Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | JUDITE PIRES | ||
| Descritores: | CONTRATO DE SEGURO SEGURO FACULTATIVO DEVER DE COMUNICAÇÃO CLAÚSULAS CONTRATUAIS GERAIS | ||
| Nº do Documento: | RP202510091716/18.0T8PVZ.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/09/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - O dever de comunicação que recai sobre quem negoceia apresentando à outra parte um contrato com cláusulas gerais, pré-definidas, é uma obrigação de meios, não se exigindo para o seu cumprimento que o contratante, abrangido por tais cláusulas, delas tome conhecimento efectivo, mas que lhe sejam facultadas as condições para, em termos de razoabilidade e actuando com diligência, obter conhecimento sobre o seu conteúdo. II - Esse dever de comunicação é satisfeito quando as cláusulas contratuais gerais constem do documento assinado pelo aceitante, quando este saiba ler e escrever e o documento lhe seja facultado para leitura e análise antes de nele apor a sua assinatura. III - No âmbito do seguro facultativo dispõem as partes de liberdade contratual para fixarem o seu conteúdo, definindo, nomeadamente, os critérios atendíveis para a determinação do valor indemnizatório pelo dano biológico, nada obstando que acordem que tal valor seja calculado de acordo com o regime previsto na Portaria n.º 377/2008, de 26/05. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 1716/18.0T8PVZ.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 5
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO. Autor: AA Ré: A... – Companhia de Seguros, S.A. O Autor instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que seja a Ré condenada a pagar-lhe: a) a quantia de € 149.586,00, respeitante a dano biológico e despesas médicas e medicamentosas, acrescida de juros legais, a contar da citação até integral pagamento; b) indemnização, a liquidar em execução de sentença, como ressarcimento das despesas que resultem de eventuais e futuros tratamentos de medicina física e de reabilitação e de medicação. Alegou, em síntese, que é proprietário do veículo automóvel matrícula ..-..-QX, tendo celebrado com a Ré seguro com cobertura de responsabilidade civil obrigatória e, entre outras, proteção vital do condutor com o capital de € 500.000. A 5 de Março de 2017, pelas 19h30, tripulava o seu veículo na ..., no sentido ... - ..., a velocidade inferior a 100 km/h, quando, ao descrever uma curva ligeiramente à esquerda, entrou em despiste, capotou várias vezes, ficando imobilizado na vala que divide os dois sentidos de trânsito, sendo projetado cerca de 20 metros. Sofreu TCE grave, fratura do corpo C2, da apófise odontoide e avulsão ligeira transverso atlas, trauma abdominal; esteve internado nos cuidados intensivos e para programa de reabilitação durante 116 dias, usou colar cervical, frequentou as consultas externas de ortopedia e de fisiatria, regressando ao Luxemburgo, onde trabalha, um ano depois do acidente; conseguiu retomar a actividade profissional, mas tem dificuldades em manipular pesos e sente cansaço acrescido; a consolidação médico-legal das lesões ocorreu a 28 de Fevereiro de 2018, teve défice funcional temporário de 245 dias, repercussão temporária na actividade profissional de 361 dias, sofreu dores de grau 6/7, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de 1/7, por limitação da prática de desporto no ginásio e défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 23 pontos, a implicar esforços adicionais. Acrescentou que exerce a actividade de ladrilhador, aufere € 2.357,50 não tendo quaisquer qualificações técnico-profissionais; despendeu € 86,00 em consultas e tratamentos e pretende ser indemnizado em € 149.500 por dano biológico, referindo ter 24 anos à data do acidente. A Ré contestou, aceitando a dinâmica do acidente e as despesas médicas; contrapôs que os danos não patrimoniais não são enquadráveis no seguro facultativo, discriminando as coberturas e referiu que o Autor não cumpriu com o estipulado nas cláusulas 7.ª n.ºs 1 b), c) e 2, 16.ª, nº 2 das condições especiais da apólice, designadamente, não se mostrou disponível para o agendamento de consulta nos seus serviços clínicos, de modo a poder aferir da situação clínica e extensão dos alegados danos, apenas lhe tendo sido facultado um relatório de alta médica. Referiu que o demandante regressou à actividade laboral e retribuição, as sequelas de que padece não impedem esse exercício, nem interferem com a capacidade de ganho, Adiantando que, de acordo com o seguro, a afectação permanente da integridade física e psíquica superior a 10 pontos é indemnizada com base nas regras da Portaria nº 377/2008, com a redação da Portaria nº 679/2009, sendo que o dano biológico consiste num dano não patrimonial, associado ao direito à saúde, concluindo que a pretensão não pode proceder. O Autor exerceu o contraditório argumentando que não formulou qualquer pedido por danos não patrimoniais. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que se pronunciou pela validade e regularidade dos pressupostos processuais. Identificado o objecto do litígio, foram enunciados os temas da prova, sem reclamação. Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Em face do exposto, o Tribunal, julgando a ação parcialmente provada e procedente: a) condena a Ré A... – Companhia de Seguros, S.A. a pagar ao Autor AA a quantia de € 1.536, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde o trânsito em julgado da presente decisão até integral e efetivo cumprimento. c) absolve a Ré A... – Companhia de Seguros, S.A. dos restantes pedidos formulados pelo Autor AA. Custas a cargo do Autor. Registe e notifique”. Não se resignando o Autor com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões: “A. Ficou a constar da cláusula 4ª das condições especiais da apólice relativamente à cobertura identificada em 10): “5. Afetação permanente da integridade física e psíquica (dano biológico): a) Em caso de afetação permanente da integridade física e psíquica da Pessoa segura em grau superior a 10 (dez) pontos, o Segurador pagará à pessoa segura, uma indemnização calculada com base nas regras e fórmulas constantes da Portaria da Proposta Razoável. B. SUCEDE QUE: Nunca tal cláusula foi lida ou explicado o seu teor ao Autor, aqui Recorrente, pelo que se tem de ter necessariamente excluída do contrato. C. Não resulta dos factos dados como provados que a Ré leu ou explicou ao Autor as referidas cláusulas, descritas nos pontos 12, 13 e 14 dos factos dados como provados. D. Exige-se, nos termos dos artigos 5.º e 6.º do DL 446/85, de 25/10, para as cláusulas contratuais gerais ser corretamente aceites pela outra parte, um conhecimento efetivo e integral das mesmas, sob pena de ocorrerem vícios na formação da vontade, nomeadamente nos termos dos artigos 246.º, 247.º e 251.º do Código Civil, pelo que não basta a simples disposição, por parte do aderente (consumidor), do conteúdo das cláusulas contratuais gerais, para que tal dever se considere como correta e legalmente cumprido. E. No caso em apreço, não ficou dado como provado o efetivo conhecimento das cláusulas pelo Autor, quer do teor da indemnização devida a título de dano biológico, como a título de ITA, pelo que se tem pela exclusão do contrato celebrado tal cláusula, nos termos do disposto no artigo 8.º, al. a), do mesmo DL 446/85. F. Assim, sempre se impunha a procedência do pedido formulado quanto à indemnização devida ao Autor a título de dano biológico alterando-se a sentença ora aqui posta em crise quanto a este aspeto, o que expressamente se requer. G. Sem prescindir, e atendendo ao facto de as referidas cláusulas, excluídas, se têm por nulas, essa nulidade é de conhecimento oficioso, nos termos e para os efeitos do artigo 286.º do Código Civil, pelo que sempre se impõe o conhecimento pelo tribunal ad quem, de recurso, oficiosamente, da nulidade das referidas cláusulas. H. Caso as cláusulas não sejam comunicadas, ou ocorra violação do dever de informação, não sendo de esperar o seu conhecimento efectivo, as cláusulas afectadas consideram-se excluídas do contrato em causa (art. 8.º, als. a) e b), do RJCCG). I. Tais deveres de comunicação e informação previstos nos arts. 5º a 8º do RJCCG correspondem, respectivamente, aos deveres de informação e de esclarecimento, previstos no regime jurídico do contrato de seguro (RJCS) cujo incumprimento faz incorrer o segurador em responsabilidade civil, nos termos gerais (arts. 18.º, 22.º e 23.º, n.º 1, do RJCS). J. E não são mais do que a concretização dos deveres pré-contratuais previsto no art. 227º do CC, já que nenhum contrato se celebra se não houver uma comunicação integral, oportuna e adequada à compreensão da parte contrária, uma vez que sem um entendimento adequado das declarações contratuais não haverá sequer consenso. K. A seguradora não logrou alegar e provar em juízo ter dado cumprimento efetivo ao dever de informação acerca do seu teor, ao destinatário da proposta contratual, o A. ora Recorrente; L. Tratando-se de uma cláusula inexistente, é permitido o conhecimento desta invalidade oficiosamente pelo tribunal, mesmo quando não suscitada pelas partes. M. Não era ao A. que incumbia o ónus de alegar a violação dos deveres prescritos nos artigos 5.º e 6.º do DL 446/85, de 25.10. N. Como resulta do critério legal, acolhido pelo art. 566º, n.ºs 2 e 3 do CC, a indemnização em dinheiro, a atribuir sempre que seja impossível a reconstituição natural, tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem os danos; se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados. O. Foram violadas as normas do art. 1º, 5.º, 6.º, 8º, 18º, 22º e 23º do RJCS e arts. 246º, 247º, 251º, 286º, 406º, 566º do Código Civil, entre outras normas. SEM PRESCINDIR, P. Compulsada a motivação da matéria de facto da Douta Sentença, verifica-se que não foi provado que a Ré, ora Recorrida informou o Autor das o efetivo conhecimento das cláusulas pelo Autor. A referida questão é bastante relevante para o mérito da causa. Q. Esta situação pode conduzir a que o Tribunal ad quem tenha necessidade de impor a remessa ao Tribunal a quo para que proceda à devida fundamentação da decisão sobre esse ponto de facto (cfr. art. 662º/2d) do CPC. R. Assim sendo, o Recorrente entende que o Tribunal ad quem deverá anular a Douta Sentença, e ordenar a remessa dos presentes autos para julgamento, de forma a determinar: - se a Ré, ora Recorrida deu cumprimento ao dever de informação ao Autor, ora Recorrente, do teor das cláusulas. S. Face ao exposto, atendendo que a factualidade omitida não está logicamente assente, resta apurar a referida questão imprescindível para a Decisão da causa. T. Deste modo, impõe-se a anulação do julgamento para ampliação dos temas de prova sobre o dever de informação das cláusulas do contrato de seguro. * U. O Tribunal a quo fixou o valor de €1.450,00 (mil quatrocentos e cinquenta euros) a título de indemnização pela afetação permanente da integridade física e psíquica de 17 pontos de acordo com a “Portaria da Proposta Razoável”. V. Contudo, foi dado como provado, no ponto 31º da Fundamentação de Facto, que: “31. As sequelas identificadas em 29) correspondem a défice funcional permanente da integridade físico psíquica de 17 pontos, compatível com a sua atividade profissional, mas a implicar esforços acrescidos [resposta aos artigos 47º, 56º, 63º da petição inicial, 45º da contestação]”. W. É do entendimento do Recorrente que não é de atender à acima referida Portaria nº 377/08 de 26/05/08, alterada pela Portaria nº 679/2009 de 25/06, uma vez que a mesma prevê os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação pelas seguradoras aos lesados de acidente de viação de proposta razoável para indemnização do dano corporal, não vinculando os tribunais (além de que os valores nela constante se mostram desatualizados atento o tempo decorrido desde a sua publicação). X. Sem prejuízo, o cálculo do quantum indemnizatório, fixado para reparação pela perda da capacidade aquisitiva futura, tem pois, necessariamente, por base, critérios de equidade que assenta numa ponderação prudencial e casuística, dentro de uma margem de discricionariedade que ao julgador é consentida, que, de todo, colida com critérios jurisprudenciais atualizados e generalizantes, de forma a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade. Foram, portanto, violadas as normas constantes nos Anexos e cláusulas da Portaria nº 377/2008 e arts. 562º e 566, entre outos do CC. NESTES TERMOS e nos mais e melhores de Direito que V/ Ex.as doutamente suprirão, deve o presente Recurso de Apelação ser julgado procedente por provado e ser a R. condenada conforme o pedido da Petição Inicial. Assim farão Vossas Excelências, como sempre, SÃ JUSTIÇA”. A apelada apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação do decidido. Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO. A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito. B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar: - se a cláusula 4.ª, n.º 5 das Condições Especiais do contrato de seguro celebrado entre Autor e Réu é nula por violação, por parte desta dos deveres de comunicação/informação. - se o montante indemnizatório devido pelo dano biológico sofridos pelo Autor deve ser fixado com recurso a critérios de equidade.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO. III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância: 1. No dia 5 de Março de 2017, pelas 19:30 horas, na ..., ao km 35.152, na cidade da Póvoa de Varzim, no sentido de tráfego Norte – Sul, ocorreu um acidente de viação, em que foi interveniente um veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula ..-..-QX, propriedade do Autor e conduzido por este, e, como passageira/ocupante seguia a finada BB [ponto 1º dos factos assentes do despacho em referência]. 2. No indicado dia, hora, local, o Autor conduzia o QX, no sentido ... – ..., ou seja, sentido Norte – Sul, utilizando o respectivo cinto de segurança, quando a dado momento, em que descrevia uma curva ligeiramente à esquerda, e, em circunstâncias e por motivos não concretamente apurados, entrou em despiste, capotando várias vezes e acabou imobilizado na vala que divide os dois sentidos de trânsito [ponto 2º dos factos assentes do despacho em referência]. 3. O Autor foi projectado cerca de 20 metros do local do acidente, sendo sedado no local do acidente e transferido para o Hospital ..., na cidade do Porto, pelos Bombeiros Voluntários ... [ponto 3º dos factos assentes do despacho em referência]. 4. Por força do acidente resultou uma total destruição do veículo automóvel QX, propriedade do Autor [ponto 4º dos factos assentes do despacho em referência]. 5. O local do acidente constitui uma autoestrada, denominada por ... [ponto 5º dos factos assentes do despacho em referência]. 6. Em consequência do acidente, a namorada do Autor faleceu e o Autor sofreu inúmeros danos [ponto 6º dos factos assentes do despacho em referência]. 7. Em consultas e tratamentos, despendeu o Autor a quantia de € 86 [ponto 7º dos factos assentes do despacho em referência]. 8. O Autor tinha 24 anos à data do acidente [ponto 8º dos factos assentes do despacho em referência]. 9. À data do sinistro o Autor tinha contratado com a Ré um seguro do ramo Automóvel “...”, titulado pela apólice nº ..., composto pela seguintes Coberturas: Responsabilidade Civil Obrigatória, Assistência em viagem Plus, Protecção Vital do Condutor, Ocupantes da Viatura – Despesas de Tratamento, Ocupantes da Viatura – Morte ou Invalidez Permanente, e Quebra Isolada de Vidros [ponto 9º dos factos assentes do despacho em referência]. 10. Da apólice subscrita por via do contrato de seguro, com início em 23/07/2016, consta a cobertura facultativa de Proteção Vital do Condutor, à qual corresponde um capital seguro de 500.000,00 €, aplicando ainda à referida cobertura facultativa as Condições Especiais “...” [ponto 10º dos factos assentes do despacho em referência]. 11. Ficou a constar da cláusula 3ª das condições especiais da apólice relativamente à cobertura identificada em 10): “A presente Condição Especial garante, até ao limite do valor seguro indicado nas Condições Particulares e com os limites indicados na presente Condição Especial, a reparação de danos decorrentes de lesões corporais, ou de morte que lhe sobrevenha, sofridas pela Pessoa Segura em consequência de acidente de viação em que intervenha como condutor do veículo seguro. Esta Condição Especial abrange as seguintes prestações: • Dano patrimonial futuro em caso de morte • Capital por morte • Despesas de funeral • Dano patrimonial futuro em caso de incapacidade permanente absoluta • Afetação permanente da integridade física e psíquica (dano biológico) • Despesas hospitalares, medicas e medicamentosas • Dano patrimonial decorrente de apoio doméstico temporário por terceira pessoa • Dano patrimonial futuro decorrente de assistência vitalícia • Incapacidade temporária absoluta • Adaptação de veículo, de residência habitual e ou de posto de trabalho • Incapacidade permanente absoluta de jovem 2. As indemnizações garantidas pela presente Condição Especial, não são cumuláveis com as indemnizações que sejam devidas por quem tenha assumido, ou deva assumir, o dever de reparar os danos decorrentes do acidente, independentemente do fundamento e da natureza do ato de assunção ou de reconhecimento desse dever. 3. O disposto no número anterior também se aplica quando inexistir Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel válido e deva responder o Fundo de Garantia Automóvel ou quando se esteja em presença de um acidente de trabalho, ainda que inexista Seguro de Acidente de Trabalho válido e deva responder o Fundo de Acidentes de Trabalho.” [resposta ao artigo 26º da contestação]. 12. Ficou a constar da cláusula 4.ª das condições especiais da apólice relativamente à cobertura identificada em 10): “5. Afetação permanente da integridade física e psíquica (dano biológico): a) Em caso de afetação permanente da integridade física e psíquica da Pessoa segura em grau superior a 10 (dez) pontos, o Segurador pagará à pessoa segura, uma indemnização calculada com base nas regras e fórmulas constantes da Portaria da Proposta Razoável. b) A determinação do grau da afetação permanente da integridade física e psíquica da Pessoa segura será efetuada com base n a Tabela Nacional para Avaliação das Incapacidades Permanentes em Direito Civil, com base na situação da Pessoa Segura na data da alta clínica ou na verificada na data do termo do período de 24 meses contado a partir da data do acidente, presumindo-se que, decorrido este prazo, a situação clínica já não se alterará. Sempre que o grau de afetação permanente da integridade física e psíquica da Pessoa segura seja igual ou superior a 60 pontos, o pagamento da prestação devida será efetuada através do oferecimento de uma renda ou de um sistema misto de renda e capital que reserve para o pagamento em renda, salvo em situações ao exclusivo critério do Segurador, consideradas fundamentadas, verba não inferior a 2/3 da indemnização. 6. Despesas hospitalares, médicas e medicamentosas: a) O Segurador procederá ao reembolso dos gastos efetuados com cuidados médicos ou hospitalares, farmacêuticos e similares prestados à Pessoa Segura, em regime hospitalar ou em regime ambulatório, realizados em período anterior à data da cura ou de consolidação das lesões sofridas no acidente de viação e necessários e adequados ao tratamento destas, ao restabelecimento da pessoa segura e à sua recuperação para a vida ativa. (…) d) O reembolso das despesas será́ efetuado a quem comprovar tê-las suportado, contra entrega de documentos comprovativos, até ao limite de 20% do valor seguro indicado nas Condições Particulares.” [resposta aos artigos 47º, 48º da contestação]. 13. Ficou a constar da cláusula 7.ª das condições especiais da apólice relativamente à cobertura identificada em 10): “1. Verificando-se qualquer evento que faça funcionar as garantias da presente Condição Especial, o Tomador do Seguro e a Pessoa Segura, sob pena de responderem por perdas e danos, obrigam-se a: (…) b) Promover o envio, até 8 dias após a Pessoa Segura ter sido clinicamente assistida, de uma declaração médica, onde conste a data de internamento hospitalar, a natureza e localização das lesões, o seu diagnóstico e os dias eventualmente previstos para internamento, bem como a indicação da possível Invalidez permanente; c) Comunicar, até 8 dias após a sua verificação, a cura das lesões promovendo o envio de declaração hospitalar, referindo a data do internamento e a data da alta, e de declaração médica onde conste o grau de Invalidez Permanente eventualmente constatada. 2. Em caso de acidente a Pessoa Segura, sob pena de responder por perdas e danos, fica obrigada a: a) Cumprir todas as prescrições médicas; b) Sujeitar-se a exame por médico designado pelo Segurador” [resposta aos artigos 28º, 30º, 31º da contestação]. 14. Ficou estipulado na cláusula 16ª das condições especiais da apólice relativamente à cobertura identificada em 10): “1. A constatação da existência de lesões corporais na Pessoa Segura e a avaliação das situações de incapacidade delas decorrentes são feitas por peritos médicos conhecedores dos princípios da avaliação médico-legal das incapacidades em direito civil, com base em observações especializadas, tendo presente o disposto na Tabela Nacional para Avaliação das Incapacidades Permanentes em Direito Civil. 2. Será sempre efetuado por médico do Segurador, com competência específica na avaliação do dano corporal: a) A determinação do grau de incapacidade ou de afetação permanente da integridade física e psíquica da Pessoa Segura, bem como as suas consequências ao nível da incapacidade permanente absoluta de jovem” [resposta ao artigo 33º da contestação]. 15. Logo após o acidente, o Autor foi socorrido no local pelo VMER e transportado para o Centro Hospitalar ... [resposta ao artigo 24º da petição inicial]. 16. Apresentava hematoma pauperal direito, otorragia direita [resposta ao artigo 41º da petição inicial]. 17. Na sequência da realização de meios complementares de diagnóstico foram diagnosticados ao Autor: a) traumatismo crânio-encefálico grave: - contusões cortico-subcorticais frontais parassagitais direitos e de menores dimensões na vertente superior do tálamo direita; - contusões fronto-basais bilaterais; - hemorragia ventricular depositada nos cornos occipitais; - sinais cerebrais sugestivos de lesão axonal difusa; b) traumatismo cervical: - fratura do corpo C2 e da base da apófise odontoide; - e avulsão ligeira transverso atlas; - contusão medular no nível C2; c) traumatismo abdominal: - hematoma peri-renal direito; - coleção supra-renal, de morfologia lenticulariforme, medindo cerca de 30x7 mm, correspondente a hematoma subcapsular [resposta aos artigos 21º, 22º, 41º da petição inicial]. 18. Foi admitido na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital referido em 15) para medidas de neurointensivismo [resposta aos artigos 25º, 42º da petição inicial]. 19. Em 15 de Março de 2017 foi transferido para a Unidade de Cuidados Intermédios Neurocríticos do Hospital 1... [resposta ao artigo 26º da petição inicial]. 20. Em 20 de Março de 2017 foi transferido para o Serviço de Neurologia [resposta ao artigo 27º da petição inicial]. 21. Em 5 de Abril de 2017 foi transferido para o Serviço de Medicina e Reabilitação [resposta ao artigo 28º da petição inicial]. 22. Em 3 de Maio de 2017 foi transferido para o Centro de Reabilitação ... para continuação do programa de reabilitação [resposta ao artigo 29º da petição inicial]. 23. Aí cumpriu programa fisiátrico integral e abrangente, com apoio médico, fisioterapia, terapia ocupacional e da fala, psicologia, nutrição e serviço social [resposta ao artigo 30º da petição inicial]. 24. Teve alta do internamento no Centro de Reabilitação ... em 28 de Junho de 2017 apresentando força muscular globalmente conservada, exceto nos elevadores laterais do ombro direito, catch ligeiro no final da dorsiflexão da tibiotársica direita e rigidez axial na marcha [resposta aos artigos 31º, 44º da petição inicial]. 25. Durante o período global de internamento, o Autor foi sujeito a diversos exames e a tratamento medicamentoso, nomeadamente, quetiapina, trazadona, propanonol, oxazepan, escitalopram [resposta aos artigos 33º, 34º da petição inicial]. 26. Após a alta referida em 25) o Autor teve indicação para continuar a utilizar colar cervical até à consulta de ortopedia agendada para 7 de Julho de 2017, retirando-o em 16 de Agosto seguinte [resposta ao artigo 35º da petição inicial]. 27. Manteve acompanhamento nas consultas externa de ortopedia, medicina física e reabilitação e neurocirurgia no Hospital 1... em 7, 19, 21 de Julho, 1, 16 de Agosto, 27 de Outubro, 7 e 8 de Novembro de 2017, nas consultas de medicina física e reabilitação do Centro de Reabilitação ... em 17 de Julho, 19 de Setembro e 27 de Novembro de 2017 e em consultas no Centro de Saúde em 29 e 30 de Junho de 2017 [resposta aos artigos 36º, 37º da petição inicial]. 28. Em 17 de Janeiro de 2018, o Autor teve consulta com o Dr. CC, médico neurologista, por indicação dos Serviços Sociais do Luxemburgo [resposta ao artigo 38º da petição inicial]. 29. O Autor atingiu a consolidação médico-legal das lesões em 28 de Fevereiro de 2018, com as seguintes sequelas permanentes: a) cervicalgia de intensidade média a moderada com o esforço; b) hemiparesia direita grau 4+/5; c) alterações de memória que, contudo, não interferem substancialmente com a sua vivência diária, estando autónomo do ponto de vista cognitivo/situacional [resposta aos artigos 48º, 46º da petição inicial]. 30. O Autor queixa-se de maior dificuldade em pegar em pesos com o membro superior direito, com reflexos na sua atividade profissional [resposta ao artigo 47º da petição inicial]. 31. As sequelas identificadas em 29) correspondem a défice funcional permanente da integridade físico psíquica de 17 pontos, compatível com a sua atividade profissional, mas a implicar esforços acrescidos [resposta aos artigos 47º, 56º, 63º da petição inicial, 45º da contestação]. 32. As lesões, o processo de convalescença e os tratamentos causaram ao Autor dores de grau 6 numa escala de 1 a 7 [resposta ao artigo 54º da petição inicial]. 33. No período compreendido entre 5 de Março e 28 de Junho de 2017 o Autor sofreu de défice funcional temporário total [resposta aos artigos 51º, 53º da petição inicial]. 34. No período compreendido entre 29 de Junho de 2017 e 28 de Fevereiro de 2018 o Autor padeceu de défice funcional temporário parcial [resposta ao artigo 51º da petição inicial]. 35. No período identificado em 33) e 34) o Autor esteve impedido de trabalhar [resposta ao artigo 52º da petição inicial]. 36. Desde 1 de Fevereiro de 2016 o Autor exerce a atividade de ladrilhador na empresa B..., SARL, com sede no Luxemburgo [resposta ao artigo 61º da petição inicial]. 37. Em Janeiro de 2017 o Autor auferia a retribuição bruta de € 2.357,50 [resposta ao artigo 62º da petição inicial]. 38. O Autor auferiu subsídios de doença, pagos pela Caisse Nationale de Santé do Luxemburgo, pelo menos, no período de Junho de 2017 a Fevereiro de 2018 [resposta ao artigo 68º da contestação]. 39. O Autor retomou a sua atividade referida em 36) em Março de 2018, mantendo a mesma remuneração [resposta aos artigos 40º da petição inicial, 37º da contestação]. 40. O Autor tem escolaridade até ao 9º ano [resposta ao artigo 62º da petição inicial]. 41. Não obstante as tentativas da Ré para agendamento de consulta nos seus serviços clínicos, de modo a poder aferir da situação clínica e extensão das lesões e sequelas sofridos pelo Autor, este não se mostrou disponível para tal, comunicando em Julho de 2018 o período de estadia em Portugal de 27 desse mês a 18 de Agosto, o que pela falta de antecedência não permitiu a marcação [resposta ao artigo 34º da contestação]. 42. Tão pouco foram transmitidas à Ré informações atualizadas a respeito do Autor, tendo sido disponibilizado relatório de alta médica produzido pelo Centro de Reabilitação ..., datado de 28 de Junho de 2017 [resposta ao artigo 35º da contestação]. III.2. E considerou não provados os seguintes factos: a) o Autor padece atualmente de: instabilidade atlanto-axial; alterações neuropsicológicas, que afetam a alteração da atenção, bem como, alteração do funcionamento executivo, nomeadamente da memória do trabalho; b) o Autor ficou a padecer de enorme ansiedade, traduzida em impulsividade e agitação, insónia terminal, disfagia neurogénica, hipertonia; c) o Autor esquece-se do telemóvel em qualquer sítio; d) o Autor deixou de praticar ginásio, atividade que exercia regularmente; e) o Autor tem algum medo da condução e receios de transportar outras pessoas no carro; f) o Autor padece de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 23 pontos; g) o Autor sofre repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer e 1 ponto numa numa escala de 7 pontos; h) atualmente, o Autor obriga-se a deslocar-se a diversas consultas e a fazer vários exames tanto em Portugal como em Luxemburgo.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO. O Autor, que no dia 5 de Março de 2017 sofreu um acidente de viação nas circunstâncias descritas nos pontos 1.º a 5.º dos factos provados, demandou judicialmente a Ré seguradora, com quem celebrou o contrato de seguro mencionado nos pontos 9.º a 14.º dos factos provados, reclamando reparação de danos sofridos em consequência do referido sinistro, designadamente os emergentes do défice funcional que passou a afectá-lo. Por contrato de seguro entende-se o acordo pelo qual alguém se obriga, mediante o pagamento de determinado prémio, a indemnizar o respectivo tomador ou um terceiro pelos prejuízos decorrentes da verificação de certo dano ou risco[1]. Constitui, pois, um contrato oneroso, tipicamente aleatório, de prestações recíprocas e de execução continuada. Margarida Lima Rego[4] define o contrato de seguro como aquele “pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas reais ou potenciais da verificação de um determinado facto”. É um contrato que assenta nos princípios da máxima boa fé, (uberrimae fides) e da tutela da confiança, “surgindo a declaração do risco como umas das várias manifestações dessa mesma natureza fiduciária. É em homenagem à especial relação de confiança entre as partes e ao princípio da boa-fé que se impõe um dever de declaração ao Tomador do Seguro/Segurado, e é natural que assim seja, uma vez que, relembremos, a figura nasceu para proteger o Segurador que tem de confiar nas declarações do Tomador do Seguro/Segurado (o que melhor conhece o risco) para poder delimitar o risco a segurar”[5]. O risco constitui o elemento essencial do contrato de seguro: “a obrigação do segurador não é a de assumir o risco de outrem, mas de realizar a prestação resultante de um sinistro associado ao risco de outrem. (…) O contrato de seguro caracteriza-se pela obrigação, assumida pelo segurador, de realizar uma prestação (máxime uma quantia) relacionada com o risco do tomador do seguro ou de outrem”[6]. O risco coberto pelo contrato de seguro é o identificado nas respectivas cláusulas, sendo por elas delimitado. De facto, como pode ler-se no acórdão do STJ de 10.03.2026[7], “[...] 2. O risco relevante para efeitos do contrato de seguro, dada a sua especificidade típica, deve ser configurado no respetivo contrato através da chamada declaração inicial dos riscos cobertos. 3. Na prática negocial, tal delimitação, mormente na vertente causal, é tecnicamente feita através de dois vetores complementares, primeiramente, através de cláusulas definidoras da chamada “cobertura de base” e, subsequentemente, pela descrição de hipóteses de exclusão ou de delimitações negativas daquela base, com o que se configura um tipo abstrato de sinistro coberto pelo seguro.” Por seu lado, “o capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro, consoante o que esteja estabelecido no contrato”[8]. O que significa que o capital seguro representa o plafond máximo da indemnização, limitado ao dano decorrente do sinistro, salvo estipulação legal em contrário. No seguro de coisas, conforme decorre do artigo 130.º n.º 1 do RJCS, o “dano a atender é o do interesse seguro ao tempo de sinistro”. Na sua formação, o contrato de seguro começa com a proposta contratual do tomador de seguro, que deverá “declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.”[9] Do pregresso artigo 439.º do Código Comercial já emanava o princípio indemnizatório que encontra toda a justificação em sede de seguro de danos, visando impedir uma situação de enriquecimento do segurado à custa da seguradora designadamente quando a ocorrência do sinistro determinasse um resultado mais vantajoso[10]. Menezes Cordeiro[11], aponta para este princípio uma tripla justificação: no plano histórico, na medida em que visa esconjurar o risco da usura; numa perspectiva significativa e ideológica, propondo-se afastar a outorga de seguros com objectivos de lucro; e no plano social, a redução dos casos de fraude e de enriquecimento ilegítimo. Essa justificação é ainda desmultiplicada por Francisco Rodrigues da Rocha[12], quando se refere às dificuldades das seguradoras em fazer prova da existência de comportamentos dolosos do segurado ou da má fé deste na contratação. No que aqui se discute, resulta demonstrado ter a autora, no âmbito da sua actividade, celebrado com a ré um contrato de seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º .... O risco coberto pelo contrato de seguro é, pois, o identificado nas respectivas cláusulas, sendo por elas delimitado. De facto, como pode ler-se no acórdão do STJ de 10.03.2026[13], “[...] 2. O risco relevante para efeitos do contrato de seguro, dada a sua especificidade típica, deve ser configurado no respetivo contrato através da chamada declaração inicial dos riscos cobertos. 3. Na prática negocial, tal delimitação, mormente na vertente causal, é tecnicamente feita através de dois vetores complementares, primeiramente, através de cláusulas definidoras da chamada “cobertura de base” e, subsequentemente, pela descrição de hipóteses de exclusão ou de delimitações negativas daquela base, com o que se configura um tipo abstrato de sinistro coberto pelo seguro.” Tendo o contrato de seguro natureza aleatória, sendo a obrigação através dele assumida pela seguradora futura e incerta, a determinação do risco coberto reveste-se de inegável relevância, pois dele depende a constituição dessa obrigação e a medida da mesma. Refere o acórdão do STJ de 24.01.2018[14]: “...na delimitação da responsabilidade operada pelas cláusulas de exclusão contidas nas Condições Gerais e/ou Especiais nas apólices dos contratos de seguro caberá destrinçar as cláusulas de exclusão da responsabilidade que se mostram proibidas à luz do citado artigo 18.º, das que visam a delimitação do objecto de contrato, porquanto estas configuram-se plenamente válidas [8]. Nessa distinção importa antes de mais atender ao objecto do seguro e aos riscos cobertos na apólice[9]. E, assim, apenas serão tidas como absolutamente proibidas as cláusulas que prevejam uma exclusão ou limitação da responsabilidade que desautorize (ou esvazie) o objecto do contrato”. Segundo Pedro Romano Martinez[15], “apesar de a exclusão de alguns riscos ser lícita por assentar na liberdade contratual e não contrariar o disposto no regime das cláusula contratuais gerais, em situações limite pode corresponder a uma solução inadmissível por desvirtuar o objeto do contrato; isto é, se a modalidade de seguro ajustada não abrange o respetivo âmbito de risco. Deste modo, na hipótese de, tendo em conta o típico risco coberto naquele contrato de seguro, se inviabilizar essa cobertura por via de várias exclusões e risco, ainda que a respetiva informação tenha sido prestada, conclui-se que o objeto do contrato fica esvaziado, podendo consubstanciar uma situação ilícita”. De acordo com o artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, “[a]s cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”. No caso aqui em análise, resultou demonstrado que entre Autor e Ré havia sido celebrado, encontrando-se em vigor à data do sinistro, um contrato de seguro do ramo Automóvel “...”, titulado pela apólice nº ..., composto pela seguintes Coberturas: Responsabilidade Civil Obrigatória, Assistência em viagem Plus, Protecção Vital do Condutor, Ocupantes da Viatura – Despesas de Tratamento, Ocupantes da Viatura – Morte ou Invalidez Permanente, e Quebra Isolada de Vidros. Da respectiva apólice consta a cobertura facultativa de Proteção Vital do Condutor, à qual corresponde um capital seguro de 500.000,00 €, aplicando ainda à referida cobertura facultativa as Condições Especiais “...”. O acidente, no qual apenas interveio o Autor, condutor do veículo sinistrado, causou-lhe lesões corporais de que resultaram sequelas permanentes a que corresponde um défice funcional permanente da integridade físico psíquica de 17 pontos, compatível com a sua actividade profissional, mas a implicar esforços acrescidos. Da cláusula 4.ª das condições especiais da apólice do contrato de seguro celebrado entre Autor e Ré consta, entre o mais: “5. Afetação permanente da integridade física e psíquica (dano biológico): a) Em caso de afetação permanente da integridade física e psíquica da Pessoa segura em grau superior a 10 (dez) pontos, o Segurador pagará à pessoa segura, uma indemnização calculada com base nas regras e fórmulas constantes da Portaria da Proposta Razoável. b) A determinação do grau da afetação permanente da integridade física e psíquica da Pessoa segura será efetuada com base n a Tabela Nacional para Avaliação das Incapacidades Permanentes em Direito Civil, com base na situação da Pessoa Segura na data da alta clínica ou na verificada na data do termo do período de 24 meses contado a partir da data do acidente, presumindo-se que, decorrido este prazo, a situação clínica já não se alterará”. A sentença procedeu ao cálculo devido pela reparação do dano biológico atendendo ao limite do risco assegurado pela aludida cláusula, contratualmente fixado no âmbito do contrato de seguro facultativo celebrado entre as partes. Pode ler-se, com efeito, na referida sentença: “No que concerne à afetação permanente da integridade física e psíquica, a cláusula 4.5 das condições especiais da apólice prevê que, no caso de a pessoa segura sofrer da mesma em grau superior a 10 pontos, a Ré pagará uma indemnização calculada com base nas regras e fórmulas constantes da Portaria da Proposta Razoável, concretizando que a determinação do grau dessa afetação permanente da integridade física e psíquica será efetuada com base na Tabela Nacional para Avaliação das Incapacidades Permanentes em Direito Civil, com base na situação da pessoa segura na data da alta clínica ou na verificada na data do termo do período de 24 meses contado a partir da data do acidente, presumindo-se que, decorrido este prazo, a situação clínica já não se alterará. Significa esta cláusula que teremos de nos socorrer da Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria nº 679/2009 de 25 de Junho, a qual, no seu artigo 3º alínea b), prevê que, em caso de dano corporal28, o lesado é indemnizado por dano pela ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil29. A cláusula das condições especiais da apólice em apreço faz equivaler a afetação permanente da integridade física e psíquica ao dano biológico. [...] Arredada a objeção da Ré perante este enquadramento do dano biológico, sempre se dirá que, independentemente da sua classificação, a demandada, como seguradora, assumiu a obrigação contratual de pagar ao Autor o valor que resulte da aplicação da Portaria nº 377/2008, na sua versão consolidada, conquanto a afetação permanente da integridade física e psíquica seja superior a 10 pontos, determinados pela aplicação da Tabela Nacional para Avaliação das Incapacidades Permanentes em Direito Civil, o que sucede no caso, já que se apurou que, atingida a consolidação médico-legal das lesões em 28 de Fevereiro de 2018, o Autor ficou a padecer, a título de sequelas permanentes, de cervicalgia de intensidade média a moderada com o esforço, hemiparesia direita grau 4+/5 e alterações de memória que, contudo, não interferem substancialmente com a sua vivência diária, estando autónomo do ponto de vista cognitivo/situacional, correspondentes a défice funcional permanente da integridade físico psíquica de 17 pontos. [...] Retomando o apuramento do montante devido ao Autor pela afetação permanente da integridade física e psíquica de 17 pontos, determinada no âmbito das perícias realizadas na fase de instrução da causa, perante a idade de 25 anos por referência à data de consolidação médico-legal das lesões, verificamos que o anexo IV da Portaria nº 679/2009 prevê, para lesados de idade entre 21 e 25 anos com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 16 a 20 pontos, indemnização entre € 1.441,53 e 1.492,83. Ponderando que os valores em causa dizem respeito à previsão contida no artigo 3º alínea b) e que o Autor não sofreu perda da capacidade de ganho, pois, após o regresso à sua atividade profissional em Março de 2018, manteve a mesma remuneração, o montante a receber deve quedar-se mais próximo do limite mínimo, que se fixa em € 1.450. Importa referir que, contrariamente ao que sucede quando está a em causa o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, em que o cálculo da indemnização por dano biológico é realizado com recurso à equidade, por não estar o Tribunal obrigado a observar normas pensadas para funcionar no âmbito da atividade seguradora no contexto de acidentes, no caso, Autor e Ré convencionaram a aplicação da “Portaria da Proposta Razoável” como parâmetro de avaliação do dano, que o Tribunal tem de observar”. Discorda o recorrente da fixação do montante indemnizatório devido a título de dano biológico defendendo, em primeiro lugar, não ser de aplicar a referida cláusula 5.ª, alínea a) das cláusulas especiais da apólice, sustentando que a mesma nunca lhe foi lida ou explicada, pugnando pela sua “exclusão do contrato celebrado [...], nos termos do disposto no artigo 8.º, al. a), do mesmo DL 446/85”, acrescentando que as cláusulas descritas nos pontos 12.º, 13.º e 14.º dos factos provados “se têm por nulas, essa nulidade é de conhecimento oficioso, nos termos e para os efeitos do artigo 286.º do Código Civil, pelo que sempre se impõe o conhecimento pelo tribunal ad quem, de recurso, oficiosamente, da nulidade das referidas cláusulas”. Pode ler-se no acórdão da Relação do Porto de 24.04.2008[16]: “como é sabido, uma das características mais marcantes do direito contratual contemporâneo é ele um número significativo de contratos - dos mais importantes da vida económica e empresarial moderna - ser celebrado em conformidade com as cláusulas previamente redigidas por uma das partes (ou até por terceiro), sem que a outra parte possa alterá-las. Tais contratos são designados por contratos de adesão, fórmula que traduz a posição da contraparte e realça o significado da aceitação: mera adesão a cláusulas pré formuladas por outrem. Nesta noção, avultam três características essenciais: a pré-disposição, a unilateralidade e a rigidez. São elas, as características que definem os contratos de adesão em sentido estrito. E do Acórdão da mesma Relação de 17.02.2009[17] extrai-se: “as cláusulas contratuais gerais consubstanciam-se como estipulações predispostas ou predefinidas, em vista de uma pluralidade de contratos ou de uma generalidade de pessoas, para serem aceites em bloco - sem negociação individualizada capaz de influir na modelação do respectivo conteúdo - ou possibilidade de alterações singulares. Pré-formulação, generalidade e imodificabilidade são, pois, as suas características essenciais. O que está em consonância com os propósitos de racionalização, certificação e uniformização que marcam a essência do fenómeno económico hodierno, no quadro da lógica, tipicamente empresarial, que recorre a este particular modo de contratação”. Apesar da sua natureza tipicamente consensual, também no contrato de seguro se recorre com frequência a cláusulas pré-redigidas e gerais, impostas, desde logo, por exigências técnicas, já que os riscos que o segurador assume devem ser homogéneos de modo a poderem constituir objecto de compensação estatística[18]. A despeito dos aspectos críticos que possam apontar-se às cláusulas contratuais gerais, é indiscutível a sua crescente necessidade: a exigência de realização efectiva de negociações pré-contratuais - individualizadas - para a concretização de todos os contratos acarretaria um significativo retrocesso na actividade jurídico-económica, em que as necessidades de rapidez e de normalização ligadas às modernas sociedades técnicas impõem o recurso àquele tipo de cláusulas. O Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro constitui a expressão de uma intervenção legislativa necessária à regulamentação, tão cuidada quanto possível, da questão das cláusulas contratuais gerais. Deve ser dada efectividade a esse dever de informação de molde a que o aderente tenha pleno conhecimento e compreenda o alcance das cláusulas pré-definidas pela outra parte antes de subscrever o contrato que a mesma lhe apresenta. Como afirma o Acórdão da Relação de Lisboa de 05.02.2009[24], “o dever de comunicação a que alude o artigo 5.º do DL nº 445/85, de 25/10, consiste em ser disponibilizado ao aderente o texto do contrato, previamente à assinatura do mesmo, pelo período que ao caso se mostre mais adequado. O objectivo é o de possibilitar ao aderente uma análise de todas as cláusulas contratuais que não haja negociado directamente. Não se provando que determinadas cláusulas contratuais, apesar de inseridas numa rubrica intitulada “condições específicas”, tenham sido objecto de negociação prévia – e o respectivo ónus incumbe à parte que pretende prevalecer-se do seu conteúdo – ficarão as mesmas abrangidas pelo regime aplicável às cláusulas contratuais gerais, nos termos do artigo 1º, nº 3 do DL nº 446/85”[25]. Os deveres de comunicação e de informação exigidos, respectivamente, pelo artigo 5.º e pelo artigo 6.º do aludido diploma complementam-se num escopo comum: a eficaz apreensão da proposta contratual pela parte aderente. As referidas obrigações complementam-se, revelando pontos de contacto comum. Defende Menezes Cordeiro[26], a propósito do dever de informação, que “o cumprimento desse dever prova-se através de indícios exteriores variáveis, consoante as circunstâncias. Assim perante actos correntes e em face de aderentes dotados de instrução básica, a presença de formulários assinados pressupõe que eles os entenderam; caberá, então, a estes demonstrar quais os óbices. Já perante um analfabeto, impõe-se um atendimento mais demorado e personalizado”. Como elucida o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.03.2011[27], “a presença dos contratos assinados pressupõe que a recorrente os entendeu e, em conformidade com o disposto no artigo 6º, a exequente apenas teria que informar a outra parte dos aspectos cuja aclaração se justificasse e prestar os esclarecimentos solicitados. (…) o cumprimento do dever de comunicação a que se reporta o artigo 5º, basta-se com a entrega da minuta do contrato, contendo todas as cláusulas (incluindo as gerais), com a antecedência que seja necessária, em função da extensão e complexidade das mesmas, na medida em que, com a entrega dessa minuta, uma pessoa normalmente diligente tem a efectiva e real possibilidade de ler e analisar todas as cláusulas e de pedir os esclarecimentos que entenda necessários para a sua exacta compreensão”. A contratação de um seguro inicia-se com uma proposta apresentada pelo tomador, normalmente através do preenchimento de questionário ou formulário facultado pela entidade seguradora, incumbindo-lhe efectuar a declaração inicial do risco que pretende ver abrangido pelo contrato. A seguradora analisa a proposta apresentada, decidindo se aceita ou não o risco podendo, no caso de o aceitar, impor condições especiais. O contrato forma-se com o acordo de vontades entre o tomador do seguro e a seguradora quanto aos termos e conteúdo desse contrato, consolidando-se com a aceitação da proposta, ou nos termos do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril. As comunicações desencadeadas em todo este processo seguem a forma escrita. De acordo com o n.º 1 do artigo 36.º do referido diploma, “A apólice de seguro é redigida de modo compreensível, conciso e rigoroso, e em caracteres bem legíveis, usando palavras e expressões da linguagem corrente sempre que não seja imprescindível o uso de termos legais ou técnicos”, a qual “inclui todo o conteúdo do acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis[28], devendo, pelo menos, conter os elementos identificados no n.º 2 do artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril. A apólice, documento escrito que contém os elementos essenciais do contrato, deve ser entregue ao tomador de seguro, em papel ou suporte electrónico duradouro, no prazo determinado no artigo 34.º do aludido diploma, dispondo o tomador do prazo de 30 dias sobre a data da entrega para invocar qualquer desconformidade entre o acordado e o conteúdo do referido documento, em conformidade com o disposto no artigo 35.º do mencionado Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril. Tal significa que em todo o processo formativo do contrato podia o Autor exigir da Ré todos os esclarecimentos e explicações que entendesse serem necessárias à apreensão e real conhecimento do conteúdo do contrato que se propunha subscrever, designadamente o âmbito do risco por ele coberto, estando a seguradora obrigada a prestar todas as informações ou esclarecimentos que lhe fossem solicitados. Não consta dos autos, e nem o Autor o alega, que tenha o mesmo, durante esse processo, pedido quaisquer informações à Ré seguradora e que esta se haja negado a prestá-las. Mesmo após a contratação e a emissão e entrega da apólice que, como já referiu, contém todos os elementos essenciais do contrato, incluindo as cláusulas gerais e especiais aplicáveis ao mesmo, sempre pode o tomador do seguro, no prazo de 30 dias sobre a data da entrega, solicitar à seguradora quaisquer esclarecimentos que considere necessários à compreensão do sentido e alcance do clausulado do contrato de seguro, podendo mesmo, detectando nele qualquer desconformidade com o acordado aquando da celebração do contrato, reagir contra tal desconformidade. No caso vertente, também dos autos não resulta que o Autor o tenha feito, quer no referido período, quer durante o ano de vigência do contrato, até à verificação do acidente. E tendo suportado a pretensão judicialmente deduzida contra a Ré no aludido contrato de seguro com ela celebrado, não invocou então qualquer incumprimento dos deveres de comunicação ou de informação por parte da Ré, só o fazendo – pela primeira vez – em sede de recurso para, com fundamento nesse alegado incumprimento, invocar a nulidade de algumas das cláusulas do contrato de seguro, nomeadamente a constante da cláusula 4.ª, 5, alínea a), que define os critérios para o cálculo da indemnização pelo dano biológico no caso da afectação física ou psicológica ser de grau superior a 10 pontos. Como interveniente no contrato de seguro celebrado e interessado no mesmo, exigia-se do Autor deveres de diligência elementares que necessariamente demandavam a leitura das cláusulas que integravam o contrato que subscreveu e se, não obstante essa leitura, subsistissem quaisquer dúvidas quanto ao real sentido ou alcance de uma ou mais cláusulas redigidas pela entidade seguradora, podia/devia exigir desta os esclarecimentos necessários à dissolução de tais dúvidas, a qual teria de os prestar, por a tal onerada pelo dever de informação. Não resulta minimamente demonstrado nos autos, nem o Autor sequer o invoca, mesmo em sede de alegações de recurso, que haja solicitado qualquer informação ou esclarecimento à Ré acerca do conteúdo do contrato e que esta se haja negado a fornecê-los. De acordo com o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.03.2011, “se o dever de comunicação de cláusulas contratuais gerais se destina a proteger o outorgante mais fraco dos abusos da parte mais forte e com maior poder económico, combatendo o risco de desconhecimento de aspectos significativos do contrato que vai ser celebrado, certo é também que o risco de desconhecimento de algumas cláusulas do contrato não decorre apenas do incumprimento do dever de comunicação, o qual também pode decorrer da falta de diligência da parte que vai aderir às referidas cláusulas, como sucede no caso da parte que assina um contrato contendo essas cláusulas sem ter qualquer preocupação sobre o conteúdo do documento que está a assinar. E se, na primeira situação, se justifica plenamente a protecção da parte mais fraca, o mesmo não acontece na segunda situação, já que o objectivo do legislador foi apenas o de proteger a parte mais fraca de eventuais abusos da parte mais forte e não o de proteger a parte mais fraca da sua falta de diligência. Embora considerando que o aderente está numa situação de maior fragilidade, face à superioridade e poder económico da parte que impõe as cláusulas, (por isso lhe concedendo protecção), o legislador não tratou o aderente como pessoa inábil e incapaz de adoptar os cuidados que são inerentes à celebração de um contrato e por isso lhe exigiu também um comportamento diligente tendo em vista o conhecimento real e efectivo das cláusulas que lhe estão a ser impostas. Daí que o contratante não possa invocar o desconhecimento dessas cláusulas, para efeitos de se eximir ao respectivo cumprimento, quando esse desconhecimento apenas resultou da sua falta de diligência, como acontece nas situações em que o contraente foi colocado em posição de conhecer essas cláusulas e assina sem ler o que estava a assinar e sem ter qualquer preocupação de se assegurar do respectivo teor”. * Síntese conclusiva: ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso do apelante AA, confirmando a sentença recorrida. Custas: a cargo do apelante (art.º 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil). Notifique. |