Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PEDRO VAZ PATO | ||
Descritores: | PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO PROVA DOCUMENTAL PROVAS PRÉ-CONSTITUÍDAS CRIME DE BURLA ARTIFÍCIO FRAUDULENTO | ||
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Nº do Documento: | RP20241204158/21.5GCAGD.P1 | ||
Data do Acordão: | 12/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO | ||
Indicações Eventuais: | 1.ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Constitui jurisprudência sedimentada que as provas pré-constituídas (designadamente, documentos juntos ao processo na fase de inquérito) não têm que ser lidas ou reproduzidas, enquanto tal, na audiência, naturalmente desde que submetidos à discussão e exercício do contraditório. II - Constitui o artifício fraudulento próprio do crime de burla o envio de uma mensagem ao ofendido através da rede social “Facebook” oferecendo a oportunidade de obter uma carta de condução on-line em 72 horas, solicitando, para tanto, o envio de cópia do cartão do cidadão e o pagamento de 400 €, a realizar em duas prestações. III - Que a atitude do ofendido possa ser considerada descuidada ou ingénua, em nada afasta a verificação dos elementos típicos do crime de burla; a punição deste crime visa, precisamente, tutelar a boa fé de quem (mais ou menos descuidadamente, ou mais ou menos ingenuamente) cai em enganos astuciosamente provocados. (Da responsabilidade do Relator) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 158/21.5GCAGD.P1
Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
I – AA veio interpor recurso da douta sentença do Juízo Local Criminal de … do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que o condenou, pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de cento e sessenta dias de multa, à taxa diária de cinco euros e cinquenta cêntimos.
São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
A) O Tribunal a quo julgou incorretamente os seguintes factos: 1. Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 16 de Junho de 2021, o arguido AA criou um perfil de Facebook designado “Carta de Condução online”. 2. No dia 16 de Junho de 2021, através desse perfil, enviou uma mensagem ao arguido BB, oferecendo a oportunidade de obter uma carta de condução on-line em 72 horas, solicitando, para tanto, o envio de cópia do cartão do cidadão e o pagamento de 400 €, a realizar em duas prestações, proposta que o arguido BB aceitou. 3. Assim, de acordo com instruções fornecidas pelo arguido AA, o arguido BB enviou fotografia do seu cartão de cidadão, da sua assinatura e a sua própria fotografia e, a partir da sua conta bancária, efectuou duas transferências, no valor de 200 € (duzentos euros) cada, uma no dia 5 de Agosto de 2021, e uma no dia 8 de Agosto de 2021, para a conta com o IBAN ...58, da Banco 1..., titulada pelo arguido AA. 4. Logo que enviou o segundo comprovativo, o arguido AA disse-lhe que teria de transferir mais 300 € (trezentos euros) para a mesma conta, o que veio a realizar, ainda no dia 8 de Agosto de 2021. 5. O arguido AA recebeu e fez sua a referida quantia, mas não remeteu qualquer carta de condução ao arguido BB. 6. Ao actuar da forma descrita, o arguido AA agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo, desde o momento em que contactou o arguido BB, que não era sua intenção emitir qualquer carta de condução que, aliás apenas podem ser emitidas pelas autoridades competentes. 7. Agiu assim com o propósito alcançado de acrescer a sua esfera patrimonial à custa de terceiros, cuja confiança ludibriou com a colocação de um anúncio com aparência de seriedade e obter, como efectivamente obteve, um enriquecimento que sabia ser ilegítimo. 8. Por sua vez, o arguido BB agiu também de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de obter, para utilização, uma carta de condução falsa, que bem sabia não ser emitida pelas autoridades competentes, tudo com o intuito de poder conduzir sem ser titular de título de condução que legitimamente o habilitasse para o efeito, encobrindo assim a prática do crime de condução sem habilitação legal, o que apenas não conseguiu por tal documento não lhe ter sido enviado pelo arguido AA. 9. Ambos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. B) – Com efeito, o entendimento do tribunal a quo foi que “Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 16 de Junho de 2021, o arguido AA criou um perfil de Facebook designado “Carta de Condução online”. C) - Porém, refere-se na Motivação, “Cumpre esclarecer que inexiste nos autos prova direta de que o perfil “carta de condução online” haja sido criado e utilizado pelo arguido AA, como descrito no facto provado nº 1”. D) – Mas, se não existe prova direta, certo é que também não existe prova indireta, pois a mesma também não se extrai da prova documental junta aos autos, inexistindo qualquer prova que ligue o Recorrente ao crime em análise. E) - E assim, nem com base no princípio da livre apreciação da prova, poderia o tribunal ter dado como provado que foi o arguido a praticar o fato provado em 1), devendo tal factualidade ter que ser dada como não provada, e F) - O mesmo será de dizer dos restantes fatos dados como provados em 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9. G) - O arguido/recorrente não prestou declarações e, se é certo que tal não o beneficia, certo também é que não o pode, jamais, prejudicar, inexistindo qualquer outra prova, seja pericial, seja documental, seja testemunhal, capaz de sustentar a condenação do arguido/recorrente, pois H) - Não foi produzida prova documental que sustente a condenação do arguido, tendo o tribunal para formação da sua convicção, recorrido a prova não examinada em audiência, e assim I)- A douta sentença recorrida é nula, por valoração de prova não produzida em audiência, matéria que o tribunal utilizou para fundamentar a sua convicção, violando-se assim o preceituado no artigo 355.º do CPP, ao condenar o arguido com base em provas obtidas em fase de inquérito e que não foram produzidas ou examinadas em audiência e sobre as quais não foi possível ao arguido exercer, sem qualquer restrição, o contraditório, ou seja, defender-se. J) - A condenação do arguido/recorrente pela prática dos crimes em causa, impõe que tivesse sido produzida uma prova cabal, consistente, contundente e, desde logo, suficiente, o que, não aconteceu, motivo pelo qual K) – A falta de prova bastante, impunha, como impõe, a absolvição do arguido, até mesmo por apelo ao princípio do in dubio pro reo, previsto no artº 32º nº 2 da C.R.P. L) - As presunções retiradas de que foi o arguido a criar e a utilizar o perfil no Facebook “Carta de Condução online” e os demais elementos transmitidos, designadamente o IBAN, não são suficientes, até porque nenhuma investigação ou prova pericial foi feita acerca de tal perfil, designadamente, número de telefone associado a tal conta ou mesmo a identificação do seu administrador, por forma a ter dado como certo que foi o arguido. M) - É fato incontornável que proliferam nos nossos dias a existência de muitos sites falsos, esquemas nas redes sociais e comunicações fraudulentas, assim como "múltiplos perfis falsos no Facebook", que permitem que burlões e falsários atuem sob cobertura do anonimato, utilizando dados ou elementos de identificação de outras pessoas. N) - Assim, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127.º do C.P.P., revela-se insuficiente para a conclusão de que foi o ora Recorrente a praticar o crime de burla e muito menos para se enveredar pela condenação. O) - No que concerne ao processo enganatório, exige o legislador que o mesmo seja gerado através de astúcia, causando esta o engano do burlado sobre factos, o que implica, como é evidente, que se exige uma indução astuciosa para a prática de factos, todo um tipo de comportamentos, de maquinação, de manha, de artifício fraudulento, de cenário enganador, de montagem ardilosa, os quais, aos olhos de quem vai ser burlado, sustentem uma aparência de credibilidade e correção de posturas, que a levam a cometer atos dos quais irá decorrer o necessário prejuízo patrimonial. P) - Não basta assim a mera mentira, desligada de quaisquer outros elementos, para se poder falar em criação astuciosa de factos em sede de burla, não podendo o ofendido ignorar que não deveria confiar em alguém que não conhece, não vê, não controla e não lhe confere, em termos objetivos, quaisquer garantias da seriedade de propósitos, mais quando sabia que tentava adquirir uma carta falsa. Q) - Na decisão fundada em factos incertos, a dúvida deve favorecer o arguido, sob pena de ser violado o princípio básico do Processo Penal “in dubio pro reo”. R) - Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 355º e alínea a) e c), do nº 2 do artigo 410º do Código Processo Penal e artigo 32º e 18º da Constituição da República Portuguesa, pelo que a douta sentença recorrida deve ser revogada».
O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.
O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.
II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes: - saber se a sentença recorrida é nula, por valoração de prova não produzida em audiência, contra o disposto no artigo 355.º do Código de Processo Penal; - saber se a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova (nos termos do artigo 410º, nº 2, c), do Código de Processo Penal), devendo o arguido, também à luz do princípio in dubio pro reo, ser absolvido da prática do crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, por que foi condenado; - saber se a factualidade provada não integra a prática do crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, por que o arguido foi condenado.
III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:
«(…) III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A. Factos provados 1. Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 16 de Junho de 2021, o arguido AA criou um perfil de Facebook designado “Carta de Condução online”. 2. No dia 16 de Junho de 2021, através desse perfil, enviou uma mensagem ao arguido BB, oferecendo a oportunidade de obter uma carta de condução on-line em 72 horas, solicitando, para tanto, o envio de cópia do cartão do cidadão e o pagamento de 400 €, a realizar em duas prestações, proposta que o arguido BB aceitou. 3. Assim, de acordo com instruções fornecidas pelo arguido AA, o arguido BB enviou fotografia do seu cartão de cidadão, da sua assinatura e a sua própria fotografia e, a partir da sua conta bancária, efectuou duas transferências, no valor de 200 € (duzentos euros) cada, uma no dia 5 de Agosto de 2021, e uma no dia 8 de Agosto de 2021, para a conta com o IBAN ...58, da Banco 1..., titulada pelo arguido AA. 4. Logo que enviou o segundo comprovativo, o arguido AA disse-lhe que teria de transferir mais 300 € (trezentos euros) para a mesma conta, o que veio a realizar, ainda no dia 8 de Agosto de 2021. 5. O arguido AA recebeu e fez sua a referida quantia, mas não remeteu qualquer carta de condução ao arguido BB. 6. Ao actuar da forma descrita, o arguido AA agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo, desde o momento em que contactou o arguido BB, que não era sua intenção emitir qualquer carta de condução que, aliás apenas podem ser emitidas pelas autoridades competentes. 7. Agiu assim com o propósito alcançado de acrescer a sua esfera patrimonial à custa de terceiros, cuja confiança ludibriou com a colocação de um anúncio com aparência de seriedade e obter, como efectivamente obteve, um enriquecimento que sabia ser ilegítimo. 8. Por sua vez, o arguido BB agiu também de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de obter, para utilização, uma carta de condução falsa, que bem sabia não ser emitida pelas autoridades competentes, tudo com o intuito de poder conduzir sem ser titular de título de condução que legitimamente o habilitasse para o efeito, encobrindo assim a prática do crime de condução sem habilitação legal, o que apenas não conseguiu por tal documento não lhe ter sido enviado pelo arguido AA. 9. Ambos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. Mais se provou que, 10. BB encontra-se inscrito numa Escola de Condução, situada em ..., desde novembro de 2023. 11. O arguido AA já foi condenado: Por decisão proferida em 22 de Setembro de 2016 e transitada em julgado em 24 de Outubro de 2016, no proc. n.º …, pela prática, em 28 de Fevereiro de 2014, de um crime de furto qualificado, na pena de 100 dias de multa, pena que foi extinta em 31 de Maio de 2021. 12. O arguido BB já foi condenado: Por decisão proferida em 7 de Setembro de 2022 e transitada em julgado em 17 de Outubro de 2022, no proc. n.º …., pela prática, em 25 de Agosto de 2022, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, pena que foi extinta em 25 de Maio de 2023, Por decisão proferida em 20 de Setembro de 2023 e transitada em julgado em 23 de Outubro de 2023, no proc. n.º …, pela prática, em 3 de Setembro de 2023, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 130 dias de multa, e Por decisão proferida em 31 de Outubro de 2023 e transitada em julgado em 30 de Novembro de 2023, no proc. n.º …, pela prática, em 10 de Outubro de 2023, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 12 meses. Condições sócio-económicas do arguido AA 13. O arguido AA tem o 4.º ano de escolaridade. 14. Mensalmente, realizando trabalho esporádico (biscates) de electricista e canalizador, aufere cerca de 400 € / 500 €. 15. Reside com a ex-mulher e com a filha de 16 anos de idade, para a qual despende 150€, a título de pensão de alimentos. 16. A casa onde reside é arrendada, para cujas despesas contribui em cerca de 200 € / 300 €. 17. Despende cerca de 80 € em medicação. Condições sócio-económicas do arguido BB 18. O arguido tem o 12.º ano de escolaridade. 19. Encontra-se há cerca de 3 anos a trabalhar numa empresa de fabrico de mobiliário de escritório, sediada em ..., com contrato efectivo, onde exerce funções de operário fabril e aufere, mensalmente, o salário de 820 €. 20. Actualmente, reside com CC, em ..., numa habitação arrendada, T3, propriedade de uma tia paterna, que, segundo o casal, dispõe das condições necessárias e onde gostam de viver, pela qual paga de renda o valor de 280 €. 21. A companheira CC trabalhava, até há cerca de uma semana, em regime de part-time, numa padaria, onde auferia 400€. 22. Ao nível dos encargos mensais, o arguido suporta o valor de 102 € para o empréstimo do carro. * B. Factos não provados Inexistem. * O Tribunal não se pronunciou quanto à demais matéria vertida na acusação, em virtude de a mesma ser desprovida de relevância para a presente decisão ou se tratar de matéria de carácter conclusivo. * C. Motivação O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade dada como provada e não provada na concatenação e análise crítica de toda a prova, quer a que resulta dos autos, como a produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente confrontada com as regras da experiência comum e com a livre convicção do julgador. Todos os elementos de prova foram apreciados à luz do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que preceitua o princípio da livre apreciação da prova. Os arguidos optaram por não prestar declarações quanto aos factos que lhes são imputados, exercendo um direito que lhe assiste e que não os pode desfavorecer. Todavia, prestaram declarações quanto ao respectivo enquadramento sócio-económico (factos provados n.ºs 13 a 17, quanto ao arguido AA, e n.ºs 18 a 22, quanto ao arguido BB), que, não sendo contrariadas por qualquer outro meio de prova, mereceram a credibilidade do Tribunal, encontrando-se ainda sustentadas, no caso do arguido BB, pelo relatório social elaborado pela DGRSP. Assim, o Tribunal estribou-se na prova documental existente nos autos, nomeadamente: • No auto de notícia, de fls. 25 e 26, que suporta a apresentação de queixa por parte do arguido BB, conjugado com os prints de fls. 32 a 45, quanto à abordagem, em 16 de Junho de 2021, ao arguido BB, e quanto aos pagamentos, para obtenção de carta de condução, de 200 €, 200 € e 300 €, para o NIB ...58, e com os talões de transferência de fls. 30 (factos provados n.ºs 2 a 4), e • Nas informações bancárias de fls. 55 a 117 e 218 a 244, quanto à constituição da conta bancária ..., gerida pela Banco 1..., com o IBAN ...58, que se trata de uma conta individual aberta através de vídeo-chamada ou de chave móvel digital exclusivamente pelo seu titular (não admite procuradores, nem representantes), pelo arguido AA, único titular, conforme fotografia captada na altura dessa constituição e cartão de cidadão associado (facto provado n.º 3, in fine). A prova do facto n.º 5 retira-se, não só das mensagens trocadas no Facebook, entre o arguido AA e BB (prints de fls. 32 a 45), em que este solicita o envio da carta de condução ou a devolução da quantia transferida, sob pena de se dirigir à GNR para apresentação de queixa, bem como também do auto de notícia, que suporta a queixa deste contra aquele (auto de notícia de fls. 25 e 26). Cumpre esclarecer que inexiste nos autos prova directa de que o perfil “carta de condução online” haja sido criado e utilizado pelo arguido AA, como descrito no facto provado n.º 1. Não obstante, incumbe ressaltar que o sistema processual penal português é inspirado pelo princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”[1]. Por conseguinte, o processo de formação da convicção do julgador, deverá observar, como primeiras regras, “as da lógica – que resultam da estrutura nomológica da realidade física e emergem, fundamentalmente, da intervenção do princípio da causalidade –, seguidas pelas regras da experiência – resultantes da acumulação de experiência do homem comum ao longo dos séculos sobre o normal acontecer das coisas”, exceptuando, naturalmente, as hipóteses em que a prova provenha de documentos autênticos e autenticados (artigo 169.º Código de Processo Penal), de confissão integral e sem reservas (artigo 344.º Código de Processo Penal), da realização de perícia (artigo 163.º Código de Processo Penal) ou se esteja perante caso julgado (artigo artigo 84.º Código de Processo Penal), cujo valor probatório se encontra subtraído à livre apreciação do julgador [2]. No âmbito do processo penal, de harmonia com o disposto no artigo 125.º do Código de Processo Penal, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, afigurando-se “legítimo o recurso a presunções simples, naturais, ou judiciais que o art. 349.º, do Cód. Civil, conceptualiza como «as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido,» sendo as presunções judiciais admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal”, em conformidade com o preceituado no artigo 351.º do Código Civil[3]. Nesta medida, a presunção é uma manifestação do raciocínio indutivo assente na ideia de probabilidade, permitindo, a partir de um facto conhecido, alcançar um facto desconhecido, sem necessidade de verificação ou prova directa do facto presumido. Destarte, “o fundamento lógico da indução é a probabilidade racional de vir a acontecer o facto presumido, uma vez verificado o facto real”, assentando tal probabilidade nas regras da experiência comum[4]. Com efeito, dos elementos constantes dos autos, designadamente, os prints das mensagens trocadas, de fls. 32 a 45, conjugados com as informações bancárias de fls. 55 a 117 e 218 a 244, mostra-se possível extrair que o perfil “carta de condução online” foi criado e utilizado pelo arguido AA, porquanto, todos os dados aí transmitidos, nome do banco, titular da conta e IBAN, somente se relacionam com o mesmo. Com efeito, considerando que essa conta é apenas possível constituir através de vídeo-chamada ou utilização de chave móvel digital, pelo próprio e que, aquando da constituição de tal conta haverem sido enviado o cartão de cidadão e captada a fotografia do arguido AA, dúvidas não subsistem de ser este a pessoa associada a tal perfil do Facebook. No que concerne à matéria vertida nos n.ºs 6, 7 e 9 da factualidade demonstrada, importa assinalar que, apesar de se referir a elementos pertencentes ao foro interno do arguido AA, e não tendo este prestado declarações, foram os mesmos alcançados através de factos materiais e presunções, a partir dos quais foi possível extrair conclusões alicerçadas nas regras da experiência comum e da normalidade do acontecer. Assim, as mensagens trocadas e as transferências efectuadas pelo arguido BB, conjugados com as regras da lógica e da experiência comum, resultou também provado que o arguido quis usar de logro e convencer emitia cartas de condução, obtendo, assim, enriquecimento ilegítimo, demonstrativo de ter agido livre e voluntariamente, e com conhecimento e consciência do carácter ilícito e desvalioso da sua conduta. No tocante à prova dos factos quanto ao arguido BB, vale a fundamentação anteriormente descrita, acrescentando-se constar, das mensagens trocadas dos prints, de fls. 32 a 45, consta, não só, o cartão de cidadão deste arguido, como também, uma fotografia e assinatura suas. De igual maneira, quanto às matéria plasmada nos n.ºs 8 e 9 da factualidade demonstrada, apesar de se referir a elementos pertencentes ao foro interno do arguido BB e este não ter prestado declarações, foram os mesmos alcançados através de factos materiais e presunções, a partir dos quais foi possível extrair conclusões alicerçadas nas regras da experiência comum e da normalidade do acontecer. Assim, as mensagens trocadas e as transferências efectuadas pelo arguido BB, conjugados com as regras da lógica e da experiência comum, resultou também provado que o arguido pretendia obter uma carta de condução, sabendo que a mesma era emitida, somente, pelas entidades competentes (tanto assim é que, actualmente, se encontra inscrito em escola de condução) e utilizá-la no exercício da condução, não o conseguindo por o arguido AA nada ter enviado, demonstrativo de ter agido livre e voluntariamente, e com conhecimento e consciência do carácter ilícito e desvalioso da sua conduta. A prova do facto n.º 10 decorreu do documento junto pelo arguido BB, com a sua contestação, comprovativo da sua inscrição em Escola de Condução. Para prova dos antecedentes criminais dos arguidos AA e BB, valoraram-se, respectivamente, os certificados de registo criminal juntos em 7 de Março de 2024 (factos provados n.ºs 11 e 12). *** IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO A. Enquadramento jurídico-penal Do crime de burla O arguido AA vem acusado de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal. Dispõe o artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal que, “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. Na óptica de Almeida Costa[5], o tipo de ilícito em causa tem como bem jurídico protegido o património, “globalmente considerado”, como o conjunto de todas as "situações" e "posições" com valor económico detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica. Já Paulo Pinto de Albuquerque[6] entende que o bem jurídico em causa é o património de outrem, este com uma conotação jurídico-económica, englobando, assim, todos os direitos, posições jurídicas e expectativas com valor económico compatíveis com a ordem jurídica. Protege-se, assim, o património, considerando que este tipo de ilícito exige que, • o agente tenha a intenção de obter para si, ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo, • com tal objectivo, astuciosamente, induza em erro ou engano o ofendido sobre factos, e • dessa forma determine o mesmo ofendido à prática de atos que causem a este ou a outra pessoa, prejuízos patrimoniais. Neste sentido, será ofendido no crime de burla a pessoa cujo património ficou diminuído em face da prática do crime, que pode não corresponder à pessoa que é objecto do logro. O crime de burla é um crime doloso e um crime de execução vinculada na medida em que a lesão do bem jurídico ocorre por força da utilização de um meio enganoso com intuito de induzir outra pessoa em erro que, por sua vez, leva a pessoa a praticar actos dos quais resultam prejuízos patrimoniais na sua esfera ou na esfera de outrem.Na verdade, sendo o erro e o engano elementos do tipo objectivo da burla, eles têm que estar em relação: de um lado, com os meios empregues pelo burlão e, do outro, com os actos que vão directamente defraudar o património do lesado, exigindo-se, assim, para o preenchimento deste tipo objectivo de crime a existência de um duplo nexo de causalidade. Nesta medida, a conduta astuciosa do burlão há-de motivar o erro ou engano e, em consequência disso, a vítima procederá ao acto de que resulta o prejuízo patrimonial. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de Janeiro de 2017[7], onde se afirma “o erro do sujeito passivo deverá ser provocado astuciosamente, pressupondo um comportamento que – pelo seu especial engenho ou astúcia que reveste –, se mostre susceptível de iludir o lesado, devendo este advérbio ser entendido como uma mentira qualificada”. A astúcia é a habilidade para enganar, a subtileza para defraudar. Note-se que para haver astúcia não é necessário um artifício necessariamente complicado, um processo rebuscado. Esta pode partir das mais variadas manobras, desde a simples mentira que, em face das circunstâncias envolventes, se tornam credíveis perante o homem médio, até às maquinações complexas e multiformes ou aos mais elaborados artifícios suscetíveis de levar a vítima a uma falsa representação da realidade. Essencial é que esta conduta astuciosa seja de molde a determinar um erro na vítima, exigindo-se, para esse efeito, que a conduta do burlão seja causal do erro do burlado e não meramente acidental, isto é, é necessário que a vítima tenha sido induzida a crer numa falsa representação da realidade, em termos equivalentes ao vício na formação da vontade – uma falta ou falsa representação da realidade, astuciosamente provocada pelo burlão. Como consequência do erro, a vítima deverá realizar o outro elemento do tipo objectivo: um acto de disposição patrimonial. É necessário que ocorra, num comportamento voluntário da vítima[8], uma disposição patrimonial da vítima e que tal leve ao seu empobrecimento ou de terceiro, sob pena de se estar perante o crime de burla na sua forma tentada. A burla é, assim, um crime de dano, porquanto a sua consumação pressupõe um prejuízo patrimonial efectivo (completa-se quanto aos seus elementos objectivos com o prejuízo patrimonial), para o burlado ou para terceiro. Mas, no que toca ao enriquecimento ilegítimo do agente, não é necessário que o mesmo ocorra efectivamente para que o crime seja consumado. Na verdade, o crime de burla é um crime de resultado parcial ou cortado[9], pois caracteriza-se por uma "descontinuidade" ou "falta de congruência" entre os correspondentes tipos subjectivo e objectivo, uma vez que se exige que o agente actue com a intenção de obter – para si ou para outrem – um enriquecimento ilegítimo, mas a consumação do crime não depende da concretização desse enriquecimento, bastando que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento da vítima. São, pois e em suma, elementos típicos do crime de burla, a. Que o agente tenha a intenção de obter para si, ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo, b. Com tal intuito, astuciosamente, induza outrem em erro ou engano, c. Determinando outrem à prática de factos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial. Nas palavras do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14 de Dezembro de 2017[10], “comete um crime de burla quem coloca um anúncio de venda de um anel na rede social do ‘facebook’, acorda e recebe o pagamento antecipado do preço respectivo e não entrega tal anel ao comprador, sem nunca ter tido a intenção de o entregar”. Na verdade, a utilização de sites, quer destinados a vendas, quer de redes sociais, como o Facebook, facilita a divulgação dos anúncios e a troca de bens. Contudo, tem também a característica de dificultar o contacto directo entre vendedores e compradores, permitindo-lhes manter um relativo anonimato, potenciando, assim, esquemas enganadores e fraudulentos. No que concerne aos elementos subjectivos do tipo de ilícito em apreço, este é um crime doloso, sendo que pressupõe a existência de dolo em relação a todos os elementos objectivos do tipo e, ainda, um dolo específico, revelador de uma intenção de enriquecimento ilegítimo de tal forma que o modo pelo qual se realiza essa intenção se revele engenhoso, enganoso, criando a aparência de realidades que não existem, ou falseando directamente a realidade. * No caso em apreço, resultou provado que o arguido AA, no perfil “carta de condução online” da rede social Facebook, fez uma publicação em que anunciava a possibilidade de obtenção de uma carta de condução online, em 72 h, solicitando o envio do cartão de cidadão e o valor de 400 €, proposta que o arguido BB aceitou (factos provados n.ºs 1 e 2). Para esse efeito, o arguido BB transferiu a quantia global de 700 € (factos provados n.ºs 3 e 4), quantia que foi, efectivamente, creditada na conta bancária com o IBAN ...58, da Banco 1..., titulada pelo arguido AA. Não obstante ter recebido a quantia solicitada, o arguido não procedeu ao envio de qualquer carta de condução, nem tal era sua intenção, tanto que, as mesmas, são emitidas pelas entidades competentes (factos provados n.ºs 5 e 6), tendo feito seu tal montante. Por outras palavras, o arguido criou astuciosamente um perfil e anunciou publicamente na rede social Facebook, fazendo crer que emitia cartas de conduções em 72 h, mediante o pagamento do valor de 400 €, de modo a causar o engano nos sujeitos que visualizassem o anúncio e acreditassem na fidedignidade do mesmo. Logrando esse intento, enganou o arguido BB, convencendo-o de que iria enviar-lhe uma carta de condução, após pagamento, sabendo que não o iria fazer, nem poderia. Acresce que a quantia de 700 € foi creditada na conta do arguido AA, causando a BB um prejuízo/empobrecimento de montante equivalente, através do engano, o que quis e logrou concretizar (facto provado n.º 7). No mais, provou-se que o arguido agiu livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (facto provado n.º 6, 7 e 9) e que, pela sua conduta enganosa, prejudicava – como pretendia – BB. Na medida em que sabia que a sua conduta era proibida e punida criminalmente, o arguido podia e devia ter-se abstido de a praticar, o que não sucedeu, pelo que não pode deixar de lhe ser dirigido um juízo de censura jurídico-penal à actuação do mesmo. Atento o exposto, conclui-se que a conduta do arguido AA preenche os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de burla e, inexistindo qualquer facto que exclua a ilicitude ou a culpa da sua conduta, impõe-se a sua condenação pela prática do crime que lhe vem imputado, nos termos do n.º 1 do artigo 217.º do Código Penal. (…)»
IV 1. – Cumpre decidir. Vem o arguido e recorrente alegar que a sentença recorrida é nula, por valoração de prova não produzida em audiência, contra o disposto no artigo 355.º do Código de Processo Penal. Alega que essa sentença se baseou em provas obtidas na fase de inquérito que não foram produzidas ou examinadas em audiência, sobre as quais não lhe foi possível exercer, sem quaisquer restrições, o contraditório. Vejamos. Valem neste caso as considerações tecidas no acórdão da Relação de Coimbra de 12 de setembro de 2018, proc. n.º 696/15.9T9CTB.C1, relatado por Belmiro Andrade (in www.dgsi.pt), que correspondem ao sentido uniforme da jurisprudência e que aqui se transcrevem: «Estabelece o art. 355º, nº 1 do CPP: Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiveram sido produzidas ou examinadas em audiência. Existem provas que têm que ser produzidas em audiência. Mas existem outras, chamadas pré-constituídas, de natureza material, documental, pericial, prova produzida por carta rogatória ou precatória que, uma vez obtidas, são incorporadas nos autos, em regra antes da acusação onde são arroladas como meio de prova da matéria da acusação. Estas não são produzidas em audiência pela evidência de que foram produzidas e incorporadas nos autos antes do início da audiência de discussão, apenas ali sendo examinadas e discutidas, de acordo com a sua natureza. A este respeito observa com propriedade Maia Gonçalves (CPP Anotado, Ed. Almedina, 16ª, em anotação ao art. 355º): “há que esclarecer, pois tem reinado alguma confusão sobre este ponto, que os documentos constantes do processo se consideram produzidos em audiência independentemente de nesta ser feita a respectiva leitura, visualização ou audição”. Nesta linha constitui jurisprudência sedimentada que as provas pré-constituídas não têm que ser lidas ou reproduzidas, enquanto tal, na audiência, naturalmente desde que submetidos á discussão e exercício do contraditório – neste sentido, cfr., entre muitos outros: Ac. STJ de 10.11.1993, CJ/STJ, tomo 3, 233; Ac. STJ de 25.02.1993, BMJ 424, p. 535; Ac. STJ de 23.05.1994, p. 46218/3ª; Ac. STJ de 10.07.1996, CJ/STJ, tomo 2, 229; Ac. STJ de 27.01.1999, SASTJ, nº 27, p 83. Este entendimento foi sujeito ao escrutínio do TC que reconheceu a sua conformidade à Lei Fundamental – cfr. designadamente AC.T.C. nº 87/99 de 10.02, DR IIS de 01.07.1999.» Ora, no caso em apreço, as provas documentais em que se baseou a sentença recorrida constam do processo, foram indicadas como meio de prova na acusação e sempre estiveram acessíveis para consulta do arguido, que teve oportunidade de em audiência discutir o seu valor probatório. Este não foi, por isso, de qualquer forma limitado no exercício do contraditório e dos seus direitos de defesa. Nessa perspetiva, nenhuma vantagem haveria na leitura em audiência desses documentos. Não se verifica, pois, a nulidade invocada pelo arguido e recorrente. Deverá, assim, ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto.
IV 2. - Vem o arguido e recorrente alegar que a sentença recorrida padece de erro na apreciação da prova, devendo ele ser, também à luz do princípio in dubio pro reo, absolvido da prática do crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, por que foi condenado. Alega que não foi produzida qualquer prova (direta ou indireta, testemunhal, documental ou pericial) que permita liga-lo a essa prática, pois não pode excluir-se a hipótese da falsidade do perfil criado em seu nome no Facebook, sendo que não foi efetuada qualquer investigação ou prova pericial acerca de tal perfil. Vejamos. Importa, antes de mais, esclarecer que não estamos perante uma impugnação da matéria de facto provada, nos termos do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal. Estará, antes, em causa um eventual erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, c), do Código de Processo Penal, vício que deverá resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Constitui erro notório de apreciação da prova a violação de regras da lógica e da experiência comum que não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio (ver, neste sentido, entre muitos outros, o acórdão do S.T.J. de 9 de fevereiro de 2005, proc nº 04P4721, relatado por Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt). Há que considerar também o seguinte. A prova dos factos não tem de ser direta, pode ser indireta. Como se refere, entre outros no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2010, proc. nº 86/06.0GBPRD.P1.S1, relatado por Soares Ramos (sum. in www. dgsi.pt): «Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser directa e imediatamente percepcionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não foram proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC). As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indirecta, mediante o qual o julgador adquire a percepção de um facto diverso daquele que é objecto directo imediato de prova, sendo exactamente através deste que, uma vez determinado usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objecto de prova)». No caso em apreço, a fundamentação da sentença recorrida expõe com clareza os factos que considera prova indireta da prática do crime de burla em causa pelo arguido. Nestes termos: «Com efeito, dos elementos constantes dos autos, designadamente, os prints das mensagens trocadas, de fls. 32 a 45, conjugados com as informações bancárias de fls. 55 a 117 e 218 a 244, mostra-se possível extrair que o perfil “carta de condução online” foi criado e utilizado pelo arguido AA, porquanto, todos os dados aí transmitidos, nome do banco, titular da conta e IBAN, somente se relacionam com o mesmo. Com efeito, considerando que essa conta é apenas possível constituir através de vídeo-chamada ou utilização de chave móvel digital, pelo próprio e que, aquando da constituição de tal conta haverem sido enviado o cartão de cidadão e captada a fotografia do arguido AA, dúvidas não subsistem de ser este a pessoa associada a tal perfil do Facebook.» Perante estes factos, designadamente o modo de criação do perfil em causa, é legítimo concluir, à luz das mais elementares regras da lógica e da experiência comum, que esse perfil não pode deixar de ter sido criado pelo arguido e recorrente; não se trata, pois, de um perfil falso. Nenhum facto alegado pelo arguido obsta a tal conclusão e para a ela chegar nenhum exame pericial será necessário. A prova assenta, pois, num juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), não de mera suspeita, ou de maior ou menor probabilidade. Não se verifica, pois, qualquer violação do princípio in dubio pro reo. Deverá, assim, ser negado provimento ao recurso também quanto a este aspeto.
IV 3. Vem o arguido e recorrente alegar que a factualidade provada não integra a prática do crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, por que foi condenado. Alega que esse tipo de crime supõe um engano gerado através de astúcia, ou seja, comportamentos de maquinação, de manha, de artifício fraudulento, de cenário enganador, de montagem ardilosa, os quais devem surgir aos olhos da vítima com uma aparência de credibilidade e correção de posturas, que a levem a cometer atos que causem prejuízo patrimonial. Não basta a simples mentira, desligada de quaisquer outros elementos, para se poder falar em criação astuciosa de factos. No caso vertente, não se verifica essa criação astuciosa, pois o ofendido sabia que não deveria confiar em alguém que não conhece, não vê, não controla e não lhe confere, em termos objetivos, quaisquer garantias da seriedade de propósitos, ainda porque sabia que tentava adquirir uma carta falsa. Vejamos. De acordo com uma fórmula corrente na doutrina e jurisprudência, as simples dissimulações ou mentiras, mesmo reiteradas, não podem constituir o artifício fraudulento, característico da burla, se não se lhes juntar algum facto exterior, ou ato material, ou alguma encenação (mise em scène) ou intervenção de terceiro, destinadas a dar-lhes força e crédito. Esse artifício fraudulento (ou ardil) constitui a astúcia a que se refere a definição do tipo de crime de burla no artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. No caso em apreço, o ofendido só efetuou pagamentos ao arguido recorrente porque estava erradamente convencido de que este diligenciaria pela obtenção de uma carta de condução de que poderia ver a ser titular. Esse erro foi astuciosamente provocado pelo arguido e recorrente. A astúcia (o ardil, a mise em scéne) consistiu no envio de uma mensagem ao ofendido através da rede social “Facebook” oferecendo a oportunidade de obter uma carta de condução on-line em 72 horas, solicitando, para tanto, o envio de cópia do cartão do cidadão e o pagamento de 400 €, a realizar em duas prestações. Este facto externo vai para além de uma simples mentira, dá consistência e credibilidade à declaração falsa em causa. Pode, por isso, ser considerado integrantes da “astúcia”, ou do “ardil”. Que a atitude do ofendido possa ser considerada descuidada ou ingénua, em nada afasta a verificação dos elementos típicos do crime de burla. A punição deste crime visa, precisamente, tutelar a boa fé de quem (mais ou menos descuidadamente, ou mais ou menos ingenuamente) cai em enganos astuciosamente provocados, como os que se verificam na situação em apreço. Pode ver-se, a respeito de uma situação semelhante (uma venda de um anel também através de um anúncio na rede social “Facebook”), o acórdão desta Relação de 14 de dezembro de 2017, proc. n.º 460/15.5PAMAI.P1, relatado por Pedro Vaz Pato, in www.dgsi.pt), Também não afasta a prática do crime o facto de a conduta do ofendido configurar a tentativa de um crime de falsificação de documento (ele pretendia adquirir uma carta de condução falsa, diligenciou nesse sentido e sabia que tal o faria incorrer em responsabilidade criminal). Por isso, foi ele também condenado neste processo. Mas não deixa de ser vítima de um crime de burla, nem a conduta do arguido ora recorrente deixa, por isso, de ser punível. Deverá, então, ser negado provimento ao recurso também quanto a este aspeto.
O arguido e recorrente deverá ser condenada em taxa de justiça (artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
. V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo o douto acórdão recorrido.
Condenam o arguido e recorrente em três (3) U.C.s de taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique
Porto, 4 de dezembro de 2025 (processado em computador e revisto pelo signatário)
(Pedro Maria Godinho Vaz Pato) (Lígia Trovão) (Maria do Rosário Silva Martins) ______________________ [1] ver Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 9 de Novembro de 2022, prolatado no Processo n.º 62/17.1PKLSB.L1-3, disponível em www.dgsi.pt |