obstar à produção dos efeitos do título executivo, é sobre os embargantes que recai o ónus de alegação e o de prova da inexistência de causa debendi ou do direito do exequente, de factos que, em processo declarativo, constituiriam matéria de exceção, densificando causa impeditiva, modificativa ou extintiva daquele direito (art. 342º, nº2, do CC) - neste sentido cfr, entre muitos disponíveis in dgsi.pt, Ac. RL de 13/11/2008, CJ, 2008, 5º, 84 – que não o satisfazendo não podem deixar de ver a sua pretensão soçobrar.
Destarte, não pode, pois, o recurso deixar de improceder.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelos apelantes, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.

*

Da responsabilidade tributária.

As custas do recurso são da responsabilidade dos recorrentes dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).


*

III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


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Custas pelos apelantes, pois que ficaram vencidos – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.


Porto, 8 de abril de 2024

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
_______________
[1] Ou, no limite, até 3 anos a contar da data de declaração de insolvência, por razões que se prendem com o decurso do prazo (prescrição) de exercício do direito cambiário contra o avalista.
[2] CAROLINA CUNHA, em “Aval e Insolvência”, Almedina, 2017, pag. 26.
[3] António Pereira de Almeida, idem, pág. 298
[4] José A. Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito, Coimbra Editora, pág. 107 e seg.
[5] António Pereira de Almeida, idem, pág. 299
[6] Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, 6ª Edição, Livraria Petrony, Lda, pág. 349
[7] Garantias de Cumprimento, Almedina, 2ª edição, página 41.
[8] Manual de Letras e Livranças, Almedina, págs. 165/166.
[9] Obra e página citadas.
[10] Obra citada, página 179.
[11] Neste sentido, entre muitos outros e a título meramente exemplificativo, o acórdão desta secção de 11-05-2020, no processo 56/19.2T8LOU-B.P1 e o do Supremo Tribunal de Justiça de 11-11-2004 no processo 04B43453 ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt
[12] Ac. da RP de 19/12/2023, proc. nº 5168/22.2T8MAI-A.P1
[13] Cfr. Acs. do STJ de 9/7/15, proc. 1306/12, de 20/5/2015, proc. 448/11, de 13/1/2015, proc. 4813/11, de 13/11/2018, proc. 2272/05, de 28/9/2017, proc. 779/14 e de 12/10/2017, proc. 1097/14, todos citados in António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 88 e seg.
[14] Ac. RP de 29/6/2015, proc. 1106/12.9YYPRT-B.P1 (Relator: Senhor Desembargador Alberto Ruço), in dgsi.pt
[15] Pedro Pais de Vasconcelos, “Direito Comercial, Títulos de Créditos”, Associação Académica da Faculdade de Lisboa, 1990, pág. 126.
[16] Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit., págs. 127 e 128.
[17] Oliveira Ascensão, ob. cit., págs. 170 e 171.
[18] Ac. RG de 17/12/2018, proc. nº 337/17.0T8PTL.G1 (Relator: Senhor Desembargador José Alberto Moreira Dias).
[19] Ac. TRP de 2/12/2019, proc. nº. 8/12.3TBFLG-A.P2.
[20] Ac. RP de 11/3/2021, proc. 268/20.6T8OVR-A.P1 (Relator: Senhor Desembargador Filipe Caroço), in dgsi.pt
[21] Ac. RP de 7/12/2023, proc. 2456/22.1T8MAI-A.P1 (Relator: Senhor Desembargador Aristides Rodrigues de Almeida), in dgsi.pt
[22] Ac. do STJ de 19/6/2019, proc. 1025/18.5T8PRT.P1.S1 (Relator: Senhor Desembargador Bernardo Domingos), acessível in dgsi
[23] Ac. RP de 7/1/2019, proc. 1025/18.5T8PRT.P1 (Relator: Senhor Desembargador Jorge Seabra)
[24] Ac. RP de 12/10/2021, proc. 2404/19.6T8AGD-B.P1, acessível in dgsi.pt (Relator: Senhor Desembargador Rodrigues Pires).
[25] Ac. RL de 22/6/2021, proc. 12604/19.3T8SNT-A.L1-7, in dgsi.pt