Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00001112
Parecer: I000831998
Nº do Documento: PIN19981028008300
Descritores: PROJECTO
CONVENÇÃO INTERNACIONAL
CONSELHO DA EUROPA
PROTECÇÃO DO AMBIENTE
ASSINATURA
RESERVA A TRATADO
AMBIENTE
REPOSIÇÃO
BEM JURÍDICO
DIREITOS ECONÓMICOS
DIREITO A PRESTAÇÕES DO ESTADO
DEFINIÇÃO
ÁGUAS
CRIME
HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO
OFENSA CORPORAL
DANO
POLUIÇÃO
CRIME DE PERIGO ABSTRACTO
CRIME DE PERIGO CONCRETO
CRIME CONTRA O AMBIENTE
DESOBEDIÊNCIA
CONTRA-ORDENAÇÃO
CUMPLICIDADE
SUBSTÂNCIAS PERIGOSAS
MATERIAL NUCLEAR
SUBSTÂNCIAS RADIOACTIVAS
ACÇÃO POPULAR
TIPO LEGAL DE CRIME
Livro: 00
Numero Oficio: 2452
Data Oficio: 10/02/1998
Pedido: 10/08/1998
Data de Distribuição: 10/08/1998
Relator: SOUTO DE MOURA
Sessões: 00
Data Informação/Parecer: 10/28/1998
Sigla do Departamento 1: MNE
Entidades do Departamento 1: DIRECÇÃO-GERAL DOS ASSUNTOS MULTILATERAIS
Privacidade: [09]
Indicação 2: ASSESSOR: MARTA PATRÍCIO
Área Temática:DIR AMB / DIR CONST * DIR FUND / DIR CRIM / DIR INT PUBL * DIR TRAT.
Legislação:CONST822 ART223.; CONST76 ART17 ART66 N1 N2.; CP95 ART4 ART5 N2 ART27 ART109 ART110 ART111 ART112 ART131 ART143 ART212 ART272 ART273 ART275 ART278 N1 N2 N3 ART279 N1 N2 N3 ART280.; L 11/87 DE 1987/04/11 ART46 ART48.; DL 109/94 DE 1994/04/26 ART21 ART68.; DL 164/84 DE 1984/05/21.; DL 488/85 DE 1985/25/11.; DL 221/88 DE 1988/06/28 ART9.; DL 121/90 DE 1990/04/09 ART14.; DL 88/91 DE 1991/02/23 ART6.; DL 117/94 DE 1994/05/03 ART17.; DL 348/89 DE 1989/10/12 ART12.; DRGU 34/92 DE 1992/12/04 ART78.; L 83/95 DE 1995/08/31 ART1 ART25
Direito Comunitário:
Direito Internacional:
              CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES SOBRE O AMBIENTE HUMANO DE 1972
              DEC DE ESTOCOLMO SOBRE O AMBIENTE HUMANO
              REL COM MUNDIAL PARA O AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (COMISSÃO BRUTLAND)
              AGENDA 21 DAS NAÇOES UNIDAS (CONJUNTO DE MEDIDAS A TER EM CONTA PARA PROTEGER O AMBIENTE NO SÉCULO XXI).
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões: 1ª - A Convenção em apreço afigura-se-nos redigida em termos tecnicamente deficientes, designadamente na estruturação dogmático-jurídica dos tipos legais de crime.

2ª - A sua eficácia mostra-se à partida previsivelmente prejudicada por um número excessivo de possibilidades de declarações e reservas.

3ª - A Convenção em apreço não vem trazer a necessidade de importantes alterações legislativas entre nós, caso seja adoptada, para se obter a tutela penal do ambiente que aquela pretende, muito embora os instrumentos júridicos usados entre nós e nela previstos não sejam tecnicamente coincidentes.

4ª - Existem vários aspectos em que se verifica uma falta de ajustamento entre a nossa legislação interna actual e o Projecto de Convenção. Tentemos enumerá-los:

a) No Projecto propõe-se uma criminalização de comportamentos ora em termos de crimes de dano, ora de perigo concreto ou perigo abstracto. Entre nós, o sistema é integrado por um leque vasto de contra-ordenações, por crimes de dano ou perigo concreto, e só no artigo 275º do Código Penal é que temos um caso de afloramento dum crime de perigo abstracto, no âmbito da energia nuclear ou de substâncias radioactivas. Mas o crime de poluição do artigo 279º do Código Penal, que é de algum modo o esteio da protecção penal do ambiente, assume uma configuração original, já que inclui uma componente de desobediência. Não só o Projecto não prevê a necessidade de tal componente, como sobretudo ela não é inócua, já que a criminalização da poluição, fica entre nós sempre dependente da prévia intervenção da Administração, não se configurando o crime de poluição como o crime de perigo concreto do artigo 280º do Código Penal.

Assim sendo, se com as alíneas a) e b) do nº 1 do Projecto se quer impor que os Estados criem todos os crimes ali referidos, e do modo ali referido, Portugal dificilmente poderá aceitar a disciplina em questão.

Se, pelo contrário, é deixada uma margem de maleabilidade suficiente para que os Estados optem pela estrutura dos meios de tutela que prefiram, desde que efectivem tal tutela, já Portugal poderá obviar à criação de novos tipos, e designadamente de perigo abstracto, com o único propósito de seguir a disciplina das alíneas a) e b) do artigo 2º do Projecto.

b) Como se viu, as alíneas c) e d) do artigo 2º do Projecto tratam de resíduos perigosos e da explosão ilícita de fábricas que exerçam actividades perigosas. Propõe-se uma criminalização em termos de crime de perigo abstracto, que entre nós haveria que levar a cabo. E, sempre nos fica a dúvida sobre a necessidade de criação destes tipos de crime, face a um leque amplo de contra-ordenações, tanto mais que o risco presumido a que ali se atende se aparenta claramente com o substracto das transgressões e das contra-ordenações. No entanto, dificilmente se poderia deixar de o fazer para que as obrigações decorrentes da ratificação da Convenção fossem respeitadas.

Texto Integral: Excelentíssimo Senhor Director-Geral dos Assuntos

Multilaterais do Ministério dos Negócios Estrangeiros:


I

Dignou-se Vossa Excelência remeter-nos cópia do texto da “Convenção sobre a Protecção do Ambiente através do Direito Penal” nas versões inglesa e francesa, depois de adoptada a respectiva forma definitiva pelos Delegados dos Ministros do Conselho da Europa na sua 639ª reunião, que teve lugar a 9 de Setembro último.

Mais foi solicitada a elaboração de parecer técnico-jurídico sobre tal instrumento, tendo em vista a sua assinatura na próxima sessão ministerial do Conselho da Europa, que terá lugar a 3 e 4 de Novembro.

Cumpre pois emitir a pertinente informação-parecer, no condicionalismo de tempo daí decorrente.


II

1.1- O Projecto da Convenção em apreço apresenta-se como um contributo estimável para se obter uma tutela penal do ambiente, generalizada, que obrigará à revisão da política criminal interna, da parte de países onde essa tutela penal não exista ainda. Não é o caso de Portugal, que conta com a previsão, no seu Código Penal, de dois crimes ecológicos puros, ou seja, que protegem directamente a qualidade do ambiente ([1]) e isto a partir da revisão operada pelo Decreto-Lei nº 48/95 de 15 de Março. Por via dessa revisão operou-se entre nós, no domínio ambiental, uma neo-criminalização que importou testar à luz dos princípios orientadores da política-criminal, o que igualmente se imporá agora recordar, face à eventual assinatura do projecto de Convenção em referência ([2]).

1.2- A dignidade penal dos comportamentos que integram os crimes contra o ambiente, o mesmo é dizer, o carácter fundamental dos bens jurídicos violados com tal comportamento, têm que ser confrontados com um duplo filtro, sob pena de se estar perante uma autêntica prepotência. Referimo-nos à legitimação ético-jurídica que ao nível intrapositivo resulta da conformidade dessa neocriminalização com os valores plasmados na Constituição, e ao aval do consenso alargado que ela receba, aos vários níveis da sociedade. Comecemos pelo primeiro.

Na palavra de Figueiredo Dias, entre a selecção dos bens jurídico-penais, e a ordem axiológica constitucional, tem que ocorrer uma “analogia substancial, fundada numa essencial correspondência de sentido: a permitir afirmar que a ordem de valores jurídico-constitucional constitui o quadro de referência e, simultaneamente, o critério regulativo do âmbito de uma aceitável e necessária actividade punitiva do Estado” ([3]).

Já se tem apontado o papel pioneiro de Portugal na constitucionalização dos interesses ambientais, referindo-se a tal propósito o artigo 223º da Constituição Portuguesa de 1822, de acordo com o qual incumbia às Câmaras a obrigação de plantar árvores, nos baldios e terras dos Concelhos.

É no entanto com a Constituição de 1976 que o relevo aí dado ao ambiente coloca o nosso país em lugar de destaque, no âmbito do direito constitucional comparado.

O artigo 66º da Constituição da República, epigrafado “Ambiente e qualidade de vida”, está integrado no Capítulo II, “Direitos e deveres sociais”, do Título III, “Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”. No entanto, a estrutura do preceito revela-nos que no nº 1 se consagrou um verdadeiro direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, um direito resistência aos ataques ao ambiente ([4]). Diz-se ali que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.

Pelo contrário, no nº 2, estamos perante um típico direito exigência, um direito a prestações do Estado para protecção do ambiente, desdobrável em quatro vectores fundamentais: prevenção e combate à poluição e erosão, ordenamento do território, protecção da natureza, e aproveitamento racional de recursos naturais.

À luz da CR, a qualidade do ambiente constitui então um direito individual, um interesse colectivo e um interesse difuso. É pois, com tal dimensão, um bem jurídico-constitucional. Ao contrário do que aconteceu com a Constituição espanhola, a nossa não previa ela mesma a criminalização dos atentados ao ambiente. Mas deixou claramente aberta a porta para que o bem jurídico-constitucional em causa fosse, também, um bem jurídico-penal. Assim, a Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de 7 de Abril), refere no seu artigo 46º que além dos crimes previstos e punidos no Código Penal, serão ainda considerados crimes as infracções que a legislação complementar vier a qualificar como tal, de acordo com o disposto naquela lei. O preceito está epigrafado “Crimes contra o ambiente” ([5]).

Existe ou não um consenso alargado na sociedade sobre o valor da qualidade do ambiente, sobre a premência em o preservar, sobretudo sobre a necessidade de criminalizar os atentados mais graves ao mesmo ambiente?

Da parte do público em geral, a sensibilidade crescente para com as questões da preservação de um ambiente são é por vezes confundida com manifestações de radicalismo ou de moda. Tem-se falado de um eco-fundamentalismo verde cujos exageros parecem ignorar a problemática do desenvolvimento sustentado, e, sobretudo, aspectos económicos vitais.

De outra banda, a lógica produtiva, ao serviço de uma mentalidade consumista, não desperdiçou a oportunidade de colher lucros com uma moda verde que não corresponde a um empenho profícuo na resolução dos problemas ambientais.

No entanto, é possível detectar uma mudança importante na atitude das pessoas para com o seu ambiente natural.

Conscientes do risco que pode derivar de um certo simplismo generalizador, diremos que essa nova atitude recusa uma mentalidade dominadora da natureza, exploradora de recursos sem limites, a qual caracterizou a época da industrialização e entrou pelo nosso século dentro. Ao longo da sua história, o homem percorreu um caminho de libertação das forças da natureza que o oprimiram e perante as quais o sentimento dominante era o medo. Da libertação ao domínio de importantes forças naturais foi um curto passo, até que, nos demos conta de que precisamos da natureza não só pelo que ela nos dá, mas também no sentido de que precisamos de a manter. Criou-se a noção clara, pois, de que a prosseguir-se no ritmo recente de exploração de recursos, se estariam a comprometer as gerações vindouras.

Outra tónica da atitude apontada vai no sentido de uma consciência progressiva da globalização dos problemas. As comunicações tornaram o planeta mais curto. A escala das intervenções humanas na natureza produz efeitos incontroláveis, pelo que os problemas ecológicos se colocam hoje, como é conhecido, ao nível planetário, e há consciência disso.

Deste estado de espírito se tem feito eco também a reflexão ético-filosófica, nomeadamente a propósito da conservação da natureza ([6]). Trata-se de preocupações que vêm produzindo efeitos práticos palpáveis, motivando também, com a sua quota-parte, os encontros promovidos entre países, com o objectivo de tomarem medidas que incluem a criminalização dos atentados mais graves ao ambiente.

As preocupações com os atentados ao ambiente ao nível das nações Unidas tiveram um arranque significativo com a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, de 1972, que deu origem à chamada Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano. A Assembleia Geral da ONU aprovou em 1992 o relatório da Comissão Mundial para o Ambiente e Desenvolvimento (Comissão Brutland).

Também em 1992, a Conferência do Rio, também conhecida por Cimeira do Planeta Terra, produziu a chamada “Agenda 21” conjunto de medidas a ter em conta para proteger o ambiente no século XXI.

Ao nível do Conselho da Europa data de 1977 a primeira Resolução relativa ao ambiente.


III

Dando seguimento à resolução adoptada na 17ª Conferência de Ministros Europeus de Justiça que teve lugar em Istambul, em 1990, o Comité de Ministros do Conselho da Europa criou um comité restrito novo, em 1991, sob a designação “Grupo de especialistas sobre a protecção do ambiente pelo Direito Penal”. Este Comité viria a dar origem a um Comité de peritos tradicional (PC-EN) que iniciou os seus trabalhos em Outubro de 1991. Tais trabalhos contariam com sete reuniões plenárias e dez reuniões de grupos de trabalho restritos. O Comité Director para os Problemas Criminais do Conselho da Europa aprovou, em Junho de 1996, os projectos de Convenção e do respectivo relatório explicativo, que resultaram do comité de peritos PC-EN.

O mandato de que o Comité foi encarregue dispunha:

“Le Groupe de projet est invité à examiner les conclusions de la Dix-septième Conférence des Ministres européens de la Justice (Istanbul, 5-7 juin 1990), recommandant l’élaboration de lignes directrices communes afin de lutter contre les atteintes à l’environnement, et plus particulièrement d’étudier les questions suivantes en tenant compte des travaux du PC-S-EN:

a. Elaboration d’une liste d’infractions en vue de prévoir une protection adéquate par le droit pénal, de l’eau, du sol, de l’air, de la faune et de la flore ou d’autres éléments du milieu méritant protection, ainsi que de l’homme dans cet environnement;

b. Mise en oeuvre dans ce domaine du concept d’infractions de mise en danger (concret,abstrait ou potentiel) indépendan-tes du préjudice effectif;

c. Définition des relations entre le droit pénal et le droit administratif en matière d’environnement;

d. Prise en considération dans les décisions sur les poursuites ou les sanctions de l’action du délinquant pour éviter le danger ou les dommages résultant de l’infraction;

e. La possibilité d’appliquer les Conventions européennes dans le domaine pénal aux questions de criminalité en relation avec l’environnement, coopération internationale, compé- tence juridictionnelle, conflits de compétence, lieu de la commission de l’infraction et à d’autres questions pertinnentes relatives au droit pénal internacional en ce qui concerne l’environnement.

Le Groupe de projet devrait élaborer une Recommandation contenant des lignes directrices ou, le cas échéant, une Convention.”


IV

1.1. Globalmente considerado, o texto do projecto, a ser verdadeiramente impositivo para as partes, é-o no tocante à incriminação de comportamentos dolosos (Secção II., artigo 2º), e de infracções cometidas com negligência grosseira (Secção II, artigo 3º). No que respeita à restante matéria regulamentada, deparamos com uma margem muito ampla de actuação na regulamentação a introduzir internamente pelos Estados. Ou, então, com a expressa previsão da formulação de reservas.

Assim, logo no artigo 4º, os comportamentos aí previstos, encarados como infracções penais ou administrativas suplementares, são comportamentos que os Estados podem criminalizar ou não, podendo relegá-los, se pensarmos em sistemas como o português, para o ilícito penal administrativo.

No artigo 5º prevêem-se normas a elaborar por cada um dos Estados sobre a aplicação no espaço da respectiva lei penal interna de tutela do ambiente. O nº 4 do preceito prevê no entanto a possibilidade de formulação de uma reserva, nos termos da qual, o nºs. 1 e 2 do artigo, números que aliás lhe dão o conteúdo útil fundamental, não serão aplicados.

No artigo 6º, depois de se indicar que as medidas sancionatórias para os crimes devem incluir a prisão e a multa, deixa--se em aberto a possibilidade de os Estados preverem medidas de reposição do “stato quo ante” reportadas ao ambiente que haja sido deteriorado.

No artigo 7º, onde se prevêem medidas de apreensão e perda de objectos, instrumentos ou produtos de crime, prevê-se igualmente a reserva que desliga os Estados da dita previsão, no seu direito interno.

O artigo 8º, contempla a reposição do “stato-quo ante”, no que respeita ao ambiente deteriorado. Se os Estados adoptarem medidas nesse sentido, o que é facultativo, endereçarão uma declaração ao Secretário-Geral dos Conselho da Europa e dar conhecimento do facto.

O artigo 9º, trata da responsabilidade penal das pessoas colectivas, e mais uma vez os Estados serão livres de a consagrar ou não, prevendo-se a formulação da reserva pertinente.

No artigo 10º, fala-se da cooperação entre os serviços encarregados da protecção do ambiente e as autoridades que têm a seu cargo a repressão penal (policiais e administrativas). Os Estados podem desligar-se da regulamentação dessa cooperação formulando mais uma reserva.

Também o artigo 11º, estabelece uma mera faculdade de se fazerem participar no processo certas entidades que se interessem pela protecção do ambiente, mediante declaração dirigida ao Secretário Geral do Conselho da Europa.

E, em matéria de desvinculação dos signatários da Convenção, de alguma ou algumas das suas injunções, sempre será de referir que se não vê bem porque é que no artigo 8º, (reposição do ambiente), e no artigo 11º, (participação no processo de entidades não policiais nem judiciárias), se abandonou o método da formulação de reservas que é o utilizado nos outros artigos, e se optou pela apresentação de declarações. Se a Convenção considera tais instrumentos verdadeiramente úteis deveria a nosso ver propor a sua adopção, salvaguardando eventualmente a possibilidade de reservas. Optando pela necessidade de uma declaração expressa a formular pelos Estados que adoptam os referidos expedientes, ser-se-á levado a considerar que as declarações se justificam pela simples utilidade em delas se dar conhecimento aos outros países. Não atribuindo porém especial vantagem aos ditos procedimentos. Pelo tipo de expediente usado, o Projecto nem chega a fornecer um incentivo para que os Estados se proponham prever a reconstituição de um ambiente natural deteriorado, ou a participação de organizações que se propõe defender o ambiente no processo legislativo.

1.2. Ainda no campo da apreciação global do projecto, alerta-se desde já para o facto de o crime de danos contra a natureza e de poluição, previstos respectivamente nos artigos 278º e 279º do Código Penal, (Redacção do Decreto–Lei nº 48/95 de 15 de Março), elegerem a qualidade do ambiente como bem jurídico autónomo, o que a nosso ver representa um importante avanço para a sua protecção, Pelo contrário, as previsões de criminalização propostas pelos artigos 2º e 3º do Projecto situam-se, em regra, no domínio da protecção dos bens vida, saúde, ou património. Não do ambiente “qua tale”.

É dizer que se não propõe a criação de crimes “ecológicos puros”, ou ambientais em sentido próprio, e sim só crimes que protegem o ambiente indirectamente.

Ora, se numa perspectiva jurídico-dogmática a orientação do Projecto se revela aquém da nossa legislação interna, as respectivas previsões parece-nos mais diversificadas que as do nosso sistema interno, porque dirigidas a protegerem maior número de sectores específicos, como adiante se verá.

No artigo 2º do projecto figura, na verdade, a imposição da criminalização de algumas situações relativas e resíduos e funcionamento de fábricas que, diga-se desde já, se Portugal ratificar a Convenção obrigarão à criação de novos tipos legais.

Mas analisemos então mais detalhadamente os preceitos do Projecto.

2.1. O artigo 1º contém as definições da expressão “ilícito” e “águas”. Desde logo sentimos alguma estranheza por se ter sentido a necessidade de definir aqueles termos, omitindo-se outras definições, que obviariam quiçá a modos diversos de entendimento da parte dos vários países. Depois, sempre se teria usado um termo mais abrangente, como parece ser a intenção, se se substituísse “ilícito” por “ilegal”. Na verdade, a ilicitude anda associada à aplicação de uma sanção, que na economia do projecto deveria preceder a aplicação da sanção-pena que resulta da criminalização de comportamentos feita: rigorosamente um comportamento já seria ilícito só porque violador de uma lei e não porque a Convenção impusesse a sua criminalização. Teríamos preferido a utilização da expressão “ilegal” com o sentido de comportamento violador das prescrições legais ou ordens legítimas da autoridade.

A propósito de definições que poderiam acrescer às já previstas, apontaremos por exemplo as de “negligência grave” ou “infracções administrativas”. Quanto a estas, em particular, não fica claro se se trata só das contra-ordenações, (“ordnungwidrigkeiten”), ou se englobam as transgressões ou contravenções.

2.2. O elenco das criminalizações que se faz no artigo 2ª enferma a nosso ver de algumas repetições, senão contradições que tentaremos enunciar.

Na alínea a) do nº 1 prevê-se:

- a rejeição, emissão ou introdução ilícitas, de substâncias ou radiações ionisantes na atmosfera, solo ou água,

- que causem ou criem um risco importante de morte ou lesões graves às pessoas.

Ao lado dos comportamentos com efeito danoso, (“que causem”), prevêm-se os comportamentos que envolvam um simples perigo, (“que criem um risco importante”). Perigo, ao que cremos, concreto. Tudo, com exclusão dos comportamentos negligentes, desta concreta previsão. (A tal se reportam os artigos 3º, e 4º do Projecto).

Consideramos inútil a previsão, no contexto, dos crimes de resultado danoso. Causar a morte ou lesões graves à pessoas, intencionalmente, é praticar pura e simplesmente o crime de homicídio ou ofensas corporais dolosos (na modalidade de dolo directo, necessário, ou eventual).

O que “in casu” especifica o comportamento é que o “modus operandi” é, em si um atentado ao ambiente. Cremos bem não se estar a querer, criar previsões de homicídio e/ou ofensas corporais qualificadas. A Convenção pretende ser de protecção do ambiente antes do mais. A formulação encontrada com tal desiderado surge-nos porém sem grande eficácia.

Seja como for, o nosso direito penal já prevê obviamente tais comportamentos dolosos previstos naquela alínea a)): o artigo 131º e seguintes no tocante ao homicídio doloso, o artigo 143º e seguintes para as ofensas corporais e o artigo 280º, epigrafado “Poluição com perigo comum”, todos do Código Penal. (Referir-nos-emos sempre à redacção do Decreto–Lei nº 48/95, de 15 de Março).

2.3. A alínea b) do nº 1 do artigo , 2º prevê:

- a rejeição a emissão ou a introdução ilícitas de substâncias ou radiações ionisantes na atmosfera, solo ou águas,

- que causem a sua deterioração duradoura ou

- que causem ou sejam susceptíveis de causar a morte ou lesões graves a pessoas ou

- danos substanciais a monumentos protegidos, outros objectos protegidos, bens, animais ou plantas.

Depois de uma descrição do comportamento do agente que é igual à que já consta da alínea a), prevê-se um primeiro efeito que é a simples deterioração duradoura da atmosfera, solo ou águas. Ao que cremos, é este o único afloramento no Projecto de uma autonomização do bem jurídico-penal qualidade do ambiente, neste caso na faceta da preservação da natureza. O nosso artigo 278º do Código Penal já prossegue esse desiderato.

O segundo efeito previsto, “que causem... a morte ou lesões graves a pessoas”, é a repetição de uma previsão que já constava da alínea a). A crítica que se fêz antes repete-se pois aqui, com a agravante de se estar perante a duplicação da mesma previsão. Cremos que a qualificação “ilícitas” não permite distinguir suficientemente as situações.

Em terceiro lugar, o artigo prevê a susceptibilidade de se causarem, com o comportamento descrito, um conjunto de efeitos entre os quais a morte ou lesões graves de pessoas. A expressão usada, “susceptíveis de causar”, só pode a nosso ver querer referir-se à construção de um tipo de crime de perigo abstracto. Enquanto que na alínea a) se fala em “criação de um risco importante”, aqui parece–nos ter-se querido pôr a tónica na potencialidade do comportamento em si para produzir certos efeitos lesivos, independentemente de alguém ou alguma coisa ter estado em risco de os sofrer.

Se efectivamente está em causa aqui a protecção meramente indirecta do ambiente através de um crime de perigo abstracto, protegendo-se directamente outros bens jurídicos que não o ambiente em si, então, não só o caminho do legislador português não foi esse, como dificilmente o poderá seguir.

Como se sabe, o artigo 279º do Código Penal, (“Poluição”), integra como um dos seus elementos constitutivos a poluição, o que poderia facilmente fazer-se corresponder à “rejeição emissão ou introdução ilícitas de substâncias ou radiações” que as alíneas a) e b) mencionam. Só que enquanto que o outro elemento integrador da infracção, é dado neste particular do Projecto de Convenção, pelo perigo abstracto, o artigo 279º do Código Penal apela para uma componente de desobediência. A qual surge na definição da expressão “em medida inadmissível” do respectivo nº 3, como é sabido. Ora o nosso entendimento vai no sentido de que a componente desobediência da lei portuguesa é só a desobediência a ordens ou intruções de Administração. Não a leis ou regulamentos.

Por último, a alínea b) em foco alude ao causar danos substanciais a animais, vegetais e bens patrimoniais, entre os quais os monumentos protegidos. A destruição de espécies animais e vegetais está prevista no nosso crime de danos contra a natureza (artigo 278º do Código Penal). Os danos patrimoniais estão previstos nos artigos 212º e segs. do Código Penal, fora de um contexto de protecção ambiental, mas que poderão fornecer já a tutela desejável. De notar que são considerados crimes de dano qualificado os causados em “momento público”, “coisa pertencente ao património cultural e legalmente classificado ou em vias de classificação” ou coisa alheia “natural ou produzida pelo homem oficialmente arrolada ou posta sob protecção oficial pela lei;”

2.4. A alínea c) prevê:

- A eliminação, tratamento, armazenamento, transporte, exportação ou importação ilícitas de resíduos perigosos que causem ou sejam susceptíveis de causar

- a morte ou lesões graves às pessoas, danos substanciais às pessoas, ou à qualidade do ar, do solo, das águas, a animais ou a plantas.

Trata-se duma norma especial que pretende obviar aos malefícios dos resíduos perigosos. Está toda ela construída em termos de crime de perigo abstracto, na linha do entendimento que temos para a expressão “susceptíveis de causar”.

Não existe crime na nossa legislação com a previsão da alínea c) em foco, reportada aos resíduos perigosos, o que não impede que comportamentos que caibam na sua previsão, não possam ser abrangidos também pelo artigo 279º do Código Penal. Com a eliminação dos resíduos perigosos, na verdade, será em regra produzida poluição.

Na nossa legislação, relacionados com resíduos em geral, incluindo os resíduos perigosos, contamos com os seguintes diplomas:

- O Decreto-Lei nº 109/94, de 26 de Abril, em que se adoptam medidas para disciplinar certas actuações na utilização dos solos e da paisagem. No artigo 21º e segs. do diploma prevêem-se transgressões punidas com multa, convertidas em contra-ordenações pelo Decreto-Lei nº 164/84, de 21 de Maio.

- O Decreto-Lei nº 109/94, de 26 de Abril, que se reporta à prospecção e pesquisa de petróleo, e prevê no seu artigo 68º contra-ordenações por comportamentos que podem consistir na eliminação ilegal de resíduos.

- O Decreto-Lei nº 488/85, de 25 de Novembro, que se reporta aos resíduos sólidos, e que foi regulamentado pela Portaria nº 374/87, de 4 de Maio, em cujo artigo 20º se prevêem várias contra-ordenações.

- O Decreto-Lei nº 221/88, de 28 de Junho , que se reporta à utilização de produtos químicos vulgarmente designados por “PCB” e “PCT”. A sua eliminação e transporte irregular é contra-ordenação nos termos do artigo 9º do diploma.

- O movimento interno ou transfronteiriço de resíduos perigosos está disciplinado no Decreto-Lei nº 121/90, de 9 de Abril. O artigo 14º prevê em tal âmbito várias contra-ordenações.

- O Decreto-Lei nº 88/91 de 23 de Fevereiro trata da actividade de armazenagem, recolha e queima de óleos usados. Prevêem no seu artigo 6º várias contra-ordenações.

- O Decreto-Lei nº 117/94, de 3 de Maio, trata da localização e licenciamento de depósitos de ferro-velho, entulhos, combustíveis sólidos e veículos.

Prevêem-se no seu artigo 17º várias contra-ordenações.

Assim sendo, em matéria de resíduos, a nossa lei optou por uma cobertura ampla das situações ao nível do direito penal administrativo, não ao nível do direito penal, e, sobretudo, não em termos de perigo abstracto.

2.5. A alínea d) refere

- A exploração ilícita duma fábrica

- em que é exercida uma actividade perigosa

- que cause ou seja susceptível de causar a morte ou graves lesões a pessoas ou danos substanciais à qualidade do solo, águas, animais ou plantas.

Desta feita, a actividade do agente está centrada no funcionamento duma fábrica. Ainda aqui a susceptibilidade de causar certos efeitos aponta para uma criminalização em termos de crime de perigo abstracto.

Não existe crime deste teor na nossa legislação porque tudo se passa ao nível das contra-ordenações previstas para as violações do licenciamento industrial.

2.6. A alínea e) repete o texto da alínea c), substituindo porém a expressão “eliminação” pela expressão “fabrico”, e a expressão “resíduos perigosos”, por “materiais nucleares ou outras substâncias radioactivas”. Mais uma vez, a expressão “susceptível de causar“ aponta para a configuração de crime de perigo abstracto.

O artigo 272º do Código Penal pune a emissão de radiações ou a libertação de substâncias perigosas radioactivas. O artigo 273º atende à libertação de energia nuclear, tudo estruturado em termos de perigo concreto. No entanto, o artigo 275º do Código Penal vai mais longe, e, em termos de perigo abstracto, prevê a importação, fabrico, guarda, compra, venda, detenção, uso, ou facto de se trazer consigo, engenho ou substância explosiva ou capaz de produzir explosão nuclear radioactiva (...) fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente.

Parece pois que a prescrição da alínea e) do nº 1 do artigo 2º do Projecto de Convenção já tem correspondência na nossa legislação interna.

Refiram-se ainda as contra-ordenações previstas no artigo 12º, do Decreto-Lei nº 348/89, de 12 de Outubro, que regulamenta a protecção contra radiações ionizantes, e, no artigo 78º, do Decreto--Regulamentar nº 34/92, de 4 de Dezembro, o qual estabelece normas sobre a segurança e protecção radiológica aplicável na extracção e tratamento de minérios radioactivos.

2.7. O nº 2 do artigo 2º, o artigo 3º, e o artigo 4º do Projecto de Convenção reportam-se respectivamente à cumplicidade, à negligência, e à da criação de infracções a titulo subsidiário, desde que não cobertas, já, por outras previsões.

Tal como antes, nos três casos é usada a expressão “medidas apropriadas que poderiam ser necessárias para qualificar, de acordo com o direito interno como infracção penal”.

Esta expressão parece-nos dar alguma margem da liberdade aos Estados para criarem as previsões pertinentes. Será então facultado aos Estados que ponderem a necessidade da criação daquelas infracções penais no contexto do respectivo sistema caso ainda não existam mas sem surgir uma obrigação estrita de criminalização, nos mesmos termos.

Seja como for, é sabido como a cumplicidade é punível, na lei portuguesa, por força do artigo 27º do Código Penal.

Tanto o artigo 278º do Código Penal, (“Danos contra a natureza”), como o artigo 279º do mesmo código, (“Poluição”), ou o artigo 280º, (“Poluição com perigo comum”), prevêem o cometimento desses crimes por via de acção negligente.

Quanto aos comportamentos mencionados no artigo 4º não só estão todos entre nós abrangidos pelo ilícito contra-ordenacional se não forem crimes, como a poluição sonora e a destruição do habitat natural, previstas nos artigos 279º e 278º, respectivamente, do Código Penal, merecem internamente um relevo que está para além do carácter suplementar ou secundário que têm o Projecto.

2.8. O artigo 5º do Projecto reporta-se à aplicação da lei penal interna no espaço. As alíneas a) e b) equivalem ao disposto no artigo 4º do Código Penal. O artigo 5º deste Código, reportado à prática de factos fora do território português, poderá constituir a disciplina geral a atender, também quanto aos crimes contra o ambiente, se bem que ambas as previsões não coincidam.

De referir que no nº 2 do dito artigo 5º se utiliza a expressão “autor presumido da infracção”. Em processo penal, de presunção costuma falar-se a propósito da inocência do arguido e portanto da distribuição do ónus da prova. Preferir-se-ia a expressão “suspeito da infracção”.

2.9. O artigo 6º reporta-se às penas que deverão ser adoptadas nos crimes ambientais. Recomenda-se a previsão das penas de prisão e de multa, e o respeito pelo princípio da proporcionalidade entre a gravidade do ilícito e as penas, como aliás deve ocorrer para todo o direito penal. Nada a objectar. Admite-se aí ainda a possibilidade de previsão da obrigação da reconstituição do ambiente adulterado.

2.10. O artigo 7º trata da apreensão e perda dos instrumentos e produtos dos crimes. Os artigos 109º, 110º, 111º e 112º do Código Penal, reportam-se já a nosso ver, à perda de instrumentos, produtos, ou vantagens adquiridas com o crime, de forma suficiente.

2.11. No artigo 8º prevê-se a reposição, das situações existentes antes dos atentados que forem cometidos ao ambiente, a cargo dos agentes das infracções.

O artigo 48º da Lei de Bases do Ambiente, (Lei nº 11/87 de 7 de Abril) prevê a obrigatoriedade de remoção das causas da infracção e da reconstituição da situação anterior. A exploração ainda a fazer das potencialidades dadas por este preceito parece-nos ir de encontro ao desiderato do referido artigo 8º do Projecto.

2.12. A responsabilidade das pessoas colectivas é largamente usada no âmbito contra-ordenacional, no domínio do ambiente. Não assim no tocante aos crimes contra o ambiente. Embora o nosso sistema aceite a admissão da responsabilização das pessoas colectivas, por crimes, fê-lo sempre ao nível da legislação penal extravagante.

De qualquer modo, o artigo 9º do Projecto refere a responsabilização das pessoas colectivas em termos meramente optativos.

2.13. A cooperação entre as autoridades internas prevista no artigo 10º do Projecto, tal como o direito de participação no processo de certos grupos, fundações ou associações previsto no artigo 11º do Projecto, estão já previstos entre nós. De referir nomeadamente a acção popular contemplada no artigo 1º e 25º da Lei nº 83/95 de 31 de Agosto e a legitimidade para constituição de assistente daí decorrente.

2.14. Restará dizer que a cooperação judiciária penal internacional terá lugar, face aos compromissos internacionais de Portugal, já existentes, também no domínio do ambiente.

Quanto às cláusulas finais que constam dos artigos 13 a 21 do Projecto nenhum comentário especial se nos oferece fazer.


IV

Termos em que se formulam as seguintes conclusões:

1ª - A Convenção em apreço afigura-se-nos redigida em termos tecnicamente deficientes, designadamente na estruturação dogmático--jurídica dos tipos legais de crime.

2ª - A sua eficácia mostra-se à partida previsivelmente prejudicada por um número excessivo de possibilidades de declarações e reservas.

3ª - A Convenção em apreço não vem trazer a necessidade de importantes alterações legislativas entre nós, caso seja adoptada, para se obter a tutela penal do ambiente que aquela pretende, muito embora os instrumentos júridicos usados entre nós e nela previstos não sejam tecnicamente coincidentes.

4ª - Existem vários aspectos em que se verifica uma falta de ajustamento entre a nossa legislação interna actual e o Projecto de Convenção. Tentemos enumerá-los:

a) No Projecto propõe-se uma criminalização de comportamentos ora em termos de crimes de dano, ora de perigo concreto ou perigo abstracto. Entre nós, o sistema é integrado por um leque vasto de contra-ordenações, por crimes de dano ou perigo concreto, e só no artigo 275º do Código Penal é que temos um caso de afloramento dum crime de perigo abstracto, no âmbito da energia nuclear ou de substâncias radioactivas. Mas o crime de poluição do artigo 279º do Código Penal, que é de algum modo o esteio da protecção penal do ambiente, assume uma configuração original, já que inclui uma componente de desobediência. Não só o Projecto não prevê a necessidade de tal componente, como sobretudo ela não é inócua, já que a criminalização da poluição, fica entre nós sempre dependente da prévia intervenção da Administração, não se configurando o crime de poluição como o crime de perigo concreto do artigo 280º do Código Penal.

Assim sendo, se com as alíneas a) e b) do nº 1 do Projecto se quer impor que os Estados criem todos os crimes ali referidos, e do modo ali referido, Portugal dificilmente poderá aceitar a disciplina em questão.

Se, pelo contrário, é deixada uma margem de maleabilidade suficiente para que os Estados optem pela estrutura dos meios de tutela que prefiram, desde que efectivem tal tutela, já Portugal poderá obviar à criação de novos tipos, e designadamente de perigo abstracto, com o único propósito de seguir a disciplina das alíneas a) e b) do artigo 2º do Projecto.

b) Como se viu, as alíneas c) e d) do artigo 2º do Projecto tratam de resíduos perigosos e da explosão ilícita de fábricas que exerçam actividades perigosas. Propõe-se uma criminalização em termos de crime de perigo abstracto, que entre nós haveria que levar a cabo. E, sempre nos fica a dúvida sobre a necessidade de criação destes tipos de crime, face a um leque amplo de contra-ordenações, tanto mais que o risco presumido a que ali se atende se aparenta claramente com o substracto das transgressões e das contra-ordenações. No entanto, dificilmente se poderia deixar de o fazer para que as obrigações decorrentes da ratificação da Convenção fossem respeitadas.


Lisboa, 28 de Outubro de 1998

O Procurador-Geral Adjunto,

(José Adriano Machado Souto de Moura)



[1]) Referimo-nos concretamente aos artigos 278º e 279º do Código Penal que passamos a transcrever:

“Artigo 278º

(Danos contra a natureza)


1. Quem, não observando disposições legais ou regulamentares, eliminar exemplares de fauna ou flora ou destruir habitat natural ou esgotar recursos do subsolo, de forma grave, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias.

2. Para os efeitos do número anterior o agente actua de forma grave quando:

a) Fizer desaparecer ou contribuir decisivamente para fazer desaparecer uma ou mais espécies animais ou vegetais de certa região;

b) Da destruição resultarem perdas importantes nas populações de espécies de fauna ou flora selvagens legalmente protegidas;

c) Esgotar ou impedir a renovação de um recurso do subsolo em toda uma área regional.

3. Se a conduta referida no nº 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa.


“Artigo 279º

(Poluição)


1. Quem, em medida inadmissível:

a) Poluir águas ou solos ou, por qualquer forma, degradar as suas qualidades;

b) Poluir o ar mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações; ou

c) Provocar poluição sonora mediante utilização de aparelhos técnicos ou de instalações, em especial de máquinas ou de veículos terrestres, fluviais, marítimos ou aéreos de qualquer natureza;

é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias.

2. Se a conduta referida no nº 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa.

3. A poluição ocorre em medida inadmissível sempre que a natureza ou os valores da emissão ou da imissão poluentes contrariarem prescrições ou limitações impostas pela autoridade competente em conformidade com disposições legais ou regulamentares e sob cominação de aplicação das penas previstas neste artigo.”

[2]) Cfr. o nosso “Crimes Contra o Ambiente - Porquê e Como”, in “Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal”, vol. II, CEJ, Lisboa, 1998, págs. 319 e segs.

[3]) Cfr. Os Novos Rumos de Política Criminal, in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 36, 1976, p. 16.

[4]) O artigo 17º da CR refere que o regime dos direitos, liberdades e garantias se aplica aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga. Gomes Canotilho e Vital Moreira consideram incluídos nestes, entre outros, os direitos de liberdade ou que revistam a natureza de direitos de defesa. Pelo contrário, não beneficiarão do regime dos direitos liberdades e garantias os que consistam e na medida em que consistam exclusivamente em direitos genéricos a prestações ou acções do Estado, (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada. Coimbra Editora, 1993, pp. 141 e 142).

[5]) Não será inútil acrescentar que a legitimação constitucional da criminalização não significa imposição constitucional dessa criminalização. Diz-nos a tal propósito Anabela Rodrigues in “A Determinação da Medida da pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, 1995, pp. 287 e ss.

“...a consagração do critério da “necessidade social” como critério legitimador primário de toda a intervenção penal possibilita uma melhor concreção dos bens jurídicos que é possível tutelar penalmente. Aquele critério - é Figueiredo Dias que o explica - vincula ao “princípio da congruência ou de analogia substancial entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal”. Cujo significado reside em que, se só está legitimada a intervenção penal para proteger bens jurídicos, falece essa legitimação “fora da ordem axiológica constitucional” e “da sua natureza inevitavelmente fragmentária”, para além de que “não impõe qualquer criminalização em exclusiva função de um certo bem jurídico”. E isto porque a valoração político-criminal da necessidade é comandada por critérios que “não se esgotam no puro apelo à dignidade punitiva do facto”...Resolvida positivamente a questão da presença de um bem jurídico digno de tutela penal, abre-se para o legislador o leque das opções de oportunidade confiadas à sua discricionaridade política.”

[6]) É neste âmbito que deparamos com a teorização de uma ecologia profunda (a expressão é de Arne Naess) que se assume como profundamente revolucionária. Assim Aldo Leopold propõe-nos pensar como uma montanha, e pretende que se reconheça à natureza um valor intrínseco que tem que ser respeitado. Depois de, durante séculos, parte dos homens terem sido tratados como coisas, porque eram escravos, houve a altura em que se reconheceu uma dignidade aos escravos que implicou que deixassem de ser tidos só como objecto de propriedade. Do mesmo modo a biosfera merece deixar de ser tratada como matéria bruta à mercê do homem. E a revolução que se pretende não se contentaria com o reformismo próprio do antropocentrismo que continua a informar a visão humanista. Não se tratará pois só de controlar as poluições, de classificar zonas como reservas ecológicas ou de travar o esgotamento de recursos, ainda e sempre em benefício do homem. Como defende Bill Devall, a tudo isto acrescerá uma abordagem metafísica uma epistemologia, um cosmologia e uma ética ambientais novas. A natureza homem incluído, constitui um sistema harmonioso mas frágil em si, mais importante e admirável que a pequena parcela dessa natureza que é a vida humana. Daí uma responsabilidade ética dos humanos para com toda a terra e não só para com o semelhante.

Exactamente no domínio ético, importa destacar a obra da Hans Jonas Le Principe Responsabilité. Aí, depois da consideração de uma moral planetária sucedendo à moral do semelhante, exige-se uma responsabilidade em face das gerações futuras pelo desgaste do planeta.

Inspirando em Kant, Hans Jonas propõe o seguinte imperativo categórico:

Age de tal modo que não sejam comprometidas as condições para a sobrevivência indefinida da humanidade sobre a terra.

É porque estas e outras reflexões moldam efectivamente o panorama das ideias contemporâneas, que um Alain Touraine refere que uma das três notas mais salientes de toda a pós-modernidade é dada pela globalização ecologista dos problemas colocados pela tecnologia, que Serge Moscovici vê o fim do Século XX dominado pela questão natural, tal como o fim do Século XIX foi dominado pela questão social de Marx, e que Michel Serres pretenda um contrato natural entre o homem e a natureza, tal como há duzentos anos Rousseau propunha o seu célebre contrato social.